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Fantasia e conhecimento: um estudo crítico preliminar

Imagination and knowledge: a preliminary critical study

Resumos

Neste artigo discute-se o lugar ocupado pela fantasia no processo de produção do conhecimento. A partir do referencial fornecido por autores ligados à Escola de Frankfurt, procurou-se demonstrar que a fantasia possui uma função crítica, negada pela concepção positivista de ciência, que pode contribuir para o questionamento da maneira pela qual a realidade se encontra constituída.

Fantasia; Conhecimento; Teoria crítica; Positivismo; Realidade


The purpose of this article is to discuss the role played by imagination in the process of knowledge production. Using as theoretical support the ideas of some philosophers of the Frankfurt School, the text attempts to demonstrate that imagination has a critical function, denied by positivism, which could contribute for the questioning of the organization of society.

Fantasy; Knowledge; Critical theory; Positivism; Reality


FANTASIA E CONHECIMENTO: UM ESTUDO CRÍTICO PRELIMINAR

Luis Guilherme Coelho Mola1 1 Endereço para correspondência: Universidade São Judas Tadeu. Rua Taquari, 546. São Paulo, SP. E-mail: lgcoelho@uol.com.br

Universidade São Judas Tadeu

Neste artigo discute-se o lugar ocupado pela fantasia no processo de produção do conhecimento. A partir do referencial fornecido por autores ligados à Escola de Frankfurt, procurou-se demonstrar que a fantasia possui uma função crítica, negada pela concepção positivista de ciência, que pode contribuir para o questionamento da maneira pela qual a realidade se encontra constituída.

Descritores: Fantasia. Conhecimento. Teoria crítica. Positivismo. Realidade.

A realidade é, para o sujeito, fruto de um trabalho. Essa afirmação, no entanto, não advoga uma primazia do sujeito sobre a realidade, uma vez que nesse trabalho o próprio sujeito se constitui. Modificar a natureza, procurar escapar do duro jugo de suas determinações, construir leis onde o acaso impera, eis o esforço do sujeito para estabelecer-se como unidade contra um fundo de indiferenciação. A realidade não se oferece pronta, acabada, restando ao homem apenas a tarefa de adequar seu sistema perceptivo de maneira a percebê-la o mais fielmente possível. Não é também algo criado do nada, estritamente subjetivo, que desconsidera o limite que a concretude das coisas impõe.

Tal concepção afasta-se tanto de um empirismo positivista, que restringe a realidade a uma coleção organizada de fatos e dados, quanto de uma metafísica idealista, que considera o mundo como produto exclusivamente da razão.

Na tensão entre o sujeito e a realidade, a razão está sem dúvida presente, porém como potência negativa: "O mundo da experiência imediata - o mundo em que nos encontramos vivendo - deve ser compreendido, transformado e até subvertido para se tornar aquilo que verdadeiramente é" (Marcuse, 1982, p. 125). Partindo dessa afirmação, vejamos brevemente quais foram as tentativas de ultrapassar esse "mundo da experiência imediata" e as formas que a razão foi assumindo nesse processo.

O questionamento da possibilidade de um contato direto, imediato, com os objetos da realidade através do sistema perceptivo constitui um dos principais (senão o principal) pontos de partida da filosofia clássica grega que, recusando a explicação mítica, busca através da razão a compreensão do real. "A natureza ama esconder-se," dizia Heráclito, mostrando que a aparência imediata precisa ser ultrapassada por aqueles que desejarem conhecer a realidade. A racionalidade não aparece aqui apenas como um movimento subjetivo na tentativa de apreensão do real, mas sim como fator constitutivo desse real (Marcuse, 1982).

Nesse momento da reflexão filosófica caberia à razão apreender uma realidade em constante tensão entre ser e devir, entre essência e aparência, ou seja, uma realidade em si contraditória:

Razão é a faculdade cognitiva para distinguir o que é verdadeiro do que é falso na medida em que a verdade (e a falsidade) é primordialmente uma condição do Ser, da Realidade e somente nesse terreno uma propriedade das proposições (Marcuse, 1982, p. 126).

A contradição não pode, dentro deste referencial, ser reduzida a um mero equívoco do pensamento. No entanto, o curso da História acaba por reduzir esse "universo bidimensional da locução" (Marcuse, 1982, p. 131) à unidimensionalidade, condição necessária para o desenvolvimento tecnológico, conforme será visto mais adiante.

Na filosofia originária da dialética há uma fusão entre epistemologia e ética, pois conhecer a Verdade implicava em lutar pela sua realização, seja procurando-a por trás das aparências, seja defendendo-a da possibilidade de não existir (Não-ser). Entretanto, dentro deste mesmo referencial, a verdade só poderia ser conhecida por aqueles que não estivessem submetidos à necessidade, ou seja, à luta pela subsistência. Nesse momento, ainda segundo Marcuse (1982), "... a barreira histórica detém e deforma a busca da verdade: a divisão social do trabalho obtém a dignidade de uma condição ontológica" (p. 130).

Como privilégio de uma minoria, a possibilidade de acesso à verdade contradiz seu caráter universal, que só pode ser preservado colocando-a fora da realidade histórica: o pensamento, que tocado pela verdade era impelido a modificar a realidade em função da primeira, só pode agora atingi-la se estiver liberto do jugo da necessidade.

Na lógica dialética, as proposições, ainda que afirmativas, contêm um elemento de subversão da realidade: "... o predicativo ‘é’ implica num ‘deve,’ " ou ainda: "... não declara um fato, mas a necessidade de ocasionar um fato" (Marcuse, 1882, p. 32). No entanto, na lógica aristotélica essas duas dimensões deixam de estar presentes na apreensão dos objetos da realidade: o pensamento torna-se indiferente a seus objetos e a lógica passa a ser formal: "É o juízo que reúne (afirma) ou separa (nega) e é ele que é verdadeiro ou falso. Verdadeiro quando une o que está unido na realidade e separa o que está separado na realidade; falso no caso contrário" (Chauí, 1994, p. 259).

Ocorre aí uma separação entre a esfera ética e a esfera ontológica, e a relação do pensamento com a realidade deixa de ser de antagonismo e passa a ser de correspondência: se existe contradição, ela se deve ao pensamento, e não à realidade. Para Marcuse (1982), essa separação já está presente na passagem da lógica dialética platônica para a lógica apofântica aristotélica.2 1 Endereço para correspondência: Universidade São Judas Tadeu. Rua Taquari, 546. São Paulo, SP. E-mail: lgcoelho@uol.com.br

Nesse trabalho de união e separação, o juízo enfrenta um aspecto particularmente difícil: as paixões, os desejos o desviam de seu caminho em direção à apreensão correta da realidade. Portanto, a razão deve seguir normas e regras que afastem essas interferências a fim de distinguir corretamente o real do aparente.

Segundo Rouanet (1990), a história das tentativas de evitar ou minimizar essas interferências confunde-se com a história da epistemologia. O autor identifica três períodos distintos: o pré-moderno, no qual os possíveis erros eram atribuídos à falibilidade dos sentidos, sendo no entanto corrigíveis pelo bom uso da razão; o moderno, em que há radicalização da preocupação metodológica e tentativa de se estabelecerem os limites da razão; e o iluminismo, que procura estabelecer conexões entre as ilusões da consciência e a ordem social e política (p. 35 e ss.).

Esta divisão, no entanto, deve ser tomada com reservas, uma vez que poderia levar a crer que esse processo ocorreu de forma linear, através da superação de etapas sucessivas nas quais a razão iria progressivamente conquistando novos domínios e estabelecendo seus limites. O iluminismo seria o ápice da trajetória vitoriosa do pensamento racional sobre a superstição.

Embora existam diferenças significativas entre esses períodos, não é possível compreendê-los de forma estanque, uma vez que as características atribuídas a cada um deles encontram-se presentes, em maior ou menor grau, nos outros. Para Adorno e Horkheimer (1985), os objetivos do iluminismo encontram-se presentes já na epopéia homérica da Odisséia que, ao apropriar-se dos mitos, submete-os a uma ordenação racional, possibilitando, através desse distanciamento, o domínio da natureza percebida como hostil: "O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber" (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 19). A imaginação, embora valorizada por alguns filósofos, acaba por ser aceita apenas no âmbito da arte e da poesia.

Cabe notar aqui que tanto o termo grego quanto o latino correspondente ao português imaginação é fantasia, que, segundo Chauí (1988), pertence à família de palavras derivadas de phaós (luz, luz do dia, luz dos olhos, nascer, vivente), que inclui, entre outras, as palavras phantós (o visível e o que pode ser dito pelas palavras); phaino (fazer brilhar, fazer aparecer, mostrar e mostrar-se, manifestar e manifestar-se, dar a conhecer o caminho, guiar, dar a conhecer pela palavra, explicar); phainómenos (visivelmente, manifestamente, claramente) o que de acordo com a autora sugere "... o parentesco que enlaça a visão, a imaginação e a palavra como resultados do ato da luz" (p. 34). Embora a análise etimológica não seja suficiente para explicar a significação de um termo, podemos notar por esse parentesco que fantasia refere-se menos a um processo exclusivamente psicológico que distancia o sujeito da realidade, do que a uma forma de relação com esta.

Tradicionalmente considera-se fantasia como a capacidade de evocar coisas que não estejam presentes e das quais não temos sensação atual. (Abbagnano, 1982), concepção advinda basicamente do pensamento aristotélico, que considera a fantasia como a função psicológica responsável pela formação de uma imagem organizada dos dados recebidos pelos sentidos, fazendo com que o intelecto se atualize em pensamento. Assim definida, a fantasia não é necessariamente nociva ao pensamento, porém, pela distância em relação aos objetos concretos, está muito mais suscetível aos efeitos das paixões do sujeito. Os ídolos de Bacon e a dúvida cartesiana são exemplos dessa tentativa de evitar que a razão acabe por perceber uma realidade distorcida pela fantasia.

O que parece estar em jogo nesse movimento é a construção de um sujeito que possibilite e garanta a veracidade do conhecimento: o sujeito epistêmico. Essa construção é normalmente considerada um produto do século XVII (Abbagnano, 1982; Figueiredo, 1994), que seria também o período em que ocorre a passagem de uma razão predominantemente contemplativa para uma razão instrumental.

No entanto, a partir da análise que Adorno e Horkheimer (1985) fazem da Odisséia, é possível construir a "proto-história" desse sujeito através das aventuras de Ulisses: os seres fantásticos enfrentados pelo herói são representantes dos poderes naturais que, além de aterrorizá-lo devido à imensa força que possuem, seduzem-no com a tentação de um retorno a um estado de indiferenciação com a natureza: "A indiferenciação, antes que o sujeito se formasse, foi o estremecimento do cego nexo natural, o mito; as grandes religiões tiveram seu conteúdo de verdade no protesto contra ele" (Adorno, 1995, p. 183).

Para os referidos autores, a principal arma do sujeito que aí se constitui é a astúcia: para burlar as leis da natureza, é necessário submeter-se a elas. No embate com o ciclope Polifemo, Ulisses é obrigado, pelas leis da necessidade que regem o mito, a dizer seu nome; no entanto ele se aproveita da homofonia entre seu nome e a palavra ninguém e evita assim ser devorado.

Nessa passagem do mito já se poderiam vislumbrar características do pensamento burguês tais como a sobriedade e o realismo, mostrando que a separação entre razão e mito é menos rígida do que se poderia supor:

A ratio, que recalca a mimese, não é simplesmente o seu contrário. Ela própria é mimese: a mimese ao que está morto. O espírito subjetivo que exclui a alma da natureza só domina essa natureza privada da alma imitando a sua rigidez e excluindo-se a si mesmo como animista. (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 62)

A dessacralização da natureza, fundamental para sua dominação, passa pelo sacrifício de algo do sujeito: para constituir-se, o sujeito precisa perder-se. Ulisses, ao aperceber-se de que havia uma distinção entre palavra e objeto, afirma-se como sujeito; no entanto seu nome é Ninguém.

Colocam-se aqui algumas questões: como compreender o termo sujeito? A afirmação de Adorno e Horkheimer de que é necessário que o sujeito se submeta à natureza para poder dominá-la não poderia ser considerada uma contradição? Essa contradição estaria no pensamento ou seria constituinte do próprio conceito de sujeito? Vejamos brevemente as significações presentes nesse conceito.

Segundo Adorno (1995), o próprio termo sujeito traz em si uma ambigüidade: "... pode referir-se tanto ao indivíduo particular quanto a determinações gerais ..., à consciência em geral" (p. 181). Isto não se deve a uma insuficiência teórica, mas sim ao fato de que não se pode apreender uma dessas significações sem recorrer à outra, ou seja: o conceito de sujeito refere-se tanto ao singular quanto ao universal.

No entanto, qualquer que seja o pólo privilegiado nessa tensão, evidencia-se uma cisão entre sujeito e objeto. Ainda segundo Adorno (1995), essa separação é simultaneamente verdadeira e falsa, pois ao mesmo tempo que expressa o "... cindido da condição humana, algo que surgiu pela força ..." (p. 181), transforma essa cisão em algo imutável e intransponível. Há, na hipostasia dessa separação, o encobrimento da mediação recíproca entre sujeito e objeto.

Tal mediação também pode ser constatada através de outra ambigüidade presente no conceito de sujeito, que tanto pode significar o agente de uma ação, quanto aquele que está submetido a ela. A origem etimológica do termo traz em si a marca dessa ambigüidade: a palavra grega hipokaimenon provém de um verbo que designa tanto "servir de alicerce ou suporte," quanto "estar à disposição de" (Chauí, 1994, p. 351).

O pensamento, que permite ao sujeito transpor essa distância através da representação, também se encontra submetido às determinações objetivas. Dessa forma, não se trata de estudá-lo idealisticamente, mas sim "... como o pensar de determinados homens em determinadas épocas" (Horkheimer, 1990, p. 47).

Se partirmos da idéia tradicional de que um sujeito cognoscitivo defronta-se com um objeto cognoscível, caberia ao pensamento transpor essa distância e atingir a verdade desse objeto que a ele se oferece. Esse movimento que atesta "... a servil confiança no ser-assim do mundo exterior ..." (Adorno, 1995, p. 187) é denominado intentio recta. Embora aparentemente ingênua, essa concepção já supõe um tipo de relação: a separação total entre sujeito e objeto, ocultando, dessa forma, a mediação recíproca entre eles.

Entretanto, não tardou para que a própria reflexão filosófica mostrasse as limitações de tal concepção: parecia haver mais do sujeito no objeto do que se supunha, e esta impregnação constituía um problema. Era necessário, portanto, lapidar sujeito e objeto de maneira a minimizar esta influência e, como já foi visto acima, tal movimento voltou-se preferencialmente para a compreensão dos fatores subjetivos presentes no conhecimento: voltar-se para o sujeito para melhor conhecer o objeto, intentio obliqua. Se por um lado essa modificação na compreensão do conhecimento representa um avanço, uma vez que reconhece as relações recíprocas entre sujeito e objeto, por outro tende a tomá-las mais como resultado de uma imperfeição do pensamento do que como algo determinante na constituição tanto do sujeito quanto do objeto.

Essa concepção reduz a história do pensamento a um movimento de aproximações sucessivas do sujeito a um objeto que permanece constante e imutável. Caberia aqui citarmos a crítica de Horkheimer (1990) a ela:

Apesar da necessidade que tem a ciência de definir constantemente a parte subjetiva e, assim, superar a diferença, nunca o sujeito pode separar-se com perfeita nitidez do objeto... A atividade teórica dos homens, bem como a atividade prática, não é o conhecimento independente de um objeto fixo, mas o produto de uma realidade em transformação. (p. 45)

O percurso em direção ao sujeito acaba por reduzi-lo, por meio de sucessivas abstrações idealistas, a uma espécie de "ponto de fuga," ponto concretamente inexistente que, no entanto, determina a perspectiva de uma figura; sujeito que pela sua ausência possibilita e organiza o conhecimento. Ecoa aqui a resposta de Ulisses ao ciclope: "Ninguém te feriu!"

Se é necessário um movimento em direção à primazia do objeto, não devemos supor que este seja apenas o retorno àquela concepção ingênua da crença na existência independente da realidade, mas sim à compreensão das determinações recíprocas presentes na relação sujeito/objeto:

A primazia do objeto é a intentio obliqua da intentio obliqua , não a requentada intentio recta; o corretivo da redução subjetiva, não a denegação de uma participação subjetiva. Mediatizado é também o objeto, só que, segundo seu próprio conceito, não está tão absolutamente referido ao sujeito como o sujeito à objetividade. (Adorno, 1995, p. 188)

As afirmações de que o pensamento encontra-se impregnado de desejo e que existem fatores subjetivos presentes no ato do conhecimento adquirem um novo sentido ao compreendermos a subjetividade como a configuração do objeto: "A profundidade interna do sujeito não consiste em nada mais senão a delicadeza e riqueza do mundo da percepção externa" (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 176). Portanto, a tentativa positivista de retirada de todo ranço subjetivo do processo de conhecimento da realidade acaba por mutilar essa mesma realidade, uma vez que se recusa a devolver-lhe uma parte de si mesma.

No entanto, no momento histórico atual, em que as diversas esferas de socialização encontram-se submetidas à lógica da esfera de produção e a razão reduzida à sua forma instrumental, sustentar a tensão entre sujeito e objeto implicaria em explicitar a violência presente nessa separação. A subjetividade, cuidadosamente retirada da ciência e da tecnologia, é hipervalorizada como um bem de consumo: a sociedade oferece na forma de mercadoria aquilo que interdita como possibilidade para o sujeito. A pretensa exclusividade conferida ao consumidor pela aquisição de um produto ou realização de uma determinada prática nada mais atestam do que a impotência do particular diante do universal: "O indivíduo privado, livre para deliberar e escolher, constitui desde o início um embuste; não só a sorte já fora lançada, como os conteúdos da escolha obedeciam os ditames do mundo social e não do mundo individual" (Jacoby, 1977, p. 121). Da mesma forma que se enfeitavam e louvavam as vítimas dos sacrifícios, o culto à subjetividade aponta para o seu desaparecimento.

A submissão ao todo, no entanto, precisa aparecer para o sujeito como um ato da sua vontade, como liberdade de escolha: a liberdade de se escolher sempre o mesmo. Existe aí não a constituição de um sujeito, mas sim um movimento de pseudo-individuação que só pode ser adequadamente compreendido recorrendo ao conceito de Indústria Cultural.

Recusando o termo cultura de massas, que poderia sugerir a possibilidade de uma cultura surgir espontaneamente das massas, Adorno e Horkheimer (1985) utilizam este conceito para caracterizar a forma que as produções culturais assumem na sociedade contemporânea: transformada integralmente em mercadoria e submetida à lógica do lucro, a cultura torna-se um bem de consumo e deve, portanto, seguir as leis do mercado. Este processo acaba por conferir um ar de semelhança a toda produção cultural, que ao mesmo tempo é apresentada como única e individual. A falsa identidade entre o universal e o particular é um dos pilares de sua ideologia: "Cada produto apresenta-se como individual; a individualidade mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que o que é coisificado e mediatizado é um refúgio do imediatismo e da vida" (Adorno, 1978, p. 289).

O ocultamento da mediação recíproca entre sujeito e objeto reduz a fruição das produções culturais à mera apropriação, impedindo a possibilidade de individuação oferecida por esse contato. Uma vez que o único caminho possível para o sujeito é aquele previamente determinado pela lógica do consumo, poderíamos perguntar que espaço aí restaria à fantasia. Em uma organização social na qual os critérios pelos quais um pensamento é avaliado são fundamentalmente sua eficácia e utilidade, a realidade torna-se impermeável à fantasia, ou seja: realidade e fantasia passam ser concebidas como domínios essencialmente distintos. Se a crítica a determinada situação, por mais procedente que seja, não vier acompanhada de propostas concretas e aplicáveis, certamente será considerada um produto da imaginação e, imediatamente, desconsiderada como argumento plausível.

A desvalorização sistemática daquilo que não confirme as regras pelas quais o real está organizado permite-nos supor que exista na fantasia algo além de um simples e irresponsável afastamento da realidade:

O valor de verdade da imaginação relaciona-se não só com o passado, mas também com o futuro; as formas de liberdade e felicidade que invoca pretendem emancipar a realidade histórica. Na sua recusa em aceitar como finais as limitações impostas à liberdade e à felicidade pelo princípio de realidade, na sua recusa em esquecer o que pode ser, reside a função crítica da fantasia. (Marcuse, 1968, p. 138)

É fundamentalmente essa dimensão crítica que aparece excluída da ciência e domesticada nos produtos da Indústria Cultural

A produção científica demonstra uma indisfarçada suspeita em relação a qualquer movimento que arrisque ultrapassar o imediatismo dos dados coletados: organizar, classificar, correlacionar são as operações esperadas de um cientista que busque conduzir sua pesquisa com seriedade, procurando evitar generalizações indevidas. Esses procedimentos, embora necessários à prática científica, ao tornarem-se os parâmetros de legitimidade desta, conduzem o pensamento à mera ratificação do real:

A curiosidade é punida na nova face do pensamento, a utopia dele deve ser expulsa sob qualquer configuração, inclusive a da negação. O conhecimento se resigna à reconstrução repetitiva. Ele empobrece do mesmo modo que a vida empobrece sob a moral do trabalho. (Adorno, 1983, p. 250)

O trabalho da fantasia, em um sistema que separou a epistemologia da ética e da estética, não seria o de oferecer soluções conciliadoras que reunissem na teoria aquilo que se encontra cindido em sua origem, mas sim "... operar espiritualmente sem o equivalente de uma faticidade urgentemente cumprida" (Adorno, 1983, p. 246), mostrando que aquilo que se apresenta como estático e acabado é na verdade fruto de um processo histórico. A fantasia, compreendida na sua função crítica, não foge da realidade, pelo contrário, vai ao encontro das contradições, lacunas e silêncios dessa realidade, atestando nesse movimento a possibilidade de sua modificação.

Mola, L. G. C. (1999). Imagination and Knowledge: a Preliminary Critical Study. Psicologia USP, 10 (2), 35-46.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the role played by imagination in the process of knowledge production. Using as theoretical support the ideas of some philosophers of the Frankfurt School, the text attempts to demonstrate that imagination has a critical function, denied by positivism, which could contribute for the questioning of the organization of society.

Index terms: Fantasy. Knowledge. Critical theory. Positivism. Reality.

2 O termo logós apophantikós refere-se a um discurso declarativo ao qual se aplica a distinção entre verdadeiro e falso. Se na lógica dialética havia a manutenção da tensão entre verdade e falsidade, na lógica apofântica esses atributos excluem-se mutuamente.

  • Abbagnano, N. (1982). Dicionário de filosofia. São Paulo, Mestre Jou.
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    Endereço para correspondência: Universidade São Judas Tadeu. Rua Taquari, 546. São Paulo, SP. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      1999
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