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DÍAZ-QUIÑONES, Arcadio. A memória rota: ensaios de cultura e política. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 344 p.

DÍAZ-QUIÑONES, Arcadio. . A memória rota: ensaios de cultura e política. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 344 p.

Em 29 de agosto de 2016, o Senado Federal brasileiro iniciava a sessão que corroboraria, dias depois, a decisão sufragada, meses antes, pela Câmara dos Deputados, ratificando o impeachment da presidente da República, Dilma Rousseff. Para parte dos setores à esquerda do espectro ideológico, as inconsistências desse processo deveriam despertar reações entre as classes populares, beneficiárias da agenda distributiva implantada pelos governos petistas. O protesto de parte da intelectualidade e dos movimentos sociais progressistas, entretanto, não redundou em intensa mobilização popular.

O episódio repõe questão recorrente nas reflexões sociológicas: por que, quando ameaçadas em seus direitos, as classes subalternas muitas vezes não se revoltam? Ou em versão extrema: por que elas não cumprem seu suposto potencial revolucionário? Não se pretende, aqui, inventariar as respostas mobilizadas para responder à indagação, mas ressaltar brevemente o recurso a duas interpretações.

De um lado, aquela cara à linhagem conservadora brasileira (Brandão, 2007BRANDÃO, G. M. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.), segundo a qual orientações da colonização ibérica produziram um homo colonialis refratário às tradições democráticas de autogoverno, cujo apego às soluções verticalizadas fora reiterado pelo idealismo utópico das elites nacionais (Vianna, 1955VIANNA, F. J. de O. Instituições políticas brasileiras: fundamentos sociais do Estado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. v. 1.). Assim, a tímida mobilização popular contra o afastamento da presidente reafirmaria a inarticulação de um “povo massa” condenado a mover-se em uma sociedade amorfa. Mas não há apelos a ruptura, pois mudanças exigem ritmo lento e gradual.

O clamor por transformações de grande monta, por outro lado, surge em certas abordagens marxistas. Tais perspectivas constatam os limites da ação de sujeitos submetidos às lógicas da alienação e, normativamente, apostam no desenvolvimento de processos de tomada de consciência capazes de subverter os rigorosos condicionantes estruturais.

Naquele dia de agosto, o pesquisador, professor e ensaísta porto-riquenho Arcadio Díaz-Quiñones apresentava ao público carioca, no auditório da Livraria da Travessa, sua coletânea de artigos A memória rota: ensaios de cultura e política. Organizado e apresentado por Pedro Meira Monteiro, o livro agrega ao ensaio que lhe confere título, escrito em 1993, quatro textos produzidos no século XXI e uma entrevista com o autor, realizada em 2013.

Se fora coincidência a sincronia entre aquele evento nacional e a palestra de Díaz-Quiñones, sua reflexão, aparentemente alheia aos dramas brasileiros, contribui para repensar as perguntas levantadas no segundo parágrafo desta resenha. Será que, ao invés de questionarmos a inação dos grupos subalternos, não seria mais produtivo tentar compreender suas diversas e muitas vezes tênues modalidades de ação?

A questão pode ser ilustrada por meio dos estereótipos contrastantes daquelas duas ilhas caribenhas que, compartilhando passado comum, permitem-lhe explorar a “dessemelhança do semelhante’” (p. 249): Cuba e Porto Rico. Enquanto a primeira, heroica e nacional, reagiu revolucionariamente ao imperialismo norte-americano, a outra, anti-heroica e incompleta, tornou-se sinônimo de “grave perigo de desintegração cultural ou de subordinação colonial” (p. 84). Recusando esse senso comum, Díaz-Quiñones permite aos leitores praticar aquele similar jogo de aproximação, agora entre Brasil e Porto Rico. Se as semelhanças entre os dois países derivam da lógica colonial escravista, suas diferenças saltam aos olhos (p. 10). Mas, se tampouco parecemos afeitos aos gestos revolucionários, lá onde se poderia identificar submissão seria possível interpretação alternativa: como nota Monteiro, o diálogo de Díaz-Quiñones com as tradições de esquerda molda-se pela recusa a noções simplistas da política, interessando-lhe pensar a ação dos sujeitos “entre o arrebatamento da ação extrema e a batalha miúda do cotidiano” (p. 22). Assim, talvez fosse produtivo indagar se, tal como os porto-riquenhos, também tendamos a perceber na “vontade de paz e de vida uma forma de heroísmo” (p. 107).

Esta frase conclui “De como e quando bregar”, resumindo sua discussão sobre a brega. Antes de abordá-la, contudo, convém percorrer o último ensaio, “A memória rota”, onde ele contrapõe aos destroços da utopia tecnológica e seu excludente programa de modernização o exercício de uma arte da memória capaz de resgatar vozes silenciadas pelo olhar imperial. Em diálogo com o terceiro capítulo, “A guerra simbólica: 1898” - no qual analisa a construção desse olhar a partir da iconografia e documentação visual produzidas no período da ocupação militar das Filipinas, de Porto Rico e Cuba -, e com o segundo, “Hispanismo e guerra” - no qual discute a gênese do hispanismo por meio da Historia de la poesía hispano-americana, de Marcelino Menéndez Pelayo -, Díaz-Quiñones busca compreender “como se transmite uma memória e uma tradição intelectual subordinadas” (p. 253). Se o “livro-monumento” (p. 118) de Menéndez Pelayo revelava a simultaneidade entre a construção de um imperialismo discursivo e a perda de hegemonia espanhola sobre territórios caribenhos no contexto da guerra hispano-cubano-norte-americana, construindo novos beginnings e reconectando “espiritualmente” a antiga metrópole às ex-colônias, o princípio de lealdade organizador de seu “grande relato” (p. 110) produzia reconhecimentos e exclusões: “Os termos ‘hispano’ e ‘americano’ amiúde supõem um terceiro excluído, o mundo indígena ou o afro-americano, ou o Caribe não-hispânico” (p. 168). São tais lacunas nessa “distribuição de consciência geopolítica” (Said, 2001SAID, E. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 24, grifo do autor) no campo da cultura letrada que Díaz-Quiñones reconstrói nas suas leituras de Luis Palés Matos e César Andreu Iglesias. Não se trata, todavia, da pretensão de elaborar uma contramemória estável e totalizante. A recusa ao dualismo leva-o à valorização do hibridismo, traço das identidades caribenhas. Nessa chave, Porto Rico leva a condição caribenha ao paroxismo: nesse lugar de tantos lugares, converte-se em não lugar (p. 274-275) e, por isso, em lugar privilegiado para refletirmos sobre a “estética diaspórica”. Foi na sua terra natal, afinal, que o bregar se converteu em sinal de identidade (p. 41). Se as zonas de silêncio são propícias à formação de novos beginnings, Díaz-Quiñones desafia a memória rota ao dar voz à arte de bregar.

A brega porto-riquenha remonta a saberes clandestinos, forjados à margem do Estado colonial, cuja reconstrução cotidiana, por sujeitos submetidos a relações assimétricas de poder, marca as relações culturais e políticas no país. Trata-se de um saber estratégico que lhes permite sobreviver em ambientes onde a lógica da resolução dos conflitos segue a lei do mais forte. Ao invés da derrota ou dos sacrifícios de uma improvável vitória, aquele que brega reconhece os limites de sua liberdade, recorrendo àquele conhecimento pragmático para atingir o instável equilíbrio entre elementos potencialmente hostis: a brega é a guerra evitada por outros meios.

Tanto na forma como o jogador de baseball Vic Power bregava com o racismo ou o político Luís Muñoz Marin bregava com o poder imperial norte-americano, Díaz-Quiñones reconhece a arte do não trágico que é a brega (p. 40). Ambos instituíram a negociação lá onde se insinuava o confronto explícito, adaptando-se a circunstâncias nas quais a desproporção de forças em jogo lhes era desvantajosa. No lugar dos gestos heroicos, a precariedade de suas posições os afastava de soluções de ruptura. Para eles, o menor dos males seria melhor resultado (p. 41). A plasticidade, nesses casos, é fiadora da dignidade.

Plasticidade é, igualmente, para Gilberto Freyre, a marca da civilização lusotropical. Seguindo pistas do jogo de (des)semelhanças proposto por Díaz-Quiñones, podemos identificar na capacidade de equilibrar contrários, que o pernambucano alça à condição de identidade brasileira (Freyre, 2006FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.), similar “propósito de atenuar conflitos para eludir a lógica da confrontação” (p. 41). Mas, se os dois autores apontam para formas negociadas de produção de consenso, a brega porto-riquenha não admite essencialismos, pois seu espaço é aquele onde a condição diaspórica desenha identidades múltiplas cujas fronteiras fluidas escapam dos marcos da historiografia nacional (p. 249).

As dessemelhanças entre os autores vão além, superando o espaço desta resenha. Importa, aqui, destacar como elas não anulam efeitos comuns às duas formas de elidir o embate: à sedução do gesto épico, o exercício de uma prática política vocacionada à harmonia (p. 40). A procura pela estabilidade, entretanto, não é da ordem da escolha, mas da necessidade: sujeitos subordinados a situações de intolerância (p. 92) elaboram, em limites estreitos, estratégias que ensejam êxitos miúdos, evitando custosos fracassos. Não se trata de inação, mas de formas pragmáticas de ação, alternativas à “vontade do sacrifício” (p. 265), que problematizam as intervenções políticas na vida cotidiana das classes subalternas: a dignidade não é monopólio do ímpeto revolucionário, insinuando-se mesmo lá onde as pequenas vitórias seguem compasso distinto. Despacito.

Referências

  • BRANDÃO, G. M. Linhagens do pensamento político brasileiro São Paulo: Hucitec, 2007.
  • FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
  • SAID, E. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • VIANNA, F. J. de O. Instituições políticas brasileiras: fundamentos sociais do Estado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. v. 1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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