Acessibilidade / Reportar erro

“Estados imaginados” e novas virtudes: notas sobre a construção das políticas de transparência e combate à corrupção

“Imagined States” and new virtues: notes on the construction of transparency policies and the battle against corruption

Resumo

O artigo discute os processos cotidianos da construção da política de transparência e combate à corrupção no Brasil a partir das experiências de campo em dois órgãos de controle. Seu enfoque não é a efetividade dessas políticas ou seus efeitos sobre as formas de accountability, mas a compreensão de sua dimensão moral: como esses valores são incorporados nas práticas cotidianas de auditores e funcionários. Seguindo uma perspectiva da antropologia moral para a compreensão do Estado, buscou-se entender as lógicas de poder atualizadas no ideal de Estado transparente em processo de constituição. As dificuldades encontradas na tentativa de aproximação das burocracias estatais e mesmo de apresentar academicamente os “resultados” de um mundo marcado pelo dilema entre sigilo e “ficções” de transparência serão utilizadas como um caminho para compreender as ambiguidades na constituição do projeto que propõe a “abertura” ou visibilidade do poder como forma segura de controle.

Palavras-chave:
transparência; Estados; moralidade; auditores

Abstract

This article discusses the routine processes of the construction of transparency policies to combat corruption in Brazil, based on field experiences in two organs of control. Its focus is not on the effectiveness of these policies but on the understanding of its specific moral dimension: how these values are incorporated in the daily practices of auditors. Pursuing a moral anthropology perspective for the understanding of the state, the aim is to understand, in the process of its constitution, the power logics realized in the ideal Transparent State. The difficulties encountered in the attempt to approach state bureaucracies and even to present academically the “results” of a world, characterized by a dilemma between secrecy on the one hand and “fictions” of transparency on the other, are employed as a way to understand the ambiguities in the constitution of a project which proposes “openness” or visibility of power.

Keywords:
transparency; states; morality; auditors

No momento em que as operações do Estado se tornam mais distantes e de difícil compreensão, em que as ações da burocracia atingem altos níveis de complexidade e que a vida pública parece estar em decadência (Sennett, 2014)SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Record, 2014., também se fortalece o ideal de abertura, de construção de lógicas de controle capazes de tornar o funcionamento do Estado mais efetivo e justo: a transparência. Esse valor é tão central na vida política contemporânea que é difícil criticar suas formas sem gerar suspeitas. Sua promessa retoma os desejos mais puros da razão moderna, numa tentativa de controle e eliminação das formas (impuras) do segredo e da conspiração. Os termos utilizados se referem aos processos de controle como guerras e aos seus funcionários como guerreiros, num sentido de cruzada moral que contrasta com os processos de racionalização do Estado.

Ainda que o ideal de transparência assuma o papel de um valor moral contemporâneo, perpassando as mais distintas figurações sociais, aqui tratarei especificamente de seu lugar no Estado: como se torna um modo de justificar a prática ou instrumento de ordenação do cotidiano das instituições. É necessário entender como as políticas públicas de transparência e combate à corrupção, aqui entendidas como as ações de produção de visibilidade dos atos e rotinas de funcionamento do Estado que tem sua principal representação no Brasil a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal (de 2000), a Lei da Transparência (de 2009) e a Lei de Acesso à Informação (LAI, de 2011), se tornam efetivamente parte do cotidiano da burocracia.

Na tentativa de seguir uma perspectiva antropológica de análise do Estado e suas rotinas (Fassin, 2013FASSIN, D. Enforcing order: an anthropology of urban policing. Cambridge: Polity Press, 2013.; Ferguson; Gupta, 2002FERGUSON, J.; GUPTA, A. Spatializing states: toward an ethnography of neoliberal governmentality. American Ethnologist, Arlington, v. 29, n. 4, p. 981-1002, 2002.; Gupta, 2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.; Hull, 2012HULL, S. M. Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. Oakland: University of California Press, 2012.), partirei das dificuldades de aplicar essa perspectiva ao “interior” das agências estatais, saindo dos lugares de mediação entre o Estado e o público e tentando acessar o “trabalho interno” para desenvolver uma reflexão sobre a natureza da transparência e sua conexão com o trabalho de projeção e planejamento do Estado. A dificuldade de acesso a esse ambiente do “trabalho interno” da burocracia que combate a corrupção é a questão central do artigo. A discussão dos problemas encontrados na tentativa de aproximação e a análise das rotinas de construção da transparência devem permitir uma crítica das ideias correntes de que, através dos instrumentos de visibilidade, o poder do Estado estaria sob controle. Ao refletir sobre os limites impostos pelos segredos do campo, pretendo demonstrar como, através de uma antropologia da produção do Estado (ou, ao menos, de sua tentativa) é possível desnaturalizar formas recorrentes de compreensão do poder.

A experiência dos mundos transparentes

A argumentação aqui desenvolvida é baseada na experiência de dois momentos do campo de uma pesquisa sobre a economia moral da auditoria pública e práticas de transparência e controle da corrupção,1 1 Pesquisa financiada pelo CNPq, processo 471351/2014-8. cujo objetivo é entender a constituição e ordenação dos valores morais que organizam o trabalho de auditores e outros funcionários públicos que lidam especificamente com ações estatais de combate à corrupção e transparência das informações. Para isso, o projeto optou por uma observação participante de dois órgãos de controle, um estadual e outro federal (um tribunal de contas e o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, a antiga Controladoria-Geral da União – CGU) tendo como justificativa a necessidade de compreender os valores que orientam as práticas de constituição do Estado, seguindo um modelo que privilegia a observação de como as interações cotidianas da burocracia (Gupta, 2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.; Hull, 2012HULL, S. M. Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. Oakland: University of California Press, 2012.) produzem o grande projeto de organização da sociedade e da natureza (Scott, 1998SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.).2 2 É sabido que existe uma disputa na literatura entre o tipo de pesquisa dos primeiros e a perspectiva de Scott (1998). Especialmente para os trabalhos que realizam uma antropologia do Estado a partir de experiências morais em interações cotidianas, a perspectiva de Scott sobre o planejamento e grandes projetos estatais teria um tom quase fetichista. Reconheço essa diferença, mas aqui quero reter uma dimensão importante no trabalho de Scott, que pode ser conectado e atualizado como elemento para uma crítica radical através do diálogo com a perspectiva dos Comaroff: como os grandes projetos estatais se reformulam sem perder o seu caráter de ordenadores da ação e da moral, representantes do impulso moderno de controle e colonialismo.

Dito isso, é preciso fazer um movimento de recuo do plano claro e coerente do projeto e apresentar as dificuldades da experiência de pesquisa, revelando o lapso entre o desenho de pesquisa, em sua forma quase utópica ao projetar as situações que deseja encontrar, e os muitos entraves da realidade, suas autorizações, portas e códigos. Espero demonstrar que essas dificuldades, especialmente os momentos da realidade que não se encaixam nas rotinas e expectativas do campo acadêmico, são, de fato, dados relevantes para a compreensão das lógicas de constituição do poder e de como este se torna transparente, ou melhor: como as formas de poder buscam se mostrar transparentes. Faz parte das promessas de transparência a projeção ou ideia de uma abertura, como se o poder tivesse trocado as fortalezas de seu castelo por paredes de vidro. Para compreender as rotinas de produção da transparência, quis sair da “superfície” do Estado, daqueles momentos preparados para o encontro com o público, e observar o seu “interior”. Os termos interior e superfície, dentro e fora, são problemáticos, mas são parte da própria retórica da transparência que promete revelar as funções que constituem o poder do Estado (West; Sanders, 2003WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order . Durham: Duke University Press, 2003.) e, consequentemente, refletem a tentativa de indicar os processos por meios dos quais seus agentes o produzem e representam. Retomo a perspectiva de Benedict Anderson (2008)ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. sobre as nações para falar dos Estados: estes também precisam fazer sentido, serem narrados e modelados até parecerem algo natural.3 3 Dentre as críticas feitas ao trabalho de Anderson (2008), uma perspectiva da sociologia política vai revelar sua incapacidade de distinguir claramente entre os processos de formação do Estado e da Nação, onde o primeiro assumiria um caráter de processos mais racionais e burocráticos e a segunda seria o terreno de projeções de sentimento, valores e desejos. Todavia, a antropologia da moral destaca a impossibilidade de proceder com essas distinções tão claras quando se quer compreender os modos como o Estado mantém e legitimam suas práticas (Gupta, 2012). Especialmente considerando a força da perspectiva de Foucault (2016) em muitos desses estudos, percebe-se como as tecnologias de poder se conectam com projeções de desejos e construções simbólicas e afetivas (Das; Poole, 2004; Gupta, 2012; Hetherington, 2011; Hull, 2012). Nesse sentido, optamos por seguir a ideia de Gupta (2012, p. 62) de que os Estados precisam ser tão imaginados quanto as Nações para realizar efetivamente o controle da população dispersa em seu território. De uma maneira melhor do que invenção, construção ou produção, o termo imaginação reflete o lugar dos valores morais nas interações cotidianas que dão vida ao Estado. No caso das políticas de transparência, trata-las como parte do exercício de imaginação do Estado ajudará a revelar o seu caráter utópico (suas projeções normativas – seguindo Anderson) e ambíguo (seus processos de incorporação e controle da população, de acordo com Gupta).

A crítica mais apressada apontará a inocência de quaisquer expectativas de realizar observação participante nessas instituições, não considerando as dificuldades colocadas pelo perfil antropológico das burocracias (Herzfeld, 1993HERZFELD, M. The social production of indifference: exploring the symbolic roots of Western bureaucracy. Chicago: University of Chicago Press, 1993.), os problemas de estudar o topo das hierarquias de poder – “studying up” (Nader, 1972NADER, L. Up the anthropologist-perspectives gained from studying up. In: HYMES, D. H. (Ed.). Reinventing anthropology. New York: Pantheon Books, 1972. p. 284-311.) – e nem Kafka. Contudo, essa expectativa vai muito além de mero defeito do plano da pesquisa e revela parte da natureza do próprio objeto estudado, sendo um resultado do nível de naturalização alcançado pelas promessas modernas de proximidade e controle do poder. As expectativas produzidas pela ficção da transparência (Comaroff; Comaroff, 2003COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.) não agem apenas nas interações com Estados ou corporações, nas promessas de boa governança e accountability, elas estão disseminadas em diversas formas culturais, perpassando as múltiplas modernidades com uma promessa de que o poder vai operar de forma previsível (West; Sanders, 2003WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order . Durham: Duke University Press, 2003.). Jean Comaroff e John Comaroff (2003)COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299. tratam dessa ficção dos mundos transparentes como um elemento constitutivo da imaginação liberal/imperial que é movido pelo impulso de eliminar as formas do segredo e da conspiração. Apesar da longa história do projeto de iluminar os recantos obscuros do poder, o Esclarecimento produz uma forma particular, tecnoempiricista, dessa promessa de controle da experiência que possui, além de suas bases materiais, uma importante fundamentação moral (Comaroff; Comaroff, 1991aCOMAROFF, J; COMAROFF, J. Of revelation and revolution: vol 1: Christianity, colonialism, and consciousness in South Africa. Chicago: University of Chicago Press, 1991a., 1991bCOMAROFF, J; COMAROFF, J. Of revelation and revolution: vol 2: the dialectics of modernity on a South African frontier. Chicago: University of Chicago Press, 1991b., 2003COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.). Desse modo, o desejo e crença nos métodos capazes de revelar supostas entranhas do poder não é prerrogativa da política democrática e seu projeto civilizador, está nas mais diversas constelações da experiência contemporânea. Diferentemente das formas mais sistemáticas de abordagem das políticas de transparência (Fung; Graham; Weil, 2007FUNG, A.; GRAHAM, M.; WEIL, D. Full disclosure: the perils and promises of transparency. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.; Hood, 2002HOOD, C. Accountability and transparency: siamese twins, matching parts, awkward couple?. West European Politics, London, v. 33, n. 5, p. 989-1009, 2002.), procuro aqui construir um caminho para sua compreensão que passa pelas teias de experiência, pela coleção de sentidos e valores da transparência que, se não pode ser dito exatamente como etnográfico, se inspira no modo como a etnografia valoriza a experiência e resiste à colonização das formas de conhecer (Das; Poole, 2004DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the margins of the state. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.). Desse modo, o meu itinerário de pesquisa, a tentativa de aproximação dos mundos burocráticos, traz mais insights sobre os dilemas da transparência do que as próprias entrevistas realizadas em campo.

Nas próximas secções tentarei apresentar elementos da constelação de valores que orienta a prática em mundos burocráticos. Consideradas suas atribuições, essas instituições são responsáveis por lógicas de controle que ampliam os modos de transparência e, consequentemente, todos seus processos e atividades seriam objetos possíveis. Todavia, a pesquisa tem como foco o ordenamento de suas rotinas, a presença das formas judicativas nos rituais burocráticos. Seria ideal uma apresentação mais completa de cada uma das experiências, com ênfase numa descrição densa capaz de revelar a economia moral da transparência que organiza esses espaços. No entanto, para atender aos limites deste artigo focarei os elementos que considero indicarem mais efetivamente como as ambiguidades da vida transparente revelam processos simbólicos e imaginativos através dos quais a verticalidade do poder estatal se torna efetiva (Ferguson; Gupta, 2002FERGUSON, J.; GUPTA, A. Spatializing states: toward an ethnography of neoliberal governmentality. American Ethnologist, Arlington, v. 29, n. 4, p. 981-1002, 2002., p. 983).

A imaginação estadual

Fiz a primeira visita ao tribunal de contas em setembro de 2014 para pedir uma ajuda técnica: gostaria de encontrar indicações que me permitissem conhecer os tipos de processos relacionados ao combate à corrupção local. De modo muito direto, pretendi obter informações sobre o combate à corrupção que permitissem a constituição de uma contraposição objetiva ao pânico moral sobre a corrupção. Dada a intensa propaganda do órgão sobre seu trabalho em efetivar a transparência e combater desvios, acreditei que encontraria um setor específico responsável por prestar informações. Fui levada por um conhecido que lá trabalhava e entrei no prédio pelo mesmo lugar que os funcionários, sem precisar nenhum tipo de identificação. Fui extremamente bem recebida e rapidamente comecei a fazer questões sobre os tipos de processos, sobre os casos de desvios mais recorrentes e como vinham sendo controlados. As reações foram de certa surpresa: “Que tipo de processos especificamente você quer?” Fui apresentada a uma espécie de organograma dos setores, levada a passear por um longo corredor com muitas portas fechadas e o comentário gentil: “Cada porta dessa aqui é um tipo de processo, o que você quer?” Outro auditor mencionou que aquele trabalho era muito complexo mesmo. Apesar do constrangimento, admiti que não sabia exatamente o tipo de processo específico, imaginava apenas que deveria haver desvios e ações de combate mais recorrentes, não poderia indicar tipos de contrato ou políticas mais suscetíveis ou relevantes e tinha a ligeira impressão de que era justamente naquele órgão que tal informação poderia ser obtida. Contudo, já que não era possível indicar esses dados “de forma tão simplista”, gostaria de observar o trabalho para poder escolher onde focar.4 4 Não acredito que essa informação seja simplista: é possível pensar uma sistematização das formas de desvios mais recorrentes e não apenas das percepções sobre desvios. No entanto, acredito que aqui podemos ter uma antevisão de como a forma burocrática ordena a experiência: enfatizando a primazia do particular quando lhe convém, evitando o diálogo com os estranhos a partir de invocações que reforçam seu feitiço. Uma auditora disse que os gestores podem ser tão ardilosos que a cada processo ela tinha uma surpresa: “Eles estão testando” e “cada vez eles vão mais longe.” No entanto, essa ênfase na particularidade, na especificidade de cada caso e processo, é traída pelos sentidos morais que, como se verá, emergem na grande metafísica da corrupção brasileira e de seu povo pouco civilizado. Foi quando me disseram que eu deveria procurar no sistema, usar a ferramenta de busca e ver os processos. No mesmo dia, comecei a utilizar a ferramenta aberta ao público onde estão todos os processos já julgados. No entanto, não soube o que procurar, ou melhor, não sabia o que tinha achado – era uma linguagem extremamente árida, parágrafos gigantes com muitas orações intercaladas fazendo referência a outros processos. A burocracia on-line dá uma ideia de ordem, mas é igualmente um deserto. Comentei sobre essa dificuldade com um auditor que respondeu: “É que você não sabe o que está procurando, mas lá tudo já está transparente.”

A visita ao tribunal já tinha provocado meu interesse. Os enormes corredores vazios, a completa ausência de pessoas que não fossem servidores do órgão e também a impessoalidade de seu estilo chamaram a atenção. Era um ambiente que não permitia a percepção das particularidades locais, poderia ser em qualquer lugar; se havia humanos por ali, seus sentimentos e valores não deixaram nenhum rastro ao longo do excesso de portas e escadas. E a ideia de que ali tudo já seria transparente despertou a necessidade de conhecer esse novo mundo.

Comecei a fazer visitas, seguindo o mesmo caminho e entrando no tribunal junto com o auditor conhecido – que se tornou uma espécie de informante. Sua amizade permitiu que o acesso e os encontros iniciais tivessem um caráter informal, não precisei mencionar qualquer das ferramentas da política de transparência como modo de obter informações. Logo depois, tentei fazer entrevistas, mas as pessoas pareciam mais reticentes. Diziam que eu mandasse o questionário por e-mail elas prometiam responder rapidamente. Fui geralmente bem recebida e tive algumas conversas com auditores, mas dificilmente se dispunham a dar entrevistas. Nessas primeiras conversas recebi várias indicações de que deveria pedir uma “autorização” para pesquisar. Como argumentou o informante, algumas pessoas podiam ficar incomodadas com o fato de estarem falando sem que as instâncias superiores tomassem conhecimento de que uma pesquisa estava sendo desenvolvida dentro do órgão. Ele também estava numa situação delicada por estar me trazendo como uma “visita” constante.

Protocolei um pedido simples de autorização junto com uma carta de apresentação da universidade. Em apenas um dia fui chamada e extremamente bem recebida por um dos representantes do conselho do órgão. De imediato, recebi convite para representar a universidade num grupo sobre transparência, realizar uma pequena palestra e apresentar os dados da pesquisa e publicá-la na revista da instituição; também fui informada de que teria uma sala à minha disposição para realizar o trabalho. A recepção foi tão calorosa e interessada que, por alguns instantes, temi não poder dar continuidade ao trabalho por estar tão envolvida em tarefas e, muito secretamente, pensei na deselegância de ter que criticar pessoas tão prestativas. No entanto, a realidade foi bem distinta. Na visita seguinte fui recebida por um funcionário menos importante na escala de autoridade, o que me permitiu uma melhor noção das possibilidades de movimento naquele mundo. Foi-me pedido que enviasse um pequeno projeto especificando o problema da pesquisa, o tamanho da amostra e o nome e cargo das pessoas que iriam compô-la. A sala só estaria disponível pelas manhãs, horário em que não há expediente. Expliquei a dificuldade desse horário já que era justamente quando não havia ninguém trabalhando lá e me foi sugerido que ligasse diretamente para os chefes de cada sessão: eu deveria dizer o nome do conselheiro que tinha autorizado a pesquisa e marcar a hora em que cada técnico deveria se apresentar para a entrevista. Argumentei que seria um pouco incômodo, mas o funcionário garantiu que ninguém recusaria se eu dissesse que tinha falado com aquele conselheiro.

Como optei por não usar a sutil recomendação como argumento, tive muitas dificuldades. Primeiro, há o grande problema de disponibilidades dos próprios auditores que trabalham por “metas”. Participar de entrevistas que podem ser relativamente longas é, claramente, um empecilho ao desenvolvimento de suas atividades. Segundo, uma vez que as atividades desse órgão apresentam um impacto direto sobre a imagem dos gestores do recurso público, havia muita desconfiança sobre o tipo de informação buscada, que uso seria dado aos resultados, que tipo de vínculo ou interesse político minha pesquisa viria a beneficiar. Terceiro, dentro do órgão há uma cisão não mencionada entre os auditores (concursados) e o conselho (formado por indicação política). Tal cisão, onde os saberes técnicos se tornam menos relevantes do que os acordos políticos no julgamento dos processos, parece aguçar a tensão e receio dos auditores em se expressar. Há uma espécie de linha imaginária que separa radicalmente o trabalho dos auditores das ações dos conselheiros. Eu estava apenas transitando no mundo do “nós-auditores”, onde “não há poder de verdade”, uma vez que, apesar de possuir informações capazes de revelar o funcionamento dos desvios, sua efetividade dependia do debate realizado no conselho. Por essas razões, e provavelmente por outras que não estão claras ainda, não me foi permitido circular livremente pelos corredores da instituição. Teria que usar o telefone da sala que foi indicada para o meu trabalho e “convidar” os possíveis interessados até conseguir completar a “amostra”. A amostra foi uma novidade do campo. Na segunda semana de visitas, quando o mediador disse que eu precisava submeter ao conselheiro o tamanho da amostra, perguntei o porquê daquele pedido já que nada tinha sido dito no nosso primeiro encontro. A resposta foi rápida: ele quer saber o tamanho da amostra. Não adiantava dizer que há modos de conhecer e produzir conhecimento que não dependem da quantidade de entrevistas, por isso, chutei um número que me pareceu bom: 38. Uma espécie de número mágico que poderia atender aos ideais de cientificidade dos nativos – nem tantas entrevistas que me fariam abusar da boa vontade dos auditores e nem tão poucas que encerrariam rapidamente minhas possibilidades de pesquisa. O número mágico foi aceito.

O auditor-informante argumentou, e não tenho meios de definir o que é a opinião dele e o que lhe foi dito por superiores ou colegas, que não era adequado ter alguém estranho circulando pelos corredores quando tantas informações sigilosas estavam sendo discutidas. Para alguns deles poderia ser incômodo saber que estavam sendo observados e não ter garantias do que seria feito com o resultado dessas observações. Ele afirmou que também precisava informar quando terminaria a pesquisa. Tivemos um diálogo interessante do ponto de vista da história das negociações que se efetuam no campo:

Informante: Quanto tempo você pretende ficar vindo aqui?

Eu: … Um ano?

Informante: O quê? Como? Não estou falando do tempo da pesquisa toda, estou falando de ficar aqui…

Eu: Ah, claro… Seis meses.

Informante: Seis meses? Impossível. Ninguém permitiria isso. É uma loucura… Pra que alguém precisa de tanto tempo pra fazer uma pesquisa?

Eu: … Três meses?

Informante: Três meses? Isso é muito tempo. Não é possível. Não vão deixar que um estranho fique circulando por aqui esse tempo todo…

Eu: Dois meses… Mas não virei todos os dias. Só de vez em quando… Você sabe, a universidade me toma muito tempo.

Informante: Ótimo. Assim está perfeito. Não vai ter problema nenhum.

Inspirada pelo imaginário da observação participante, acreditei que um ano seria tempo suficiente para conhecer as rotinas da fiscalização. Mas, a cada expressão de espanto, tentei garantir dias que me possibilitariam familiaridade. No entanto, minha posição no campo, a ausência de qualquer tipo de capital que pudesse interessar ou “constrangê-los” a me aceitar por mais tempo do que aquele necessário para me mandar procurar nos processos disponíveis on-line, garantia possibilidades mínimas de acordo. Era como se conversássemos pela brecha da porta de um clube que claramente não me aceitaria. Que esse lugar seja o responsável pela construção de uma política local de transparência torna a própria busca de dados uma importante fonte de conhecimento. Alguém poderia argumentar que a exigência de transparência se refere apenas a informações sobre as ações do Estado e não necessariamente ao modo como essas informações são construídas ou disponibilizadas, não ao trabalho interno da burocracia. Se pensamos nas ficções da transparência e seu lugar na legitimação do sistema (Comaroff; Comaroff, 2003COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.), essa modéstia não está presente em suas promessas, mas, por enquanto, interessa apenas perceber a recorrência do segredo na produção da transparência.

Estar na instituição, conversar com seus participantes foi um processo cheio de avanços e recuos. Enquanto uma porta se abre para prometer parcerias e diálogo, a próxima praticamente pede que se saia logo. Há uma racionalidade nesse jogo de fechar e abrir portas que funciona como justificação da instituição na medida em que acena com promessas de transparência e, logo em seguida, lembra a necessidade do segredo nas coisas do Estado. Desse modo, não é possível dizer que a postura oficial do órgão é de afastar os visitantes; os funcionários estavam gastando seu tempo comigo e, na medida de suas possibilidades, orientavam o acesso às informações. Contudo, ao mesmo tempo, algumas dessas informações eram sobre a impossibilidade de ter certeza, sobre o risco de se aproximar demais do trabalho realizado ali. O falso convite pareceu ser resultado de uma falta de coordenação das ações e de comunicação entre os indivíduos, mas terminou por permitir que se mantenham intactas tanto as expectativas teóricas sobre o serviço público (transparência) quanto a sua experiência prática de inescrutabilidade. Os auditores eram extremamente corteses, mas minha presença era um incômodo. Alguns perguntaram onde o artigo seria publicado e anotaram meu nome completo para procurar no futuro, ainda que nenhum, salvo um único auditor dos 12 que se dispuseram a conceder entrevista, tenha me dado autorização para gravar ou mesmo se mostrado confortável com anotações. Normalmente pedia que um dos entrevistados me apresentasse a outro auditor. Entrávamos na sala e era muito comum que se respondesse: infelizmente, não posso hoje. Um auditor jovem, L., após uma longa conversa – já que não gostava de entrevistas, em suas palavras: preferia conversar –, afirmou que me apresentaria a um outro auditor, M., bastante experiente, que tinha sido uma espécie de mentor. M. supostamente adorava conversar e poderia me contar como era o trabalho de auditoria muito antes das demandas da Lei da Transparência. Quando chegamos à sala de M., este disse que estava extremamente ocupado e que marcaríamos de conversar outro dia. Algum tempo depois encontrei M. pelos corredores, ele se aproximou e pediu desculpas por não ter podido ajudar, mas disse que era porque a sua sala era muito cheia e as pessoas sempre ficavam escutando. Foi quando percebi que as pessoas não só não queriam ser identificadas no meu trabalho, como algumas não queriam nem que se soubesse que foram parte do estudo.

Minha chegada parece tê-los feito lembrar de que precisavam agir conforme as regras de um ambiente de segredo.5 5 Ao tratar do segredo como forma social, Simmel (1906) indica um processo de diferenciação cultural onde, a partir do século XIX, a publicidade se impõe nos assuntos do Estado e tanto a administração quanto a política vão perdendo seu caráter de segredo. No entanto, o autor considera a possibilidade de que certas instituições dominantes possam funcionar com base no segredo, admitindo que não há necessidade lógica de que se valorize cada vez mais as formas públicas nos negócios do Estado. Nesse sentido, já está colocada a possibilidade de pensar como o Estado moderno pode abrigar formas do segredo, mas o que interessa aqui mais diretamente é a conexão entre segredo e moral. Não posso desenvolver aqui as consequências para a antropologia do Estado da ideia de que o segredo é a expressão sociológica do mal moral, mas destaco como essa perspectiva é importante para uma compreensão da burocracia estatal ao permitir que se associem suas formas secretas (o oposto da transparência) ao exercício de uma solidariedade moral. Dito de modo direto, não pretendo simplesmente opor o trabalho burocrático à transparência, mas tentar pensar como a burocracia, por seus elementos de sociedade secreta, está assentada numa base de solidariedade moral, em sentidos de reciprocidade, virtude e hierarquia que contrastam claramente com o ideal de transparência proposto, por exemplo, pela Transparência Internacional. O discurso oficial e os portais eram o lugar da transparência e era isso que eles faziam cotidianamente-especialmente através de relatórios que seriam disponibilizados ao público, mas aquele espaço era diferente e precisava agora ser protegido para que pudesse continuar produzindo o Estado transparente como exigiam as novas leis. Desse modo, não fossem algumas brechas na segurança, os esquecimentos e lapsos na construção da opacidade de suas ações e a simpatia de algumas pessoas, a única possibilidade disponível de contato seria através do telefone. Algo quase impossível de ser efetivado como técnica de pesquisa porque um funcionário que trabalha por metas terá muito mais facilidade em negar ou adiar qualquer conversa ou pedido de entrevista feito por telefone. Contudo, antes da ordem do conselheiro e apesar das metas, algumas pessoas simplesmente queriam ajudar um trabalho a ser feito, outras tinham uma necessidade raivosa de dizer “verdades” para que meu trabalho ajudasse a tirar pessoas da visão fantasiosa que estava se espalhando: de que havia uma suposta preocupação emergente na política brasileira com o combate à corrupção. Ocorreu que, uma vez que não possuíam informações na forma de gráficos sobre a corrupção (e seu combate) prontas a serem apresentadas naquele momento e que também serviriam como resposta adequada do órgão à minha pesquisa, as falas revelavam mais sobre a experiência e vivências particulares dos auditores, sobre a maneira como valores, interesses e práticas se entremeiam no dia a dia dos processos. Uma vez que a prática do ocultamento ainda não estava completamente treinada no órgão, os entrevistados que se dispuseram a falar falaram muito clara e abertamente sobre os dilemas de sua experiência. Os lapsos na produção da “intransparência” ou opacidade, provavelmente resultantes do pouco exercício de construção da transparência, permitiram a pesquisa.

Quando estava em ação o modo ou fachada de instituição aberta à pesquisa, era comum que se reclamasse por não haver mais teses sobre o funcionamento do órgão e sobre o distanciamento da universidade sobre as “questões práticas”. Entretanto, os seus representantes têm uma ideia muito específica de pesquisa: questionários com amostras determinadas. Pedi para participar das vistas aos órgãos auditados junto com a equipe e me informaram que era muito perigoso, poderia trazer problemas legais. Cheguei a participar de uma dessas visitas que são parte do procedimento de auditoria, mais uma vez pela mistura de acaso e uma pequena vergonha da parte do informante principal por sempre estar dizendo tantos nãos.

As minhas visitas e o desenho da pesquisa precisaram se orientar por um ritmo ditado pelo próprio órgão. Os entusiastas da pesquisa de campo dirão que isso sempre acontece, mas o meu caso foi um pouco mais literal: os pesquisados me diziam que técnica deveria usar, cobravam a determinação da amostra e questionavam a validade dos possíveis achados; numa experiência muito peculiar, o informante-chave refez o meu projeto, riscou minhas frases e acrescentou objetivos “mais acessíveis”. Disse que as pessoas na universidade precisavam aprender a ser mais claras e trabalhar com as coisas que possam “servir depois”. Mudei da ideia de uma longa observação participante para, na versão oficial apresentada ao secretário do conselheiro,6 6 Como dito acima, no meu único encontro com o conselheiro não houve qualquer exigência de projeto ou limitação da minha atividade. Mas, quando precisei lidar com os funcionários subordinados ao conselheiro, soube que ele gostaria de ver o projeto, a amostra e o próprio “questionário”. uma aplicação de 30 entrevistas com data para terminar, se alguém estivesse contando. Segundo ele, 30 era um ótimo número, melhor que 38, e que não ia parecer que eu queria ficar lá por muito tempo.

Num sentido inverso ao da familiaridade, o acesso ao interior do prédio foi ficando mais difícil. Meu informante disse eu precisaria entrar “oficialmente” e por isso precisava ficar na recepção, esperando que alguém viesse me “buscar”. Nem a sala prometida estava mais disponível, porque passou a ser usada por estagiários. Permaneci na recepção por longo tempo, alguns entrevistados passavam e diziam muito simpaticamente “ainda por aqui?”, “quantas entrevistas faltam?”, “quero ler o artigo”. Tanto a voz como o cotidiano dos auditores, exigidos como indícios da verdade pela lógica de transparência acadêmica, eram sistematicamente encobertos por pequenas regras desenvolvidas pelos próprios atores no momento do encontro. Essas regras que buscavam limitar minha permanência, controlar a natureza do projeto e até julgar o seu interesse acadêmico, operavam como modos de restringir a aproximação, evitando o acesso a informações sensíveis e sigilosas.

Porém, ao mesmo tempo em que restringiam a minha observação de suas rotinas, os auditores costumavam apresentar os problemas com que se defrontavam e expressar as angústias de um trabalho que não teria fim. De vários modos, ouvi sobre o caráter endêmico da corrupção no Brasil, uma corrupção que se expressa nos mínimos atos, realizada pelos poderosos e mantida pela falta de cuidado do povo. O “povo” era presença constante nas falas, especialmente pelo fato de que sua falta de interesse tornava o resultado do trabalho dos auditores nulo. Uma auditora comentou que as pessoas, “Seu José e Dona Maria”, tinham que estar lá na porta do tribunal, buscando saber como o dinheiro estava sendo gasto e fiscalizando. O “Seu José e a Dona Maria” são entidades poderosas e recorrentes na retórica da transparência – a corrupção não teve fim porque eles ainda não agiram. A invocação recorrente me fazia pensar como os dois lidariam com as dificuldades de acessar aquele ambiente e ler o funcionamento do Estado, coisa que as minhas credenciais acadêmicas não estavam conseguindo.

Autorizando a imaginação

Antes de tratar da segunda experiência de pesquisa é necessário justificar teoricamente a pertinência de aproximar pesquisas em órgãos com atribuições gerais distintas como um tribunal de contas estadual e um ministério. Para os especialistas em accountability, as diferenças entre as atividades de controle interno do executivo federal e a análise das contas públicas estaduais é bastante clara e comparar coisas tão distintas talvez seja uma tarefa pouco relevante. Porém, apesar de cada um dos órgãos atuar em um poder diferente, o que produz disputas, regimes de justificação e, de modo mais específico, processos ou lógicas de auditoria distintas em sua natureza, o foco da presente discussão é um olhar antropológico sobre as formas altamente racionalizadas de controle, especialmente na produção da transparência como um fundamento do poder estatal. Nesse sentido, um tribunal de contas e um (agora) ministério responsáveis pelo controle das contas e combate à corrupção compartilham, no mínimo, sentidos e valores, esquemas organizadores de práticas. Uma vez que essas práticas produzem o Estado, especificamente um projeto de Estado que se amplia e inclui pessoas a partir de suas políticas de transparência, essa aproximação produz sentidos e revela afinidades importantes.

Os ambientes e auditores pesquisados atuam construindo o cotidiano do Estado. Em conjunto, suas rotinas extremamente especializadas, seus movimentos entre setores e as interações que produzem ao circular processos, realizar auditorias e “sugerir” novas práticas para outros braços do sistema, são a própria organização ou apresentação do poder do Estado, especialmente se não quisermos lidar com formas transcendentais. Entendo a transparência, para além das obrigações legais, como um valor ou virtude que orienta, sistematiza e conecta essas práticas constitutivas. Por esse caminho, as experiências dos auditores de órgãos de controle estaduais e federais ganham um substrato comum: projetar o Estado transparente.

A relevância dos trabalhos antropológicos que buscam compreender as intercessões entre poder e moralidades nas rotinas de produção do Estado e da ordem (Fassin, 2013FASSIN, D. Enforcing order: an anthropology of urban policing. Cambridge: Polity Press, 2013.; Gupta, 2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.; Hull, 2012HULL, S. M. Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. Oakland: University of California Press, 2012.; Shore, 2009SHORE, C. Cultura de auditoria e governança iliberal: universidades e a política da responsabilização. Mediações, Londrina, v. 14, n. 1, p. 24-53, 2009.) está em confrontar as lógicas de pesquisa que assumem que o Estado é aquilo que ele projeta, que sua prática é uma simples confirmação dos projetos modernistas de ordenamento e conquista (Scott, 1998SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.). Nessa perspectiva crítica recente, que percebe Estados como artefatos culturais (Sharma; Gupta, 2006SHARMA, A.; GUPTA, A. (Ed.) The anthropology of the state: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006.), busca-se entender como uma história de disputas, uma forma fluida, multifacetada, marcada por distintas camadas e projetos, se representa como uma forma singular e coerente (Sharma; Gupta, 2006SHARMA, A.; GUPTA, A. (Ed.) The anthropology of the state: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006., p. 10). Por esse caminho, o que é um problema metodológico segundo a perspectiva convencional que orienta os estudos sobre o Estado (comparar órgãos com atribuições distintas) pode se tornar uma forma útil de compreensão, uma maneira de perceber as recorrências na produção das lógicas de governo.

Na secção seguinte, apresento os elementos gerais de minha experiência de campo no Ministério da Transparência com o intuito de acrescentar mais contornos e tensões à compreensão do projeto de tornar o Estado inclusivo através das formas de transparência tal como vem ocorrendo no Brasil.

Imaginando como um Estado

A segunda experiência com um órgão de controle e transparência foi realizada em Brasília, em julho de 2016, na Controladoria-Geral da União que passava pelo processo de mudança de nome para Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria. Através de um amigo, conversei com um jovem auditor, W., que ficou muito interessado nos resultados de minha pesquisa. Ele se dispôs a me apresentar a colegas em diferentes setores e muito gentilmente me acompanhou ao longo de uma semana intensa, onde eu chegava todos os dias às oito horas da manhã e saía um pouco antes das seis da noite – e mesmo nos intervalos do almoço ficava no restaurante da instituição. Como disse que gostaria apenas de conversar sobre o trabalho de auditoria e sobre as transformações acarretadas pelas mudanças na legislação sobre a transparência, não precisei enviar nenhum ofício à direção do órgão. Na entrada do prédio, dizia para que sala iria e recebia autorização para entrar, deixando apenas o número de minha identidade. No terceiro dia, a funcionária da portaria disse que eu podia subir sem precisar ligar pedindo autorização. Quando me despedi na sexta-feira, dizendo que voltaria para minha cidade, um dos auditores brincou: “Que pena! Já estava separando uns processos para você começar a trabalhar na segunda.”

Devido à experiência anterior, estava preparada para longas esperas, muitas negativas e nenhuma entrevista gravada ou autorização para usar nomes. Também imaginava que a proximidade do poder central produzisse ainda mais tensão e desconfiança, ampliando as formas do segredo nas interações (Simmel, 1906SIMMEL, G. The sociology of secrecy and secret societies. American Journal of Sociology, Chicago, v. 11, n. 4, p. 441-498, Jan. 1906.). No entanto, as expectativas me ajudaram apenas a sedimentar minha percepção do campo anterior. O auditor que veio a se tornar meu informante pediu ao seu chefe uma autorização para que eu ficasse na sala deles. Havia uma única mesa vaga, de uma funcionária que estava em licença por motivos de saúde, e eu poderia ficar lá. Fazia ligações para diferentes setores e esperava a hora em que os auditores e chefes podiam falar comigo. Pessoas que não tinham tempo num determinado momento, passavam por lá, deixavam um recado. Novas máquinas de café tinham acabado de ser colocadas e alguém dizia: “Já provou o café?” As esperas não eram angustiantes porque eu estava num espaço que era “meu”, pessoas de outros setores chegavam e os olhares já não eram de estranhamento. Percebi que uma das particularidades do mundo da burocracia é a segurança produzida por uma mesa e um computador. Se no tribunal de contas me sentia perdida, deslocada e invasora, minha pequena mesa na CGU se tornou uma ilha de segurança. Dessa ilha, pude rever aqueles espaços impessoais, os móveis brancos, as paredes nuas, mas não pareciam tão hostis. Nas outras ilhas, as pessoas se esforçavam para colecionar sentidos: fotos de crianças, de uma viagem onde se sorria como não se sorria lá, de cachorros, pequenos suvenires. Esses sentidos, contudo, não afetavam o ambiente e também senti que poderia estar em qualquer lugar onde se cultivassem paredes muito brancas e silêncio. As fotos da antiga presidenta ainda estavam em cada sala, acho que não conseguia esconder meu olhar de estranhamento porque várias vezes me responderam sem que eu dissesse nenhuma palavra: “Ainda não podemos tirar.” Mas era parte da cultura de cada ilha que ninguém se incomodasse com a foto da chefe recém-sacrificada, as emoções sobre a turbulência ali bem perto eram claramente coisa de “estrangeiros”.

Tive medo de que a turbulência política no país e os muitos protestos que ocorriam em Brasília naquela semana, e a própria mudança de nome de uma instituição consolidada, alterassem completamente o foco das minhas observações naquele momento. No entanto, cheguei numa segunda-feira às oito da manhã, observei os funcionários se dirigindo ao ponto eletrônico, apressados para entrar no elevador, alguns com crianças muito pequenas nos braços se dirigindo à creche, e parecia um dia normal. Todos os outros dias foram assim: poucos comentários sobre a política, nenhum nome ou referência à mudança que estava ocorrendo. Um dia havia um cartaz no elevador onde o nome recente do ministério havia sido riscado e por cima se escreveu: CGU. Perguntei se aquilo estava acontecendo muitas vezes e meu informante riu: “Não, é a primeira vez que vejo.” A uma auditora perguntei se a mudança de nomes faria alguma diferença, ela respondeu que o sindicato achava que sim, mas era apenas um nome e o trabalho permanecia o mesmo. Outro auditor, bem mais velho, disse que era uma perda, que afetaria a identidade de cada um. Essas opiniões opostas foram ditas tentando dar a expressão, no sentido goffmaniano do trabalho de fachada, de naturalidade e quase indiferença. Ao longo da semana, sentia que só a mim pesava o retrato na parede e os protestos ali perto. Um funcionário me corrigiu, já que eu não conhecia bem Brasília: “Os protestos não são perto daqui.” A burocracia não precisa de grandes distâncias para se sentir protegida.

Essa turbulência política ajuda a entender um pouco da geografia interna da instituição. Enquanto os noticiários davam conta da enorme tensão política, não ouvi nenhum debate naquele ambiente, muito menos um debate acalorado. Em uma das salas alguém mostrou um vídeo da polícia em confronto com estudantes, fogo e fumaça, mas era tão longe quanto qualquer filme. Os corredores e elevadores tinham uma circulação intensa, alguns usando um adesivo de visitantes, mas a grande maioria era “da casa”. Talvez eu não tenha os termos de comparação por não estar ali antes, porém pareceu que as mudanças políticas não tinham capacidade de interferir naquela rotina, todos tinham muito trabalho e estavam ocupados. A impressão de que as salas e corredores eram iguais se junta àquela de que as rotinas também são bastante semelhantes e não há espaço para as emoções do dia.

Especificamente sobre o campo, a estratégia de permanecer também tinha relação com realizar entrevistas. Acredito que não precisei mencionar quantidades por ter estabelecido um tempo: ficaria por apenas uma semana. As pessoas do setor onde permaneci foram indicando colegas e pude realizar um total de 17 entrevistas. Destas, apenas um auditor, que chamarei de F., não quis gravar entrevistas. Seu perfil era muito particular, era o mais velho (alguém entrou na sala e mencionou que se fosse ele já teria aproveitado ter tempo e se aposentado) e atuava em investigações de grandes crimes financeiros, geralmente em processos em atuação conjunta com a Polícia Federal. A auditora que me levou até ele disse: “Não precisa ter medo, ele tem um jeito antigo, mas é um dos melhores.” F. foi o único dos entrevistados que pareceu um pouco incomodado e que pediu mais detalhes sobre a minha pesquisa e que uso eu lhe daria, parece ter achado minhas perguntas sobre transparência um pouco inocentes e enfatizou que seu trabalho era muito difícil porque a corrupção tinha um caráter sistêmico, o “submundo” era muito mais eficiente que as organizações estatais, que estavam “perdendo a luta”. No entanto, parece mais revelador o fato de que a grande maioria dos entrevistados focou numa mudança no Estado brasileiro: em como seu caminho de abertura e transparência vem sendo fortalecido. Muitos deles afirmavam que a “cultura da transparência” estava muito mais forte nas mais diversas instituições do país e que, especialmente, os funcionários dos órgãos federais, antes um pouco resistentes, agora queriam se adequar às sugestões da CGU, o que vinha produzindo um “diálogo” sobre transparência, muito mais do que uma relação entre fiscalizador e fiscalizado. F. também foi o único a tratar do processo de auditoria como uma investigação, todos os outros diziam que a auditoria é uma “espécie de diálogo”, que a CGU vai às instituições na tentativa de estabelecer um diálogo e, através dele, pensar em mudanças que “funcionem para todo mundo”.

De modo geral, a minha experiência na CGU permitiu um pouco do tipo de circulação pelo plano da burocracia que vinha buscando. Os auditores me deram longas entrevistas e muitos deles chegaram a apresentar um pouco dos trabalhos que estavam fazendo, me introduzindo aos sistemas e às rotinas. Um auditor estava preparando um parecer sobre a utilização de recursos para contratação de pessoas numa universidade pública e pediu minha opinião, apresentando os vários documentos que o fizeram chegar àquela conclusão.

Contudo, seria apressado afirmar que esse é um espaço onde o Estado se mostra ou as rotinas do poder são evidentes. Não é possível expor aqui os detalhes dos dados produzidos pelas entrevistas, principalmente porque esta discussão tenta focar mais os processos de minha aproximação das rotinas de produção do Estado, onde tomo os momentos de encontro com os burocratas como experiências que revelam a constituição de um ethos proposto para organizar e dar sentido às lógicas de poder. Entretanto, é interessante indicar que as respostas dos auditores são exercícios extremamente elaborados de projetar os devires do Estado. Não obtive muitas informações sobre suas experiências e dificuldades, sobre suas posições e receios ou quaisquer ideias sobre suas práticas, o que de fato fazem. São falas muito longas e, muitas vezes, nem foi preciso fazer perguntas: de modo extremamente cortês e bem argumentado, os auditores iam apresentando os “nossos” avanços no campo de uma abertura do Estado, como, a cada dia, mais e mais pessoas queriam saber e participar do que estava acontecendo e de como os recursos públicos eram geridos. Para alguns, a transparência já era algo muito real nas instituições brasileiras e os milhares de acesso ao site eram a confirmação disso. Diante de minha surpresa com a confiança desses auditores em seu trabalho, W. discordava de que tais opiniões representassem minimamente a percepção de “quem conhece a realidade”. Para ele, eu estava falando com muitos “chefes”, muita gente que estava “do lado de cá”, e eu precisaria conversar com as pessoas que estavam fazendo viagens, auditando nos mais diferentes estados, lidando diretamente com os problemas dos diferentes órgãos federais. Para ele, haveria um discurso “de Brasília” e dos chefes – “que só funciona em Brasília” –, e a “realidade”.

Tais dados de entrevistas, apesar de sua incapacidade de produzir generalizações sobre a totalidade do ministério, teriam maior probabilidade de satisfazer as perspectivas teóricas mais estabelecidas sobre transparência e combate à corrupção: poderia identificar todos os auditores e citar extensas falas. Contudo, apesar de seu interesse, acredito que o cotidiano das atividades de transparência não pode ser compreendido se essas entrevistas forem fetichizadas em citações, desconectadas de corporalidade e das geografias do campo. O elemento fundamental dessas falas é o seu caráter ritual, sua capacidade de produzir e projetar sentidos desejados na ordenação do poder. Os altos níveis de treinamento garantiram o recrutamento de cada um daqueles auditores e também se expressam na capacidade de não se abalar diante do gravador, na fluidez e assertividade de um discurso que, mesmo sendo uma projeção, consegue se apresentar como fato. A eficiência da burocracia conta com sua capacidade de emular um mundo sem conflitos. Desconfio que muitas entrevistas me foram concedidas porque já estavam prontas e esperando para serem oferecidas. O sentimento de um Estado transparente, onde o poder não se esconde e está sob controle de todos, precisa ser compartilhado e encenado para ser efetivo.

Saindo do plano dessa experiência particular para tentar conectá-la com os processos mais amplos de constituição da transparência, considero que a projeção dos devires de um Estado aberto e transparente é um elemento fundamental da prática desses burocratas. Para W., conforme a explicação de seu incômodo particular com as falas oficiais, essas “projeções muito otimistas” causavam angústia porque, ao sair dali, ele via enormes problemas, um mundo “cheio de erros” e formas arcaicas de lidar com o bem público. Em sua experiência pessoal, esse informante traduziu o seu papel na burocracia como a difícil aceitação e normalização da discrepância entre o discurso dos chefes, a fala oficial do órgão, e o que via nas ruas. Por sua vez, para a compreensão das rotinas de poder, assim como nas “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson (2008ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.), esses sentidos presentes no discurso dos chefes permitem a “legitimidade emocional” e o “apego” que dão realidade ao Estado. No caso de nossa experiência particular com a CGU/Ministério da Transparência, podemos dizer também que essas projeções (ou imaginação do Estado transparente, aberto e justo) permitem a construção de sentidos e desejos que conectam o ideal do Estado com o cotidiano de seus representantes; mais ainda: trazem a experiência moral das virtudes à atividade burocrática que, de outro modo, seria extremamente desencantada.

Admirável mundo transparente

Uma análise mais apressada poderia supor que a segunda experiência caracteriza o fato e sucesso das políticas de transparência, enquanto a primeira seria apenas função do estado da federação escolhido e seu subdesenvolvimento. Essa percepção das políticas de transparência como função da quantidade de informação disponível é recorrente nos estudos sobre corrupção e também é problemática porque assume como fato o próprio discurso legitimador do objeto analisado. Apesar de suas diferenças, as duas experiências iluminam a compreensão da transparência como um devir – um novo horizonte moral ou forma de virtude que justifica e dá sentido às práticas e retóricas burocráticas.7 7 Como os trabalhos de Gupta (2012) e de Fassin (2012, 2013) demonstram especificamente no caso do estudo das formas políticas, pesquisar o cotidiano das moralidades não significa dizer que os atores estejam agindo moralmente ou comprometidos com realizações éticas. Trata-se de uma análise de formas de valor como instrumentos e técnicas de interpretação e ação no mundo. Tanto na tentativa de produzir opacidade quanto na utopia de um Estado transparente encontramos um acordo sobre o que é relevante ou sobre o que é o bem para a vida pública. Não encontrei quaisquer referências a problemas que não estejam estabelecidos na agenda da transparência: os elementos estruturais da desigualdade social, a relação entre segredos de Estado e segurança, os custos do combate à corrupção, a efetividade das políticas de combate à corrupção, a afinidade entre corrupção e capitalismo – nenhum deles foi indicado ou associado ao trabalho dos auditores e dos órgãos. A completa ausência da tematização de qualquer crítica à busca da “integridade absoluta” (Anechiarico; Jacobs, 1996ANECHIARICO, F.; JACOBS, J. B. The pursuit of absolute integrity: how corruption control makes government ineffective. Chicago: University of Chicago Press, 1996.) revela que, mesmo que agências apresentem práticas distintas, têm em comum um acordo sobre o que o Estado deve ser e, especialmente, sobre o horizonte moral que ordena suas práticas.

Depois de Doc (Whyte, 2005WHYTE, W. F. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.), não é necessário gastar tempo afirmando o papel da ação dos informantes nos itinerários da pesquisa. Contudo, no caso específico aqui estudado da constituição de uma política nacional de transparência, a necessidade e centralidade do informante se torna um dado distintivo, afinal, a ficção das formas de governo transparente quer fazer acreditar que nenhum informante será necessário, que é possível observar o funcionamento do poder. Os ambientes estudados vêm, através de várias leis e acordos, se comprometendo com a constituição de formas mais abertas de organização; por sua vez, os “guerreiros da integridade” (Sousa; Hindess; Larmour, 2009SOUSA, L.; HINDESS, B.; LARMOUR, P. Governments, NGOs and anti-corruption: the new integrity warriors. London: Routledge, 2009.), ativistas do combate à corrupção, prometem um mundo sem áreas cinzentas e nem ambiguidades. É nesse sentido que uma sociabilidade ordenada pelas formas do segredo revela um problema ou, no mínimo, uma lacuna entre as projeções do Estado e a experiência dos burocratas. Não imagino que a política de transparência pública seja a possibilidade um campo aberto onde todos poderiam circular, mas a primeira experiência sugere que o próprio interesse nas rotinas de produção do Estado pode ser visto como suspeito, e que as lógicas do segredo ainda são articuladoras fundamentais do contato com o público. Nos dois casos, a constituição da transparência como prática das agências é muito diferente da ficção da transparência que anima os discursos oficiais. Quando os auditores dizem para procurar processos no mais novo sistema on-line, mandam e-mails semanais com a quantidade de processos julgados até o momento, ou se incomodam com a presença no ambiente, fica claro que as lógicas de transparência não são uma abertura ou as novas paredes de vidro do poder, mas uma nova antessala: formas ou fachadas produzidas para atender demandas específicas. Uma funcionária chegou a mencionar que “eles” (alguém acima) deveriam contratar pessoas para trabalhar especificamente “para a transparência” porque já não aguentava mais responder aos tantos pedidos de informação. Ou seja, produzir a transparência significa também novas práticas, novos cargos e funções. E assim a transparência não é um caminho para compreensão das atividades da burocracia, mas sua nova atribuição.

Isso confirma a ideia de Neyland (2007)NEYLAND, D. Achieving transparency: the visible, invisible and divisible in academic accountability networks. Organization, London, v. 14, n. 4, p. 499-516, 2007. de que o “ideal da transparência” se organiza como um novo conjunto de práticas específicas e não tem relação com uma abertura ampla dos processos envolvidos, como o senso comum sugere. Ou seja, segundo o autor, a produção da “visibilidade” está necessariamente atrelada à construção de novas zonas de invisibilidade. É preciso suspender a ideia comum de políticas de transparência como rotinas de revelação para que se possa observar (a) seu estabelecimento como a produção sistemática de um outro Estado e (b) sua fundamentação normativa através de práticas distintivas e exercícios de poder. Minha chegada ao órgão estadual com questionamentos sobre os processos de transparência dos órgãos públicos provocou um exercício de construção de opacidades. Por não saberem exatamente o que eu procurava, as barreiras foram bastante arbitrárias, tão arbitrárias e desconexas que eles mesmos esqueciam e precisavam criar novas. No segundo caso, a abertura permitiu conhecer o Estado conforme projetado pela transparência: um desejo de virtude e integridade que supostamente já era estabelecido e que também seria aceito pelas diversas instituições e seus atores, incólume a quaisquer condições políticas ou formas de conflito na sociedade.

As políticas de transparência prometem a lógica da revelação, se alimentam e fortalecem do desejo radicalmente moderno de que não haverá nenhum segredo, mas nos levam para uma outra câmara ou apresentação teatral. Claramente, o primeiro órgão tinha preparado “apenas” o sistema de busca de processos; o acesso de pessoas e as questões diretas sobre as rotinas de combate à corrupção – perguntadas em termos leigos –, não estavam no script. Já a antiga CGU é o órgão por excelência na coordenação a preparação dessas novas práticas no país; a naturalidade dos auditores diante do gravador, a capacidade de falar por aproximadamente uma hora sem sair do script da projeção de um novo Estado, de novas relações de poder, sem revelar detalhes mais pessoais, nem discordâncias ou dificuldades, revelam um trabalho extremamente especializado e um treinamento rigoroso como representantes do Estado.8 8 Um auditor sugeriu que fizesse pedidos de informação – quantos eu quisesse, que pedisse informações sobre gastos, afastamentos e trabalhos acadêmicos realizados por seus funcionários sobre transparência. Ele mesmo brincou que dava essa ideia porque não seria trabalho para ele. No momento, achei interessante, mas depois pensei na sobrecarga de trabalho que geraria e W., pensando em si mesmo, disse que era muito cruel. O trabalho dessa agência busca garantir a participação brasileira no grande acordo mundial sobre o bom governo, onde se imagina que os Estados precisam apenas revelar seu funcionamento para serem justos.

Segundo W., a visão positiva da efetividade do trabalho da CGU era algo corriqueiro entre os chefes devido às exigências do cargo. Mas essa explicação é frágil e, talvez, seria mais apropriado pensar que conseguem se manter nos cargos de chefia aqueles indivíduos mais habilidosos em projetar o Estado como este precisa ser visto (Scott, 1998SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.). Nesse sentido, os angustiados com a efetividade de sua prática e que questionam os lapsos entre o projeto e a prática estatal não conseguem produzir a fachada necessária. Isso não pode ser entendido como uma crítica aos atores e sua sinceridade, uma vez que estamos tratando de desempenho de papéis. O treinamento para execução desses papéis, especialmente na lógica dos concursos públicos, é um capítulo à parte no desenvolvimento meticuloso das tecnologias de poder. O que está em jogo aqui é o caráter sistemático de manutenção do Estado, não apenas como aparatos e instrumentos físicos de controle, mas como necessidade, organização de valores e emoções. É nesse sentido que a visão positiva e aberta encontrada na CGU só pode ser entendida em sua conexão com as desventuras do controle local. Podemos falar de uma ficção permitindo a ação, de um projeto onde os diferentes níveis de burocracia se retroalimentam e se utilizam de suas diferenças para reforçar a necessidade de uma fundamentação normativa comum e projetar um Estado livre das contradições e disputas de poder.

Essas experiências demonstram que a produção da transparência como um valor orientador da governança é também um conjunto de rotinas e práticas, desenvolvidas através de uma geografia do poder; o Estado não é apenas um aparato burocrático, mas um conjunto de interações desenvolvidas em ambientes precisamente controlados e por práticas ritualizadas, mesas distribuídas, portas de acesso restrito, papéis e conversas secretas. No caso específico dessas agências, a ideia de “povo” era constante, o “Seu José e a Dona Maria”, o “cidadão”, a “pessoa comum” e a “sociedade organizada” apareciam constantemente nas falas já que todo o trabalho sendo ali realizado era “para eles”. Mas em nenhum dos ambientes há a expectativa de se falar ao público ou de se refletir as dificuldades de compreensão de um sistema tão complexo. Desse modo, todo o lugar do público é basicamente também imaginado, seja para reclamar de seu baixo interesse pelo combate à corrupção, seja para mencionar suas novas demandas e exigências por mais transparência. Assim como o Estado, também o povo está sendo imaginado nesses corredores, e podemos perceber que não há como, em meio aos rituais burocráticos, separar a produção cotidiana do Estado da produção do seu povo. Essas imagens – Estado e povo – orientam processos e sistemas, tornando ações ordinárias em interesse público, fragmentos da realidade em segredo.

Como foi demonstrado por Ferguson e Gupta (2002FERGUSON, J.; GUPTA, A. Spatializing states: toward an ethnography of neoliberal governmentality. American Ethnologist, Arlington, v. 29, n. 4, p. 981-1002, 2002.), o Estado possui uma função racionalizadora, controladora de emoções, da “irracionalidade das regiões mais baixas da sociedade”. Tal função é exercida a partir de rotinas que transformam ações ordinárias, enraizadas em valores e sentidos, em algo transcendental – o Estado como uma forma natural. No entanto, no caso específico da transparência seria um erro acreditar que essa produção de valor, ou de uma virtude advinda da eliminação dos segredos, está ligada exclusivamente à burocracia: podemos pensar que as próprias formas das ciências sociais, através de suas projeções tecnoempiricistas também se alimentam das ficções de controle e tentam produzir rotinas que alimentam seu próprio jogo (Comaroff; Comaroff, 2003COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.). Muitas das perspectivas correntes de análise do Estado estão baseadas nessas próprias ficções e, ao desconsiderar o trabalho da burocracia como um conjunto de interações cotidianas e de projeção de interesses, naturalizam e justificam a produção sistêmica de exclusão. Não se trata de uma crítica à capacidade de certas perspectivas em produzir conhecimento, mas ao modo como os estudos sobre o Estado, num movimento dialético, se tornam um produto feito sob encomenda para simplificar e validar projeções políticas.

As projeções aqui organizadas, tanto na sua versão (estadual) de segredo, quanto na projeção (federal) de um país formado por instituições e servidores familiarizados com a cultura transnacional da transparência, condensam um sentido moral ou virtude para produção cotidiana do Estado. Nos dois casos, apesar dos modos distintos, percebemos indícios de que essa forma virtuosa se fortalece na contraposição à política e aos políticos. No primeiro, através das ações do conselho, os esforços técnicos são esvaziados pelos interesses políticos. No segundo, o trabalho de projeção de instituições transparentes deve continuar sem qualquer relação com a política. Ambos revelam uma afinidade entre a “ideologia corrente de um mundo sem segredos e nem conspirações” (Comaroff; Comaroff, 2003COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.) e a promessa de que os valores morais podem ordenar o mundo/Estado de modo mais apropriado do que a política.

Conclusão

A partir dos encontros e busca de informação no mundo supostamente transparente é possível concluir que os planos de mudança administrativa precisam ser entendidos também como projeções de desejo e sentidos, onde o projeto estatal (Scott, 1998SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.) ou Estado imaginado (Anderson, 2008ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.) vai se constituindo em novas tecnologias de controle, mas também em novos ideais de virtude. Em espaços e através de ações distintas, os dois órgãos estudados trabalham para projetar o ideal de um Estado transparente, aberto e democrático em ações do cotidiano (sistemas de busca, repostas a pedidos de informação, pareceres e processos). Nessa tradução das grandes virtudes do Estado em ações corriqueiras e “acessíveis” é possível perceber o reforço e intensificação das racionalidades burocráticas. Assim, busquei demonstrar como os rituais de produção da transparência se parecem mais com a produção de antessalas do poder do que com o discurso transnacional da plena visibilidade. Nesse sentido, enfatizei a construção da transparência como um projeto marcado por tensões e níveis distintos que se articulam no cotidiano das atividades burocráticas: como ficção (Comaroff; Comaroff, 2003COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.), como produção de fachada (Goffman, 1975GOFFMAN, E. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975.), como projeto de controle (Scott, 1998SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.). Através dessa sobreposição de formas e modos de articulação de valor, percebe-se que a lógica de transparência e accountability desenvolvida pelas políticas recentes são também a produção concomitante de opacidade ou de antessalas do poder.

Referências

  • ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • ANECHIARICO, F.; JACOBS, J. B. The pursuit of absolute integrity: how corruption control makes government ineffective. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
  • COMAROFF, J; COMAROFF, J. Of revelation and revolution: vol 1: Christianity, colonialism, and consciousness in South Africa. Chicago: University of Chicago Press, 1991a.
  • COMAROFF, J; COMAROFF, J. Of revelation and revolution: vol 2: the dialectics of modernity on a South African frontier. Chicago: University of Chicago Press, 1991b.
  • COMAROFF, J; COMAROFF, J. Transparent fictions; or, the conspiracies of a liberal imagination: an afterword. In: WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham: Duke University Press, 2003. p. 287-299.
  • DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the margins of the state Santa Fe: School of American Research Press, 2004.
  • FASSIN, D. (Ed.). A companion to moral anthropology Oxford: Wiley-Blackwell, 2012.
  • FASSIN, D. Enforcing order: an anthropology of urban policing. Cambridge: Polity Press, 2013.
  • FERGUSON, J.; GUPTA, A. Spatializing states: toward an ethnography of neoliberal governmentality. American Ethnologist, Arlington, v. 29, n. 4, p. 981-1002, 2002.
  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
  • FUNG, A.; GRAHAM, M.; WEIL, D. Full disclosure: the perils and promises of transparency. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • GOFFMAN, E. A representação do Eu na vida cotidiana Petrópolis: Vozes, 1975.
  • GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.
  • HETHERINGTON, K. Guerrilla auditors, the politics of transparency in neoliberal Paraguay Durham: Duke University Press, 2011.
  • HERZFELD, M. The social production of indifference: exploring the symbolic roots of Western bureaucracy. Chicago: University of Chicago Press, 1993.
  • HOOD, C. Accountability and transparency: siamese twins, matching parts, awkward couple?. West European Politics, London, v. 33, n. 5, p. 989-1009, 2002.
  • HULL, S. M. Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. Oakland: University of California Press, 2012.
  • NADER, L. Up the anthropologist-perspectives gained from studying up. In: HYMES, D. H. (Ed.). Reinventing anthropology New York: Pantheon Books, 1972. p. 284-311.
  • NEYLAND, D. Achieving transparency: the visible, invisible and divisible in academic accountability networks. Organization, London, v. 14, n. 4, p. 499-516, 2007.
  • SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.
  • SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Record, 2014.
  • SHARMA, A.; GUPTA, A. (Ed.) The anthropology of the state: a reader. Malden: Blackwell Publishing, 2006.
  • SHORE, C. Cultura de auditoria e governança iliberal: universidades e a política da responsabilização. Mediações, Londrina, v. 14, n. 1, p. 24-53, 2009.
  • SIMMEL, G. The sociology of secrecy and secret societies. American Journal of Sociology, Chicago, v. 11, n. 4, p. 441-498, Jan. 1906.
  • SOUSA, L.; HINDESS, B.; LARMOUR, P. Governments, NGOs and anti-corruption: the new integrity warriors. London: Routledge, 2009.
  • WEST, H. G.; SANDERS, T. (Ed.). Transparency and conspiracy: ethnographies of suspicion in the New World Order . Durham: Duke University Press, 2003.
  • WHYTE, W. F. Sociedade de esquina Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  • 1
    Pesquisa financiada pelo CNPq, processo 471351/2014-8.
  • 2
    É sabido que existe uma disputa na literatura entre o tipo de pesquisa dos primeiros e a perspectiva de Scott (1998)SCOTT, J. C. Seeing like a state: how certain schemes to improve the human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.. Especialmente para os trabalhos que realizam uma antropologia do Estado a partir de experiências morais em interações cotidianas, a perspectiva de Scott sobre o planejamento e grandes projetos estatais teria um tom quase fetichista. Reconheço essa diferença, mas aqui quero reter uma dimensão importante no trabalho de Scott, que pode ser conectado e atualizado como elemento para uma crítica radical através do diálogo com a perspectiva dos Comaroff: como os grandes projetos estatais se reformulam sem perder o seu caráter de ordenadores da ação e da moral, representantes do impulso moderno de controle e colonialismo.
  • 3
    Dentre as críticas feitas ao trabalho de Anderson (2008)ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., uma perspectiva da sociologia política vai revelar sua incapacidade de distinguir claramente entre os processos de formação do Estado e da Nação, onde o primeiro assumiria um caráter de processos mais racionais e burocráticos e a segunda seria o terreno de projeções de sentimento, valores e desejos. Todavia, a antropologia da moral destaca a impossibilidade de proceder com essas distinções tão claras quando se quer compreender os modos como o Estado mantém e legitimam suas práticas (Gupta, 2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.). Especialmente considerando a força da perspectiva de Foucault (2016)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. em muitos desses estudos, percebe-se como as tecnologias de poder se conectam com projeções de desejos e construções simbólicas e afetivas (Das; Poole, 2004DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the margins of the state. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.; Gupta, 2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.; Hetherington, 2011HETHERINGTON, K. Guerrilla auditors, the politics of transparency in neoliberal Paraguay. Durham: Duke University Press, 2011.; Hull, 2012HULL, S. M. Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. Oakland: University of California Press, 2012.). Nesse sentido, optamos por seguir a ideia de Gupta (2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012., p. 62) de que os Estados precisam ser tão imaginados quanto as Nações para realizar efetivamente o controle da população dispersa em seu território. De uma maneira melhor do que invenção, construção ou produção, o termo imaginação reflete o lugar dos valores morais nas interações cotidianas que dão vida ao Estado. No caso das políticas de transparência, trata-las como parte do exercício de imaginação do Estado ajudará a revelar o seu caráter utópico (suas projeções normativas – seguindo Anderson) e ambíguo (seus processos de incorporação e controle da população, de acordo com Gupta).
  • 4
    Não acredito que essa informação seja simplista: é possível pensar uma sistematização das formas de desvios mais recorrentes e não apenas das percepções sobre desvios. No entanto, acredito que aqui podemos ter uma antevisão de como a forma burocrática ordena a experiência: enfatizando a primazia do particular quando lhe convém, evitando o diálogo com os estranhos a partir de invocações que reforçam seu feitiço. Uma auditora disse que os gestores podem ser tão ardilosos que a cada processo ela tinha uma surpresa: “Eles estão testando” e “cada vez eles vão mais longe.” No entanto, essa ênfase na particularidade, na especificidade de cada caso e processo, é traída pelos sentidos morais que, como se verá, emergem na grande metafísica da corrupção brasileira e de seu povo pouco civilizado.
  • 5
    Ao tratar do segredo como forma social, Simmel (1906)SIMMEL, G. The sociology of secrecy and secret societies. American Journal of Sociology, Chicago, v. 11, n. 4, p. 441-498, Jan. 1906. indica um processo de diferenciação cultural onde, a partir do século XIX, a publicidade se impõe nos assuntos do Estado e tanto a administração quanto a política vão perdendo seu caráter de segredo. No entanto, o autor considera a possibilidade de que certas instituições dominantes possam funcionar com base no segredo, admitindo que não há necessidade lógica de que se valorize cada vez mais as formas públicas nos negócios do Estado. Nesse sentido, já está colocada a possibilidade de pensar como o Estado moderno pode abrigar formas do segredo, mas o que interessa aqui mais diretamente é a conexão entre segredo e moral. Não posso desenvolver aqui as consequências para a antropologia do Estado da ideia de que o segredo é a expressão sociológica do mal moral, mas destaco como essa perspectiva é importante para uma compreensão da burocracia estatal ao permitir que se associem suas formas secretas (o oposto da transparência) ao exercício de uma solidariedade moral. Dito de modo direto, não pretendo simplesmente opor o trabalho burocrático à transparência, mas tentar pensar como a burocracia, por seus elementos de sociedade secreta, está assentada numa base de solidariedade moral, em sentidos de reciprocidade, virtude e hierarquia que contrastam claramente com o ideal de transparência proposto, por exemplo, pela Transparência Internacional.
  • 6
    Como dito acima, no meu único encontro com o conselheiro não houve qualquer exigência de projeto ou limitação da minha atividade. Mas, quando precisei lidar com os funcionários subordinados ao conselheiro, soube que ele gostaria de ver o projeto, a amostra e o próprio “questionário”.
  • 7
    Como os trabalhos de Gupta (2012)GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence, and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012. e de Fassin (2012FASSIN, D. (Ed.). A companion to moral anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012., 2013FASSIN, D. Enforcing order: an anthropology of urban policing. Cambridge: Polity Press, 2013.) demonstram especificamente no caso do estudo das formas políticas, pesquisar o cotidiano das moralidades não significa dizer que os atores estejam agindo moralmente ou comprometidos com realizações éticas. Trata-se de uma análise de formas de valor como instrumentos e técnicas de interpretação e ação no mundo.
  • 8
    Um auditor sugeriu que fizesse pedidos de informação – quantos eu quisesse, que pedisse informações sobre gastos, afastamentos e trabalhos acadêmicos realizados por seus funcionários sobre transparência. Ele mesmo brincou que dava essa ideia porque não seria trabalho para ele. No momento, achei interessante, mas depois pensei na sobrecarga de trabalho que geraria e W., pensando em si mesmo, disse que era muito cruel.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2017
  • Aceito
    08 Ago 2017
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br