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História e medicina: a herança arcaica de um paradigma

History and medicine: the inheritance of an age-old paradigm

Resumos

A proposta de estudar a interconexão entre história e medicina a partir da herança comum de um modelo de conhecimento implica resgatar o passado como vetor para a reflexão sobre a posição de ambas no estágio atual da produção científica. É nesse sentido que, neste artigo, busca-se discutir não só a historicidade e os fundamentos comuns a esses dois campos do conhecimento, as articulações possíveis de serem estabelecidas entre eles, como também os elementos a serem considerados na pesquisa sobre a imbricação entre os dois campos. Propõe-se uma abordagem em rede capaz de mostrar, por um lado, que tanto os discursos epistemológicos da medicina quanto os da história estruturam-se narrativamente como meio de abarcar conhecimentos específicos acerca de seus objetos e, por outro, que figuras de linguagem, especialmente a metáfora, têm um papel importante na construção e divulgação desses dois campos do saber.

história; medicina; indiciário; narrativa; metáfora


Based on inheritance of a common model of knowledge, drawing links between history and medicine represents a proposal to not abandon the contribution the past has to make when reflecting upon the current stage of scientific production in both fields. With this in mind, the present study endeavors to discuss history’s and medicine’s common ground and their historicity, the articulations possible between the two fields, and, lastly, the elements that should be taken into account when researching relations between them. The article proposes a network approach that will demonstrate (1) that both medical and historical studies display a narrative epistemology, used as a means of addressing specific knowledge about their objects of study and (2) that figures of language - the metaphor above all - have an important role to play in the construction and dissemination of both fields.

history; medicine; narrative; metaphor


História e medicina: a herança arcaica de um paradigma

History and medicine: the inheritance of an age-old paradigm

Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso

Historiadora, mestre em saúde da criança e da

mulher no Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz

Av. Rui Barbosa 716, 4o andar

22250-020 Rio de Janeiro — RJ Brasil

oscarmc@unisys.com.br

CARDOSO, M. H.C.de A.: ‘História e medicina: a herança arcaica de um paradigma’.

História, Ciências, Saúde - Manguinhos, VI(3): 551-575, nov. 1999-fev. 2000.

A proposta de estudar a interconexão entre história e medicina a partir da herança comum de um modelo de conhecimento implica resgatar o passado como vetor para a reflexão sobre a posição de ambas no estágio atual da produção científica. É nesse sentido que, neste artigo, busca-se discutir não só a historicidade e os fundamentos comuns a esses dois campos do conhecimento, as articulações possíveis de serem estabelecidas entre eles, como também os elementos a serem considerados na pesquisa sobre a imbricação entre os dois campos.

Propõe-se uma abordagem em rede capaz de mostrar, por um lado, que tanto os discursos epistemológicos da medicina quanto os da história estruturam-se narrativamente como meio de abarcar conhecimentos específicos acerca de seus objetos e, por outro, que figuras de linguagem, especialmente a metáfora, têm um papel importante na construção e divulgação desses dois campos do saber.

PALAVRAS CHAVE: história, medicina, indiciário, narrativa, metáfora.

CARDOSO, M. H.C.de A.: ‘History and medicine: the inheritance of an age-old paradigm’.

História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. VI (3): 551-575, Nov. 1999-Feb. 2000.

Based on inheritance of a common model of knowledge, drawing links between history and medicine represents a proposal to not abandon the contribution the past has to make when reflecting upon the current stage of scientific production in both fields. With this in mind, the present study endeavors to discuss history’s and medicine’s common ground and their historicity, the articulations possible between the two fields, and, lastly, the elements that should be taken into account when researching relations between them. The article proposes a network approach that will demonstrate (1) that both medical and historical studies display a narrative epistemology, used as a means of addressing specific knowledge about their objects of study and (2) that figures of language - the metaphor above all - have an important role to play in the construction and dissemination of both fields.

KEYWORDS: history, medicine, narrative, metaphor.

Introdução

Na atualidade, a utopia dominante que vem se apresentando para toda a humanidade diz respeito à conquista da saúde. Historicamente, poder-se-ia dizer que essa utopia corresponde ao nascimento, desenvolvimento e cristalização da chamada medicina preditiva. O que ela propõe é que o indivíduo, por um lado, tenha o poder de conhecer, através das biotecnociências (Castiel, 1998), seu patrimônio genético e, por outro, esteja apto a avaliar as influências ambientais e os modos de comportamento que podem favorecer a conjunção de dois fenômenos aleatórios: o inato e o adquirido. Tanto esse conhecimento quanto essa capacidade de avaliação seriam vetores da manutenção da saúde, ancorados no (auto)conhecimento dos fatores de risco presentes nas moléculas, no meio ambiente e nos estilos de vida. A tarefa a empreender seria a autogestão do "capital saúde" individual, da mesma forma como cada um gerencia seu capital imobiliário (Ruffié, 1993).

Conhecer, gerir, prever. Como a história entraria ao lado da medicina na tríade passado, presente e futuro tão bem conhecida de todos? A pesquisa histórica tem algo a ver com a tensão entre o inato e o adquirido e com uma medicina que se pretende voltar, cada vez mais, para a manutenção da boa saúde? Haveria entre medicina e história fundamentos comuns de construção e interação?

Em relação às duas primeiras questões, é óbvio que a história precisa estar presente não só porque responde às questões de ordem prática que a ação médica requer — tais como registro, coleta e classificação dos dados pertinentes às doenças e aos doentes –, como também porque se volta para o estudo da posição dos homens no mundo ao longo dos tempos, isto é, para as relações sociais de produção e poder que os homens estabelecem entre si e a natureza.

Para responder à questão sobre existência de fundamentos comuns de construção e interação entre medicina e história faz-se necessário um certo grau de especificidade característico de questões que, ao ampliarem a relação entre história e medicina, podem ser instrumentalizadas em benefício de uma assistência mais respaldada na singularidade do adoecer humano.

Este artigo objetiva, através de revisão bibliográfica de cunho interdisciplinar, não só mostrar a existência de um paradigma de conhecimento comum a esses dois campos do saber, enquadrado na moldura de sua historicidade, como também apontar possíveis articulações e ingerências entre essas ciências.

Para tanto, deu-se relevo ao conceito de historicidade, apresentou-se o chamado paradigma indiciário e enfatizou-se a problemática da narrativa tanto nos estudos históricos quanto nos médicos, apontando-se para um determinado conceito de cultura e para o papel das figuras de linguagem, especificamente a metáfora, na produção e divulgação do conhecimento científico.

Fundamentos

Só os seres humanos são capazes de contar uma história, porque somente eles sabem que algo aconteceu no passado, num tempo distante; tempo tão bem colocado pelas histórias bíblicas, que geralmente começam com "Naquele tempo...". Esse "naquele tempo" é o tempo dos seres humanos, portanto, o tempo humano. Assim se sabe, também, que um homem estava lá "naquele tempo". Ele não está aqui, contudo "estava lá". Somente os homens podem recortar as categorias "lá" e "aqui" e fazerem-nas constituintes de um espaço — o espaço humano. Somos historicidade, porque somos tempo e espaço. A pergunta com a qual Gauguin intitula seu quadro: "De onde viemos, quem somos e para onde vamos?" é a questão fundamental da historicidade. E ela nunca muda. O que varia são as maneiras como os homens responderam e respondem a essa questão, ou seja, o modo como a consciência histórica formulou e formula respostas a ela (Heller, 1993).

O desenrolar histórico de cada vida, em todos os momentos, coloca o desafio de tentar sobreviver, de lutar para romper um ciclo — nascer, crescer, amadurecer e morrer — cuja inevitabilidade, na maioria das vezes, induz à adoção de componentes de cunho ideológico e/ou religioso para o justificar ou amenizar. O processo da saúde e da doença intervém de forma predominante na geração da consciência histórica dos homens, pois os dois termos que o compõem colocam em pauta a realização de viver um determinado tempo e espaço, tornando imperativo para cada pessoa dar significado à vida. E as histórias que se construíram e se constroem, como aponta Schecter (1990) em seu livro sobre a Aids, são meios de proteção contra o mundo, contra a identificação com os fatos que, sobretudo quando se está doente, é um disfarce que a morte assume.

Por milhares de anos o homem foi caçador. Ele teve de aprender a reconstruir as pegadas dos animais na neve, no barro ou na areia; teve de estudar os movimentos desses animais e classificar seus odores. Movido pela necessidade, foi aprendendo a farejar, registrar, reconstruir, interpretar pistas insignificantes, mas imprescindíveis à sua sobrevivência e à de seus descendentes. As informações precisavam ser difundidas; a realidade não experimentada diretamente requeria ser compartilhada, comunicada e, por isso, como sugere Ginzburg (1989), os caçadores teriam sido os primeiros a contar uma história, porque eram os únicos que transformavam as pistas tênues, deixadas pelos animais, numa série coerente de acontecimentos.

Foi a partir da observação e do registro atento dos eventos que surgiram as primeiras histórias; foi também observando e registrando cuidadosamente todos os sintomas, como afirmavam os hipocráticos, que se fizeram histórias acuradas de cada doença. A história, tão ligada ao empírico quanto a medicina, não ignora séries de fenômenos comparáveis, e sua estratégia de conhecimento foi arquitetada através do exame de casos particulares, mesmo que o particular, no seu caso, se refira a um grupo ou a uma sociedade inteira. Do sintoma à conjetura, esboça-se, desde a medicina e os escritos gregos sobre a história, um modelo epistemológico indiciário (a busca de indícios) que aproxima as duas disciplinas e seus artífices. Como afirma Ginzburg (idem, p. 157): "o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural."

É, pois, para um estágio de desenvolvimento histórico remoto — primeiro aquele das sociedades nômades e depois o da civilização grega — que Ginzburg (idem, p. 143) se volta para buscar as raízes de um modelo de conhecimento que, segundo suas palavras, "emergiu silenciosamente" no âmbito das ciências humanas, no final do século XIX. Esse modelo teria sido criado por Morelli, médico apaixonado pela pintura, com a finalidade de distinguir a cópia do original. Consistia no abandono daquilo que era o mais patente, por exemplo, o estilo e a escola, para salientar minúcias, os detalhes secundários, detritos, refugos, pistas infinitesimais, enfim, tais como as dobras de tecido pintado, as unhas, as orelhas, os caracóis dos cabelos... Tratava-se de descobrir o falsificador por meio de particularidades insignificantes que traíam o inconsciente, ou seja, constituíam-se em signos involuntários capazes de autenticar a veracidade da obra. Ao cabo, o que Morelli buscava era a verdade, no pressuposto de que ela existia eternamente por si mesma, contudo vedada ao olhar comum. Para desvendá-la, era preciso um "especialista", cujo conhecimento seria a mão a retirar os véus que a ocultavam.

Os códigos de uma cultura, governando a linguagem, a percepção, as trocas, as técnicas, os valores, estabelecem para cada homem, desde o início, as ordens empíricas com as quais ele lida e entre as quais se sente à vontade. Por outro lado, há as interpretações filosóficas e científicas que explicam o existir das ordens, as leis e o princípio que as governam. Entre esses dois pólos, se situa um domínio intermediário, em que uma cultura se desvia das ordens que lhe foram prescritas pelos códigos primários, se separa deles e descobre que talvez essas ordens não sejam as únicas ou então as melhores. Emancipando-se, até certo ponto, de seus grilhões lingüísticos, perceptivos e práticos, a cultura superpõe a estes outros grilhões que os neutralizam, excluem. Nesse processo ela se vê frente à ordem em seu estado bruto. E é com base nessa ordem, concebida como fundação, que as teorias gerais sobre a ordenação das coisas são construídas. Essa região média, postulada por Foucault (1994, p. xxi), na medida em que torna manifestos os modos de ser da ordem, é a fundamental: "assim, em cada cultura, entre o uso do que se pode chamar de ordenação dos códigos e reflexões sobre a própria ordem, há uma experiência pura da ordem e seus modos de ser".

A cultura ocidental manifestou de maneira específica a sua ordem, criando o terreno que possibilitaria erigir o conhecimento que, hoje, se vê ser empregado em disciplinas tais como a gramática, a filologia, a história natural, a biologia, a economia política, enfim, em disciplinas concernentes aos seres humanos, consideradas muito tingidas pelo pensamento empírico, demasiado expostas à contingência, à intuição, às tradições arcaicas e aos acontecimentos externos e, portanto, também pouco permeáveis à emergência da verdade e da razão pura (op. cit.). E entre elas, por certo, a medicina e a história se incluem.

Apresentar o paradigma indiciário, como Ginzburg o faz, se torna possível exatamente porque descontinuidades na episteme da cultura ocidental inauguraram o modo de conhecimento próprio da modernidade, permitindo o surgimento do homem moderno e de sua historicidade.

A historicidade, primeiro, não se revelou no homem. Foi necessário que as "coisas" se dotassem de uma "historicidade" própria — como aconteceu com o trabalho, a vida e a linguagem — para que o homem, porque vive, trabalha e fala, descobrisse a si mesmo como tendo uma história e que esta, de certa forma, passasse a ditar o que ele pode ser, pensar e fazer. Na ordem empírica, o recuo das coisas possibilitou colocar a história como tendo uma origem humana e permitiu que o homem se sentisse no tempo (Vaz, 1997). Para cada ciência do homem, a história fornece um lar, as fronteiras de uma cultura na qual cada ramo do conhecimento pode ser reconhecido como tendo validade. Todavia, é também a história que limita o homem e corrói sua postulação de verdade como elemento universal — fora do tempo e do espaço humanos. Ela revela que, mesmo sem o saber, o homem "sempre esteve sujeito a determinações que podem se expressar pela psicologia, sociologia, e a análise da linguagem, por conseguinte ele não é o objeto intemporal de um conhecimento que, pelo menos no nível de seus direitos, deve ser pensado como sem idade" (Foucault, op. cit., p. 371).

Estabelecida a historicidade do modelo indiciário, chega-se à evidência de que caçadores, médicos e historiadores por ofício, partindo de um mesmo modelo de conhecimento — de pistas, indícios e sinais — "(re)constroem" casos particulares, dos quais abstraem generalizações. Tal como a semiótica médica, na sua dupla face diagnóstica e prognóstica, todas as teorias da história erguidas pelas mais diferentes correntes são formas de saber voltadas do presente para o passado e para o futuro.

Tanto para a historiografia grega quanto para o imaginário social da medicina ocidental moderna, existe um pai que a gerou e que a ilumina: Hipócrates, nascido em Cós em cerca de 400 a.C., que exerceu a medicina no templo do deus Asclépio. Não se tem certeza de quem seja o autor de todos os tratados a ele atribuídos, porém o que importa é levantar o método por ele empregado que se articulava à descrição cuidadosa do conjunto de sintomas para poder traçar um prognóstico da evolução do estado do paciente. Tratava-se, antes de tudo, de considerar a doença como objeto de "observação" e "entendimento" (Adam e Herzlich, 1994).

Partindo desse princípio, Hipócrates elaborou uma teoria — o sistema humoral — que marcou o exercício da medicina por séculos. Para ele, a saúde e a doença repousavam no equilíbrio entre a bile negra (melancolia), a bile amarela, a pituíta e o sangue. Estes, por sua vez, interagiam com os quatro elementos cósmicos (fogo, ar, água e terra), com as estações, com os estados climáticos (o quente, o frio, o seco e o úmido) e com os quatro pontos cardeais. O vocabulário e as concepções hipocráticas permanecem ainda vivas na apreensão social que se faz acerca das doenças, como, por exemplo, quando se fala que o "sangue ferve" e que "engolir a raiva faz mal para o fígado". Mas foi mais por sua insistência em fazer coincidir a teoria humoral com a observação do estágio da doença que Hipócrates, até para os médicos de hoje, continua sendo considerado o pai da medicina científica.

Da mesma maneira, a história ocidental moderna tem na figura de Heródoto seu fundador. Heródoto foi um viajante contemporâneo de Hipócrates. Historiador pela intenção, pois seu objetivo era impedir que caíssem no esquecimento as grandes façanhas realizadas pelos gregos, deixou as Inquirições, onde faz uma descrição cuidadosa do eco-ambiente do mundo helênico. Se, à luz dos atuais conhecimentos sobre teoria e metodologia da história, pode-se questionar a Heródoto seu título de historiador, sem dúvida não se pode negar a ele o método de registro e de construção de fontes sobre a história da sociedade grega. E qual era esse método? Assim como Hipócrates, o antepassado remoto dos historiógrafos baseia-se na opsis — "observação" — e no acoë — "o que se ouve" — para produzir um testemunho de seu tempo.

Tucídides, outro grego, tido como precursor inegável da história como ciência (Carbonell, 1987), tem como preocupação as causas que originam os desequilíbrios. No caso específico de sua obra, buscava saber o que havia de imediato, de profundo e longinquamente provocado a guerra do Peloponeso. Era a racionalidade conduzindo o historiador na busca do encadeamento causal e do futuro a ser desvendado, tendo por fio condutor a leitura do passado e do presente.

Observação, entendimento, busca de causas e de articulação entre eventos e fatos são os componentes do que se pode chamar de semiologia histórica. Nela os fatos são vistos como uma plêiade de sinais que, reunidos, passam pelas observações e operações críticas, são separados e posteriormente organizados num corpo de ciência que forma grandes conjuntos autônomos, com união interna e leis próprias, de tal modo que cada elemento depende da estrutura do conjunto e das leis que o regem: a Gestalt. Trata-se de um conhecimento tido como indutivo, visando à generalização, porém centrado no particular e no específico, isto é, em estudos de casos concretos que gerariam abstrações capazes de serem representadas em leis gerais e imutáveis de desenvolvimento histórico.

Não obstante os avanços da medicina científica contemporânea, a Gestalt semiológica, nos mesmos moldes descritos anteriormente, se constitui na essência do exercício clínico propriamente dito. É ela quem fornece as etapas do método clínico, ou as bases racionais e científicas desse método. Seguindo-se tais etapas, percebe-se que a herança de um paradigma comum sela a afinidade entre as ciências humanas histórica e médica. E isto apesar dos avanços tecnológicos e das transformações, sobretudo sofridos pelas disciplinas pilares do saber médico, tais como a fisiopatologia, a anatomia patológica, a citogenética, a biologia molecular e a epidemiologia, entre outras, que tendem a aproximar o saber médico das ciências hard no domínio do biológico (Camargo Jr., 1994).

Se a história é o reino do inexato, a medicina, desde a hipocrática até a exercida no século XIX — cujo eixo semiológico permanece até hoje —, enquanto componente do arcabouço genérico de construção discursiva da doença, demonstrou que não bastava catalogar as doenças, pois em cada indivíduo ela assumia feições diferenciadas e que o corpo, locus por excelência da manifestação dos sintomas e sinais, era, "por definição, inatingível" porque individual (Ginzburg, op. cit., p. 166).

No que tange ao aspecto histórico, o modo de estruturar as histórias, dar-lhes um tom, combinar os temas e desdobrar as tramas imprime às histórias verbalizadas por cada ser humano uma natureza peculiar. Contendo uma visão de estar no mundo, as histórias da vivência do adoecer e da própria vida, absorvidas ao longo dos anos através de imagens, emoções, esperanças e incertezas, formam um panorama representativo do dinamismo de uma cultura, cujas raízes vinculam-se ao viver hodierno em coletividade, tanto numa determinada formação social, quanto numa ordem específica que se foi delineando com o desenvolvimento do processo histórico.

Ao narrar uma história, se dá a conhecer aos ouvintes como é o mundo, como este se organiza no pensamento e como se soerguem táticas para enfrentar as dificuldades que o viver coloca. Nessa direção, os estudos ligados à área da história cultural, como os de Lacquer (1992), Darnton (1986), Porter (1992) e Davis (1987) demonstram que os médicos do final do século XIX, os camponeses da França do Antigo Regime, filósofos, romancistas e sociólogos modernos, e os suplicantes do século XVI — através de suas cartas de perdão dirigidas ao rei — não compuseram monografias, tal qual um historiador convencional que crê ser capaz de "resgatar" o passado e (re)arrumá-lo em uma ordem racional. Apesar de suas diferenças, eles realizaram, dentro de outra ordem, formação intelectual, motivação e status, o ofício do historiador ao encetarem a tarefa de interpretar o mundo e organizá-lo mentalmente com vistas a torná-lo compreensível e familiar. Para tanto, utilizaram materiais/fontes que tinham à sua disposição, (re)elaborando-os à sua maneira, para retratar uma dada realidade e, sobretudo, mostrar o que essa mesma realidade significava para as camadas inferiores e médias de uma ordem social instituída dentro de um tempo e de um espaço historicamente delimitados.

Da mesma maneira, as idéias culturais impregnam e saturam o discurso médico, e as concepções biomédicas sobre a saúde e a doença pressionam as mentalidades sociais. Estabelece-se, portanto, uma rede de interações e mediações num espaço no qual a racionalidade iluminista, da qual a atualidade é herdeira, pretendeu delimitar fronteiras de identidades absolutas. Na realidade, sutis, complicadas e enfumaçadas cercas delimitam as classificações com as quais se acostumou. Mesmo a linguagem biomédica não pode escapar do que determinada cultura ordena sobre os corpos humanos.

O que se pretende apontar é que os médicos, ao registrarem, estudarem e divulgarem suas experiências profissionais sobre o adoecimento de seus pacientes, estão fazendo também narrativas sobre a história. Tal como os historiadores de ofício, fazem surgir uma parcela de um certo tempo, de uma certa maneira de viver a saúde e a doença, reavaliando questões cuja importância transborda as margens do campo biológico para referir-se também às estruturas do viver sócio-coletivo.

Articulações

O diagnóstico, considerado no século XIX como a arte de transformar sintomas em sinais, acabou significando correlacionar a observação ao pé do leito com as descobertas que a moderna tecnologia médica oferece e manifestações subjetivas com lesões objetivas. E também implicou a transformação da maneira pessoal de dar conta do sofrimento num discurso médico profissional que transcodifica o subjetivismo incoerente num texto interpretável. Essa conversão da pesquisa semiológica, que se traduz no raciocínio diagnóstico, não pode prescindir nem da história pessoal e familiar do doente, nem de uma — propositadamente entre aspas — "história natural da doença". E, como ambas dependem da leitura de sinais/lesões e sintomas, é necessário levar em conta a confiabilidade dos indicadores e a maneira como são processados, reportados e documentados (Epstein, 1995).

Num sentido amplo, então, as histórias médicas contidas na anamnese, acrescidas do registro de resultados obtidos mediante o exame clínico e o recurso aos exames complementares a que a mais sofisticada tecnologia permite recorrer, por se constituírem em fontes primárias sobre a doença e o doente, são o material sobre o qual o médico se debruça para começar a "interpretar" os "fatos" e, a partir daí, construir seu diagnóstico.

A problemática do relacionamento entre a explanação histórica e os mecanismos explanatórios na ciência, um tema importante para a história clínica que cada médico produz sobre seu paciente, instiga e faz emergir reflexões que, principalmente nas décadas após a Segunda Guerra, têm sido sistematizadas por pensadores dos mais diversos campos do conhecimento. Uma delas, por exemplo, é a do entendimento do corpo como uma formação discursiva — trazida por Foucault (1977, 1963) em seus estudos sobre a sexualidade e a medicina — e também a da historicidade, porque ambas se complementam. Os corpos humanos são portadores não só de agentes patogênicos, assim como de histórias que explicam suas vidas. A necessidade de se construir essas histórias/narrativas sublinham os modos pelos quais as noções de saúde e doença são culturalmente produzidas. Todo corpo humano participa de uma coletividade que não pode ser entendida sem suas concepções de mundo, não é apolítica e/ou afastada das contingências históricas dos sistemas sociais e de crenças (Epstein, op. cit.).

Por outro lado, há a argumentação desenvolvida por Paul Ricoeur (1988), de que a historicidade e a narratividade possuem uma relação simbiótica e que a história é um discurso de bases narrativas, pois fundamenta-se num enredo que é traçado e até determinado pelo historiador. Todo entendimento histórico, portanto, de acordo com essa ótica, compreende uma concepção de narrativa. O exercício do diagnóstico clínico, que se ancora na história clínica do paciente e tem como um dos objetivos estreitar a margem de possibilidades das desordens, mediante um rígido relato que vai das primeiras impressões às hipóteses diagnósticas, contém "uma epistemologia narrativa nos seus esforços para encapsular tipos específicos de conhecimento acerca do corpo" (Epstein, op. cit., p. 31). A anamnese, o relato de caso, o conjunto de informações que compõem a história clínica não só exigem a transformação das queixas dos pacientes em um texto clínico, mas também a produção de uma explicação diagnóstica que requer funções interpretativas.

Uma multidão de significados pode ser encontrada nos arquivos médicos. As histórias médicas dos pacientes revelam, em suas múltiplas formas, aspectos culturais que organizam, institucionalizam e controlam não só os cuidados com a saúde, mas também a própria maneira como se estruturam as especialidades médicas e as habilidades dos profissionais médicos em lidar com o sofrimento de seus pacientes. Revelam, também, as concepções dos médicos sobre as doenças e de que forma constroem a narrativa, isto é, como assumem sua historicidade e que consciência histórica possuem do mundo e de si.

A narração expositora do diagnóstico e da terapêutica, por sua vez, reverberam sobre a constituição da narrativa histórica que cada doente faz dos males que o acometem e entrelaçam-se na rede de intrigas que, na visão de Paul Veyne (1983, p. 72), compõe a verdadeira história. Para ele, a história volta-se — acrescente-se, tal como a medicina — para acontecimentos individualizados que jamais se tornam a repetição inútil de outros; mas não é essa característica em si que importa, pois, mais do que isso, ela busca compreender esses eventos singulares e assim "reencontrar neles uma espécie de generalidade ou mais precisamente de especificidade".

A medicina vem sofrendo modificações e abalos correlatos às mudanças no processo histórico. Entretanto, da Antiguidade até os avanços mais recentes, as atitudes frente ao adoecimento pouco se alteraram. A fervorosa crença no saber científico coexiste com a fé na eficácia da magia, das preces e das ervas. As doenças persistem sendo a moradia dos fantasmas de cada um porque podem ser letais. Por isso elas fazem parte da historicidade humana. Elas não pertencem somente ao relato dos progressos da biotecnociência, mas integram a história dos saberes e ações articuladas às estruturas sociais, às instituições culturais criadas pelos homens, ao entendimento que possuem da realidade (Le Goff, 1991).

Se a medicina defronta-se com o sofrimento, a história também. Todavia, a interação das duas raramente tem sido abordada seja por médicos, seja por historiadores. De parte da história, a preocupação com as doenças é bastante recente, datando de trinta anos para cá; de parte da medicina, porém, a preocupação com a história é bem mais antiga. Desse encontro surge um viés comum: ambas se voltam para recuperar e reconstituir "eventos" cronologicamente ordenados, produzindo obras de cunho eminentemente fatual. Quando o historiador se debruça sobre a doença ou as práticas médicas é para delas recompor o passado e traçar sua evolução até os dias de hoje; quando o médico se debruça sobre a história é para usar os métodos clássicos da disciplina para traçar o progresso do conhecimento médico ao longo do tempo e/ou construir a história clínica de seu paciente.

A produção historiográfica mais recente sobre as doenças raramente escapa desse modelo. Caso se escolha a coletânea mais conhecida sobre a história das doenças, aquela organizada pelo historiador francês Jacques Le Goff (1991), vê-se que somente um ensaio (Moulin, 1991) oferece uma interpretação, baseada em Foucault, que realiza uma discussão de conteúdo, imbricando técnica médica com atitude crítica/analítica e articulando-as à percepção que os atores sociais contemporâneos têm dos avanços na área biomédica e de produção de fármacos.

Muitos autores que se movimentam no âmbito da chamada história cultural têm trazido contribuições importantes, tomando a doença como fonte para a investigação de maneiras de viver, que os documentos oficiais e tradicionais nunca se preocuparam em registrar. Contudo, não mergulham no objeto saúde/doença per se.

Um historiador como Porter (1997), por exemplo, que há anos vem se dedicando à história da medicina, sempre estabelece relações entre ela, as doenças e os médicos, traçando um painel geral sobre o desenrolar do exercício clínico. Sua preocupação é com a longa duração e com as modificações engendradas ao longo de um continuum evolutivo. O entrelaçar da medicina com a história se dá pela transformação da primeira em objeto da segunda, justificada pela visão social da medicina como a ciência mais beneficente ao gênero humano. A capacidade da medicina de transformação da própria natureza da vida dá-se tendo como pano de fundo os credos religiosos, científicos, filosóficos e políticos da cultura de cada época, o que, evidentemente, coloca a produção desse autor dentro dos cânones da chamada história social, intentando uma abrangência total. Porter, ao combinar enorme erudição ao uso de numerosas fontes, faz uma história épica da medicina, mas não trabalha qualquer relação intrínseca possível entre ela e a história.

O estudo da forma narrativa de casos tem em Epstein (op. cit.) e Hunter (1991) dois expoentes. A primeira, preocupada com questões teóricas, freqüentemente se reporta à produção historiográfica de Lacqueur e Porter, assim como à abordagem conceitual de Foucault e Ricoeur; tomando como foco de sua análise o corpo e as questões referentes às ambigüidades de gênero (Epstein e Straub, 1991). A segunda, professora associada da Northwestern University Medical School, trabalha com a idéia de que a medicina não pode se constituir como ciência, diante da individualidade e particularidade peculiares a seu exercício. Propugna para o médico um papel semelhante ao do crítico literário, afirmando que, na leitura que faz de seus casos, obrigatoriamente recorre à hermenêutica. Em seus estudos, o clínico tem como duplo Sherlock Holmes, pensado como hermeneuta, ao contrário do que ocorre com Ginzburg (op. cit.), que o pensa como semiólogo.

Por outro lado, desde finais da década de 1960, pesquisadores ligados à antropologia e à sociologia médicas, à psicanálise e à própria clínica vêm desenvolvendo trabalhos sobre o que se convencionou chamar de narrativas de doenças (illness narratives). As narrativas assumiram grande importância no estudo das doenças crônicas, sendo encaradas como caminhos para o entendimento dos esforços dos clientes/pacientes em lidar com suas vidas, sobretudo diante dos problemas de quebra de identidade que esse tipo de doença acarreta. Autores como Kleinman (1988) — a quem se deve a expressão illness narratives — concentram-se na categoria sofrimento e postulam as narrativas como a forma pela qual os doentes modelam e dão voz a seus padecimentos. Hydén (1997) afirma que, teoricamente, o conceito de narrativa primeiro ocupou um espaço periférico no campo do conhecimento sociológico das doenças, mas, hoje, ocupa um lugar central por permitir captar aspectos nucleares da experiência do adoecimento em seus contextos sociais específicos. Nesse sentido, esses trabalhos partem da postura de dar voz aos doentes, como fica patente no título do capítulo 1 do livro do sociólogo Arthur Frank (1995, p. 1): ‘Quando corpos precisam de vozes’.

Tendo por base os teóricos da pós-modernidade e sua própria experiência com a doença, Frank (op. cit.) propõe que o "contador de histórias ferido" (wounded storyteller) fala não sobre seu corpo doente, mas através dele. A doença crônica estabelece o caos e o doente perde sua bússola. A narrativa personalizada, não mais "meta", ajuda-o a reencontrar o caminho e o torna participativo, integrante e conhecedor do próprio adoecimento. Morris (1998), outro sociólogo que se dedica ao estudo da dor e da medicina, pugna por uma doença biocultural. Ele segue a concepção teórica pós-modernista de Lyotard, nos mesmos moldes de Frank, preocupando-se em sugerir a narrativa como instrumento ético de discussão dos rumos tomados pela biotecnologia, e também como meio de romper o silêncio imposto ao doente pelo sofrimento.

Por sua vez, Hawkins (1993) encara as narrativas de doença sob a perspectiva de gênero literário. Seu trabalho conduz o leitor pelo que ela chama de patografias e, sobretudo, pelos mitos que as sedimentam. A história das idéias se faz presente, embora encarada sob uma perspectiva interdisciplinar com o estudo do campo literário em sentido estrito. Para a autora, três tipos de argumentação narrativa estão presentes nesse tipo de literatura: a "didática", baseada numa experiência vivida que é passada aos outros, no sentido de infundir-lhes confiança e esperança; a "raivosa" (angry), que se volta contra a dor produzida nos corpos pelas técnicas médicas invasivas, sem, contudo, atacar a figura do médico; e, finalmente, o tipo de argumentação que qualifica como "de positividade da mente", mais crítica do saber médico, que pugna pela integração corpo/mente, reconhecendo as funções curativas das maneiras positivas de pensar.

Hydén (op. cit.), revisando todos os trabalhos já realizados que têm como fio condutor a narrativa, trabalha a concepção teórica desta no campo da doença, através das ciências sociais e médica, fazendo um balanço do que foi produzido nos últimos dez anos. Acaba propondo três tipos de narrativas, fundamentados em seus aspectos formais, ou seja, nas relações existentes entre narrador, narrativa e doença. São eles: "doença como narrativa" — narrador, doença e narrativa combinam-se numa só pessoa, no caso, portanto, as narrativas que os pacientes fazem a seu médico; "narrativas sobre doença" — uma narrativa que traz em si conhecimentos e idéias sobre as doenças, nesse sentido, as que os médicos fazem de seus pacientes, nada impedindo, entretanto que os doentes também as façam, misturando-as, em determinados pontos, àquelas do primeiro tipo; e, por fim, "narrativa como doença", significando situações nas quais uma narrativa gera a doença, como no caso descrito por Sacks (1985) de um paciente que desenvolveu a síndrome de Korsakow e, em conseqüência, perdeu a capacidade de "narrativizar".

Vê-se, portanto, que as narrativas de doença que, dependendo dos autores, recebem categorizações diversas — com uns propondo uma tipologia instrumental (Hydén, op. cit.), outros enfatizando a característica literária (Hawkins, op. cit.) e outros, ainda, sua importância na condução do diagnóstico e da terapêutica (Sacks, 1993) — estão, sem dúvida, presentes na prática clínica. Cumpre pontuar todavia que, sob a ótica da narrativa, não há como prescindir da análise das figuras de linguagem presentes nos discursos médico e histórico, de especialistas ou de leigos, e utilizar as metáforas, metonímias e sinédoques neles encontradas como indícios de concepções de experiências históricas vivificadas.

Ressalte-se que historiografia, História e história são termos que devem ser vistos como portadores de significados diferenciados. Por historiografia, compreende-se nada mais que a história do discurso que os historiadores de ofício vêm sustentando sobre o seu passado (Carbonell, op. cit.); por História, entende-se a disciplina institucionalizada que fornece os instrumentos conceituais e teóricos, além do conhecimento historiográfico, à formação do historiador. Finalmente, por história, entende-se o processo humano do viver coletivo ao longo dos tempos e no aqui e agora, isto é, aquilo que os homens, cotidianamente, viveram no passado e vivem hoje, estabelecendo relações entre si e as coisas.

Essa repartição dos campos discursivos responde à necessidade de pontuar as ambigüidades acarretadas pela não diferenciação existente entre a ciência da história — "a ciência dos homens no tempo", segundo Bloch (1976, p. 32) — e o que os homens efetivamente realizaram e realizam. E, fundamentalmente, serve para indicar uma dinâmica que, na sua totalidade, escapa à racionalidade e seu modus operandi, pois os homens deliberam, possuem objetivos, fins, intenções, pulsões, desejos, como bem aponta Veyne (op. cit.), impossíveis de serem captados na sua globalidade, porque a história que se vive é, na verdade, o reino do impreciso e cabe assumir que o método da História é inexato; que ela "quer fazer reviver, mas só pode reconstruir; ... quer tornar as coisas contemporâneas mas, ao mesmo tempo, tem que reconstituir a distância e a profundidade da lonjura histórica" (Ricoeur, 1961, p. 226). Enfim, o nome da disciplina que se volta para o estudo da história é um nome próprio — História — dado a uma forma de saber e produzir sobre o que se faz: história.

Da mesma maneira, poder-se-ia, de forma esquemática, traçar um paralelo entre historiografia médica, medicina e doença. A primeira, como é óbvio, trataria dos escritos sobre história da medicina, das doenças e dos doentes; a segunda seria a disciplina responsável pelo soerguimento de uma teoria sobre as doenças; e, finalmente, a terceira seria a doença propriamente dita (tal qual ocorre com a história), que, segundo os estudos de Camargo Jr. (op. cit.), no contexto do saber médico carece de uma conceituação geral sobre o que ela seria.

O que se presentifica, entretanto, não é a sobreposição da medicina e da história ou vice-versa, misturando-as como ingredientes de um coquetel, mas, sim, a necessidade de entendê-las enquanto ciências aplicadas e voltadas para a realidade vivida.

Ingerências

Três elementos devem ser considerados para se tentar uma reflexão mais produtiva sobre o relacionamento entre medicina e história. Qualquer trabalho que pretenda aproximar-se do tema deve considerar a ingerência da cultura, as premissas que compõem a construção da narrativa na história e compreender o papel das figuras de linguagem, sobretudo da metáfora, inerentes à produção de qualquer enunciado, científico ou não.

A história do termo cultura começa com a noção de processo — "cultura" é "cultivo" de vegetais e a criação de animais e, por extensão, "cultivo da mente humana". Em finais do século XVIII, o termo, no alemão, tornou-se também sinônimo de "espírito", que conformava o modo de vida de um determinado povo, volksgeist. O primeiro filósofo a utilizar o plural "culturas" para diferenciá-lo de qualquer sentido linear foi Herder (Williams, 1992). Tal uso difundiu-se e foi um dos pilares da antropologia comparada do século XIX, porque servia para designar um modo de vida característico de um dado povo.

Contudo, há questões fundamentais que remetem à natureza dos elementos formativos de culturas específicas. As respostas a essas questões produziram uma plêiade de significados que vão desde a antiga noção de "espírito formador" — um ideal nacional, ou religioso, como no caso dos judeus — até concepções mais modernas de uma "cultura vivida", delimitada pelos processos sociais, traduzindo-se em certos tipos de ordem política e/ou econômica. Fica claro que o termo "cultura" oscila entre uma dimensão global e outra particular, parcial.

No seu sentido mais geral, atualmente, pode-se distinguir, dentro do conceito de cultura como produto do pensamento, três significados: o de estado mental evoluído — como em "pessoas cultas"; o de processo dessa evolução — como em "interesses culturais" e "atividades culturais"; e o de instrumento desse processo, em que a cultura é considerada trabalho intelectual do homem, em quaisquer de suas atividades. Este último é o sentido mais comum e coexiste com o uso antropológico e o uso sociológico para indicar "modo de vida global" de uma civilização ou povo.

Cultura deve ser, pois, instrumentalizada dentro dos termos dessa convergência contemporânea, ora assumindo uma conotação "materialista" — cultura enquanto produto direto ou indireto de uma ordem social primordialmente construída –, ora com um sentido "idealista", em que se enfatiza o "espírito formador" de um modo de vida, manifesto por todas as atividades culturais. E essa maneira "convergente" de pensar a cultura articula-se ao modo como se dá a linguagem (Foucault, 1994).

O indivíduo, confrontado com uma situação corporal desagradável e não habitual, tende a decodificá-la, a articulá-la a outras manifestações e a pensar que aquilo que sente é um "sinal" de que uma tomada de decisão se faz urgente. Ele deve ser capaz de se dar conta de seu estado, explicar aos outros o que incomoda e transmitir seu pedido de auxílio. Todo esse processo de ordenação, obviamente, não é individual: ancora-se na cultura. É ela que fornece a moldura à interpretação do corpo, da doença e de seus sintomas.

A cultura determina a história social dos corpos, define como eles se tornaram objetos de curiosidade e de poder. O homem, confrontado com o desenvolvimento do saber do qual seria o primeiro beneficiário, mas do qual, sem dúvida, sente também os efeitos perversos, reporta-se ao velho mito do aprendiz de feiticeiro. São as intervenções biotécnicas da medicina, das quais o corpo tornou-se objeto, que mapeiam seu caminho. A bioética torna-se cada dia mais ambivalente, pois, à medida que procura preservar os corpos, termina por sobredeterminar suas formas. O corpo torna-se "o corpo proibido: ao mesmo tempo protegido e interditado" (Badou, 1994, p. 15).

O inventário do material genético e o conhecimento dos efeitos epigenéticos sobre a saúde marcaram o nascimento da medicina preditiva, que tem por finalidade definir os pontos fracos de cada indivíduo, indicar os perigos aos quais cada ser em particular é mais potencialmente vulnerável. Nas palavras de Ruffié (1993), trata-se de uma medicina do devir que permitirá conhecer o "capital saúde" que cada um deverá administrar para melhor e mais tardiamente envelhecer e morrer.

Essa medicina articula-se a uma cultura — e é por ela determinada — que, embora se busque na ciência, via determinismo genético, uma base material para explicar a vida do homem, ao mesmo tempo repudia e acusa essa mesma ciência por lhe ter fornecido os meios para seu próprio extermínio. Ela molda uma visão de estar no mundo que intenta uma síntese, o estabelecimento de uma ponte que vá do biológico ao espiritual, sempre e cada vez mais procurando entrever e controlar o presente como meio a definir o futuro: "Doravante nós sabemos que um mundo melhor está a nosso alcance. Mas ele não se fará por si só: porque ele não se constrói por uma fatalidade orgânica, mas sim através de uma escolha cultural" (idem, 1983, p. 308).

A história procura o mesmo caminho. Se sua aproximação dos procedimentos teórico-metódicos da sociologia, da antropologia e da economia trouxe avanços para a produção historiográfica, também a afastou, pelo menos até finais da década de 1960, de tudo o que era documental e experimental, e oficialmente incluído no reino da "ciência pura" e, portanto, passível de fornecer séries estatísticas e bases para o estabelecimento de leis gerais de funcionamento.

A ilusão da objetividade absoluta como princípio norteador — recuperação "fiel" do passado, por parte da história, e "desvendamento" da verdade desde sempre contida nos corpos, por parte da medicina — recebeu o mesmo golpe dado pela realidade à crença iluminista de que a razão, ou melhor a ciência, exercício mais acabado da razão, fosse a única condutora do progresso, que levaria à conquista da felicidade e da saúde. O que não estava claro era que a história e a medicina, dotadas do estatuto de cientificidade, correspondiam aos ditames da cultura ocidental que se nomeava detentora do único saber verdadeiro, por isso universal.

No que diz respeito à prática da escrita da história, fundamentada no ideal da objetividade da narrativa, dever-se-ia fazer uma cuidadosa reconstituição dos fatos que, depois de testados e ordenados, comporiam um relato cronológico. Seu estatuto de ciência derivaria do estudo crítico de fontes oficiais para o estabelecimento da veracidade. Essa era a ponta visível do pressuposto positivista de que era possível captar o passado, tal como ele o fora, a partir da exatidão dos fatos e da absoluta confiabilidade das fontes (Lima, 1988). A ênfase nesse modelo e sua correlação com a narrativa levou, a partir do esgotamento do paradigma mecanicista, ao afastamento progressivo da temática da narrativa. Stone (1991, p. 13) tem razão ao afirmar que "os historiadores sempre contaram ‘estórias’", mas que a história dos grandes acontecimentos acabou desqualificando a importância da narrativa para o ofício do historiógrafo.

Depois de Hiroshima e Nagasaki, o mito do progresso ocidental passou a ser questionado, processando-se uma rachadura na ideologia herdada do iluminismo e uma paulatina modificação na maneira de se pensar a ciência. Nesse contexto, a reabilitação da narrativa, com o desenvolvimento das pesquisas na área da história sócio-cultural, representa menos uma volta a um estilo de escrita predominante no século XIX e mais uma preocupação com o cotidiano da vida, com o sofrimento e com a dor experimentada pelos seres humanos comuns. Ora, essa reabilitação também passa a se consubstanciar não só nos trabalhos de médicos — veja-se Kleinman e Sacks, entre outros —, mas igualmente nos esforços da antropologia, da sociologia e da crítica literária — Frank, Morris, Epstein, Hunter, Hawkins, para ficar com os já citados — voltados para a complexidade com que se revestiu a medicina na atualidade.

Mais do que se prender ao transcendente, agora, de ambas as partes, deseja-se buscar entender como os homens pensam e vivenciam a história. O histórico passa a ser visualizado como contendo uma gama de conflitos: em cada grupo há vacilação e ambigüidade; os motivos de todos são inúmeros, de modo que, muitas vezes, os setores em oposição freqüentemente operacionalizam o mesmo discurso, terminando por fazer a ficção penetrar nos escritos/discursos que se pretendem científicos em estado puro (Auerbach, 1987).

Desse modo, os sintomas e sinais não são somente da ordem do biológico. Eles são sociais e é tão claro que se constroem na narrativa que de forma alguma podem ser considerados estritamente naturais. Na verdade, eles fazem parte das redes que tecem a história do mundo, redes estas que são concomitantemente reais, como a natureza, contadas/narrativizadas, como as falas, e coletivas, como a sociedade (Latour, 1994). Os corpos que os portam são, por conseguinte, tramas de natureza, sentido, história, valores, ficção, religiosidade, tecnologias... e os médicos que sobre eles se debruçam, procurando a doença, participam não apenas do registro cuidadoso daquilo que observam, mas também da própria construção do que lhes é dado observar.

Lacqueur (op. cit.), trabalhando a relação do relato do caso médico com a novela (uma narrativa por excelência), mostra que os relatórios de autópsia desenvolveram-se, na sua forma moderna, mais ou menos na mesma época que as novelas, no século XVIII, enfatizando detalhes corporais e empregando a forma narrativa para tornar o infortúnio intelígivel. Tanto os relatórios quanto as novelas operavam ao longo do eixo "causa e efeito" para prescrever ações preventivas dos "males". Lacqueur chama esses escritos de "narrativas humanitárias" (humanitarian narratives) e sugere que sua aparição simultânea à de novos gêneros literários serviu ao propósito de conclamar a compaixão pelos corpos sofredores, tornando-a um imperativo moral impulsionador da ação comunitária. Na sua proposição, o relato de caso pressupõe uma consciência narrativa na sua composição.

A historiografia e o relato do caso médico também compartilham com a escrita imaginativa uma herança comum de retórica. Tal como os historiadores, os médicos registram a história do paciente a partir de conjeturas qualificadas e iluminadas pela formação profissional, baseando-se numa seleção de inúmeros eventos e de evidências fornecidas por fontes de origens diversas — exames complementares, literatura médica, resultados de pesquisas epidemiológicas, entre outras. As relações causais são freqüentemente invertidas: por exemplo, o sentido de um acontecimento ou sintoma às vezes é definido pela seqüela que deixou. Nesse caso, os efeitos guiam para as etiologias ou para o prenúncio de prognósticos mais do que os episódios originais levam ao diagnóstico. O movimento, tal como na história, é do presente para o passado e deste para o futuro.

Ao exercitarem a função de produzir histórias, tanto o historiador quanto o médico assumem a narrativa como uma modalidade de escrita sobre a história, incluindo aí os elementos imaginários que penetram qualquer narração. Isso, contudo, não implica dizer que história e medicina são a mesma coisa e que ambas são ficção, mas tão-somente que, se nas duas há a construção de um enredo, porque relacionam elementos dispersos e ligam eventos e/ou acontecimentos isolados, elas assim o fazem de forma constrangida, construindo sua objetividade que é permanentemente confrontada e reformulada por novas e complexas interações biológicas, culturais, sociais, ecológicas...

As palavras do filósofo José Américo Pessanha (1988, p. 298), ao discutir o caráter não ficcional da história, todavia pontuando seu conteúdo narrativo, constituem-se num exemplar caminho reflexivo a ser perseguido. Diz ele: "Porque de fato existiu, Napoleão se distingue de James Bond. Mas, o historiador que escreve sobre ele, organizando e relacionando informações, interligando ‘instantâneos’, montando seqüências e elos causais, inevitavelmente cria, imagina, fabula: é narrador."

Os relatos históricos — assim como os relatos médicos — não podem depender somente de seus supostos conteúdos fatuais, pois as explicações que os homens produzem sobre si, os outros e as coisas são, na maioria das vezes, mais determinadas pelo que deixam de fora do que por aquilo que nelas sobressai.

Quase todas as pessoas pensam que a metáfora é um artifício de retórica, mais característico da linguagem culta do que da linguagem comum, e um artifício próprio da linguagem. Essa maneira de pensar é, entretanto, equivocada e, desde a década de 1930, já se demonstrou que é restrita e pobre. A metáfora, para a maioria dos lingüistas e filósofos que se dedicaram a estudá-la, impregna a vida cotidiana, como postulam Lackoff e Johnson (1980), e não só na linguagem, mas também no pensamento e na ação. O sistema conceitual dos homens, entendendo-se que eles tanto pensam quanto agem, é, em sua natureza, fundamentalmente metafórico.

Porém, a elocução lingüística de uma metáfora existe inter-relacionada a uma linguagem cuja organização reflete e ajuda a compor um sistema conceitual. E o conceitual requer um meio de expressão. Conceitos não se produzem no vácuo: eles emergem da articulação de um domínio através de uma série de contrastes e afinidades disponíveis num meio de expressão, sem o qual não se poderiam formar metáforas ou mesmo pensar metaforicamente (Kittay, 1989).

O afastamento do positivismo lógico fez vir à tona a importância da metáfora até nas áreas mais aliadas a ele, como a filosofia da ciência e da linguagem. O princípio do verificacionismo, que ambas propunham, postulava que o sentido cognitivo de uma sentença residia no seu método de verificação. Essa "doutrina" condenava a metafísica e a filosofia tradicional a se manterem à parte da significação cognitiva, excluindo, em conseqüência, a linguagem metafórica. Como bem exemplificou Kittay (op. cit.), se alguém desejasse asseverar o sentido "real" da frase "Julieta é o sol", proferida por Romeu, em Romeu e Julieta de Shakespeare, deveria determinar esta realidade checando se Julieta era um corpo celeste em torno do qual os planetas giram. Sem um procedimento desse tipo, a frase não seria julgada como falsa, mas, sim, sem sentido. Isso não significa que não fosse aceita como decorativa ou evocativa de um sentido emocional: a ela se negava, todavia, a possibilidade de ampliar o conhecimento sobre o mundo. Os exemplos de pronunciamento verificáveis eram aqueles do discurso científico, vistos como paradigmáticos da atividade cognitiva.

O conhecimento científico, entretanto, utiliza-se de "modelos". Tais modelos devem ser entendidos como metáforas expandidas — não literalmente verdadeiras, mas úteis representações de fenômenos que freqüentemente levam à elaboração de novas conceituações teóricas. Exemplos como o modelo da bola de bilhar para os gases ou os modelos de ondas sonoras e até mesmo o do bastão para o cromossomo são referências à importância desses modelos na construção de teorias científicas. A resposta positivista era afirmar que, da mesma maneira que as metáforas dotavam as sentenças de um sentido emocional oposto ao cognitivo, os modelos tinham somente um valor heurístico para a ciência, isto é, serviam de guias para as descobertas. Assim, os modelos, no fundo, não contribuiriam essencialmente para a atividade do conhecimento científico, uma atividade que só se justificava pelos procedimentos metodológicos que a caracterizavam.

Hesse (1966), levantando a problemática da função explanatória das metáforas, contra-argumenta que os modelos são fundamentais para dotar as teorias de poder preditivo concreto. Eles não aparecem incidentalmente no contexto das descobertas, fazendo parte do contexto da justificativa. Os modelos, portanto, desempenham um papel cognitivo nas ciências e, tal como as metáforas, são claramente não verificáveis.

Kittay (op. cit., p. 8) afirma que "Agora nós reconhecemos que o princípio verificacionista peca contra si mesmo — que ele próprio não é passível de ser verificado", e também chama atenção para o fato de que os esforços positivistas em demonstrar que os pronunciamentos científicos eram verificáveis levaram ao improdutivo programa de reduzir afirmações teóricas a assertivas baseadas somente na observação. Na filosofia da ciência, o movimento contrário a esse posicionamento foi o de analisar as atividades nas quais os cientistas estavam engajados, pesquisar a história da ciência e investigar o contexto no qual as descobertas eram feitas. Um exemplo dessa abordagem é o trabalho desenvolvido por Stengers (1989), que põe em pauta a questão do poder da ciência e enuncia a ilusão de que as atividades mensuráveis, quantificáveis, seriam as únicas a garantir sua eficácia. Essa ilusão reporta-se, segundo a autora, à insegurança, ao medo de assumir riscos que são inerentes a qualquer posição que se pretenda científica.

Acrescente-se que a metáfora tem uma articulação direta com a criatividade, com mudanças paradigmáticas e com a transformação do sentido nas ciências. A formulação de Kuhn (1970), sua influência na filosofia da ciência, proveu um incentivo ainda maior ao estudo da metáfora, pois a noção de paradigma parece ser, em si mesma, uma metáfora enraizada. O interesse de filósofos da linguagem e de filósofos da ciência convergem novamente para a temática da mudança de sentido. Quando uma teoria toma o lugar de outra, numa transformação paradigmática, será que os termos da segunda, que se baseiam na primeira, mudam em significação? Ora, se, como Hesse e outros autores argumentam, modelos são partes integrantes das teorias científicas e de suas construções, então a filosofia da ciência não pode ignorar o pensamento metafórico. Pelo contrário, precisa mesmo de uma teoria da metáfora para melhor compreender as fontes e o conteúdo dos conceitos científicos e teóricos.

A defesa de um discurso "puramente" científico tende a apontar para mecanismos de controle e defesa, uma vez que o vocabulário supertécnico gera "medo e exclusão" (Serres e Latour, 1995, p. 24), pois a linguagem técnica é corporativa e divide as pessoas em grupos, setorizando-os e colocando-os em guerra uns contra os outros, "tratando-se entre si como heréticos". O próprio exercício diagnóstico e as práticas de convencimento à adesão terapêutica ou de convencimento do acerto sobre o diagnóstico e prognóstico das doenças, pela natureza de seus objetivos, deveriam refutar o recurso ao discurso técnico em sentido estrito.

O conceito de "enredamento", conforme definido por Ricoeur (1988), que postula que é a atividade discursiva que transforma os acontecimentos em história, encontra correspondência no de "enredamento" (emplotment) terapêutico que nada mais seria do que o recurso à narrativa, no contexto da prática clínica, visando a "uma ordenação de uma situação qualquer em partes que pertencem a um todo temporal maior" (Castiel, 1996, p. 111). O uso consciente da forma narrativa propiciaria dar sentido e, paralelamente, acarretaria uma maior aceitação, por parte do paciente, das ações médicas.

Proposições

Traçar na mente a história do adoecer significa colocar um evento dentro de um contexto, relacionando-o como parte de um todo compreensível. É preciso esclarecer que não se trata de levar em conta o binômio saúde/doença, mas de abordar o adoecimento como um processo que, dentro de determinadas características culturais, produz entendimentos diferenciados sobre a doença e o doente.

Com o surgimento da anátomo-clínica, "o conhecimento da vida encontra sua origem na destruição da vida, e no seu extremo oposto: é na morte que a doença e a vida falam a sua verdade" (Foucault, 1963, p. 248). É a partir daí que não se pode deixar de conferir um sentido ao conceito de doença, pois a medicina, enquanto técnica de curar, finca-se na vida.

A historicidade do adoecer tem como episteme os valores da vida, da morte e dos poderes de cada um sobre si próprio e sobre os outros. Não importa se tais valores são regulados pela ordem vital (Canguilhem, 1982), se o são pela cultural (Foucault, 1994), o inegável é a necessidade de uma análise narrativa que estabeleça ligações e significados entre as dimensões sociais e individuais, para compreender "a paradoxal contextura do homem como homo duplex: ser autônomo e membro de um grupo" (Lolas apud Castiel, op. cit., p. 198).

Um exemplo recente do que se pretende afirmar é o da infecção por HIV e a Aids. As duas condições se misturam mais do que se diferenciam. De qualquer forma, a Aids requer como precondição uma circunstância alterada que, em si mesma, não é uma doença: a soropositividade ao HIV. A pessoa assintomática que é positiva possui uma contagem de células T de cerca de oitocentos. Não está doente. Todavia, no que diz respeito às categorias sociais, é "moralmente perigosa", ao passo que as pessoas com Aids, embora não se abdique de apontar sua condição moral, recaem no reino dos medicalizados, fisicamente doentes.

Quem é HIV positivo, entretanto, sofre também de condições alteradas. Seu futuro é incerto e o estigma social força-o a enfrentar decisões sobre revelar ou não sua soropositividade, quando e a quem. De forma análoga, contudo diversa, um indivíduo sadio, por exemplo, numa cadeira de rodas em decorrência de um acidente automobilístico ou uma pessoa portadora de um cromossomo a mais, como na mais comum das anomalias genéticas, a Síndrome de Down, padecem de condições alteradas. Sua visibilidade sócio-cultural como "diferentes" produz uma espécie de invisibilidade pública. Muitas vezes encontram-se literalmente apagadas porque os outros se recusam a vê-las. O que está em jogo quando se atribui a essas pessoas, que podem funcionar em casa, no trabalho, na esfera pública e privada, a condição de doentes? Está-se sobredeterminando suas enfermidades de base às suas capacidades de atuação, porque, por definição, suas normas vitais estão comprometidas. É a conceituação da doença, então, que constrói a realidade.

Somente por meio de uma abordagem em rede, interconectando essas circunstâncias alteradas com os agentes biológicos e as condições sociais, é que será possível analisar as dimensões culturais das narrativas médicas e de como essas narrativas situam as doenças e os doentes. Os homens somatizam regras morais e assunções da cultura, tematizando sobre as estruturas do corpo e suas funções. Dessa maneira, as explicações sobre as doenças quase sempre tomam a forma de narrativas que criam as categorias médicas e sociais, provendo de causa e efeito os sinais corporais e os sintomas.

Buscar uma investigação que articule os saberes médico e historiográfico, trabalhando a partir da herança arcaica de um paradigma, poderá trazer a dimensão singular do adoecimento sem, todavia, perder-se de perspectiva o caráter geral que a ciência deve assumir. Esse caráter geral não pode ser confundido com banalização nem muito menos com generalizações impostas de cima para baixo, na tentativa de transformar tudo o que existe em mensurável. Parece ser esse um impasse que se luta por romper, sem contudo se perder a credibilidade científica. O mito do numérico, como sinônimo de ciência, é também uma ilusão utópica.

Na atualidade, quando a realidade virtual se desenvolve numa avançada interface para a imaginação da medicina, a história pode ser instrumental para fazer pensar sobre as implicações da divinização das biotecnociências no desenrolar do processo histórico da vivência humana. E também para fazer refletir que, mesmo que a ciência, como afirma Castiel (s. d., p. 19), "sustente o estatuto de ‘padrão-ouro’, o conhecimento clínico terá uma grande e, em geral, implícita porção de PHRONESIS — referendada à sabedoria prática, interpretativa, narrativa, convivendo com a dimensão explícita, EPISTEME — relativa à razão lógico-racional, científica".

Recebido para publicação em outubro de 1998.

Aprovado para publicação em outubro de 1999.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Fev 2000

Histórico

  • Recebido
    Out 1998
  • Aceito
    Out 1999
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