Acessibilidade / Reportar erro

Um olhar sobre a fotografia feminista brasileira contemporânea

A look at the contemporary Brazilian feminist photography

Resumo:

Aborda-se neste artigo a relação dialógica de obras de fotógrafas brasileiras contemporâneas com o feminismo. Para tanto, faz-se necessário traçar um breve percurso da inserção das mulheres nas artes visuais no Brasil e no mundo, juntamente com a compreensão de produções de gênero no âmbito de trabalho das mulheres artistas, inclusive o trabalho produzido pela fotografia brasileira. O recorte que se propõe como estudo é a análise do corpo como instrumento de discurso, com ênfase no autorretrato por meio da série de imagens Silêncio(s) do Feminino, com vistas ao estreitamento de relações entre a fotografia feminina e o feminismo.

Palavras-chave:
fotógrafas brasileiras; corpo feminino; autorretrato; invisibilidade; fotografia feminista

Abstract:

This article deals with the dialogical relation between the contemporary Brazilian women photographer´s work and feminism. Therefore, it is need to chart a brief course of women´s insertion in visual arts in Brazil and worldwide, adding the understanding of gender production in the working field of women artists, including the work produced by Brazilian photography. This study purposes to analyze the body as discuss instrument, with emphasis on self-portrait trough the series of image Silêncio(s) do Feminino, in order to narrowing relations between female photography and feminism.

Keywords:
Brazilian women photographers; female body; self-portrait; invisibility; feminist photography

Introdução

Este artigo propõe a reflexão sobre mulheres enquanto artistas no campo da fotografia contemporânea brasileira, na mesma medida em que trata da visão de mulheres sobre elas e, em especial, na fotografia feminista. Será traçado um percurso resumido do espaço da mulher nas artes visuais em nível nacional e internacional, entrelaçado com os debates sobre gênero, a começar pela pintura e, posteriormente, a fotografia (com exemplificações de estudos de caso), culminando na análise de imagens provenientes da exposição coletiva Silêncio(s) do feminino (Gisa PICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra)), para aprofundar o viés feminista no contexto nacional.

O campo das Artes Visuais - museus, mercado e obras - tem sido observado pelo coletivo Guerrilla Girls, que destacou que as mulheres estão em menor número de forma visivelmente assimétrica: “[...] num mundo da arte dominado por homens, tanto nos acervos quanto no comando dos maiores museus” (Silas MARTÍ, 2017MARTÍ, Silas. Mascaradas do Guerrilla Girls atacam machismo dos museus e vêm ao Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 08/2017, p. x. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/08/1907712-mascaradas-do-guerrilla-girls-atacam-machismo-dos-museus-e-vem-ao-brasil.shtml . Acesso em: 29/10/2017.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2...
, p. x). Sobre o grupo, faz-se necessário destacar a autodenominação:

As Guerrilla Girls são artistas ativistas feministas. Mais de 55 pessoas foram membros ao longo dos anos, algumas por semanas, algumas por décadas. Nosso anonimato mantém o foco nas questões e longe de quem podemos ser. Nós usamos máscaras de gorila em público e usamos fatos, humor e visões ultrajantes para expor gênero e preconceitos étnicos, bem como corrupção na política, arte, cinema e cultura pop. Derrubamos a idéia de uma narrativa convencional, revelando a entrelinha, o subtexto, o negligenciado e o injusto. Acreditamos em um feminismo intersecional que combate a discriminação e apoia os direitos humanos para todas as pessoas e para todos os sexos (GUERRILLA GIRLS, 1985-2018GUERRILLA GIRLS. Our story, 1985-2018. Disponível em: Disponível em: http://www.guerrillagirls.com . Acesso em: 29/10/2017.
http://www.guerrillagirls.com...
[tradução nossa]).1 1 The Guerrilla Girls are feminist activist artists. Over 55 people have been members over the years, some for weeks, some for decades. Our anonymity keeps the focus on the issues, and away from who we might be. We wear gorilla masks in public and use facts, humor and outrageous visuals to expose gender and ethnic bias as well as corruption in politics, art, film, and pop culture. We undermine the idea of a mainstream narrative by revealing the understory, the subtext, the overlooked, and the downright unfair. We believe in an intersectional feminism that fights discrimination and supports human rights for all people and all genders (GUERRILLA GIRLS, 1985-2018).

Existente há mais de três décadas, o grupo segue provocando os museus e o mercado de artes, sendo reconhecido por se destacar:

Contra a sociedade branca e patriarcal, criam cartazes com dados sobre a desigualdade e desafiam noções pré-estabelecidas especialmente sobre gênero e raça. Isso, no entanto, não exclui bater de frente com a centralização da cena artística na Europa e Estados Unidos (LUANA, 2017LUANA. Masp apresenta primeira retrospectiva no Brasil do coletivo feminista e ativista Guerrilla Girls, com dois cartazes especialmente recriados para exposição. Revista Select Art., 27/09/2017, p. x. Disponível em: Disponível em: https://www.select.art.br/guerrilla-girls-masp/ . Acesso em: 29/10/2017.
https://www.select.art.br/guerrilla-girl...
, p. x).

A campanha realizada pelo grupo para estampar outdoors em Nova Iorque, realizada em 1989, resultou no projeto Do women have to be naked to get into the Met. Museum?,2 2 As mulheres têm que estar nuas para fazer parte do Museu Met? [tradução nossa]. em que se fez a contagem do número de mulheres artistas que tinham obras expostas e qual tipo de representação da mulher nas pinturas feitas por homens e que estavam exibidas no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque. Para ressaltar a crítica, as artistas escolheram um famoso nu feminino, A Odalisca, de Jean-Auguste Dominique INGRES (1814), para estampar o outdoor, usando a marca registrada do grupo destas ativistas anônimas: a máscara de gorila.

As artistas constataram que, na seção de arte moderna, menos de 5% eram artistas mulheres e que 85% de representações de nus eram femininos. O coletivo refez a contagem em 2005 e constatou um dado ainda mais alarmante: o número de mulheres expostas foi reduzido para menos de 3% e os nus femininos diminuíram irrisoriamente para 83% (GUERRILLA GIRLS, 1985-2018).

Em vinda recente ao Brasil, a convite do MASP,3 3 Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Período: de 28 de setembro a 29 de novembro. o coletivo fez o levantamento sobre o acervo do museu e revelou números nada contraditórios: 6% das obras são de artistas mulheres e 68% de nus são femininos. As artistas fazem este tipo de levantamento em outros grandes museus, buscando a ruptura do modelo androcêntrico não só museológico, como mercadológico:

É um reflexo da forma como a crítica institucional, movimento surgido na década de 1960 com artistas que passavam a atacar o sistema em que trabalhavam, evoluiu nas últimas décadas, enxergando a arte como manifestação indissociável dos fluxos de poder e da economia (MARTÍ, 2017MARTÍ, Silas. Mascaradas do Guerrilla Girls atacam machismo dos museus e vêm ao Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 08/2017, p. x. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/08/1907712-mascaradas-do-guerrilla-girls-atacam-machismo-dos-museus-e-vem-ao-brasil.shtml . Acesso em: 29/10/2017.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2...
, p. x).

Os codinomes das ativistas que estiveram no Brasil são referências às artistas feministas, tais como Frida Kahlo, pintora mexicana notoriamente feminista. A exposição intitulada Frida Kahlo: conexões entre mulheres surrealistas no México4 4 Centro Cultural Caixa no Rio de Janeiro. Período: primeiro semestre de 2016. exemplifica as relações de suas pinturas e o feminismo, assim como revela como a pintora teceu uma rede de colaboração com outras artistas como forma de combater o padrão vigente nas artes.

Teresa Arcq (2016ARCQ, Teresa. Mulheres para mulheres, mecenas e promotoras, 2016. Texto expográfico do catálogo da Mostra “Frida Kahlo: conexões entre mulheres surrealistas no México”, 2016.), curadora da mostra, demonstra a existência desta rede de empoderamento e visibilidade por meio de um dos textos expográficos (extraído in loco), de título Mulheres para mulheres, mecenas e promotoras:

As mulheres desempenharam papel fundamental na promoção da obra de outras mulheres. Natasha Gelman foi uma grande mecenas para Frida Kahlo. Inês Amor fundou a primeira galeria comercial no México, que abrigou a Exposição Internacional de Surrealismo em 1940 e ofereceu às artistas exposições individuais. María Asúnsolo criou a galeria GAMA, e Lola Álvarez Bravo fundou a Galeria de Arte Contemporânea, que abriu espaço para a primeira exposição individual de Frida Kahlo. Maria Izquierdo colaborou como crítica de arte para o jornal Novedades. Kati Horna, com suas reportagens para a revista Mujeres, contribuiu para difundir a obra daquelas que se destacavam no mundo das artes e da cultura (p. x).

Outro aspecto ressaltado na obra da pintora é seu corpo em seus autorretratos. Observa-se a questão da representação do corpo feminino pelo olhar masculino versus feminino, como apontado no catálogo da exposição mencionada:

Em um dos momentos da mostra, a curadora reuniu um nu de Frida Kahlo feito por Diego Riviera em 1930 e um peculiar autorretrato da artista feito após um de seus abortos, em 1932. Apesar de a modelo ser ela mesma, com apenas 2 anos de intervalo, a diferença entre as imagens é gritante: de um lado está uma mulher cujo corpo, mesmo com suas idiossincrasias retratadas, cabe em um arquétipo mais geral de ideal feminino sensual e oferecido ao olhar desejante masculino; do outro, além da feição peculiar reconhecível, a artista é tratada pela lente fria da ciência que tende a despersonalizar os sujeitos, convertidos em espécimes. O mais marcante é que, ainda com a frieza técnica da anatomia, é o autorretrato de Frida Kahlo que parece mais fiel à sua singularidade como pessoa. Riviera enquadra sua parceria em um gênero romantizado e, na verdade, impessoal, enquanto a artista subverte uma imagem técnica para estar junto do seu desajuste com o próprio corpo (Paulo MIYADA; Agnaldo FARIAS, 2015MIYADA, Paulo; FARIAS, Agnaldo. Frida Kahlo: conexão entre mulheres surrealistas no México. São Paulo: Instituto Tomie Othake, 2015., p. 48).

A seguir, o foco volta-se para a invisibilidade das mulheres dentro do campo da fotografia, como também de suas participações em momentos diversos e como elas buscaram ocupar seus próprios espaços.

As mulheres e a fotografia

A breve historiografia das fotógrafas brasileiras: invisibilidade

Ao se pensar na cronologia da fotografia, as mulheres sempre se fizeram presentes. Nomes recorrentes pontuam a história da fotografia mundial, tais como Julia Margaret Cameron, Dorothea Lange, Cindy Sherman, Francesca Woodman, Sophie Calle, Annie Leibovitz, Diane Arbus, Margaret Bourke-White, Bettina Rheims, Valérie Mréjen, Sára Saudková, somente para citar algumas fotógrafas. A lista brasileira também é extensa: Rosângela Rennó, Ana Carolina Fernandes, Cris Bierrenbach, Nair Benedicto, Claudia Jaguaribe, Rochelle Costi, Claudia Andujar, Susana Dobal, Fernanda Magalhães, Patricia Gouvêa, Sheila Oliveira, dentre outras.

Para ilustrar o panorama da representatividade da mulher na história da fotografia brasileira, consideram-se dois exemplares literários singulares: Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910) e A fotografia moderna no Brasil.

Retomando os primórdios da fotografia nacional, observa-se no Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro (1833-1910), de Boris Kossoy (2002KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.), a quantificação de homens e mulheres fotógrafos(as) atuantes no país neste período. No capítulo “Dicionário: A-Z”, o autor indexa registros de fotógrafos brasileiros e estrangeiros que aqui trabalhavam e áreas afins à fotografia direta ou indiretamente, tais como lojas, fornecedores, livrarias, comerciantes, entre outros. Um dos aspectos chama atenção: o registro de apenas quatro mulheres neste índice.

As mulheres profissionais relacionadas são Herminia de Carvalho Menna da Costa, que inaugurou a Herminia Costa & C., em Recife, no ano de 1883, e no ano posterior o Photographia Moderna. Não há dados que informem se ela era fotógrafa ou apenas empresária. Em seguida, Maria Brasilina de Magalhães Faria, que assumiu a empresa do seu falecido marido. Não há informações que relatem sobre sua atividade profissional também ter se estendido à fotografia ou tenha se restringido apenas à administração. Maria Izabel da Rocha, nascida em Sergipe, em 1908, é o destaque, pois, como cita o autor, Izabel era filha de fotógrafo e decidiu, por livre escolha, seguir a mesma profissão. Por último, o autor menciona Fanny Volk, que herdou do ex-marido o estúdio de fotografia (KOSSOY, 2002KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002., p. 114-325).

Os espaços vivenciados por estas mulheres, na perspectiva destacada pelo autor em sua descrição, e a ênfase dada à informação de herdeira de um legado originário masculino pontuam que as ações femininas nesse período só se visibilizaram pela ausência ou direcionamento do sujeito legítimo da ação, fortemente marcada pelas compreensões do “ser mulher” na matriz heteronormativa.

Nesta mesma linha de raciocínio, o estudo da socióloga Amélia Siegel Corrêa (2014CORRÊA, Amélia Siegel. As mulheres na história da fotografia brasileira: alguns apontamentos, 2014. Disponível em: Disponível em: http://docplayer.com.br/6778822-As-mulheres-na-historia-da-fotografia-brasileira-alguns-apontamentos.html . Acesso em: 29/05/2016.
http://docplayer.com.br/6778822-As-mulhe...
), “As mulheres na história da fotografia brasileira: alguns apontamentos”, provoca ao perguntar se esse era um métier masculino, baseado também nos dois livros historiográficos. A autora aponta a importante reflexão acerca dos reduzidos nomes femininos na lista de fotógrafos do período citado: “Dados que convidam a pensar o quanto as fontes contribuem para o obscurecimento das trajetórias femininas [...]” (CORRÊA, 2014CORRÊA, Amélia Siegel. As mulheres na história da fotografia brasileira: alguns apontamentos, 2014. Disponível em: Disponível em: http://docplayer.com.br/6778822-As-mulheres-na-historia-da-fotografia-brasileira-alguns-apontamentos.html . Acesso em: 29/05/2016.
http://docplayer.com.br/6778822-As-mulhe...
, p. 3).

Corrêa assinala uma das possíveis razões para tal, visto que eram empresas familiares, nas quais os parentes (ela se refere ao casal Volk, mas que se amplia ao caso de Maria Izabel da Rocha) assumiam a tarefa conjuntamente, mas só cabia a autoria do registro fotográfico ao homem. A autora nota o caso de não ser um fato exclusivo do campo da fotografia, mas das artes em geral. Ainda no contexto das artes plásticas em relação à Academia e Salões de Artes, Corrêa (2014) discorre: “[...] eram frequentemente consideradas amadoras, [...], e que representa uma tradução da crença de uma inferioridade feminina corrente na época, negando-se a elas o pertencimento à categoria artística” (p. 3). A opacidade das mulheres nas Artes Visuais, assim como em outras áreas, foi construída e alicerçada por discursos que demarcavam os espaços públicos como masculinos. Transgredir esses espaços desencadeava conflitos que colocavam em cheque suas habilidades artísticas:

As mulheres, apesar de tudo, pintaram, esculpiram, eram fotógrafas nos diferentes movimentos de vanguarda, mas sempre ameaçadas por um duplo perigo: o de ser acusadas de seguidoras ou imitadoras fiéis de seus companheiros do sexo masculino, por um lado, e por outro, o de ser rechaçadas por se atreverem a inovar quando não lhes correspondiam por sua condição feminina [...] (María Teresa Alario TRIGUEROS, 2008TRIGUEROS, María Teresa Alario. Arte y feminismo. San Sebastián: Nerea, 2008., p. 27-28).5 5 Las mujeres, a pesar de todo, pintaron, esculpieron, fueron fotógrafas en los distintos movimientos de vanguardia, pero siempre amenazadas por un doble peligro: el de ser acusadas de seguidoras o imitadoras fieles de sus compañeros de sexo masculino por una parte, y por otra, el de ser rechazadas por atreverse a innovar cuando no les correspondía por su condición femenina [...] [tradução nossa].

Outro objeto analisado foi o anexo “Obras” (Helouise COSTA; Renato Rodrigues da SILVA, 2004COSTA, Helouise; SILVA, Renato Rodrigues da. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004., p. 131-207), do livro A fotografia moderna no Brasil. Em cada face de folha, os autores dedicam uma fotografia, numa reunião de 75 imagens (algumas imagens ocupam duas faces). A soma de fotógrafos é 23, e desse total apenas uma é fotógrafa: Gertrudes AltschulUMA MULHER MODERNA. Fotografias de Gertrudes Altschul, 06/03/2015. Disponível em: Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/casa_da_imagem/programacao_atual/index.php?p=17401 . Acesso em: 21/04/2016.
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/s...
, com quatro imagens, realizadas entre 1950 e 1960. O recorte temporal escolhido pelos autores (décadas de 1940 e 1950) gira em torno desse movimento fotográfico nacional efervescente, que dá nome ao livro, marcado pela atuação essencial do Foto Cine Clube Bandeirante, com ênfase na Escola Paulista.

Os números levantados nestas pesquisas não intencionam afirmar que somente essas mulheres citadas entraram no campo profissional da fotografia, pois, além de serem estudos incompletos, é possível que tenha havido fotógrafas que, por razões diversas, como as já mencionadas, não tivessem registros de seus trabalhos nos períodos delimitados. Possibilitam, porém, vislumbrar que os espaços acessados por essas mulheres, em comparação com os homens, são infimamente menores.

Além dessas duas obras de referência de literatura sobre a história da fotografia brasileira, outros aspectos também reforçam as informações da realidade do espaço das fotógrafas no Brasil e, por consequência, da opacidade. Os próximos dados confirmam essas estatísticas em momentos mais contemporâneos.

Dois notórios estudiosos de referência em pesquisa de fotografia brasileira, Ronaldo ENTLER e Boris Kossoy, publicaram matéria em 1996 na revista francesa Photo, cujo objetivo era esboçar um panorama da fotografia contemporânea brasileira.6 6 Texto publicado na revista francesa Photo, edição especial sobre o Brasil, n. 329, em abril de 1996. Na revista, o texto foi dividido em duas seções “Les Maitres Brésiliens” e “Nouvelle Géneration” [excerto retirado do Portfólio de Ronaldo Entler na internet]. O texto é dividido em períodos 1940-1960/ 1960-1980/ 1980-1996, apenas como recortes indexais. Na publicação, Kossoy e EntlerENTLER, Ronaldo; KOSSOY, Boris. “Fotografia brasileira: nova geração”. In: ENTLER, Ronaldo. Ronaldo Entler. Disponível em: Disponível em: http://www.entler.com.br/textos/photo_entler_kossoy.html . Acesso em: 15/04/2016.
http://www.entler.com.br/textos/photo_en...
citaram fotógrafos que, para esses autores, mereceram destaque dentro do cenário artístico. Dentre os trinta e oitos fotógrafos de renome na fotografia brasileira, figuram apenas cinco fotógrafas: Claudia Andujar, Maureen Bisilliat, Bettina Musatti, Claudia Jaguaribe e Rosangela Rennó, ou seja, 13,15%.

Aproximando-se mais do tempo atual, observa-se o catálogo de 2011 da Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil, que elaborou o mapeamento da atividade fotográfica em diversos setores relacionados de maneira mais abrangente. Dentro dos 228 membros associados da Rede, entre profissionais independentes e demais instituições (fotoclubes, coletivos, grupos, galeria e outros), constam apenas 27 mulheres, por conseguinte, 11,84%. Outro tema que tem trazido à baila o debate feminista no campo da fotografia brasileira é a participação das mulheres em festivais de fotografia. Primeiramente, o mais importante e consolidado festival brasileiro, o Paraty em foco, foi tema da crítica de Suelen Pessoa, em texto publicado em 2015, de título “Representação ≠ Representatividade: opinião sobre a última edição do Paraty em foco”.

Pessoa (2015PESSOA, Suelen. Representação ≠ Representatividade: opinião sobre a última edição do Paraty em foco, Medium, 22/10/2015. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/@suelenpessoa.arts/representa%C3%A7%C3%A3o-representatividade-3f73ec9c0ef7#.ylmihzd52 . Acesso em: 19/04/2016.
https://medium.com/@suelenpessoa.arts/re...
) aponta para a participação apenas expográfica da renomada artista Cris BIERRENBACH (2013, inPICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra)), com o seu trabalho Fired, que abordaremos de forma mais específica posteriormente. Esse trabalho de Bierrenbach, de forte apelo feminista, em que questiona as representações naturalizadas de feminilidade na constituição do corpo feminino, é uma série de autorretratos. A crítica da autora é em relação à temática do festival “Representação e autorrepresentação na era dos dispositivos” e ao fato de Bierrenbach não ter sido convidada a falar do seu trabalho durante a mostra, mesmo tendo um trabalho de autorrepresentação como tema central do festival.

A partir de sua participação, Pessoa (2015PESSOA, Suelen. Representação ≠ Representatividade: opinião sobre a última edição do Paraty em foco, Medium, 22/10/2015. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/@suelenpessoa.arts/representa%C3%A7%C3%A3o-representatividade-3f73ec9c0ef7#.ylmihzd52 . Acesso em: 19/04/2016.
https://medium.com/@suelenpessoa.arts/re...
) relata que o racismo e o sexismo sempre se fizeram presentes nos festivais de fotografia. Enquanto pesquisadora do tema que o festival abordou, a fotógrafa escreveu:

É a primeira vez que vou a um festival de fotografia em que a maior parte do público é feminino, mas o mesmo não se reflete nos trabalhos mostrados, nem nos convidados às falas. E olha que as mulheres, desde a década de 1970, são a maioria expressiva de artistas que trabalham representação e autorrepresentação, já que o corpo da mulher sempre foi campo de batalha para discussões de emancipação, empoderamento e sexualidade (PESSOA, 2015PESSOA, Suelen. Representação ≠ Representatividade: opinião sobre a última edição do Paraty em foco, Medium, 22/10/2015. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/@suelenpessoa.arts/representa%C3%A7%C3%A3o-representatividade-3f73ec9c0ef7#.ylmihzd52 . Acesso em: 19/04/2016.
https://medium.com/@suelenpessoa.arts/re...
, p. x).

De forma mais enfática, ela critica a fatia de representatividade feminina selecionada pelo festival - apenas 14,28%. Fala, também, de três importantes mulheres da fotografia contemporânea brasileira e como foram situadas no festival de porte internacional:

A Cris Bierrenbachestava lá em Paraty, as fotos dela estavam na mostra ID, mas não foi chamada para as conversas - e o tema de todo o trabalho dela é performance e autorrepresentação, além da questão dos modos de produção, que daria um ótimo workshop. ANair Benedictotambém estava; poderia ter falado de todo o trabalho de representação das minorias (apesar do olhar antropológico/analógico). E por que não entrevistaram aClaudia Jaguaribe, ao invés de colocá-la como entrevistadora, já que o trabalho dela tem mais a ver com a temática do festival do que o do entrevistado? Me dei ao trabalho de contar: foram 56 convidados. Apenas 8 deles mulheres. A única artista presente estava no papel de entrevistadora, apresentando o trabalho de um homem. Pode parecer bobagem, mas se você é mulher, você sabe que não é bobagem, porque você poderia estar lá e não está (PESSOA, 2015PESSOA, Suelen. Representação ≠ Representatividade: opinião sobre a última edição do Paraty em foco, Medium, 22/10/2015. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/@suelenpessoa.arts/representa%C3%A7%C3%A3o-representatividade-3f73ec9c0ef7#.ylmihzd52 . Acesso em: 19/04/2016.
https://medium.com/@suelenpessoa.arts/re...
, p. x).

Na edição do ano de 2017 do mesmo festival, o cenário mudou. Após a criação de dois grupos virtuais nacionais, de iniciativa livre, o Fotógrafas BrasileirasFOTÓGRAFAS BRASILEIRAS. O Movimento Fotógrafas Brasileiras. Disponível em: Disponível em: https://fotografasbrasileiras.46graus.com/ . Acesso em: 30/10/2017.
https://fotografasbrasileiras.46graus.co...
e o YVY - Mulheres da ImagemYVY MULHERES DA IMAGEM. Disponível em: Disponível em: http://www.yvymulheresdaimagem.com.br . Acesso em: 27/10/2017.
http://www.yvymulheresdaimagem.com.br...
-, dois marcos importantes para o empoderamento das fotógrafas do país fizeram com que a visibilidade aumentasse por conta da circulação de informações e trabalhos das artistas, não só entre si, como no meio. Segundo informa o site “Sala de Fotografia” (Sabrina DIDONÉ; Liliane GIORDANO, 2017DIDONÉ, Sabrina; GIORDANO, Liliane. Sala de Fotografia analisa: Paraty em Foco 2017, 26/10/2017. Disponível em: Disponível em: https://www.saladefotografia.com/single-post/2017/10/26/Sala-de-Fotografia-analisa-Paraty-em-Foco-2017 . Acesso em: 30/07/2018.
https://www.saladefotografia.com/single-...
): “Pela primeira vez em festivais de fotografia no Brasil, a maioria dos participantes era de mulheres, representando 77% do total - dados da página do Facebook do grupo Fotógrafas Brasileiras”.

O grupo Fotógrafas Brasileiras surgiu do interesse da fotojornalista Wânia Corrêdo, que desejava juntar as fotógrafas para fazer um único registro das profissionais do Rio de Janeiro. O convite público postado na rede social gerou repercussão e reuniu 136 mulheres no dia 06 de novembro de 2016. Foi um marco impactante que resultou em encontros de fotógrafas em diversas cidades do país, além da criação oficial do site e do grupo para ações pontuais. O grupo tem como missão:

[...] unir as fotógrafas brasileiras para promover o resgate da nossa própria história, dando visibilidade às nossas imagens [...] [e cujo intuito é unir essas mulheres] [...] em busca da troca de conhecimento, visibilidade e reconhecimento do seu espaço, usando o diálogo e a criatividade (FOTÓGRAFAS BRASILEIRAS, 2017, p. x).

Sobre os dois grupos formados na rede social Facebook, seus históricos e ações são entrelaçadas, e vale destacar os dados colhidos em ambos, a começar pelo YVY Mulheres da Imagem, criado em outubro de 2016, em Curitiba, e cuja proposta é a articulação da criação da Associação Brasileira das Mulheres Profissionais da Imagem. Os encontros têm acontecido em âmbito estadual e nacional, sem periodicidade específica, porém com atividades frequentes na rede social, incluindo ações próprias, como, por exemplo, a convocatória para participação do evento Visibilidade negra, exclusivo para mulheres negras, não somente para fotografia, mas também para pintura, vídeo, gravura, desenho, colagem ou outro suporte de artes visuais.

Entendendo o corpo enquanto discurso, o YVY propôs ação conjunta com o movimento Deixa ela em paz, o desafio às suas associadas a partir do seguinte pensamento: “Numa sociedade que opera cotidianamente a padronização e contenção do corpo das mulheres, controlar e ocupar nosso próprio corpo é, muitas vezes, uma desobediência” (YVY MULHERES DA IMAGEM). Com a proposta de autorrepresentação e valorização, tendo o corpo como lugar de afirmação, de transparência, de não opacidade, optaram por:

[...] trabalhar com um conceito de corpo mais amplo, que não necessariamente se relacionava de forma material com a palavra, mas que valorizava a existência e identificação, suas erupções insurgentes. Acreditamos que foi essa também a forma de essas tantas mulheres compreenderem e se afirmarem. Nosso corpo e nossa subjetividade são espaços de disputa. Ser, dizer-se e mostrar-se mulher, gorda, negra, livre, índia, mãe, existente é marcar o nosso lugar na sociedade e transformar os modelos (YVY, 2017, p. x).

Com base nessas observações, realizadas sob o ponto de vista de fotógrafas brasileiras no tempo presente, a fotografia se vê em urgência de transparência e visibilidade em termos sociais - não só profissionais -, explicitados nos coletivos, festivais, livros e mídias sociais.

Serão abordadas, a seguir, as mulheres fotógrafas, seus processos de representação e o uso do corpo como matéria de discurso.

O corpo feminino e a autorrepresentação fotográfica

Antes de se adentrar a produção fotográfica do feminino por fotógrafa brasileira contemporânea autoral, inicia-se este tópico a partir de breve estudo de caso da notória fotógrafa americana Cindy Sherman, tida como umas das artistas mais bem-sucedidas no mercado de venda de artes, com uma de suas fotografias vendidas pela casa de leilões Christie’s por valor próximo a 4 milhões de dólares.

O seu trabalho de autorrepresentação é fortemente marcado pelos personagens femininos e seus estereótipos. Configura como característica do trabalho de Sherman o fato de a fotógrafa nunca se representar fisicamente sem alegorias, ou seja, sua autorrepresentação é totalmente ficcional. Nunca é Cindy Sherman que está lá, mas, ao mesmo tempo, é a artista Cindy Sherman que lá se encontra. É impossível dissociar a artista da sua obra. A crítica irônica que a artista faz aos padrões midiáticos de beleza e status é claramente exposta nas imagens. Algumas fotografias da autora podem ser vistas no site do Museum of Modern Art.7 7 O site do MoMA em que o trabalho de Sherman pode ser visualizado é http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/#/1/.

A compreensão de gênero enquanto construção performativa não deve ser entendida como uma substância que alguém possua, mas que está sempre em processo de modificação, perpassando e inscrevendo os corpos dos sujeitos (Judith BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), sendo visibilizada nas produções fotográficas feministas por desestabilizá-las e deslocá-las do eixo heteronormativo de feminilidade, ampliando as visões de diversidades do que seria “essa mulher”.

Em uma de suas primeiras séries, Sherman trabalhou em fotografias que tinham inspiração na narrativa cinematográfica, apontando desde o início o traço do questionamento do papel social da mulher e a ficcionalidade. Para situar melhor a obra de Sherman e sua relação com o feminismo, recorre-se à autora Charlotte Cotton (2013COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. ):

Fotogramas de um filme sem título, portanto, é uma demonstração do argumento defendido pela teoria feminista de que a ‘feminilidade’ é uma construção de códigos culturais e não uma qualidade naturalmente inerente ou essencial às mulheres. Tanto a fotógrafa como a modelo das fotos são a própria Cindy Sherman, o que transforma sua série numa perfeita condensação da prática fotográfica pós-modernista: ela é ao mesmo tempo a pessoa que observa e a pessoa observada. E, como é a única modelo, essa série também mostra que a feminilidade pode ser literalmente exposta e encenada, mudada e imitada por uma única atriz. Essa confluência de papéis, em que Sherman é tanto o tema fotografado como sua criadora, é um modo de visualizar a feminilidade que desafia algumas questões suscitadas por imagens de mulheres, como quem está sendo representada e por quem e para quem está sendo construída essa projeção do ‘feminino’ (p. 193).

O trabalho da artista é baseado em arquétipos sociais que a fotógrafa reproduz, utilizando-se de figurinos, maquiagens, próteses, objetos e cenários que lhe possibilitam compor um personagem a cada vez, sendo mulheres múltiplas, homens e objetos em situações diversas, sempre carregados de conteúdos emblemáticos.

Nessa perspectiva, as produções fotográficas feministas podem ser entendidas como uma tecnologia de gênero (Teresa de LAURETIS, 1994LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.), à medida que concebemos que o gênero é produto de diferentes tecnologias sociais, discursos, práticas institucionais e da vida cotidiana, sendo “[...] um conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais [...]” (LAURETIS, 1994, p. 208). Desta forma:

A construção do gênero ocorre hoje através das várias tecnologias de gênero e discursos institucionais com poder de controlar o campo do significado social e assim produzir, promover e ‘implantar’ representações de gênero. Mas os termos para uma construção diferente de gênero também existem, nas margens dos discursos hegemônicos [...] e seus efeitos ocorrem ao nível ‘local’ de resistências, na subjetividade e na autorrepresentação (LAURETIS, 1994LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994., p. 228).

Para Margarida Medeiros (2000MEDEIROS, Margarida. Fotografia e narcisismo: o auto-retrato contemporâneo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.), o fascínio pela autorrepresentação cresceu na transição da pintura para o advento da fotografia, e, na arte contemporânea, os limites ultrapassaram o status de arte. Sobre o trabalho de Sherman, a autora diz:

A obsessão com a corporalidade e sua postura, associadas ao facto de que o teatro em torno desse tema tem como actor único o próprio encenador, estão de tal forma ligadas com imagens de destrutividade que tornam esta obra paradigmática da interrogação pós-moderna sobre os limites do Eu, e transcende os aspectos ideológicos que têm sido os mais analisados. [...] A arte, como mais nenhuma forma de discurso, leva sempre adiante o equacionamento das questões fundamentais. E longe de ser essa ilustração das ideias de uma época, ela está antes do lado da anunciação dos seus sentimentos mais urgentes (MEDEIROS, 2000MEDEIROS, Margarida. Fotografia e narcisismo: o auto-retrato contemporâneo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000., p. 15).

Sobre o autorretrato na arte pós-moderna, a autora Linda Hutcheon (2002HUTCHEON, Linda. “A incredulidade a respeito das metanarrativas: articulando pós-modernismo e feminismos”. Labrys, v. 1-2, jul./dez. 2002. ) critica a relação contraditória existente na coexistência do feminismo e da pós-modernidade. A autora denomina o conceito feminismos para afirmar que o feminismo é múltiplo, pois não há um “[...] consenso cultural de pensamento feminista sobre a representação narrativa [...]” (HUTCHEON, 2002HUTCHEON, Linda. “A incredulidade a respeito das metanarrativas: articulando pós-modernismo e feminismos”. Labrys, v. 1-2, jul./dez. 2002. , p. x). Deste modo:

Os feminismos, por outro lado, podem fazer mais. Por exemplo, ao conferir um novo e enfático valor à noção de ‘experiência’, deram um ângulo diferente a uma questão bem pós-moderna: o que constitui uma narrativa histórica válida? E quem o decide? Isto levou a uma reavaliação das narrativas pessoais ou de vida - jornais, cartas, confissões, biografias, autobiografias, autorretratos (HUTCHEON, 2002HUTCHEON, Linda. “A incredulidade a respeito das metanarrativas: articulando pós-modernismo e feminismos”. Labrys, v. 1-2, jul./dez. 2002. , p. x).

O corpo humano contemporâneo cumpre papel essencial na criação de sentido no autorretrato, pois é nele que se configuram sentimentos e sensações. Corpo esse biológico, mas também social e cultural - indissociável do pensamento. O corpo pós-moderno é idealizado, padronizado e narcisista, um corpo-mercadoria, segundo apontam Kalyla Maroun e Valdo Vieira (2008MAROUN, Kalyla; VIEIRA, Valdo. “Corpo: uma mercadoria na pós-modernidade”. Psicologia em Revista, v. 14, n. 2, dez. 2008. ). A obsessão do corpo perfeito faz com que pessoas se submetam a alterações protéticas e mutilações, seguindo, portanto, a lógica capitalista e midiática, além da recente necessidade da fotogenia e produção constante na era dos selfies. Lucia Santaella (2004SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintonizada cultura. São Paulo: Paulus, 2004.), sobre o corpo glorificado, diz: “A palavra de ordem está no corpo forte, belo, jovem, veloz, preciso, perfeito, inacreditavelmente perfeito” (p. 127).

O trabalho da fotógrafa Claudia REGINA (2014CLAUDIA REGINA. “Fotografia”. Mulher. Disponível em: Disponível em: http://blog.claudiaregina.com/ . Acesso em: 21/04/2016.
http://blog.claudiaregina.com/...
), intitulado Mulher, partiu de questionamentos da fotógrafa sobre a relação entre sua perspectiva corpórea e o corpo nu feminino. Nas dezenas de fotos que podem ser observadas no blog da autora, o corpo é visto de diversas formas. Para Regina, o projeto surgiu da ideia de melhorar sua própria relação com o seu corpo não normativo. A artista diz, em seu blog, que não se reconhece nos ensaios nus feitos por fotógrafos, pois são movidos por padrões sexistas, referindo-se a ensaios que sexualizam o corpo feminino utilizando lingeries e saltos altos: “Um ensaio feminino pode celebrar a própria mulher: sua vida, suas conquistas, suas escolhas, seu jeito de ver o mundo. Não suas meias” (REGINA, 2014, p. x). E, por conseguinte:

[...] ao fotografar mulheres, eu não busco enquadrá-las em nenhum padrão de beleza, de sensualidade, de fotogenia. Nada é obrigatório, tudo é permitido. O ensaio mulher é fluído. Como somos todas nós. Faço fotos cruas e simples, sem produção de revista e sem truque de photoshop. Quero captar uma essência de mulher. E quero que ela se reconheça com alegria nessa imagem. Sem tabus (REGINA, 2014, p. x).

Dentro do que foi exposto, se observa que o corpo da mulher vai além da matéria bruta e da subjetividade expressiva, sendo, pois, o próprio elemento de construção de significação. Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.) permite chaves de entendimento sobre as construções representativas de feminilidades, as quais são focalizadas e direcionadas para uma natureza sexual e sedutora, afirmando que essa feminilidade não é essência, não é uma qualidade ou uma propriedade da mulher, mas um conjunto construído de representações baseado no modelo fálico de desejo e significação.

Observa-se que a história da arte é eurocêntrica e androcêntrica, porém as mulheres fotógrafas orientais também elaboram seus discursos por meio da fotografia, como se nota nos casos a seguir.

She who tells a story: women photographers from Iran and the Arab world

A exposição coletiva She who tells a story foi apresentada no período compreendido entre 08 de abril a 31 de julho de 2016, no National Museum of Women in the Arts, em Washington, capital norte-americana. As obras já haviam sido expostas anteriormente, sob a curadoria da americana Kristen Gresh (2013GRESH, Kristen. She Who tells a story. Boston: Museum of Fine Arts, 2013.), no Museum of Fine Arts de Boston, e em publicação de livro homônimo nos Estados Unidos.

O nome da exposição Ela que conta a história: fotógrafas do Irã e mundo Árabe8 8 She who tells a story: women photographers from Iran and the Arab world [tradução nossa]. já revela que se trata de representações de narrativas femininas. É um conjunto de obras realizadas por mulheres e sobre mulheres, compreendido aqui como a chance de dar voz as ‘elas’ que não são escutadas (e vistas). A construção de espaços de empoderamento feminino visibilizando as experiências é uma ação importante para as mulheres. Joan Scott (1995SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, v. 20, n. 2., jul./dez. 1995.) traz à tona essa necessidade de elas apresentarem suas visões de mundo e ações cotidianas como estratégias de subversão do ideário de protagonismo masculino cristalizado por muito tempo nos diversos espaços de conhecimento e poder, inclusive nas produções artísticas.

A partir do posicionamento de Jacques Derrida (2013DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013.) de que tudo é texto, as fotografias passam a produzir e visibilizar discursos para além da representação de imagem, mas os detalhes, as cores, as intencionalidades e os arranjos dos corpos e objetos constituem chaves de leitura e de interpretação que evidenciam fendas e lacunas que desencadeiam diversas possibilidades de leituras, problematizações e desconstruções.

A projeção de imagens de artistas árabes em solo americano, por si só, já traz consigo a forte carga sócio-política que lhe é intrínseca. A exposição contou com a participação de 12 artistas, cujas produções refletem suas visões acerca da guerra, política, vida, pessoa, estereótipo, corpo, tradição, isolamento, exclusão, maternidade, entre outros temas factuais. Este conjunto de obras, tal como foi exposto neste particular contexto, merece um estudo específico que analise caso a caso as imagens e as visões das fotógrafas que as realizaram.

A negação da mulher islâmica, que vai desaparecendo sob as vestes de sua cultura, sinaliza a tentativa de anulação de seu ser, a partir da sua não identificação de generalização unificada, como mostra o trabalho da iemenita Boushra Almutawakel (2012ALMUTAWAKEL, Boushra. “Muslima: muslim women’s art and voices”. The hijab/veil series, 2012. Disponível em: Disponível em: http://muslima.globalfundforwomen.org/content/hijab-veil-series . Acesso em: 17/10/2017.
http://muslima.globalfundforwomen.org/co...
), a série sobre os hijabs.9 9 O site para consulta é http://muslima.globalfundforwomen.org/content/hijab-veil-series e chama-se Muslima: muslim women’s art & voices.

Dentre os diversos trabalhos expostos, aponta-se a série de imagens da fotógrafa Newsha Tavakolian (2011TAVAKOLIAN, Newsha. “Arts & Culture”. Listen: Giving Voice to Iranian Women, 2011. Disponível em: https://www.magnumphotos.com/arts-culture/newsha-tavakolian-listen/.
https://www.magnumphotos.com/arts-cultur...
), intitulada Listen,10 10 O site para consulta é https://www.magnumphotos.com/arts-culture/newsha-tavakolian-listen/ e chama-se Magnum Photos. que criou capas de discos que nunca existirão para cantoras que, pela religião islâmica, não podem gravar as músicas que cantam. As imagens podem ser compreendidas como forte crítica à falta de liberdade dessas cantoras, ao silenciamento. A proposta desta artista visou a presentear, prestando-lhes homenagem, de forma simbólica, cantoras cujas gravações de música são consideradas trabalhos proibidos. A fotógrafa deu rostos e, de certa forma, vozes a essa mulheres, ao tratar do próprio título da série Escute,11 11 Listen [tradução nossa]. num gesto de empatia e empoderamento.

A seguir, será abordada não só a formação inédita de coletivos compostos por fotógrafas no Brasil, mas também alguns discursos isolados de autorrepresentações e apropriações de fotógrafas brasileiras e estrangeiras sobre questões feministas.

Fotografias e o feminismo no Brasil

Coletivos de fotógrafas brasileiras

Aos poucos, a fotografia feminista brasileira desponta e assinala um perfil: o de formação de coletivo de artistas, datado da segunda década do século XXI. Segundo informações do coletivo pernambucano 7Fotografia, formado pelas fotógrafas Bella Valle, Joana Pires, Maíra Gamarra e Priscilla Buhr, o grupo não tinha como ideia seminal ser uma reunião de fotógrafas feministas, porém, em decorrência de diversas situações e questionamentos em seus trabalhos, esta foi uma consequência dessa união. O 7Fotografia pode ser apontado como um dos grupos precursores de fotógrafas feministas no Brasil. Em entrevista assinada em nome de todo o coletivo, o grupo observou que questões debatidas no feminismo eram frequentes e interferiam diretamente em seus trabalhos:

A questão de sermos mulheres era, na verdade, uma não questão por um tempo. Esse tempo individualmente nunca existiu, pois todas, sempre, como mulheres, politizadas, nos pegávamos debatendo pautas feministas, nas nossas vivências pessoais e profissionais, nos nossos cotidianos e nas nossas pesquisas, e partilhando entre nós, como amigas que somos. Isso por um bom tempo não era esfera de ação do 7, mas sempre foi de nós todas de alguma forma, de várias formas. A sororidade já era nossa moral antes de tomarmos consciência dela, por exemplo (7FOTOGRAFIA, 20167FOTOGRAFIA. Disponível em: Disponível em: https://setefotografia.wordpress.com . Acesso em: 01/09/2016.
https://setefotografia.wordpress.com...
, p. x).

Outro coletivo de fotógrafas no Brasil é o grupo de gaúchas Nítida - fotografia e feminismoNÍTIDA - FOTOGRAFIA E FEMINISMO. Disponível em: Disponível em: https://nitidafotografia.wordpress.com/ . Acesso em: 15/04/2016.
https://nitidafotografia.wordpress.com/...
, cujo intuito é pesquisar a produção artística feita por mulheres e a valorização da fotografia feminina desde os primórdios até os dias atuais. Fazem parte deste grupo: Camila Domingues, Deb Dorneles, Desirée Ferreira, Leli Baldissera e Lívia Auler.

O coletivo Nítida - Fotografia e Feminismo busca refletir o papel da mulher na sociedade, em especial na fotografia. Em seu blog é possível encontrar textos publicados sobre fotógrafas, artigos, entrevistas e críticas. A descrição do grupo reflete questões já mencionadas, da crítica à opacidade das fotógrafas no campo das artes, e mais:

Pretendemos resgatar o trabalho de mulheres fotógrafas ao longo da história e pesquisar artistas contemporâneas. O feminismo vem ao encontro dessas questões, no intuito de retirar a mulher do papel de coadjuvante. Dessa forma, buscamos fortalecer a representatividade feminina no campo da fotografia (NÍTIDA - FOTOGRAFIA E FEMINISMO, 2016, p. x).

Uma das ressalvas da importância desses grupos é a disseminação de informações sobre a reflexão do feminismo por meio das artes e o diálogo por meio de redes sociais, assim como o compartilhamento de trabalhos de artistas feministas.

A seguir registram-se diálogos sobre os discursos feministas, como o que ocorre na exposição coletiva brasileira Silêncio(s) do feminino, que tem como objetivo reverberar reflexões, a começar pela analogia que se pode estabelecer entre silêncio / opacidade / invisibilidade.

Silêncio(s) do feminino

A questão da imagem feminista foi objetivamente mostrada na exposição Silêncio(s) do feminino, no Centro Caixa Cultural de São Paulo, que aconteceu entre as datas de 12 de março a 08 de maio de 2016. A mostra contou com as séries e vídeos de artistas como Cris Bierrenbach, Marcela Tiboni, Beth Moysés, Rosana PaulinoROSANA PAULINO. Disponível em: Disponível em: http://www.rosanapaulino.com.br . Acesso em: 24/04/2016.
http://www.rosanapaulino.com.br...
e Lia Chaia, sob curadoria de Sandra Tucci. Foram selecionadas algumas das imagens, sobretudo as fotográficas, para ilustrar de forma clara como se dá o processo de materialização do discurso feminista.

A performatividade de gênero proposta por Butler (2015BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), entrelaçada por temporalidades, historicidades e localidades, possibilita ampliar as discussões dos sujeitos dos feminismos, visibilizando os demais marcadores sociais da diferença (gênero, classe, raça, geração etc.) no processo de construção social do sujeito, permitindo que se desloque das generalizações e universalizações, as quais são engendradas normativamente no referencial homem branco ocidental, para as visões de diversidades de corpos e sujeitos.

Essa exibição coletiva trata de temas tais como violência, racismo, corpo, maternidade, gordofobia, identidade social e solidariedade. Os impactos das imagens da exibição traduzem simbolicamente situações as quais muitas mulheres já sofreram ou temem sofrer.

Os trabalhos anteriores de Bierrenbach já apresentavam questões sobre ser mulher, como a série Retrato íntimo (BIERRENBACH, 2003BIERRENBACH, Cris. “Garfo / Tesoura / Seringa / Fórceps / Faca”. Série Retrato Íntimo, 2003. Disponível em: https://crisbierrenbach.com/pessoal/foto/retrato-intimo/.
https://crisbierrenbach.com/pessoal/foto...
), certamente influenciada pela série de radiografias de Man Ray. Um conjunto de imagens de raio-x da região do quadril feminino com objetos que estariam penetrando o ventre, tais como um garfo, um fórceps, uma tesoura levemente aberta, uma seringa e uma faca. Numa primeira leitura, pode-se relacionar as imagens à violência obstetrícia, abusos sexuais e tortura.

Outra referência a Man RayMAN RAY. Le Violon d’Ingres, 1924. Disponível em: https://www.artsy.net/artwork/man-ray-le-violon-dingres.
https://www.artsy.net/artwork/man-ray-le...
(1890-1976) é o autorretrato, sob forma de releitura, da famosa imagem, Le Violon d’Ingres (1924).12 12 O site para acessar a imagem é https://www.artsy.net/artwork/man-ray-le-violon-dingres. A imagem é o retrato de uma mulher de costas, com desenho dos “ouvidos” do violino, remetendo novamente ao corpo feminino e suas curvas. A foto de Cris Bierrenbach, My Man Ray (DEEP THROAT, 2015DEEP THROAT. Cris Bierrenbach, L’Art en Toute Intimité, 15/11/2015. Disponível em: http://www.deepthroat.fr/articles/2015/11/16/cris-bierrenbach.
http://www.deepthroat.fr/articles/2015/1...
) é um simulacro que substitui os “ouvidos” por hematomas (violência), que traduz claramente o intuito, seguido pelo uso do pronome possessivo “my” (meu) e a relação à possessividade e à agressividade masculinas. Essa leitura, do ponto de vista da palavra “ouvidos”, pode também remeter à voz não escutada das mulheres que sofrem agressões e são compulsoriamente silenciadas.

No catálogo da mostra, cada artista teve um texto introdutório individual escrito por diferentes especialistas. No texto introdutório do catálogo da exposição, escrito por Eder CHIODETTO (inPICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra), p. 49), o também fotógrafo e pesquisador, com ampla experiência em curadoria fotográfica, faz uma análise dessa padronização exposta e, mais enfaticamente, toca na questão da identidade. Segundo palavras do curador, é um trabalho baseado em arquétipos e com uma noção de coletivo. Outro detalhe observado por Chiodetto é a ambiguidade recorrente do termo “disparo”, usado tanto para câmera fotográfica quanto para arma de fogo, evidenciado pela escolha de Cartier-Bresson ao nomear sua agência de Magnum,13 13 Ver https://www.magnumphotos.com/. tipo de calibre de arma.

São imagens fortes, como as fotografias de Bierrenbach (2013), que ela nomeou Fired, cujo duplo sentido foi permitido pelo título em inglês: algo como disparado (arma de fogo) e despedido. As imagens mostram uma mulher (no caso, um processo performático de autorretrato) vestida com “uniformes trabalhistas” e cujo rosto está “disparado”, ou seja, atravessado por marcas de tiros.

Figura 1

Fired foi uma série realizada em 2013 e traz nove imagens cujas dimensões são 1,90m x 1,10m, na tentativa de aproximação do tamanho da altura do espectador por meio da utilização do simulacro, aumentando, assim, o impacto. A colocação da mulher no mercado de trabalho ainda é desvalorizada pelo homem. Trata-se de uma leitura da misoginia, além da violência física e também verbal a qual mulheres, independente da classe econômica e de suas escolhas, estão sujeitas a sofrer.

O trabalho em vídeo da mesma artista intitulado Identidade (2003BIERRENBACH, Cris. Identidade. DVD/Vídeo, 3 min., 2003. (Coleção Maison Européenne de la Photographie) Disponível em: https://crisbierrenbach.com/pessoal/video/identidade/.
https://crisbierrenbach.com/pessoal/vide...
), no qual ela faz uma performance de autorrepresentação em que joga com o dualismo de construção e desconstrução da vaidade feminina, é entendido como imposição midiática de padrão de beleza. O vídeo amplia a leitura ao espectador que se depara com uma artista cortando todo o cabelo, o que também pode remeter à leitura de (dor) da perda do cabelo das mulheres que passam por tratamentos de câncer. O vídeo aponta para reflexões que dizem respeito aos padrões midiáticos do ideal de beleza feminino, percebido na determinação cultural do culto ao cabelo. Ao opor o ideal da propaganda de produtos para embelezar cabelos, vê-se a opção de não ter cabelos como decisão pessoal, rompendo com o discurso em prol dos cabelos vistos em campanhas publicitárias: longos, sedosos, bem cuidados e fartos.

Outro trabalho que faz parte da exposição é o vídeo Ex-purgos, de Beth MoysésBETH MOYSÉS. Ex-purgos. Disponível em: Disponível em: http://www.bethmoyses.com.br . Acesso em: 24/04/2016.
http://www.bethmoyses.com.br...
. Esta obra é também uma autorrepresentação, sendo uma forma encontrada para explorar possibilidades de discurso por meio de outros suportes visuais. As imagens mostram a mão da artista com uma espécie de colmeia, representando uma ferida da qual escorre o mel - simbolicamente a dor da limpeza (expurgo) ou a relação colaborativa das abelhas fêmeas.

Figura 2

A artista também participa da exposição com a instalação realizada em 2016, Conselhos, que traz um banco de confessionário, um fone de ouvido e um aparelho de mp3. Essa obra pode ser analisada a partir do corpo feminino não presente na obra como corpo profano, o corpo que precisa da redenção religiosa da culpa original - a mulher como a origem de todos os pecados.

As imagens de Marcela TIBONI (2012), Crimes passionais (inPICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra)), falam da violência doméstica, que permite uma leitura sobre a autoestima feminina e a autocrítica das mulheres contra si e contra as outras. No díptico, aparece a própria fotógrafa em uma foto duelando com uma outra Marcela, vestida exatamente igual, sendo uma imagem com a artista apontando uma pistola de pederneira na cabeça da “outra”, e a outra com um revólver na mesma posição, num ângulo de 180º.

Figura 3

Tiboni também apresenta uma segunda série de autorretratos, realizada em 2006, cujo título é Estudo para desenho de corpo feminino. Trata-se de um conjunto de registros da artista em nu frontal com o corpo que é reconhecido como fora dos padrões de beleza vigente (corpo não mercadológico), marcado pela cartografia da perfeição estética.

Figura 4

O bodyart surge durante o período de profundas transformações sociais (como a Guerra do Vietnã e a liberação sexual), usando o corpo enquanto objeto de discurso artístico, assim como a performance. Deste modo: “O corpo é o lugar onde o mundo é questionado” (David LE BRETON, 2003LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003., p. 44-45).

A obra que compõe a Figura 4 relaciona-se diretamente ao trabalho da pintora britânica Jenny Saville, que trata de representação do corpo (independente do gênero) mas, sobretudo, o feminino. A obra da artista britânica intitulada Plan (1993SAVILLE, Jenny. Plan, 1993. Disponível em: Disponível em: http://www.saatchigallery.com/aipe/jenny_saville.htm . Acesso em: 27/10/2017.
http://www.saatchigallery.com/aipe/jenny...
)14 14 O site para acessar a obra é http://www.saatchigallery.com/aipe/jenny_saville.htm. retrata nu feminino frontal com vários desenhos em linhas semelhantes, propondo reflexões estéticas acerca do corpo feminino não padrão. Recorre-se à matéria publicada no The Guardian como destaque para pontos:

Ela tornou-se conhecida por pintar corpos obesos, depois corpos prestes a sofrer cirurgias plásticas - ambos majoritariamente femininos. Pessoas presumiram que seu trabalho era anti-cirurgia plástica, ou um comentário sobre a tirania da magreza, mas ela diz que ela não está interessada em julgamento. Foi a ideia de como o corpo pode ser mudado, e as histórias do porquê eles foram mudados, que a fascinaram. Mas seu trabalho é indubitavelmente “feminino” - suas mulheres não se parecem com mulheres reais, pintadas por homens, que dominaram a nudez por quase toda a história da arte. Quando eu pergunto a ela se ela pensa que ela seria mais reconhecida se ela fosse um homem, ela simplesmente diz: “Eu não faria esse trabalho se eu fosse um cara”15 15 She became known for painting obese bodies, the bodies about to undergo plastic surgery - both mostly female. People have presumed her work is anti-plastic surgery, or a comment about the tyranny of thin, but she says she isn´t interested in passing judgment. It was the idea of how bodies can be changed, and the stories of why they had changed, that fascinated her. But her work is undoubtedly “female” - her women do not look like the idealized women painted by men, who have dominated the nude for almost all of art history. When I ask if she thinks she would be more celebrated if she were a man, she simply says: “I wouldn´t make this work if I was a guy” [tradução nossa]. (Emine SANER, 2016SANER, Emine. Jenny Saville: ‘I used to be anti-beauty’. “Interview”. The Guardian, 25/04/2016. Disponível em: Disponível em: https://www.theguardian.com/artanddesign/2016/apr/25/jenny-saville-painter-artist-gagosian-gallery-london-interview-charles-saatchi-yba . Acesso em: 27/10/2017.
https://www.theguardian.com/artanddesign...
, p. x).

A fala de Saville destaca aspecto relevante quanto à questão inicialmente colocada sobre a presença de nus femininos nos maiores museus do mundo e suas autorias, todas masculinas. Também é de se destacar que a entrevista se refere à série de obras expostas em Londres em 2016, Erota. Todavia, são as obras Matrix (1999SAVILLE, Jenny. Matrix (1999), 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.christies.com/lotfinder/Lot/jenny-saville-b-1970-matrix-5916645-details.aspx . Acesso em: 27/10/2017.
http://www.christies.com/lotfinder/Lot/j...
)16 16 O site para acessar a obra é http://www.christies.com/lotfinder/Lot/jenny-saville-b-1970-matrix-5916645-details.aspx. e Passage (2004SAVILLE, Jenny. Passage, 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.saatchigallery.com/artists/artpages/jenny_saville_passage.htm . Acesso em: 27/10/2017.
https://www.saatchigallery.com/artists/a...
)17 17 O site para acessar a obra é http://www.saatchigallery.com/artists/artpages/jenny_saville_passage.htm. que ressaltam justamente a crítica proposta pela artista sobre as representações masculinas acerca de nus femininos, apresentando transgêneros - de certa forma uma resposta atual à obra célebre de Gustave COURBET (1866COURBET, Gustave. L’origine du monde, 1866. Paris, Museu de Orsay. Disponível em: http://www.musee-orsay.fr/fr/collections/oeuvres-commentees/recherche/commentaire_id/lorigine-du-monde-125.html.
http://www.musee-orsay.fr/fr/collections...
), L´origine du monde.

Diferente do trabalho da gaúcha Verônica Marques Martins (2017VERÔNICA MARQUES MARTINS. “Portfolio”, Contraversão, 2017. Disponível em: https://veronicamarquesmartins.46graus.com/portfolio/contraversao/.
https://veronicamarquesmartins.46graus.c...
), da série Contraversão, em que a artista aparece em nu frontal inteiro, numa paisagem de pasto. A fotógrafa faz um autorretrato de seu corpo todo mapeado tal qual o corpo dos animais que servem de carne para alimentação humana, ao lado de um bovino, imitando a delimitação de hierarquia das qualidades das carnes. A obra é um discurso sobre repensar a matança animal, mas tangencia, de forma indireta, a “precificação do corpo da mulher”.

Rosana PAULINO (2016) é pesquisadora e doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo e é a única artista negra que compõe esta exposição. Seu trabalho aqui apresentado versa sobre a temática escravista. De forma resumida, a pesquisadora Luana Saturnino Tvardovskas (inPICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra)) elenca os aspectos mais relevantes da obra de Paulino:

Há nela uma intenção - também presente na arte de outras mulheres com viés feminista - de autorrepresentar seu corpo, suas experiências e memórias. Destaca-se a habilidade de reavaliar e de contestar categorias estanques, identidades cristalizadas e tidas como biológicas ou naturais. Nesse sentido, essa produção possui um caráter fortemente antirracista, que também debate temas contemporâneos como a exclusão, a violência física e simbólica contra o corpo feminino e a pobreza (p. 70).

Figura 5

A instalação de técnica mista produzida em 2013, Assentamento (inPICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra)) é formada por diversos materiais e suportes, porém se optou pela análise da fotografia. Uma imagem “retalhada” de uma mulher negra em nu frontal e em perfil, originária da apropriação de registro fotográfico de mulher escravizada, representa o desconhecido.

A imagem de corpo da mulher está “descentrando-se” e está impressa em tecido costurado horizontalmente em diversos níveis. O que chama atenção desta imagem é a interiorização do sentimento visto na sobreposição de um coração sangrando e de um bebê no ventre.

O texto sobre a obra da artista (parte integrante do catálogo) foi assinado pela pesquisadora doutora em História Cultural Luana Saturnino Tvardovskas (inPICOSQUE, 2016PICOSQUE, Gisa. Silêncio(s) do Feminino. São Paulo: Plano A Serviços Artísticos e Culturais Ltda., 2016. (Catálogo da Mostra)) e estabelece a ligação dos papéis sociais da mulher negra na sociedade brasileira, revelando o fato de a mãe de Paulino ter sido costureira na área periférica paulistana. O que Tvardovskas (2016, p. 69-70) aponta é que se trata de um trabalho de memória coletiva e, também, biográfico, sobretudo a “condição sócio-histórica brasileira” e os “lugares sociais”.

Considerações finais

A participação da mulher no campo das artes ainda se faz bem menor em relação à presença de homens, apesar da lenta progressão em busca de equidade. Ao longo dos anos, com reflexões propostas pelo feminismo, algumas artistas militam pela busca de seu próprio espaço de modo independente ou em conjunto, tendo obtido sucesso, como demonstraram os casos aqui explanados.

Notou-se que, dentro do panorama da fotografia brasileira, as fotógrafas ainda estão invisíveis, seja na literatura, seja nos festivais; logo se percebeu o surgimento do fenômeno de coletivos e grupos de artistas mulheres que, atentas a estes fatos, se mobilizam para terem visibilidade.

A maioria dos trabalhos apresentados neste estudo, como o caso da exposição coletiva Silêncio(s) do feminino, é autorrepresentação de mulheres, cuja característica essencial é o uso do próprio corpo - parte integrante da sua expressão social e política. A autorrepresentação nua das fotógrafas delimita a percepção, o controle e o limite que lhes são estendidos. Por outro lado, a pesquisadora Luana Saturnino Tvardovskas (2016) ainda observa que:

No Brasil, diferentemente de um movimento artístico feminista organizado - por exemplo, como ocorreu com força de ativismo político nos EUA, e mais recentemente, na França ou ainda no México -, os diálogos com temas relativos às mulheres aconteceram de maneira mais individualizada e autônoma (p. 69).

O olhar sobre a fotografia feminista brasileira contemporânea requer, de modo objetivo e subjetivo, observações acerca do processo de criação do conjunto de representações que já se tem para análise, assim como os que estão em progresso, cujo exemplo mais tangível são as próprias imagens selecionadas para este artigo. Sendo assim, os múltiplos discursos inerentes ao feminismo reverberam de modo pontual a fotografia artística brasileira e dialogam com espectadores, buscando reflexões acerca dos conflitos femininos cotidianos.

Referências

  • 1
    The Guerrilla Girls are feminist activist artists. Over 55 people have been members over the years, some for weeks, some for decades. Our anonymity keeps the focus on the issues, and away from who we might be. We wear gorilla masks in public and use facts, humor and outrageous visuals to expose gender and ethnic bias as well as corruption in politics, art, film, and pop culture. We undermine the idea of a mainstream narrative by revealing the understory, the subtext, the overlooked, and the downright unfair. We believe in an intersectional feminism that fights discrimination and supports human rights for all people and all genders (GUERRILLA GIRLS, 1985-2018).
  • 2
    As mulheres têm que estar nuas para fazer parte do Museu Met? [tradução nossa].
  • 3
    Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Período: de 28 de setembro a 29 de novembro.
  • 4
    Centro Cultural Caixa no Rio de Janeiro. Período: primeiro semestre de 2016.
  • 5
    Las mujeres, a pesar de todo, pintaron, esculpieron, fueron fotógrafas en los distintos movimientos de vanguardia, pero siempre amenazadas por un doble peligro: el de ser acusadas de seguidoras o imitadoras fieles de sus compañeros de sexo masculino por una parte, y por otra, el de ser rechazadas por atreverse a innovar cuando no les correspondía por su condición femenina [...] [tradução nossa].
  • 6
    Texto publicado na revista francesa Photo, edição especial sobre o Brasil, n. 329, em abril de 1996. Na revista, o texto foi dividido em duas seções “Les Maitres Brésiliens” e “Nouvelle Géneration” [excerto retirado do Portfólio de Ronaldo Entler na internet].
  • 7
    O site do MoMAMoMA. Museum of Modern Art. Cindy Sherman. Disponível em: Disponível em: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/#/6/ . Acesso em: 30/05/2016.
    http://www.moma.org/interactives/exhibit...
    em que o trabalho de Sherman pode ser visualizado é http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/#/1/.
  • 8
    She who tells a story: women photographers from Iran and the Arab world [tradução nossa].
  • 9
    O site para consulta é http://muslima.globalfundforwomen.org/content/hijab-veil-series e chama-se Muslima: muslim women’s art & voices.
  • 10
    O site para consulta é https://www.magnumphotos.com/arts-culture/newsha-tavakolian-listen/ e chama-se Magnum PhotosMAGNUM PHOTOS. Disponível em: Disponível em: https://www.magnumphotos.com/ . Acesso em: 27/10/2017.
    https://www.magnumphotos.com/...
    .
  • 11
    Listen [tradução nossa].
  • 12
    O site para acessar a imagem é https://www.artsy.net/artwork/man-ray-le-violon-dingres.
  • 13
    Ver https://www.magnumphotos.com/.
  • 14
    O site para acessar a obra é http://www.saatchigallery.com/aipe/jenny_saville.htm.
  • 15
    She became known for painting obese bodies, the bodies about to undergo plastic surgery - both mostly female. People have presumed her work is anti-plastic surgery, or a comment about the tyranny of thin, but she says she isn´t interested in passing judgment. It was the idea of how bodies can be changed, and the stories of why they had changed, that fascinated her. But her work is undoubtedly “female” - her women do not look like the idealized women painted by men, who have dominated the nude for almost all of art history. When I ask if she thinks she would be more celebrated if she were a man, she simply says: “I wouldn´t make this work if I was a guy” [tradução nossa].
  • 16
    O site para acessar a obra é http://www.christies.com/lotfinder/Lot/jenny-saville-b-1970-matrix-5916645-details.aspx.
  • 17
    O site para acessar a obra é http://www.saatchigallery.com/artists/artpages/jenny_saville_passage.htm.
  • Maria Thereza Gomes de Figueiredo Soares (therezasoares@gmail.com) é mestra em Cultura e Sociedade pela UFMA, especialista em Artes Visuais: Cultura e Criação. Possui bacharelado em Comunicação Social - Cinema pela Universidade Federal Fluminense (2009). Estudou Imagem na École Nationale Superiéure Louis Lumière (2007/2008). Fotógrafa atuante desde 2001. Realiza séries fotográficas autorais. Tem experiência na área de cinema, comunicação social e artes visuais com ênfase em Fotografia, atuando principalmente nos seguintes temas: fotografia, artes visuais e cinema.
  • Márcia Manir Miguel Feitosa (marciamanir@hotmail.com) é Professora Titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (1984), com Mestrado em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (1992) e Doutorado em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (1997). Pós-Doutora com bolsa CAPES, pelo Programa Ciência sem Fronteiras, em Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa, sob a supervisão da Profa. Helena Carvalhão Buescu. Docente permanente dos Programas de Mestrado em Letras, linha de pesquisa: Discurso, Literatura e Memória e em Cultura e Sociedade da UFMA e linha de pesquisa: Expressões e Processos Socioculturais. Líder do Grupo de Estudos de Paisagem em Literatura - GEPLIT. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos da Paisagem nas Literaturas de Língua Portuguesa. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em outras literaturas vernáculas, atuando, sobretudo, nos seguintes temas: literatura e paisagem, literatura portuguesa e africana de língua portuguesa, cultura, identidade, memória e exílio.
  • José Ferreira Junior (jferr@uol.com.br) possui Graduação em Comunicação Social, habilitação Jornalismo (1989), pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrado (1995) e Doutorado (2000) em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-Doutorado (2004) em Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Atualmente é Professor Titular da Graduação em Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PPGCult) da Universidade Federal do Maranhão, exercendo a função de docente permanente na Linha de Pesquisa Expressões e Processos Socioculturais. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração, atuando principalmente nos seguintes temas: jornalismo, semiótica, linguagens, design gráfico, literaturas, história da mídia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2016
  • Revisado
    16 Nov 2017
  • Aceito
    20 Mar 2018
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br