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Quando resistir é habitar: lutas pela afirmação territorial dos Kaiabi no baixo Teles Pires

RESENHAS

Quando resistir é habitar: lutas pela afirmação territorial dos Kaiabi no baixo Teles Pires

Anelise dos Santos Gutterres

Doutoranda em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

BARBOSA DE OLIVEIRA, Frederico César. Quando resistir é habitar: lutas pela afirmação territorial dos Kaiabi no baixo Teles Pires. Brasília: Paralelo 15, 2012. 386 p.

O livro é resultado da tese de doutorado do autor, que recebeu o 2º lugar nessa categoria de pesquisa da segunda edição do Prêmio ABA-GIZ1 1 Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH. - 2010/2011 - para Povos Indígenas na Amazônia: Diálogos sobre Territorialidades e Gestão Territorial. A obra é dividida em cinco capítulos, nos quais o antropólogo descreve as diferentes relações que os Kaiabi vêm constituindo com uma parcela específica do ambiente (p. 363) no qual vivem por pelo menos dois séculos: a extensão do rio Teles Pires, localizado entre os estados do Pará e Mato Grosso.

As relações dos Kaiabi com seu ambiente são aduzidas por intermédio dos conflitos socioambientais e dos conflitos de percepção, tendo como perspectiva de trabalho a noção de dwelling (Ingold, 2000) e a percepção direta do ambiente como base para a produção de conhecimento sobre o mundo. De acordo com o autor, essa seria uma saída razoável aos embaraços causados pelas dualidades natureza-cultura e mente-corpo (p. 155), não operativas para o caso desse grupo. Recuperando o campo da antropologia das emoções - como saída para as chamadas oposições modernas (p. 156) - o autor percorre um caminho de análise que busca compreender o ambiente que os Kaiabi estabelecem, juntamente com o ambiente circundante do rio Teles Pires. Um ambiente que se constituiria entre as ligações afetivas do grupo com o rio e as relações de dwelling (p. 157), sobrepostas a diferentes cenários espaçotemporais os quais definiu como cosmografias.

No primeiro capítulo o autor apresenta o grupo através da historiografia - advinda de relatos históricos, missões, documentos oficiais - narrativas míticas e outras etnografias sobre povos habitantes da região, destacando a cosmovisão e a origem mítica dos Kaiabi. Os locais e os percursos citados no mito de origem correspondem a um tempo primordial e a um momento onde é feita a diferenciação entre humanos e não humanos (p. 55) para os Kaiabi. Alguns locais e percursos descritos nesse mito são retomados pelo autor - a partir de narrativas dos Kaiabi sobre sua percepção do ambiente em tempos vividos - como peças importantes no processo de resistência e luta pela Terra Indígena Kaiabi. Diferente do que ocorreria no século seguinte, os embates com outras etnias, em particular com os Munduruku, configurou no século XVIII (p. 299) o principal motivo de deslocamento dos Kaiabi na direção das cabeceiras do rio Teles Pires. O autor destaca que até o final do século XIX e meados do século XX os Kaiabi habitaram praticamente toda a extensão do vale do médio Teles Pires, no centro do estado de Mato Grosso. Com o estabelecimento das frentes econômicas dedicadas à expansão nacional, especialmente com a chegada de seringueiros e a implantação de projetos de colonização do Brasil Central, parte do grupo teria se deslocado em direção ao extremo norte do estado, na divisa com o Pará, dando início à ocupação da Terra Indígena Kaiabi, localizada nos municípios de Jacareacanga (PA) e Apiacás (MT), no baixo curso do rio Teles Pires.

Tendo em vista que diferentes ambientes provocam percepções distintas, é destacado que além das ocupações no Teles Pires, ainda haveria grupos de Kaiabi habitando o rio dos Peixes e o Parque do Xingu. Ao longo da pesquisa o autor se dedica a descrever como essas diferentes percepções operam no campo dos conflitos. Um campo que envolve apropriações e identificações com o ambiente onde são sobrepostas: origens míticas, deslocamentos forçados, conflitos com garimpeiros, e diferentes momentos do projeto de desenvolvimento nacional - conjunturas que o autor conceitua como cosmografias. O tema do terceiro capítulo são as diferentes narrativas que constituem as regiões habitadas pelos Kaiabi ao longo dos diferentes tempos e entre as distintas cosmografias.

A demarcação formal da Terra Indígena Kaiabi pelo Estado brasileiro é um processo que envolve: ações da Funai em diferentes décadas, a expedição dos irmãos Villas-Boas, as relações com grupos de garimpeiros e empresas exploradoras da região - como ocorre na historiografia da maior parte de diferentes grupos indígenas no Brasil. O processo de resistência, no entanto, pode ser distinto para cada grupo. No caso dos Kaiabi, a autodeclaração "somos Kaiabi porque vivemos nessa terra" (p. 148) parece sintetizar as bases naturais dos comportamentos dos Kaiabi, expressando o que poderia ser chamado de memória coletiva do grupo. A afirmação de que "o Teles Pires é a única região que nos resta" aponta para as formas de constituição social e cultural do sentimento de pertencimento e habitação (p. 365) desses povos ao ambiente, e que ultrapassa a definição de território somente como base física.

As transferências, migrações, regressos e ocupações nos e dos ambientes: do alto, médio e baixo Teles Pires; do rio dos Peixes - o mítico Batelão; da alternativa do Parque Nacional do Xingu; da ida para o rio Arraias estão presentes em diferentes cosmografias. Provocadas direta ou indiretamente pela exploração econômica da região e ação dos projetos nacionais de desenvolvimento e, em razão deles, pela agressiva chegada de garimpeiros na região, esses deslocamentos não formam uma constante na trajetória de um grupo de Kaiabi, mas uma constante na trajetória de distintos grupos kaiabi em diferentes tempos de percepção desses ambientes. Descrita nos capítulos quatro e cinco através de uma análise dos conflitos e da proposta de uma cartografia dos mundos vividos, a transformação desses ambientes foi promovendo esses deslocamentos e provocando novas percepções.

No quinto capítulo é destacada a perspectiva de "conflito intratável" (p. 304) para dar conta da disputa central em evidência no livro: pela Terra Indígena Kaiabi. A pesquisa evidencia que essa disputa não é uma disputa só por recursos naturais - água, madeira, minerais, terra -, é uma luta pela legitimação da percepção territorial dos Kaiabi e, em suas diferentes escalas, pela afirmação dessas percepções. O componente socionatural seria o ponto-chave e unificador para o estudo do conflito na Terra Indígena Kaiabi.

Destacando a relevância do estudo etnográfico, o autor ressalta:

A pesquisa etnográfica dos conflitos socioambientais, ancorada nos fundamentos da ecologia política, não apenas contribui para sua compreensão, mas "visibiliza" atores marginalizados e revela controvérsias, conexões e relações de poder até então desconhecidas. (p. 305).

Aliada à perspectiva das cosmografias - do período da borracha, da pacificação, da transposição das Sete Quedas, do desenvolvimento econômico -, às quais o autor se dedica no capítulo dois, a noção de frame é destacada como parte da metodologia usada para "etnografar" o campo do conflito. O termo frame (p. 306) circunscreveria um processo pelo qual as pessoas, inseridas em seus grupos de interesse, constituem e representam as interpretações sobre o mundo; uma espécie de moldura que serve para compor um campo de ideias e práticas (p.307).

O desenho das emoções, através do aporte do mapeamento participativo, resulta em mapas (p. 180) que proporcionam ao leitor a possibilidade de ingressar em diferentes realidades territoriais vivenciadas pelos Kaiabi em seu ambiente natural. Os distintos ambientes do curso do rio Teles Pires - alto, médio e baixo; do rio dos Peixes e as diferenças com o ambiente do Xingu são destacados pela etnografia realizada pelo autor, na prática da descrição verbal e perceptiva. A partir dela o antropólogo apresenta o conflito socioambiental (p. 365) como o cerne da disputa pela Terra Indígena Kaiabi, construindo a resistência como uma luta pela legitimidade das percepções do grupo sobre seu ambiente.

A pesquisa traz um importante debate ao campo das ciências humanas, pois provoca que contemplemos a territorialidade como tendo um papel fundamental na constituição dos grupos humanos. Ela mostra que o território é mais do que uma base física para o desenvolvimento de significações (p. 366), ele oferece significados que são trabalhados pelos grupos de acordo com as capacidades de cada ambiente e a partir das maneiras como os sujeitos as incorporam em suas atividades diárias.

  • INGOLD, T. The perception of environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.
  • 1
    Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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