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A interferência do contexto assistencial na visibilidade do consumo de drogas por mulheres

Resumos

Considerando a crescente demanda por assistência à drogadição feminina e sua internacionalmente reconhecida especificidade, este estudo qualitativo, realizado em Salvador-Ba, no período de outubro/2003 a setembro/2004, com profissionais de saúde, propõe investigar se o contexto assistencial em que eles se encontram interfere na visibilidade do consumo feminino de drogas. Através da observação participante e da análise de conteúdo de entrevistas com dezenove profissionais, revelaram-se situações específicas quanto à visibilidade de mulheres usuárias de acordo com o local de atendimento ("instituição" versus "rua"). Diferenças na percepção da demanda, tipo de droga utilizado, idade, papéis sociais desempenhados e influência do parceiro para início e manutenção do consumo de drogas demonstraram que o contexto assistencial influencia na representação daqueles profissionais sobre as usuárias de drogas, o que pode interferir nas estratégias assistenciais implementadas. Recomenda-se a articulação entre os dois contextos assistenciais na unidade estudada e desta com outros serviços de saúde.

transtornos relacionados ao uso de substâncias; mulheres; assistência à saúde; identidade de gênero


In light of the increasing demand for female drug addiction care and its internationally acknowledged specificity, this qualitative study was carried out in Salvador, BA, Brazil, from October 2003 to September 2004. It aimed to investigate whether the context of care in which participants are inserted interferes with the visibility of female drug addiction. Participant observation and content analysis of 19 interviews performed with health care practitioners revealed that some aspects of female drug addiction were perceived differently according to the context of care (institution versus outdoors): demand, kind of drug used, age, social roles and partner's influence in the initiation and maintenance of drug use. Since the context of care impacts the health care practitioners' representation of female drug users which in turn can affect the strategies devised for their care, we recommend that not only the contexts of care within the studied unit should be articulate, but these contexts with those from other health services as well.

substance related disorders; women; delivery of health care; gender identity


Considerando la creciente demanda por la asistencia a la drogadicción femenina y su internacionalmente reconocida especificidad, este estudio cualitativo, realizado en Salvador-Ba, en el período de octubre/2003 a septiembre/2004, con profesionales de salud, se propone investigar si el contexto asistencial en el cual se encuentran influye en la visibilidad del consumo de drogas en mujeres. A través de la observación participante y del análisis de contenido fueron entrevistadas diecinueve profesionales, quienes expresaron situaciones específicas en relación a la visibilidad de mujeres consumidoras de acuerdo con el lugar de atención ("las instituciones" versus "la calle"). Diferencias en la percepción de demanda, tipo de droga utilizada, edad, roles sociales desempeñados e influencia del compañero para inicio y continuidad en el consumo de drogas muestran que, el contexto asistencial influye en la representación de aquellos profesionales sobre las consumidoras, lo que puede interferir en las estrategias asistenciales utilizadas. Se recomienda la articulación entre los dos contextos asistenciales en la unidad estudiada y de esta con los otros servicios de salud.

trastornos relacionados al uso de sustancias; mujeres; asistencia a la salud; identidad de género


ARTIGO ORIGINAL

A interferência do contexto assistencial na visibilidade do consumo de drogas por mulheres

Jeane Freitas de OliveiraI; Mirian Santos PaivaII; Camila Motta Leal ValenteIII

IProfessor da Escola de Enfermagem, Doutoranda do Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Baiha, email: jeanefo@ufba.br

IIPós-Doutora, Professor

IIIAluna do Curso de Graduação em Enfermagem, email: camivalente@gmail.com. Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Baiha

RESUMO

Considerando a crescente demanda por assistência à drogadição feminina e sua internacionalmente reconhecida especificidade, este estudo qualitativo, realizado em Salvador-Ba, no período de outubro/2003 a setembro/2004, com profissionais de saúde, propõe investigar se o contexto assistencial em que eles se encontram interfere na visibilidade do consumo feminino de drogas. Através da observação participante e da análise de conteúdo de entrevistas com dezenove profissionais, revelaram-se situações específicas quanto à visibilidade de mulheres usuárias de acordo com o local de atendimento ("instituição" versus "rua"). Diferenças na percepção da demanda, tipo de droga utilizado, idade, papéis sociais desempenhados e influência do parceiro para início e manutenção do consumo de drogas demonstraram que o contexto assistencial influencia na representação daqueles profissionais sobre as usuárias de drogas, o que pode interferir nas estratégias assistenciais implementadas. Recomenda-se a articulação entre os dois contextos assistenciais na unidade estudada e desta com outros serviços de saúde.

Descritores: transtornos relacionados ao uso de substâncias; mulheres; assistência à saúde; identidade de gênero

INTRODUÇÃO

A complexidade e diversidade dos problemas gerados pelo fenômeno das drogas, entendido como produção, comércio e consumo, têm gerado impactos distintos para as sociedades. Em relação à saúde, os vários problemas decorrentes do consumo (uso e abuso) de drogas têm demandado maior envolvimento e atenção dos profissionais com vistas a implantar e implementar políticas públicas e ações visando resolvê-los e/ou minimizá-los(1).

Mundialmente, o consumo de substâncias psicoativas - SPA, ainda, é maior entre os homens, de acordo com dados apresentados no Relatório Mundial sobre Drogas, de 2005(2). Entretanto, a diminuição da proporção entre homens e mulheres para as drogas de um modo geral e a predominância do uso de medicamentos, mais especificamente benzodiazepínicos, estimulantes e orexígenos, por mulheres vêm sendo registradas em muitos países(3). A tendência à "igualdade de gênero"(4) no consumo de drogas é justificada por mudanças no estilo de vida das mulheres ocorridas, sobretudo, no último século(5).

No Brasil, dados do 1º Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas, realizado em 2001, confirmam esse panorama. O referido levantamento foi construído com amostra de 41,3% da população total do país, sendo 57% de pessoas do sexo feminino. O álcool e o tabaco foram apontados como problemas de saúde pública mais proeminentes no país, com maior percentual de uso na vida entre pessoas do sexo masculino. O uso, na vida, de maconha (6,9%), solvente (5,8%) e orexígenos (4,3%) foram predominantes entre os homens. O uso de benzodiazepínicos e anfetamínicos mostrou-se três vezes maior entre as mulheres(6).

Embora informações sobre mulheres usuárias de drogas sejam escassas, estudos nacionais e internacionais, recentemente publicados, destacam o enfrentamento de barreiras de ordem estrutural, sistêmica, social, cultural e pessoal pelas mulheres, na busca e permanência de tratamento no consumo de SPA(7). Preconceitos e discriminação, sobretudo por parte dos profissionais de saúde, são apontados como as principais barreiras(1). A pouca visibilidade de usuárias de drogas em serviços especializados constitui preocupação recente na agenda de formadores políticos e órgãos financiadores.

Estudo realizado em Salvador, BA, confirma a tendência de usuárias fazerem troca de sexo por drogas, manterem relacionamentos sexuais com homens, também usuários, sem uso do preservativo e evitarem a busca de assistência à saúde em espaços institucionalizados(8). Mulheres que consomem álcool e outras substâncias tornam-se mais vulneráveis a contrair infecção pelo HIV, seja por questões de ordem fisiológica, seja por construções socioculturais direcionadas às mulheres e à pessoa usuária de drogas(8-10).

O reconhecimento de que as mulheres dependentes constituem subgrupo diferenciado dos homens e com características e necessidades de tratamento próprias e específicas começa a ganhar relevância. Recomenda-se atenção para situações específicas da condição feminina tais como a gravidez, a responsabilidade nos cuidados com as crianças, traumas decorrentes de abuso físico e sexual, experienciados na infância e/ou adolescência, níveis mais altos de problemas de saúde mental em relação aos homens e, ainda, o trabalho com o sexo, nas ações assistenciais(11). Especificidades da masculinidade e da feminilidade, assim como a influência das relações de gênero no uso de drogas individual e em grupos, também devem ser contempladas(12).

O presente artigo tem como propósito investigar se o contexto assistencial em que os profissionais de saúde se encontram interfere na visibilidade do consumo de drogas por mulheres. Os dados apresentados têm como referência atividades assistências direcionadas para pessoas usuárias de drogas, desenvolvidas por uma unidade de saúde no espaço institucional e de rua. As discussões estão embasadas na concepção de que as representações sociais - RS - estão vinculadas a valores, noções e práticas individuais que orientam as condutas no cotidiano das relações sociais e se manifestam através de estereótipos, sentimentos, atitudes, palavras, frases e expressões(13). As RS guiam na maneira de escolher e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, de interpretar esses aspectos, tomar decisões e posicionar-se frente a eles, às vezes de forma defensiva(14).

MÉTODOS

Os dados aqui apresentados fazem parte de investigação mais ampla que analisou como a perspectiva de gênero perpassa as representações de profissionais de saúde acerca do consumo de drogas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e os critérios éticos previstos na Resolução nº 196/96(15) foram respeitados em todas as etapas da pesquisa.

Trata-se de estudo exploratório, de caráter qualitativo, realizado no período de outubro/2003 a setembro/2004. A pesquisa de campo foi desenvolvida em unidade de saúde pública que presta assistência a pessoas usuárias de drogas e seus familiares, no município de Salvador, BA, através de ações realizadas no espaço institucional e no contexto de rua. As ações são respaldadas, sobretudo, na psicanálise e na política de Redução de Danos(16). Profissionais de saúde em atuação na unidade foram tomados como sujeitos do estudo.

Os dados foram coletados por meio das técnicas de observação participante e entrevista semi-estruturada, consideradas adequadas ao tipo de estudo desenvolvido. Durante a observação participante, buscou-se maior aproximação com os sujeitos estudados, assim como o registro de dados referentes ao fluxo e demanda dos clientes, características da clientela, rotinas e tipos de atendimentos prestados pela unidade. Nas entrevistas, foram enfatizadas questões referentes à formação e atividades desenvolvidas pelos profissionais, características da população atendida, aspectos relacionados ao consumo de drogas da clientela e percepção sobre assistência às pessoas usuárias de drogas.

Após dois meses de observação, as entrevistas foram agendadas e realizadas na unidade, de acordo com o horário mais conveniente para os dezenove entrevistados, que atuavam em atividades internas e externas. O número de profissionais foi definido pela reincidência de informações. Cada entrevista teve duração média de quarenta e cinco minutos, sendo seu conteúdo transcrito na íntegra. A análise de dados foi realizada com base na análise de conteúdo temático(17). Após várias leituras do conteúdo das entrevistas, os dados foram organizados em duas categorias temáticas: mulheres usuárias de drogas no contexto institucional e mulheres usuárias de drogas no contexto de rua.

RESULTADOS

Dos dezenove profissionais entrevistados, dez atuavam no espaço institucional sendo três médicos (homem), uma assistente social (mulher) e seis psicólogas (mulher), com idade entre 36 e 50 anos, com tempo de atuação na unidade entre dois e quatorze anos. Todos afirmaram ter outras atividades remuneradas em serviços públicos e/ou privados e pós-graduação (especialização e mestrado) em temas relacionados às substâncias psicoativas. Salientaram a pouca referência às questões sobre drogas nos seus cursos de graduação.

Os outros nove entrevistados eram redutores de danos (quatro mulheres e cinco homens) com idades entre 23 e 51 anos e moradores em comunidades onde atuavam. Todos declararam ter como única atividade remunerada o trabalho de redução de danos e salientaram que o mesmo se constitui fator significante na melhoria da própria auto-estima e cidadania. O tempo de atuação na unidade variou de dezoito meses a oito anos.

Diferenças relacionadas à percepção da demanda, ao tipo de droga utilizado, à idade, aos papéis sociais desempenhados e à influência do parceiro para início e manutenção do consumo de drogas, vinculadas aos distintos contextos assistenciais, foram identificadas nos relatos dos entrevistados. Durante o processo de análise não foram identificadas diferenças de percepção que estivessem atreladas ao gênero dos entrevistados.

MULHERES USUÁRIAS DE DROGAS NO CONTEXTO INSTITUICIONAL

Nas atividades do contexto institucional foi percebida demanda maior de homens como usuários de drogas, principalmente daquelas consideradas como ilegais, em relação às mulheres. Os profissionais que atuam nas atividades institucionalizadas afirmam que:

... mesmo sem ter dados estatísticos em mãos, eu diria que 90% da população que nos procura é de homens. Mulheres dependentes de cocaína, mulheres usuárias de maconha, a gente observa muito pouco a chegada no Centro.

As mulheres aparecem, contudo, em demanda significativa na condição de acompanhantes e/ou familiar. Dados que refletem essa realidade foram registrados em observações na sala de espera e nos grupos terapêuticos destinados à clientela atendida.

Na sala de espera foi notificada expressivo número de mulheres em busca da assistência para pessoas da família, amigos e vizinhos e demanda reduzida de mulheres como usuárias de drogas. Nessa situação específica, a mulher geralmente chegava em horário muito próximo à sua hora de atendimento e durante o período em que se mantinha na sala de espera conservava-se cabisbaixa e silenciosa. Na condição de acompanhante e/ou familiar, as mulheres geralmente mostravam-se falantes e expansivas.

Nas atividades de grupos, o número de participantes homens em relação às mulheres era marcante. No grupo destinado às pessoas consumidoras de álcool e outras drogas, composto de cerca de vinte participantes, registrou-se, em várias seções, a presença apenas de uma mulher, a qual dizia fazer uso abusivo de álcool. Nos grupos de tabagismo e de familiares, a participação das mulheres era predominante.

De acordo com os profissionais responsáveis pelo grupo de tabagismo, essa situação revela o aumento do consumo de tabaco pela população feminina. Já os profissionais responsáveis pela condução do grupo de família justificam o número significante de mulheres devido à incorporação do papel social e culturalmente construído de "cuidadoras". Ressaltam, também, a dificuldade das participantes em aceitar a presença masculina no grupo, embora, em geral, se queixem da pouca participação dos homens na educação e no cuidado com os filhos, ...é algo histórico e cultural. Mostra a fala de uma das profissionais entrevistadas.

Além disso, os profissionais entrevistados ressaltam que:

...o papel cultural, essa função social que a mulher sempre assumiu e mais recentemente, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, as mulheres lidam com uma sobrecarga muito grande, então, muitas vezes elas têm uma dupla, tripla jornada de trabalho.

Esses fatores têm favorecido o consumo de drogas por mulheres. E, no contexto institucional, os entrevistados destacam o uso abusivo de drogas medicamentosas (antidepressivo, tranqüilizantes e anfetaminas), do tabaco e do álcool pelas mulheres e baixa demanda de consumidoras de drogas ilícitas, sobretudo de crack e cocaína. Consideram que:

... as mulheres no mundo como o nosso, da maneira como o mundo está funcionando, estão sofrendo muito mais. Então elas estão usando benzodiazepínicos de uma forma muito abusiva, só que isso tem sido, muitas vezes prescrito pelos médicos.

Na condição de profissionais de saúde, ressaltam que o uso de medicamentos se dá como forma de atenuar situações de ansiedades e estresse resultantes da carga de responsabilidade atribuídas às mulheres, decorrentes dos vários papéis sociais e culturais e de padrões de beleza feminina preestabelecidos.

Os profissionais do contexto institucional revelam:

...que a população atendida é muito jovem na sua maioria em uma faixa dos 15 anos aos 30, 40 anos de idade.

Nesse contingente, as usuárias de drogas, em sua maioria, têm idade entre 24 e 40 anos, são casadas e/ou com companheiro fixo, são de classe média e da raça negra. A escolaridade varia de médio a superior.

A iniciação do uso de drogas e a relação do sujeito com a droga pode-se ver quando esse grupo de profissionais de saúde afirma:

... embora as mulheres apresentem prejuízos com o uso de drogas, observo que elas usam menos que os homens. E, elas são mais preocupadas com o funcionamento da família do que seu parceiro, o qual, na maioria das vezes, é um usuário de drogas. Geralmente as mulheres começam o uso de drogas ilícitas via parceiro, mas parece que as responsabilidades e relações que mantêm com a família e com a sociedade as tornam mais resistentes para desenvolver a dependência.

Consideram, portanto, que as responsabilidades sociais e culturais atribuídas às mulheres em seus diversos papéis como mães, donas de casa e esposas são ao mesmo tempo predisponentes para o uso de drogas e protetoras para a situação de dependência. Destacam que a inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho, assumindo, em muitos casos, a condição de chefes de famílias tem aumentado a sobrecarga de atividades e responsabilidades por elas enfrentadas no dia-a-dia, colocando-as muitas vezes em situações de vulnerabilidade para diversos agravos à saúde, dentre eles o consumo de drogas.

MULHERES USUÁRIAS DE DROGAS NO CONTEXTO DA RUA

Nas atividades desenvolvidas no contexto de rua, foi ressaltado que

... noventa por cento das mulheres que atendemos, todas elas, ou são usuárias de drogas, ou são parceiras de usuários de drogas, ou são as duas coisas ao mesmo tempo e o envolvimento delas na marginalidade é crescente.

Os entrevistados destacam que

... o número de mulheres usuárias de drogas, principalmente de álcool, sempre foi grande, mas o que acontecia é que elas faziam um uso mais escondido, hoje elas querem se igualar aos homens e vão para os bares. Então, o consumo entre as mulheres é muito grande não só de álcool, mas, também, de drogas ilícitas.

Eles evidenciam a percepção de que, em algumas comunidades trabalhadas, o quantitativo de mulheres usuárias supera o de homens. De acordo com suas observações, além do aumento no número de usuárias de drogas, as mulheres estão fazendo uso de drogas em maior quantidade que os homens, ainda resaltam que:

... as mulheres usavam drogas com namorado, com marido de forma mais discreta e em locais mais escondidos e hoje elas estão usando em qualquer lugar, com qualquer pessoa.

Dentre as drogas utilizadas pelas mulheres no contexto de rua, o crack foi a droga mais destacada. Os redutores de danos entrevistados informam que:

... em algumas das comunidades onde se atende, o contingente de mulheres que usa crack é altíssimo, muito, muito, muito alto mesmo, algumas delas não assumem.

Salienta-se a percepção de que as mulheres estão consumindo crack em proporção maior que os homens e que esses, por sua vez, têm preferido usar cocaína por entender que essa é substância menos danosa que o crack. Apontam para o fácil acesso do crack no mercado local de drogas, o valor de compra e a grande aceitação de troca de sexo por droga, modalidade essa apontada como de grande utilização entre mulheres usuárias, como fatores facilitadores para o consumo de crack pelo grupo feminino.

No contexto de rua foram identificados três grupos distintos de mulheres usuárias de drogas: as donas de casa, as profissionais do sexo e as chamadas "periguetes". Para cada grupo, os entrevistados apontam para características que estão relacionadas, principalmente, ao tipo de drogas utilizadas e à forma de aquisição das mesmas. Salientam a existência de estigmas e preconceitos distintos para os grupos identificados, os quais estão fundamentados em construções sociais e culturais e de gênero.

As mulheres donas de casa, preferencialmente, usam maconha e álcool, as quais são consideradas por elas como drogas leves. Tendem a fazer consumo de forma oculta, ou seja, dentro do espaço privado da sua casa e mantêm uma rede de uso limitada ao parceiro, o qual tende a ser o fornecedor da(s) droga(s) utilizada(s), especialmente daquela(s) socialmente tida como ilegal. Diante desses comportamentos e, ainda, por desempenhar a função de dona de casa que envolve o cuidado com os filhos e com o marido, esse grupo de mulheres usuárias de drogas se mantém respeitado pela comunidade onde moram.

Com relação às profissionais do sexo, os redutores de danos apontam para o fato de que o consumo de drogas tem grande vinculação com a atividade que executam. Para tanto, elas tendem a usar, preferencialmente, maconha, crack e cocaína, substâncias adquiridas diretamente por elas, nas "bocas de fumo", ou na mão de uma repassadora, com dinheiro oriundo do seu trabalho. Além dessas substâncias, eles referenciam que esse grupo de mulheres consome, abusivamente, álcool. Considerando o papel de provedora do lar, os redutores de danos dizem que as mulheres profissionais do sexo e usuárias de drogas, nas comunidades estudadas são, de alguma forma, respeitadas.

O mesmo não se dá para o grupo de mulheres usuárias de drogas denominado periguetes. Esse grupo, de acordo com os entrevistados, é caracteristicamente composto por

... meninas que estão se prostituindo só, simplesmente por causa da droga, não é nem mais por causa do dinheiro mas pela droga em si. Elas normalmente moram em outras comunidades e vêm para o local onde sabem que a droga está mais presente só para consumir drogas. E pelas drogas elas se sujeitam a qualquer coisa, especialmente a trocar sexo por drogas com um ou vários parceiros ao mesmo tempo. Muitas são bonitas, jovens.

Consideram, as periguetes como veículo de transmissão de doença e ameaça para a comunidade, já que terminam reduzindo a freguesia para as profissionais do sexo e mantêm relacionamentos sexuais com homens usuários de drogas, ou não, companheiros das mulheres moradoras da comunidade. Nessa conjuntura, os redutores de danos destacam que as periguetes não são respeitadas e também são mais difíceis de ser abordadas para trabalho de prevenção por terem interesse maior na droga.

DISCUSSÕES

As diferenças mostradas no contexto assistencial quanto à percepção na demanda, o tipo de droga utilizado, a idade, os papéis sociais desempenhados e a influência do parceiro para início e manutenção do consumo de drogas por mulheres demonstram a influência do contexto institucional e de rua na visibilidade de mulheres usuárias de drogas.

A observação participante e as entrevistas revelaram que, embora haja reuniões entre os dois grupos, essas são meramente administrativas, não havendo discussões sobre as realidades vivenciadas por cada um deles. Dessa forma, pode-se afirmar que a falta de integração entre as atividades e os profissionais de saúde constitui fator que contribui para a invisibilidade da situação estudada. A realidade de cada contexto assistencial aponta para a expansão do consumo de drogas entre mulheres, sendo salientadas questões sociais e culturais que demarcam desigualdades.

Fica evidente, portanto, que as representações sociais são elaboradas a partir da realidade de cada sujeito no seu ambiente(14), contudo, as RS não constituem uma cópia da realidade, mas uma tradução, uma retomada. Elas se formam com o objetivo de dar sentido para aquilo que é estranho e novo, portanto, a conversão do não familiar em familiar se constitui na função primordial da representação social(18).

A identificação de grupos específicos de usuárias de drogas no contexto da rua (donas de casa, profissionais do sexo e periguetes), as distintas representações que são apontadas para as mesmas e a tendência de utilização do crack revelam situações de vulnerabilidade para as usuárias de drogas e lacunas a serem trabalhadas pelos serviços de saúde. Sendo assim, fica evidente a necessidade da incorporação da perspectiva de gênero nas ações de saúde como possibilidade de reconhecimento do impacto sociocultural em construções da masculinidade/feminilidade e o descortinamento de heterogeneidades de pessoas usuárias de drogas, rumo à assistência mais equânime(11).

A identificação de especificidades de pessoas usuárias de drogas é ressaltada na literatura(10). Prega-se que o tratamento e assistência a pessoas usuárias de drogas devam contemplar particularidades individuais e de grupos(7-11). O trabalho de campo é ressaltado como poderosa forma de identificar peculiaridades e dar visibilidade a pessoas e/ou grupos de pessoas usuárias, ainda ocultos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados apresentados alertam para um importante problema social e de saúde pública a ser enfrentado pelos profissionais e pelos serviços de saúde - o consumo de drogas por mulheres. Ao mesmo tempo, ressaltam a importância da multiplicidade de ações para o enfrentamento do fenômeno das drogas e salientam a necessidade de integralidade das atividades realizadas, sobretudo, em distintos contextos assistenciais de um mesmo serviço.

Compreendidas como um conhecimento socialmente construído e partilhado, as representações sociais dos entrevistados mostram-se atreladas às suas realidades e refletem construções socioculturais que demarcam desigualdades, dentre elas, as relações de gênero. Tais construções parecem interferir na elaboração e implantação de estratégias de atenção à saúde, direcionada para pessoas usuárias de drogas, assim como constitui barreira para busca e envolvimento de mulheres usuárias de drogas em serviços especializados. Portanto, influenciam na visibilidade do consumo de drogas por mulheres. Diante dos dados apresentados recomenda-se, a realização de novos estudos na perspectiva de investigar outros aspectos relacionados à visibilidade do consumo de drogas por mulheres.

AGRADECIMENTOS

A toda equipe do Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva e do GEM/EEUFBA pela colaboração na elaboração e desenvolvimento do projeto; ao Prof. Dr. Antonio Nery Filho e toda equipe pelo apoio e disponibilidade que viabilizaram a realização do estudo. À Fundação Ford, pelo financiamento. Ao mestre e amigo, Henrique Santos, pelos ensinamentos e direcionamentos na elaboração do artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 2.1.2006

Aprovado em: 25.9.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2006
  • Aceito
    25 Set 2006
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