Acessibilidade / Reportar erro

Heranças de família: terras, pessoas e espíritos no sul do Haiti

Family Heritage: land, people and spirits in southern Haiti

Herencias de familia: tierras, personas y espíritus en el sur de Haití

Resumo

Este artigo trata das relações entre pessoas, terras e espíritos na região de Jacmel, sul do Haiti. Esses espíritos, conhecidos como lwa e relacionados ao vodu haitiano, constroem suas existências a partir de uma relação profunda que mantêm com a terra onde habitam e, ao mesmo tempo, com os descendentes daquele que primeiro teria ocupado esta terra. Sendo parte de um legado familiar transmitido ao longo de sucessivas gerações, eles precisam ser cuidados e alimentados sob o risco de se tornarem agressivos, ameaçando a vida tanto dos seus herdeiros quanto a de seus familiares mais próximos. Tomando como base a reconstrução de certos acontecimentos que envolvem a relação entre um desses espíritos e a família de meus anfitriões, o texto busca recuperar sentimentos, opiniões, saberes e práticas em que os lwa são parte fundamental da experiência social das pessoas, atingindo-as diretamente e interferindo em seus destinos, independentemente das suas filiações religiosas.

Palavras-chave:
Haiti; Família; Lwa; Vodu

Abstract

This article investigates the relations between people, land and spirits in the Jacmel region of southern Haiti. The lwa spirits, related to Haitian voudou, build their existence through a profound relationship with the land that they inhabit, as well as with the descendants of the first occupant of the land. As part of a family legacy transmitted down successive generations, they need to be cared for and fed lest they become aggressive, threatening the lives of their heirs and the latter’s immediate family. By reconstructing events involving the relationship between one of these spirits and the family of my hosts, the article recovers feelings, opinions, knowledge and practices in which the lwa are a fundamental part of the social experience of people, affecting them directly and interfering in their destinies, regardless of their religious affiliations.

Key words:
Haiti; Family; Lwa; Voudou

Resumen

Este artículo trata de las relaciones entre personas, tierras y espíritus en la región de Jacmel, sur de Haití. Estos espíritus, conocidos como lwa y relacionados al vudú haitiano, construyen sus existencias a partir de una relación profunda que mantienen con la tierra en que habitan y, al mismo tiempo, con los descendientes de aquel que primero habría ocupado esta tierra. Siendo parte de un legado familiar transmitido a lo largo de sucesivas generaciones, estos espíritus necesitan ser cuidados y alimentados bajo el riesgo de volverse agresivos, amenazando la vida tanto de sus herederos, como la de sus familiares más cercanos. Tomando como base la reconstrucción de ciertos acontecimientos involucrando la relación entre uno de esos espíritus y la familia de mis anfitriones, el texto busca recuperar sentimientos, opiniones, saberes y prácticas en las que los lwa son parte fundamental de la experiencia social de las personas, alcanzándolas directamente e interfiriendo en sus destinos, independientemente de sus afiliaciones religiosas.

Palabras clave:
Haití; Familia; Lwa; Vudú

Os fregueses da taverna acotovelam-se em torno à mesa que se foi aos poucos cobrindo de cartas, esforçando-se por tirar dessa barafunda de tarôs a sua própria história, e quanto mais confusas e desconjuntadas se tornam essas histórias, tanto mais as cartas esparramadas vão encontrando seu lugar num mosaico ordenado. Será apenas resultado do acaso este desenho, ou talvez algum de nós o estará pacientemente estruturando? (Italo Calvino, O castelo dos destinos cruzados)

Vodu é um termo polissêmico que, dentre outras coisas, nomeia um conjunto de práticas frequentemente associadas com os costumes dos povos da costa ocidental da África transportados para a América com os escravos entre os séculos XVI e XIX. No idioma fon falado nessa região, a palavra vodoun significaria Deus, divindade, espírito ou ainda aquilo que era reconhecido pelos europeus como “fetiche” (Hurbon 1993HURBON, Laënnec. 1993. Les Mystères du Vaudou. Paris: Gallimard; Métraux 1958MÉTRAUX, Alfred. 1958. Le vaudou Haïtien. Paris: Editions Gallimard.). Também é comum que a palavra seja associada à feitiçaria, à cultura popular do Haiti (seu folclore e suas artes) e à marronage, movimentos de fuga, resistência e luta pela liberdade dos escravos ao longo do processo que culminou com a independência do país em 1804.1 1 Haiti e República Dominicana dividem o território da antiga ilha Hispaniola que permaneceu sob o domínio colonial espanhol até 1697. Naquele ano, a parte ocidental da ilha, onde hoje está o Haiti, foi cedida pela Espanha à França por meio dos acordos estabelecidos no Tratado de Rysiwck, tornando-se a colônia francesa Saint Domingue. Ao longo dos anos em que esteve sob o controle francês, Saint Domingue (que se situava em uma parte até então pouco explorada pelo colonialismo europeu) se desenvolveu e se tornou uma das colônias mais prósperas das Antilhas a partir do cultivo de cana-de-açúcar com base no trabalho escravo. No entanto, cerca de 100 anos depois da ocupação francesa, rebeliões por parte dos escravos se espalharam pela colônia, em longas batalhas que perduraram até o ano de 1804, quando Jean Jacques Dessalines proclamou a independência de Saint Domingue. O Haiti, como foi chamado o novo país, se tornou o segundo Estado a se tornar independente (depois dos Estados Unidos) no continente americano, e a “Revolução Haitiana” foi a primeira e única revolta levada a cabo por escravos que teve como resultado o fim da escravidão.

Diversos estudos sobre o Haiti (Herskovits 1971HERKOVITS, Melville. 1971 [1937]. Life in a Haitian valley. New York: Octagon Books. [1937]; Métraux 1958MÉTRAUX, Alfred. 1958. Le vaudou Haïtien. Paris: Editions Gallimard.; McCarthy Brown 1991McCARTHY BROWN, Karen. 1991. Mama Lola: a vodou priestess in Brooklyn. Los Angeles e London: University of California Press.; Desmangles 1992DESMANGLES, Leslie G. 1992. The faces of the gods: vodou and roman Catholicism in Haiti. Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press. ) descrevem o vodu como uma religião que nasceu da junção de tradições europeias (em particular do catolicismo) e africanas em solo caribenho ao longo do processo da colonização francesa de Saint Domingue. De maneira geral, essa literatura aponta para elementos católicos e africanos presentes nos rituais e revelam uma iconografia que mistura influências originárias dos dois continentes. A definição do vodu como uma religião que veio da África é uma ideia muito difundida, principalmente entre aqueles envolvidos com movimentos nacionais e internacionais por seu reconhecimento cultural e sua patrimonialização. De maneira mais geral, essa origem africana é percebida pelos meus interlocutores como algo que confere força aos espíritos, aquilo que lhes dá sua enorme capacidade de intervenção no mundo.

Como notou Richman (2014RICHMAN, Karen.2014. “Possession and attachment: notes on moral ritual communication among Haitian descent groups”. In: Paul C. Johnson (org.), Spirited things: the work of “possession” in Afro-Atlantic religions. Chicago eLondon: University of Chicago Press . pp. 207-223. ), os lwa - como são conhecidos os espíritos relacionados ao vodu - estão no centro das atividades associadas aos cultos de aflição e cura no Haiti.2 2 O crioulo haitiano não pluraliza as palavras adicionando a letra s, mas sim a partir do uso do artigo yo (os, as). Por este motivo, espero que o contexto ajude o leitor a identificar o uso da forma plural dos termos em crioulo presentes ao longo do artigo. Acrescento ainda que não frequentei nenhum curso ou escola de ensino formal desse idioma, sendo meu aprendizado proveniente basicamente do convívio com as pessoas em Jacmel, do livro de gramática J’apprends le créole haitien, de livros escolares para crianças e de consultas ao dicionário Vilsen. Apesar de o crioulo ter sido reconhecido como idioma oficial do Haiti por Jean Claude Duvalier em 1979, ainda há muitas divergências em relação à grafia de suas palavras, principalmente entre as pessoas mais velhas que não foram alfabetizadas nessa língua. Portanto, quaisquer possíveis erros no emprego dos termos são de minha inteira responsabilidade. Sendo considerados mais próximos das pessoas do que Deus, visto como um ser distante e pouco ativo na resolução dos problemas cotidianos que as afetam, eles marcam sua presença entre os humanos que devem cuidar deles, alimentando-os em troca de sorte e proteção contra os males que os atingem e contra o sofrimento que é a vida (McCarthy Brown 1991).

Quando observados a partir dos ounfò - locais onde se realizam as “danças”, “cerimônias” e outros “serviços” vodus - os lwa costumam ser classificados em diferentes nações ou famílias, cada qual com seus próprios ritos, estilo de músicas e tipos de alimentos apreciados. Na prática, tais divisões não são rígidas, pois esses espíritos parecem ter a capacidade de se desdobrarem em vários aspectos, tornando-se seres com uma personalidade múltipla e bastante diversa, o que dificulta quaisquer tentativas de organização e catalogação que se pretendam completas. Além disso, como já haviam ressaltado Mintz e Trouillot (1995MINTZ, Sidney & TROUILLOT, Michel-Rolph. 1995. In: Donald J. Cosentino, (org.), Sacred arts of Haitian vodou “The social history of haitian vodou”. Los Angeles: UCLA Fowler Museum.:123), o vodu “nunca foi codificado em uma escrita” e “nunca possuiu uma estrutura institucional nacional”, o que resulta em uma enorme heterogeneidade de condutas que variam de acordo com as diferentes regiões do país, os costumes de cada templo, ou mesmo os saberes pessoais de cada sacerdote (Deren 1953DEREN, Maya. 1953. Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti. London: Documentext McPherson & Company.; Metraux 1958MÉTRAUX, Alfred. 1958. Le vaudou Haïtien. Paris: Editions Gallimard.; Mintz & Trouillot 1995).3 3 Todas as traduções presentes no artigo são de minha autoria e inteira responsabilidade. Avançando um pouco mais sobre este assunto, Richman (2005RICHMAN, Karen. 2005. Migration and vodou. Florida: University Press of Florida.) problematiza o próprio uso do termo vodou. Segundo a autora, a palavra é empregada por pessoas de fora em referência a uma religião em sua totalidade, um uso que, apesar de amplamente aceito no exterior, é estrangeiro em muitas partes do país. Ela também observa que nem sempre as pessoas se identificam com a expressão voduyisan, dizendo, na maior parte do tempo, que são sevitè [servidoras], isto é, que “servem aos espíritos”.4 4 Mais recentemente, Richman (2014) elaborou uma crítica que considero bastante pertinente a respeito da literatura sobre o vodu. Segundo ela, muitas vezes pressupõe-se que os lwa são universais e que qualquer um que tenha treinamento apropriado pode adorar e ter acesso a qualquer espírito individualmente, como se não houvesse barreiras ontológicas para tal e como se esses espíritos fossem universais. Sob esse aspecto Richman (2014:213-14) aponta ainda que: “em contraste com as práticas domésticas locais mais igualitárias e particularistas associadas com o culto baseado na família, o que se tornou conhecido como Vodu envolveu codificação, homogeneização e monetização”. Para um bom panorama sobre o interesse da antropologia pelo vodu haitiano, de sua perseguição ao longo do século XIX e primeira metade do séc. XX e dos movimentos pela legitimidade de suas práticas e pela sua sobrevivência que culminaram com a fundação do Bureau d’Ethnologie em Porto Príncipe em 1942, cf. Hurbon (2005) e Ramsey (2005).

De fato, voduyisan é um termo muito pouco utilizado em Jacmel, havendo diversas maneiras de se referir àquilo que é compreendido pelas pessoas com as quais convivi no Haiti e pelos estrangeiros como vodu, sem que se mencione esses termos. Como exemplos poderia citar: sèvis [serviço], bagay lwa [coisas dos espíritos] e mistik [mística, feitiçaria]. Essas formas, por sua vez, estão misturadas com aquilo que alguns dos meus interlocutores entendem por sistèm [sistema], o “sistema haitiano”. “Você não é haitiana e não conhece o sistema”, foi algo que ouvi inúmeras vezes de diferentes pessoas que, diante da minha suposta ingenuidade, tentavam me proteger e me impedir de frequentar a casa ou sair com pessoas que consideravam próximas desse universo “místico”, identificado, principalmente por nós, como vodu. “Reynald é seu amigo, mas o diabo que vem na cabeça dele não é”, me alertava outro amigo todas as vezes que tentava me explicar que o sistema não era brincadeira e que as ações dos lwa poderiam ser imprevisíveis e até mesmo violentas.

Mas sistema não é simplesmente um sinônimo de vodu, termo que, conforme descrito acima, pode ser acionado para se falar da “cultura” (Carneiro da Cunha 2009CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.), Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify. ). Tampouco é um substituto para magia ou feitiçaria, embora possa estar igualmente relacionado a estas palavras. Na prática, o uso da palavra sistema parece ser uma invenção criativa elaborada pelos meus interlocutores no contexto da pesquisa de campo (Wagner 2010WAGNER, Roy. 2010 [1975]. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify . [1975]) em suas tentativas de explicar uma série de experiências que fogem ao seu controle e a partir das quais as pessoas encontram e lidam diariamente com agências invisíveis capazes de afetar as suas vidas e as de seus familiares.

Inspirada pelas elaborações de Ruy Blanes e Diana Espírito Santo (2014BLANES, Ruy & ESPIRITO-SANTO, Diana, 2014. “Introduction: on the agency of intangibles”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits. Chicago e London: University of Chicago Press. ) sobre as agências dos intangíveis, das “entidades” e seus efeitos e, principalmente, na sua preocupação com as consequências de sua existência e de seus “encontros”, o presente artigo busca recuperar sentimentos, opiniões, saberes e práticas em que os lwa são parte fundamental da experiência social das pessoas, atingindo-as diretamente, influenciando suas ações e interferindo em seus destinos. Meu principal interesse é explorar os vínculos que unem pessoas, espíritos e terras na comuna de Jacmel, capital do Departamento Sudeste do Haiti, onde estive por diversos períodos ao longo dos anos de 2008 e 2016.5 5 O Haiti é dividido administrativamente em 10 departamentos: Sul, Sudeste, Nippes, Oeste (onde se localiza Porto Príncipe, a capital do país), Sudoeste, Noroeste, Nordeste, Grand’Anse, Centro e Norte. Cada um desses departamentos engloba uma capital e diversas comunas que, por sua vez, se subdividem em diversas seções comunais. A cidade é considerada por muitos haitianos e estrangeiros como a “capital cultural” do Haiti, pois concentra artistas e escritores, estando repleta de pequenos ateliês e lojas especializadas na produção e na comercialização de arte local. Além disso, ela é famosa por suas belas praias e pelo seu carnaval, que conta com a forte presença dos madigra, pessoas que desfilam pelas ruas portando máscaras feitas de papel maché.

Embora não tenha sido atingida pelo terremoto ocorrido em janeiro de 2010 da mesma maneira que Porto Príncipe ou outras cidades pertencentes à zona metropolitana da capital do país, Jacmel não deixou de sofrer suas consequências extremamente devastadoras. Em 2012 ainda não haviam sido desmontados os dois maiores acampamentos que serviam de moradia para os desabrigados e também muitas construções situadas na parte baixa da cidade, aquelas mais antigas e que alojavam os centros culturais e os ateliês e que ficaram completamente destruídas.6 6 De acordo com uma cartografia elaborada pela prefeitura de Jacmel, 53,2% das 8.632 construções situadas nas 16 regiões de Jacmel mais atingidas pelo terremoto sofreram algum tipo de dano. Dentre elas, 16,7% tinham desabado ou sofria risco de desabamento. Mairie de Jacmel, un an après le séisme du 12 janvier 2010: Cartographie des dommages à Jacmel (Mairie de Jacmel, Strasbourg.eu & communauté urbaine, IRCORD e AFD). Em 2016, data do meu último retorno ao campo, pude observar melhorias consideráveis. Com o objetivo de voltar a fazer de Jacmel uma atração turística, uma soma considerável de dinheiro (proveniente principalmente de agências espanholas de cooperação internacional) havia sido utilizada na limpeza, na restauração da parte histórica e na reconstrução da zona portuária, que agora se transformara de maneira completa.

Liline, protagonista do relato que serve de base para as discussões aqui propostas, é sobrinha do casal Lundi que me acolheu em sua casa durante a maior parte do tempo em que estive em campo.7 7 Com exceção de Jacmel, todos os outros nomes de lugares e pessoas mencionados ao longo do texto são fictícios. Como muitos habitantes da cidade, a família Lundi é originária de uma das 13 seções comunais pertencentes a Jacmel, onde ainda possuem terras, casas, parentes e amigos. Tè Wouj, onde Liline mora com o marido e os filhos, assim como a maior parte das outras seções comunais, é uma zona rural que se constitui em torno das abitasyon e dos lakou, categorias de organização socioespaciais que compreendem locais de moradia e convivência familiar onde muitos dos meus interlocutores vivem e/ou mantêm ligações existenciais.

Como será visto ao longo do artigo, espaços não são habitados apenas por pessoas, mas também pelos mortos (lemò) e por espíritos que fazem parte da família. Sendo consideradas entidades muito antigas, esses espíritos costumam ser chamados de lwa bitasyon [espírito da terra], lwa fanmi [espírito da família] e lwa eritaj [espírito da herança], nomes que sinalizam para as relações que essas entidades mantêm, ao mesmo tempo, com um determinado ancestral (fundador de um novo lakou ou de uma nova abitasyon), seus descendentes (coletivo conhecido como eritaj ou família) e a terra onde teria vivido esse antepassado. Sob este aspecto, lakou e abitasyon são conceitos-chave a serem trabalhados aqui: eles se encontram no cerne do processo de produção de relações entre pessoas, entre elas e seus ancestrais mortos, e entre elas, as terras e os espíritos que as habitam.

O fato de meus anfitriões serem cristãos fervorosos, adeptos da Igreja Batista, fez com que eles abandonassem os lwa da família há algumas gerações, cortando qualquer tipo de ligação com eles. Isto não me impediu, entretanto, de conhecer e conviver de forma íntima com pessoas que servem aos lwa nos diversos ounfò que se encontram espalhados pela cidade, mas também em suas próprias casas e quintais, onde seguem fazendo os rituais necessários a seu próprio modo. Esse convívio fez com eu que me deparasse com situações nas quais os espíritos herdados no âmbito familiar simplesmente se recusavam a ir embora, revoltando-se contra o abandono que, na maioria das vezes, ocorria por conta da adesão a alguma igreja protestante. Por isso, neste artigo, estou mais preocupada em compreender como os lwa, estes seres etéreos, considerados “invisíveis”, se fazem presentes no dia a dia dos meus interlocutores, independentemente da religião seguida, do que em elaborar uma espécie de retrato formal de um vodu genérico e de seus rituais. Nesse sentido, são as dinâmicas que movimentam o sistema que me interessam.

A morte de Bina

Cerca de uma semana se passara e Bina continuava doente. A menina de apenas 5 anos vivia com os pais e irmãos na seção comunal de Tè Wouj, em uma zona rural bem afastada e de difícil acesso ao centro de Jacmel. Eu não a conhecia muito bem, apenas me lembrava de tê-la visto uma vez quando passou o dia na casa dos Lundi, seus tios-avós. As notícias de que Bina apresentava sintomas de diarreia e febre chegaram em casa de manhã bem cedo e pelo telefone. Seus familiares ficaram nervosos com a situação que parecia bastante grave e, a cada novidade, avaliavam e julgavam o comportamento e as atitudes tomadas por Liline, sua mãe. Claire, uma de suas primas, dizia que ela havia sido irresponsável por deixar a menina tanto tempo doente sem ir a um médico, enquanto sua tia lembrava que ela se consultara com um doktè fèy [doutor de folhas], mas que o remédio, à base de ervas, não fizera qualquer efeito.8 8 Os doktè fèy são especialistas em fazer medicamentos que podem ser elaborados com plantas, animais e insetos. Esses remédios incluem banhos, chás ou outras bebidas que são levados pelos pacientes para casa dentro de garrafas. Liline, na época grávida de oito meses, também passou mal e teve que ser hospitalizada. Enquanto isso, Gerard, seu marido, esperava com Bina uma motocicleta que pudesse levá-los ao hospital, mas infelizmente ela acabou falecendo durante o longo e tortuoso percurso.9 9 Para sair da casa de Liline era preciso caminhar por um terreno montanhoso e cheio de pedras durante cerca de uma hora antes de alcançar a via onde era possível tomar uma moto (nem sempre facilmente disponível) e seguir até Jacmel em um novo percurso de mais uma hora e meia de distância.

Perseguição

Estávamos em 2012, pouco mais de dois anos depois que um terremoto de grandes proporções atingira o Haiti, e Gerard tinha certeza de que a filha morrera de cólera.10 10 Em outubro de 2010, nove meses após um terremoto de grandes proporções ter atingido o Haiti e deixado pelo menos 200.000 mortos e milhares de feridos e desabrigados, uma epidemia de cólera se alastrou pelo país que não vivenciava casos da doença há mais de um século. De acordo com um comunicado de imprensa emitido em janeiro de 2013 pelo Ministério de Saúde Pública e da População (MSPP) do Haiti, 639.610 ocorrências de cólera haviam sido registradas até aquele momento, dentre as quais 7.962 fatais. Por isso, temendo a propagação da doença, tomou uma atitude impensável em um país que tanto preza a realização adequada de seus funerais: organizou um enterro às pressas e sem qualquer cerimônia.11 11 Olwig (2009) chama a atenção para a importância da realização de funerais apropriados entre migrantes caribenhos na Grã-Bretanha. No Haiti, os funerais costumam reunir muitas pessoas que geralmente chegam aos poucos vindas de várias regiões do país e de fora dele. Os migrantes têm papel fundamental, pois são eles que financiam quase todos os custos necessários que podem envolver desde a compra de comida e bebida para os presentes até a manufatura do caixão, contratação de corais e produção de mídia, como filmagens, por exemplo. Pouco depois, em meio a todos esses acontecimentos, seu irmão lhe contou sobre um sonho que havia tido naquela semana: alguém, cujo rosto não era possível distinguir, oferecia um doce a Bina que, por sua vez, o desembrulhava e comia. Como assinalado por Bourguignon (1954BOURGUIGNON, Erika E. 1954. “Dreams and dream interpretation in Haiti”. American Anthropologist, 2, v. 56:262-268.:56), “entre os camponeses haitianos” os sonhos “podem funcionar como um dos veículos de comunicação entre os deuses, os mortos e os vivos” e, por isso, o sonho do tio de Bina foi considerado estranho e levantou suspeitas de que a menina não teria sido vítima de cólera, mas sim de um lougawou.

Essas entidades não são consideradas seres invisíveis como os espíritos. Feitas em geral por mulheres que largam sua pele humana, os lougawou são capazes de se transformar em uma série de animais que deslocam sua alma em voos noturnos para “comer” - o que, na linguagem da feitiçaria, significa matar - especialmente crianças (Fiod 2017FIOD, Ana. 2017. “Feitiço”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens . ). Em Jacmel, assim como no povoado de Siwvle estudado por Fiod (2017), os lougawou estão longe de ser anônimos, podendo ser encontrados e apontados entre os próprios vizinhos a partir de alguns sinais evidentes, como, por exemplo, os olhos amarelados ou vermelhos.

A hipótese de a morte ter sido causada por um lougawou ganhou força e, durante a noite, as conversas quase sempre alegres com os vizinhos e amigos reunidos na varanda de meus anfitriões assumiram um tom de completa desolação. Dentre uma enxurrada de recordações sobre mortes provocadas por essas entidades, todos que se aproximavam lamentavam haver tamanha maldade; revoltavam-se diante daquilo que consideravam parte do sistema, neste caso, um modo de agir próprio (e ruim) dos haitianos. No entanto, este cenário mudou quando o próprio Gerard e os outros dois filhos que tinha com Liline também adoeceram, sendo internados às pressas. A possibilidade de cólera foi novamente evocada, mas o resultado negativo para os testes pareceu desestabilizar aqueles que acompanhavam o desenrolar dos acontecimentos. Um clima de medo se instalou depois que os familiares de Liline concluíram que ela estava sendo perseguida pelo lwa de sua família que, juntamente com o lakou em que vivia, compunha sua herança materna. Liline é batista e, por isso, não desejava manter nenhum tipo de vínculo com o espírito. Essa recusa - expressa em seu desdém por tudo aquilo que dizia respeito a ele - foi a origem dos acontecimentos relatados acima.

A gosma do quiabo12 12 Os assuntos discutidos neste tópico foram explorados mais detidamente em trabalho anterior (Dalmaso 2017).

Diz um provérbio haitiano que “não é possível comer quiabo com um dedo só”. O quiabo tem uma gosma ao mesmo tempo pegajosa e escorregadia, o que faz com que tenhamos que utilizar todos os dedos da mão para comê-los. O provérbio é uma metáfora para lembrar sobre a importância de as pessoas se unirem em prol de uma causa comum e no combate das adversidades que enfrentam diariamente. “A vida no Haiti não é fácil”, não há trabalho, não há eletricidade para todos, os políticos pensam apenas neles próprios, dizem meus interlocutores. Nessas circunstâncias, “ter pessoas” (gen moun) ou “fazer pessoas” (fè moun) é visto como algo fundamental; ninguém pode viver desconectado de suas redes, como se estivesse solto no mundo.

No dia a dia o esforço para agregar pessoas se revela de muitas maneiras: são criadas associações, grupos de estudo, oração ou trabalho e uma série de outras formas associativas por meio das quais são estimulados a solidariedade e o convívio com os próximos. A “família” (fanmi) - concebida inicialmente como uma rede de pessoas com as quais se mantêm vínculos de sangue e de afinidade - pode se expandir, incluindo também aqueles que cultivam outras formas de proximidade construída, por exemplo, a partir do compartilhamento de refeições, do convívio em uma mesma casa ou vizinhança, dentre outras (Marcelin 2017MARCELIN, Louis H. 2017. “Sangue”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens . ). Aliás, como ressaltei em outro lugar (Dalmaso 2014DALMASO, Flávia F. 2014. Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Haiti. Tese de doutorado, Museu Nacional/UFRJ. ), compartilhar o alimento preparado nas casas é um elemento-chave para a criação e a preservação dos vínculos de familiaridade e para o estabelecimento de fronteiras afetivas entre as pessoas. Janet Carsten (1997CARSTEN, Janet. 1997. The heat of the hearth: the process of kinship in a Malay fishing community. New York: Oxford University Press Inc.), ao chamar a atenção para a natureza processual e para o potencial transformativo do parentesco, destaca como ele é continuamente produzido por meio da comensalidade. Segundo a autora (1997:127), “comida se torna sangue e, através do compartilhamento diário das refeições cozidas no mesmo forno, aqueles que vivem juntos em uma casa passam a ter substância em comum”.

Relações estabelecidas com base nos princípios listados acima estão na origem da expressão moun mwen [gente minha], utilizada para se referir àqueles com os quais se mantêm relações significativas de afeto, proximidade e expectativas mútuas. Ela revela um universo onde uma pessoa, sem perder sua individualidade, é composta de outras pessoas, sem as quais a própria vida não é possível. No entanto, é comum haver um descompasso entre aquilo que se espera de alguém e suas atitudes de fato, o que pode acabar gerando desentendimentos e frustrações entre aqueles que se consideram próximos. Como sustentado por Comerford (2003COMERFORD, John. C. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro: Relume Dumará. :40), mesmo em casos em que há uma convivência pacífica, “uma familiaridade que permite tolerar problemas”, as circunstâncias “podem mudar rápida e inesperadamente [...] e isso não deixa de estar sempre presente como possibilidade ameaçadora mesmo na mais pacífica e familiar das convivências”.

Nesse sentido, apesar da ênfase no discurso da colaboração e de inúmeras ações realizadas com este intuito, há muitas brigas entre aqueles que compartilham um cotidiano de intimidade, sejam eles parentes ou vizinhos. Bichos que se soltam de suas cordas e comem o roçado dos outros, infidelidades conjugais e acusações de feitiço são motivos suficientes para o surgimento de divergências sérias que, por vezes, atingem famílias inteiras e atravessam gerações. A gosma do quiabo, por ser essa substância que ao mesmo tempo prende e desliza, tece a matéria dos vínculos familiares e encarna essas múltiplas sutilezas que envolvem a convivência no dia a dia.

Como já apontado na introdução e como diversos autores têm destacado (Herskovits 1971 [1937]; Bastien 1985BASTIEN, Rèmy. 1985 [1951]. Le paysan haïtien et sa famille. Paris: Karthala. [1951]; Métraux 1958MÉTRAUX, Alfred. 1958. Le vaudou Haïtien. Paris: Editions Gallimard.; Lowenthal 1987LOWENTHAL, Ira P. 1987. Marriage is 20, children are 21: the cultural construction of conjugality and the family in rural Haiti. Ph.D. Thesis, John Hopkins University. ; McCarthy Brown 1991; Richman 2005RICHMAN, Karen. 2005. Migration and vodou. Florida: University Press of Florida.), as relações familiares no Haiti, que em determinados contextos se identificam com as relações consanguíneas ou de afinidade, mas que não se definem unicamente por elas (Dalmaso 2014DALMASO, Flávia F. 2014. Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Haiti. Tese de doutorado, Museu Nacional/UFRJ. ), não estão circunscritas ao universo das pessoas vivas, mas incluem também os mortos e os espíritos que, além de lwa, podem ser chamados de “mistérios”, “invisíveis” ou “diabos”.13 13 Essas palavras não esgotam os muitos nomes dados a tais entidades. Além das inflexões regionais, esses termos estão sujeitos a variações que correspondem a situações específicas de enunciação; quem fala, sobre quem se fala e em quais circunstâncias. Protestantes, por exemplo, sempre usam a palavra dyab para se referir aos lwa e a quaisquer outras entidades espirituais, enquanto católicos e adeptos do vodu podem trocar um termo pelo outro aleatoriamente durante uma conversa, utilizando-os como sinônimos. No entanto, essa sinonímia aparente e seu uso não fazem senão revelar a complexidade inerente a esses seres. Cada vez que se troca uma palavra pela outra há um deslocamento sutil que agrega novos sentidos enquanto despreza outros, fazendo com que essas entidades possam ser todos esses nomes e, ao mesmo tempo, cada um deles. Cabe notar ainda que espri é uma palavra que denota inteligência e perspicácia, sendo frequentemente utilizada em Jacmel de maneira elogiosa, como, por exemplo, nas frases: li genyen espri [ela/ele é inteligente/sagaz/perspicaz] ou li vrèman gen espri [ela/ele é, de fato, inteligente]. Especialmente naquilo que diz respeito aos mortos de uma família de “servidores”, por exemplo, há uma série de rituais específicos em sua homenagem, assim como seus nomes devem ser recordados em voz alta antes de muitos serviços feitos para os lwa. “Os mortos devem acordar para escutar o que dizemos”, falava Reynald enquanto batia com força na porta que fechava o local onde repousavam alguns de seus antepassados durante um serviço que fez para eles em sua casa. Sacerdote vodu que conheci em 2008 e de quem fui vizinha em 2009, Reynald sempre me lembrava de como a existência dos mortos e dos lwa aos quais servia está profundamente relacionada à terra em que os membros de sua família vivem ou um dia viveram.

Como apontei na introdução, os lwa da família, que em Jacmel são normalmente chamados de lwa bitasyon, são vistos como espíritos muito antigos que, tendo pertencido a um determinado ancestral, fundador de uma abitasyon ou de um lakou, continuam ligados ao mesmo tempo às suas terras e a todos os seus descendentes. Rèmy Bastien (1985BASTIEN, Rèmy. 1985 [1951]. Le paysan haïtien et sa famille. Paris: Karthala. [1951]) descreve os lacou (grafia como no original) como a forma tradicional de moradia da “família extensa” e da reprodução doméstica no Haiti: grupos domésticos formados principalmente com base em laços de sangue e de afinidade. Segundo ele, a palavra lacou seria a contração da expressão la cour [pátio] em francês, que no Haiti teria diversas acepções que não se restringiriam ao meio rural. Nas palavras do autor (:44):

Cada casa, por exemplo, tem seu lacou, esteja ela situada na cidade ou no campo. No último caso, o lacou designa a porção de terra que restou sem ter nada construído, após a construção da casa. Nas cidades, temos a tendência de chamar jardin a parte que se estende entre a casa e a rua, e lacou, a parte situada atrás da casa, onde se encontram a cozinha, os quartos dos (empregados) domésticos e outras dependências. No meio rural, lacou tem um sentido mais geral, e jardin adquire mais o sentido de “campo cultivado”. Por outro lado, e é neste sentido que ela nos interessa aqui, a palavra lacou serve para designar um conjunto de habitações ocupadas, de maneira geral, por uma única família.

A comparação entre os relatos que ouviu sobre os antigos lakou com a situação que presenciou na região de Marbial, uma das seções comunais de Jacmel, levou Bastien a crer que, após terem vivido um período de ouro, eles estariam em “vias de desaparecimento”.14 14 Compartilham dessa opinião a respeito dos lakou os antropólogos Alfred Métraux (1951) e Rhoda Métraux (1951) que, assim como Bastien, fizeram pesquisas de campo em Marbial na mesma época. Todos eles integravam a equipe que fazia parte de um projeto educacional da Unesco a ser implementado em Marbial, coordenado por Alfred Métraux, entre os anos de 1940 e 1960. Além disso, Herskovits (1971) e Bastien (1985) apontam para o processo de formação dos lakou. Segundo estes autores, tudo começa a partir da construção de uma primeira casa por seu fundador, denominado mèt lakou, que passa a viver no local com sua esposa. À medida que os filhos do casal crescem e decidem se casar, geralmente constroem suas casas em um dos espaços livres do terreno de seus pais e, assim, o lakou também cresce em número de habitantes e casas. As descrições que recolheu em campo informavam que os lakou do início do séc. XX abrigavam muitas casas em seu interior, constituindo verdadeiras instituições políticas, econômicas, sociais e religiosas - uma espécie de fato social total - reguladas pela autoridade de um chefe, o mèt lakou, cenário diferente daquele com o qual se deparou durante sua pesquisa.

Mesmo tendo passado por transformações, a literatura acadêmica (Lowenthal 1987LOWENTHAL, Ira P. 1987. Marriage is 20, children are 21: the cultural construction of conjugality and the family in rural Haiti. Ph.D. Thesis, John Hopkins University. ; Woodson 1990WOODSON, Drexel G. 1990. Tout mounn se mounn, men tout mounn pa menm: microlevel sociocultural aspects of land tenure in a nortthern haitian locality. Ph.D. Thesis, The University of Chicago.; Bulamah 2013BULAMAH, Rodrigo C. 2013. “O lakou haitiano e suas práticas: entre mudanças e permanências”. Temáticas, 21 (42), v. 2:205-233. ; Dalmaso 2014DALMASO, Flávia F. 2014. Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Haiti. Tese de doutorado, Museu Nacional/UFRJ. ) mostra que os lakou não deixaram de ser fundamentais para a apreensão das dinâmicas envolvidas na produção das relações de familiaridade no Haiti. Ao adquirir novos sentidos, o lakou também pôde ganhar outros olhares, sendo recentemente observado como um “processo no qual relações de parentesco e família são, ao mesmo tempo, viáveis e complexas, ainda que constantemente recriadas”, e não mais como uma “instituição de práticas supostamente fixas e imutáveis”, sujeitas à “aculturação” (Bulamah 2013:209).

Assim como o conceito de lakou, a noção de abitasyon é igualmente relevante para compreender os movimentos cotidianos que participam da construção da intimidade entre vizinhos, amigos e parentes. Definidas pela Constituição de 1987 como “zonas de habitats dispersos, identificados como tais pela tradição”, a palavra é traduzida como “vizinhança” em Woodson (1990WOODSON, Drexel G. 1990. Tout mounn se mounn, men tout mounn pa menm: microlevel sociocultural aspects of land tenure in a nortthern haitian locality. Ph.D. Thesis, The University of Chicago.) e aparece relacionada às antigas plantations da época em que o Haiti era colônia francesa (Bastien 1961BASTIEN, Rèmy. 1961. “Haitian rural family organization”. Social and Economic Studies, 10 (4):478-510.; Trouillot 1986TROUILLOT, Michel-Rolph. 1986. Les racines historiques de l’Etat duvaliéren. Porto Príncipe: Editions Deschamps .). Embora muitas abitasyon de Tè Wouj e de outras localidades que visitei ainda sejam conhecidas pelos nomes ou sobrenomes de seus antigos fundadores, as contínuas divisões de terras fizeram com que a maioria delas se afastasse desse sentido anterior de unidade e se aproximasse da noção estabelecida pela Constituição, tal como mencionada acima.

Nas palavras de Trouillot (1986TROUILLOT, Michel-Rolph. 1986. Les racines historiques de l’Etat duvaliéren. Porto Príncipe: Editions Deschamps .:47), “a questão da escolha de um regime fundiário e de um processo de trabalho apropriado a este regime assombrou os primeiros governantes haitianos tanto quanto ela tinha assombrado o próprio Louverture” e, em 1804, no período que se seguiu à proclamação da independência, os governantes do novo país batizado com o nome de Haiti tentaram, sem sucesso, restaurar as grandes plantações que haviam sido destruídas ao longo das sucessivas batalhas pela emancipação.15 15 Touissant Louverture nasceu como escravo na antiga colônia francesa de Saint Domingue e liderou a Revolução Haitiana iniciada em 1791, primeira e única Revolução feita por escravos e pessoas livres de cor que obteve sucesso em todo o mundo, levando à independência da colônia em 1804. De acordo com James, C.L.R. (2000 [1938]) Toussaint fazia parte da “pequena casta privilegiada” de escravos e trabalhou como cocheiro até seu proprietário conceder-lhe liberdade. Seu objetivo, pelo menos inicialmente, não era a independência da colônia, mas sim o fim da escravidão. Em 1801 proclamou-se Governador Geral, mas um ano depois foi traído e capturado a mando de Napoleão Bonaparte, sendo levado para cumprir prisão na França, onde faleceu de pneumonia em 1803 sem ver o resultado do processo que iniciou. Para mais informações sobre Toussaint Louverture e seu protagonismo na Revolução do Haiti, cf. James, C.L.R., (2000). Para este autor (:79), a falha na reimplantação dessas plantações estaria ligada, dentre outros fatores, à resistência do campesinato que aflorara ao longo da dominação francesa, com os antigos escravos associando a liberdade à posse de pequenos pedaços de terra que lhes recordavam suas hortas anteriores a 1791.

Como ressaltei na introdução, ao longo do trabalho de campo percebi que lakou e as abitasyon são conceitos-chave principalmente porque remetem a um processo de produção e adensamento de relações: entre pessoas, entre elas e seus antepassados, entre elas e as terras onde um dia viveram esses antepassados e, por fim, entre elas e os espíritos que habitam essas terras. Dito de outro modo, esses espaços podem ser compreendidos como lugares que incorporam experiências ligadas simultaneamente ao passado e ao presente, ao universo dos seres humanos e dos invisíveis, sendo portadores de memórias, sentimentos e convicções que localizam famílias e pessoas umas em relação às outras (Marques 2013MARQUES, Ana C. 2013. “Founders, ancestors, and enemies: memory, time, and space in the Pernambuco Sertão”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19:716-733. ). Desta perspectiva, as abitasyon e os lakou tornam-se mais do que “vizinhança”, mais do que “grupos domésticos” e muito mais do que o simples “habitat da família extensa”. Estes espaços de convivência familiar constituem-se como “lugares da vida” (Godoi 2014GODOI, Emília P. 2014. “Mobilidades, encantamentos e pertença: o mundo está rogando, porque ainda não acabou”. Revista de Antropologia, 57 (2):143-170. ), territórios afetivos onde se inscrevem contínua e criativamente histórias pessoais e familiares, das terras e dos ancestrais, fazendo parte daquilo que Pina-Cabral (2013PINA-CABRAL, João de. 2013. “The core of affects: namer and named in Bahia (Brazil)”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19:75-101. ) nomeou como o “coração dos afetos” que integram a pessoa.

Herança

Segundo McCarthy Brown (1991:36), “na visão do vodu tradicional, a terra, a família e os espíritos são, de certa maneira, um e o mesmo”. Tal afirmação é extremamente interessante porque, juntamente com as ideias que acabo de formular, nos incentiva a refletir sobre as ligações que Reynald, assim como várias outras pessoas com as quais convivi mantêm com os lakou e as abitasyon em que nasceram ou foram criados e com os lwa que comumente os habitam. Ela também pode nos ajudar a entender porque nem sempre é fácil se desvencilhar daquilo que é recebido como herança, ou pelo menos parte dela, como Liline tentava fazer. Terras e lwa certamente compõem a porção mais significativa daquilo que é conhecido como eritaj [herança], palavra que denomina um legado composto de bens materiais e imateriais - sangue, terras, mortos e lwa - deixado por uma pessoa depois de sua morte a todos os seus descendentes consanguíneos. Simultaneamente, o termo se refere ao próprio coletivo formado pelos herdeiros desse legado, tal como expresso na frase “nós somos a mesma herança” (nou se mêm eritaj) que ouvi diversas vezes durante os períodos de trabalho de campo.

Em artigo publicado em 2014, Richman afirmou que a eritaj é concebida como uma “rede de relações entre vivos, mortos e membros espirituais dos grupos de descendência”, observação afinada com aquilo que encontrei em minhas próprias pesquisas e ligeiramente distinta da perspectiva adotada por Lowenthal (1987LOWENTHAL, Ira P. 1987. Marriage is 20, children are 21: the cultural construction of conjugality and the family in rural Haiti. Ph.D. Thesis, John Hopkins University. ) que sublinhava seu caráter corporado. Seus integrantes não herdam somente a terra familiar deixada pelo seu fundador, conhecido como mèt bitasyon, mas também e de acordo com os mesmos princípios de bilateralidade, os lwa aos quais serviram tanto este fundador, como todos os seus ancestrais (Richman 2014). Eu acrescentaria, ainda, que eritaj se aproxima da ideia de “sucessão” que, como proposta por Lambek (2011LAMBEK, Michael. 2011. “Kinship as gift and theft: acts of sucession in Mayotte and ancient Israel”. American Ethnologist, 38 (1):2-16.:3), se diferencia da simples herança de uma propriedade material ou de acesso a uma determinada função a ser cumprida. Em Jacmel é comum que existam brigas e rivalidades em torno daquilo que é passado de uma geração a outra, inclusive em relação aos espíritos da família, e esse processo de transmissão da herança pode ser, assim como no contexto estudado por Lambek (2011), vivenciado por certas pessoas como uma “dádiva” e por outras como um “roubo”; de terras, de espíritos, de conhecimentos, de segredos ou de funções a serem desempenhadas.

Vale também ressaltar que, embora eritaj possa ser utilizada em algumas situações como um sinônimo para família, o termo expressa a existência de relações baseadas fundamentalmente na consanguinidade, excluindo, pelo menos em teoria, outras maneiras frequentemente envolvidas na produção de familiaridade entre as pessoas tal como exposto acima. Conforme assinala Carsten (2013CARSTEN, Janet. 2013. “Introduction: blood will out”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19:1-23.), o sangue tem a capacidade de fluir em muitas direções, podendo ser associado não apenas às suas propriedades físicas e materiais, mas também a uma conexão ancestral, como é o caso da eritaj. A partir desta perspectiva, a consanguinidade confere densidade às relações e o sangue se torna relevante naquilo que ele é capaz de transmitir, sobretudo quando levamos em consideração a ideia de que os fluidos corporais transportam - de um corpo para outros corpos - intenções, capacidades, emoções e pensamentos (Tola 2014TOLA, Florencia C. 2014. “The materiality of spiritual presences and the notion of person in an Amerindian Society”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits. Chicago eLondon: University of Chicago Press . ). O sangue carrega não só o parentesco conferido através da eritaj, mas também a própria história familiar, assim como certas potências e os conhecimentos necessários para lidar com elas. Dessa forma, o percurso feito pelo sangue nos ensina que ele transmite “relacionalidade” (Carsten 2000CARSTEN, Janet. 2000. “Introduction”. In: J. Carsten (org.), Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 1-35. ) e mutualidade (Sahlins 2013SAHLINS, Marshall. 2013. What kinship is... And is not. Chicago. University of Chicago Press.) entre pessoas, mas também entre pessoas e espíritos e, de modo análogo, faz perdurar esta mutualidade junto às terras e aos ancestrais que um dia ali viveram.

Os lwa

Os lwa são espíritos e são diabos. Eles são mistérios e são invisíveis. São também potências que intervêm nos corpos, nas vidas e no destino das pessoas. Os lwa estão permanentemente sendo criados e isso garante a sua existência. Quando eles chegam, você sente a força no seu estômago, seus joelhos tremem e você cai no chão. Os lwa são mestres da sua cabeça, mas você também tem que ser mestre deles.

Desse modo Reynald descreve os lwa que herdou de seus pais quando ainda era uma criança. Morador da cidade, mas nativo de Marbial, de tempos em tempos ele precisa voltar para sua casa de infância, dar uma olhada em como estão seus mortos e fazer alguns serviços para eles e para os lwa da família. Nas áreas rurais de Jacmel é comum que os mortos sejam enterrados nos próprios quintais que, às vezes, ficam repletos de sepulturas individuais e mausoléus coletivos que abrigam conjuntamente vários membros da família.16 16 Muitas dessas sepulturas e desses mausoléus começam a ser construídos ainda em vida, especialmente por aqueles que vivem fora do país, mas cultivam o desejo de morrer e de serem enterrados em sua terra natal. Algumas pessoas me diziam que essa forma de sepultamento, isto é, no lakou da família, é ideal pois, além de ser mais barata, possibilita um cuidado mais próximo e frequente dos parentes já mortos.17 17 O medo da zumbificação, que segundo meus interlocutores consiste na retirada e posterior aprisionamento da alma do morto em garrafas, foi relatado em diversos momentos e por diferentes pessoas como outro motivo, ou ainda como o “verdadeiro” motivo, pelo qual a melhor opção era enterrar os seus mortos nos quintais de seus próprios familiares.

Assim, embora Reynald realizasse na época da pesquisa uma série de atividades no ounfò que mantinha na sua casa atual, restavam os lwa e os mortos que haviam permanecido no lakou de seus antepassados e dos quais não poderia se descuidar. Com todas as suas irmãs vivendo fora do país, é dele a responsabilidade de manter as coisas em ordem, isto é, cuidar para que estes seres estejam recebendo tudo de que necessitam: alimentação, preces, danças, dentre tantos outros serviços. Isto não quer dizer que suas irmãs tenham abandonado os lwa ou sejam indiferentes em relação a eles. Justamente o contrário, e do mesmo jeito que outros migrantes (Richman 2005RICHMAN, Karen. 2005. Migration and vodou. Florida: University Press of Florida.) são elas que financiam a maior parte dos custos que envolvem esses serviços, tornando possível a sua realização.

Reynald é oungan, mas isto não quer dizer que apenas esses sujeitos se ocupem dos lwa da família ou tenham que lidar com eles no seu dia a dia. Na verdade, como notou Métraux (1958MÉTRAUX, Alfred. 1958. Le vaudou Haïtien. Paris: Editions Gallimard.), pessoas e lwa articulam suas existências cotidianamente interagindo das mais diversas maneiras. Nas palavras de Richman (2005RICHMAN, Karen. 2005. Migration and vodou. Florida: University Press of Florida.:106): “As relações entre os invisíveis e os humanos são fáceis e constantes. Os loas (grafia como no original) se comunicam com os seus fiéis, seja se encarnando em um deles, que se torna seu port-voz, seja se manifestando em sonhos ou sob a forma humana”.

Ainda mais recentemente, Bulamah (2015BULAMAH, Rodrigo C. 2015. “Um lugar para os espíritos: os sentidos do movimento desde um povoado haitiano”. Cadernos Pagu, 45:79-110.:106) recuperou duas situações etnográficas ocorridas no norte do país para mostrar “o modo como o cotidiano dos camponeses e camponesas norte-haitianos é constantemente interpelado por agências de diversas ordens”, sinalizando para o protagonismo que assumem os espíritos na cosmologia local. Em Lepwa, um pequeno povoado rural situado nas imediações da cidade de Jacmel, conheci várias pessoas que, tendo ou não ajuda de especialistas, cultuavam seus lwa bitasyon e mortos, preparando sacrifícios e danças em sua homenagem nos quintais de suas casas, em seus próprios lakou.18 18 Em algumas dessas ocasiões não são nem mesmo utilizados aparatos atualmente considerados fundamentais para o desenrolar das cerimônias, como, por exemplo, o ason, chocalho que simboliza o sacerdócio na religião vodu (McCarthy Brown 2006). Esses lwa, vistos como uma “coisa antiga” que vem da Guiné, na África, atravessam gerações e têm a prerrogativa de escolher em qual cabeça preferem dançar, já que pertencem coletivamente à eritaj. Nas palavras de Simon, um jovem de Lepwa com quem compartilhei muitas dúvidas ao longo dos diversos períodos em campo, “os lwa da família não são nem por uma pessoa e nem por outra, eles são por todos nós”.

Assim, quando considerada a perspectiva que envolve herança e terras familiares podem haver diferenças entre os lwa bitasyon e outros chamados de lwa personèl [espíritos pessoais]. Segundo meus interlocutores, ao contrário dos primeiros, os espíritos pessoais estariam vinculados somente a uma determinada pessoa que, por sua vez, também seria a única responsável por eles. Entretanto, essa divisão está longe de ter fronteiras bem definidas e não dá conta de um cotidiano em que estes dois tipos ideais se misturam. Com efeito, o universo de classificação e de identificação dos lwa e de outros seres invisíveis permanece flexível e sujeito a diferentes tonalidades que variam de acordo com o lugar, com o passar do tempo, com os acontecimentos e com as interpretações pessoais.

Uma diferença importante entre as pessoas e os lwa reside no fato de os segundos serem invisíveis. Eles não possuem um corpo, mas, ao contrário, têm a capacidade de fluir por diferentes matérias, sejam elas de um animal, de uma pedra ou de um humano. Além disso, eles são onipresentes, podendo estar em diferentes lugares ao mesmo tempo. Antes de tudo, a existência dos lwa é um fato de experiência (Pouillon 1979POUILLON, Jean. 1979. “Remarques sur le verbe croire”. In: Michel Izard & Pierre Smith (orgs.), La function symbolique: essais d’anthropologie réunis. Paris: Gallimard .) e, apesar de sua qualidade etérea, não devem ser tomados como entidades abstratas localizadas em um plano deslocado da experiência social humana. “Os invisíveis estão por toda a parte”, me diziam, assumindo também o caráter de imprevisibilidade e a capacidade ilimitada de seus movimentos igualmente identificados por Cardoso (2014CARDOSO, Vânia Z. 2014. “Spirits and stories in the crossroads”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits. Chicago eLondon: University of Chicago Press . ) em relação ao “povo da rua” na macumba carioca. Quando encarnados nas pessoas, os lwa governam suas ações, falam, comem e bebem por elas, dançando através de seus corpos. Isto se torna possível graças à partida temporária de seus gwo bon anj - um “princípio espiritual” próximo da ideia de alma ou consciência (Hurbon 1987HURBON, Laënnec. 1987. Dieu dans le Vaudou Haitien. Porto Príncipe: Editions Deschamps.; Deren 1953DEREN, Maya. 1953. Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti. London: Documentext McPherson & Company.) que preenche e anima os corpos dos vivos - e da permissão dos seus pequenos guardiões [ti bon anj] que cuidam para que nada de mal lhes aconteça.

“Dançar na cabeça” ou “vir na cabeça” são expressões que caracterizam o momento exato da possessão, palavra raramente utilizada em Jacmel. Além disso, uma pessoa pode ou não “ter lwa em sua cabeça”, e a afirmação remete a duas situações: primeiramente, ela significa que determinado sujeito possui um lwa, tendo ou não nascido com ele, e tal condição torna possível sua manifestação. Em segundo lugar, ela aponta (da mesma maneira que as outras duas sentenças que acabo de descrever) para o instante exato em que o lwa está na pessoa, agindo por ela. A perda temporária da consciência é comum entre aqueles que passam por essa experiência e todas as ações empreendidas são atribuídas unicamente aos lwa e não mais à pessoa que o recebeu.

Quando aparecem em sonhos, os lwa podem mandar mensagens de alerta sobre alguma ameaça ou revelar aspectos enigmáticos envolvidos na morte de alguém. O sonho do tio de Bina foi interpretado, no fim das contas, como uma maneira encontrada pelo espírito da herança de Liline de avisar a família de que a morte da menina não havia sido natural. Ainda que na prática seja difícil determinar o que é uma doença ou morte natural e não seja meu objetivo aqui refletir minuciosamente sobre o assunto, há um discurso predominante entre meus interlocutores de que doenças naturais são causadas pela vontade de Deus ou tratáveis através da medicina ocidental. Se a doença se prolonga sem responder aos remédios prescritos pelos médicos ou, ao contrário, se há uma morte prematura ou repentina, passa-se a desconfiar de uma perseguição mística, isto é, quando alguém, por intermédio de um oungan, decide prejudicar outrem de quem não gosta. Neste caso, espíritos podem ser enviados com a missão de fazer adoecer, enlouquecer ou matar e a maioria dos meus interlocutores se queixa de estar sendo ou de já ter sido em algum momento perseguido dessa forma por algum parente, vizinho ou amigo.

No entanto, as circunstâncias que envolveram a morte de Bina não estavam ligadas à feitiçaria, mas como já assinalado, à indiferença de Liline em relação ao lwa que herdara. Conforme aponta Richman (2014RICHMAN, Karen.2014. “Possession and attachment: notes on moral ritual communication among Haitian descent groups”. In: Paul C. Johnson (org.), Spirited things: the work of “possession” in Afro-Atlantic religions. Chicago eLondon: University of Chicago Press . pp. 207-223. :217), “quando um lwa se sente negligenciado ou ignorado pelos seus herdeiros [...] eles se vingam enviando-lhes sofrimentos, investindo-os de doenças, infortúnios e perda de posses”. A palavra “negligência” costuma ser relacionada com a falta de alimentação dos lwa e dos mortos, parte essencial de todos os serviços feitos em sua homenagem. Portanto, da perspectiva do lwa, Liline acabou cometendo uma ofensa muito grave, uma espécie de pecado capital; morar com ele, mas não alimentá-lo.

Os lwa são considerados seres extremamente voláteis que podem se tornar agressivos, sobretudo se não tiverem suas vontades satisfeitas. Da mesma maneira que descreve Bulamah (2015BULAMAH, Rodrigo C. 2015. “Um lugar para os espíritos: os sentidos do movimento desde um povoado haitiano”. Cadernos Pagu, 45:79-110.:96), também em Jacmel o “descontentamento” dos espíritos “é correntemente entendido como uma fome” provocada “justamente por uma negligência do grupo de descendência”. Como destaquei antes, a comida é um elemento-chave para a produção de familiaridade entre pessoas e isto não é diferente quando se trata das suas relações com os lwa. Nessa direção, dividir refeições com eles, “comer de seu alimento” ou nutri-los com pratos que você prepara é abrir uma espécie de canal que cria as condições para que uma relação em potencial possa se materializar. Era exatamente sobre essa capacidade de criação de familiaridade inerente à comida que Dodô, filho de Reynald, queria me dizer quando me explicava que para falar crioulo era preciso comer comida crioula. E, quando eu respondia que fazia isso todos os dias, ele retrucava recomendando que eu tivesse paciência, pois ainda não havia comido o suficiente. Já naquele momento ele me ensinava que “comer o suficiente” da comida de seu país tinha como efeito produzir a capacidade de falar a mesma linguagem, poder compreender e ser compreendido e, neste sentido, me tornar uma pessoa mais próxima.

Isto ficou cada vez mais claro ao longo das minhas estadas em Jacmel. Interessada inicialmente pelo vodu, procurava acompanhar serviços realizados pelos meus interlocutores ou outras pessoas próximas a eles, o que causava certo alvoroço na casa de meus anfitriões batistas. Muito preocupados e vendo que não conseguiriam me impedir de comparecer às danças, me pediam para não comer nada do que os dyab me oferecessem. Nessas ocasiões, a comida ofertada aos lwa costuma ser repartida entre os presentes, o que coloca pessoas e espíritos em uma mesma frequência, propiciando a abertura de um canal e a consequente criação de vínculos entre ambos ou fortalecendo aqueles já existentes. “Se você comer a comida do diabo, ele vai te comer”, me diziam, o que, na linguagem da feitiçaria, significa basicamente que ele iria me matar (Fiod 2017FIOD, Ana. 2017. “Feitiço”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens . ). Nesse sentido, aceitar o alimento oferecido pelos lwa, além de inaugurar uma via de comunicação e de interação com potências com as quais é preciso saber lidar, é também compartilhar com elas uma mesma frequência, jogar o mesmo jogo, estando sujeito aos riscos que esse jogo representa.

Como já mencionado, meus anfitriões não desejavam e nem desejam qualquer envolvimento com os lwa, autodenominando-se como “verdadeiros cristãos”. Lionel Lundi e Violet Lundi nasceram e foram criados em lares batistas e abandonaram os lwa de suas famílias há muitas décadas, mas este é um assunto sobre o qual ninguém na casa se dispunha a falar. Liline é filha do irmão de Violet, também cristão, mas o fato de sua mãe e de sua avó terem servido e cultivado os lwa na terra em que viviam colocou-a num jogo do qual não desejava participar. Ela não estava dividindo refeições com os lwa, mas fazia parte de um transcurso já iniciado: o espírito estava na sua “pré-história” (Pina-Cabral 2013:76), vivia em seu lakou, permanecia na sua família - como numa partida de cartas na qual ela era uma das cartas de um baralho já distribuído.

Prenúncios de uma morte

Situações como a vivenciada por Liline e sua família não são incomuns entre meus interlocutores. Como já assinalado, alguém que está sempre enfermo, que fica louco, que não consegue se virar para arranjar trabalho/dinheiro, que perde parentes próximos (principalmente filhos) de doenças súbitas ou inexplicáveis aos olhos da medicina ocidental pode estar sendo alvo de uma perseguição feita por intermédio de um oungan ou manbo ou diretamente pelos lwa. No caso de Bina, a epidemia de cólera e a primeira interpretação do sonho do irmão de seu pai confundiram um pouco as pessoas, mas o adoecimento de todo o restante da família foi determinante para que chegassem à conclusão sobre as verdadeiras causas do que estava ocorrendo.

A situação se torna ainda mais evidente quando recuperamos alguns acontecimentos vivenciados pela família e que passaram a ser relembrados a partir daquele momento. Cerca de dois anos antes, Liline perdera um de seus filhos gêmeos poucas semanas após o parto. Segundo Claire, pessoas mais próximas como, por exemplo, ela própria, a teriam alertado sobre a possibilidade de perseguição, uma espécie de retaliação feita pelo lwa bitasyon diante de sua indiferença. O espírito, recebido como herança de algum antepassado longínquo, habita uma árvore que fica nos fundos do lakou da família e por muito tempo recebera os cuidados dos avós e de Gislaine, mãe de Liline, que costumavam pendurar em seus galhos grandes bolsas de palha com os pedaços de cabritos sacrificados em sua homenagem. Além disso, Gislaine frequentava os serviços realizados pelos vizinhos e, nessas ocasiões, o lwa podia se manifestar e, através dela, comer, beber e dançar.

No Haiti é relativamente comum que as crianças da família sejam criadas por outros parentes que não sejam seus pais, ou ainda que circulem por várias casas familiares ao longo de sua infância e juventude. Essa prática marcou a vida de Liline, que cresceu na casa de uma tia evangélica, frequentando a Igreja Batista desde menina. Não sei ao certo como aconteceu, mas quando a conheci, ela não tinha mais irmãs ou irmãos vivos, tendo se tornado filha única, e isto foi determinante para que, logo após o seu casamento, optasse por se mudar com o marido para o lakou de sua mãe, que à época era viúva e morava sozinha. Por influência de Liline, Gislaine começou a participar das atividades promovidas pela igreja e a acompanhar a filha nos cultos de domingo. Mas “aceitar Jesus” tinha como contrapartida abandonar os lwa da família e Gislaine iniciou uma caminhada nesta direção: parou de alimentar o espírito que morava no lakou e deixou de frequentar as danças que aconteciam na vizinhança.

Como ressalta Lambek (2011LAMBEK, Michael. 2011. “Kinship as gift and theft: acts of sucession in Mayotte and ancient Israel”. American Ethnologist, 38 (1):2-16.:3), a constituição do parentesco não é uma questão apenas de substância ou códigos compartilhados, mas também de atos intencionais que podem não ser positivos e cujas consequências têm sempre uma cota de suspense e de imprevisibilidade. Assim, a partir do momento em que Gislaine tomou as atitudes que acabo de descrever, ela abriu mão de “um conjunto de comprometimentos feitos na prática e publicamente articulados” (:4) com o lwa de sua família em favor de um novo compromisso, tanto com a igreja quanto com sua filha que, já sendo batista, ficou satisfeita com a conversão da mãe. No entanto, esse “ato de parentesco” (Lambert 2011), transformou a natureza de sua relação com o espírito e foi visto retrospectivamente pelos agentes envolvidos como uma espécie de marco, a partir do qual teria se iniciado a perseguição relatada aqui. Finalmente, cerca de um ano depois, quando adoeceu e não encontrou cura para sua enfermidade, soube que era o lwa se vingando por causa da sua negligência.

É certo, como acabo de descrever, que a conversão religiosa ou como se costuma dizer, a opção por um novo “caminho”, “pode representar uma tentativa de se retirar do plano de relações com espíritos” ainda que isto não resulte em “uma ruptura ou uma passagem a uma nova condição social excluída das relações próprias à ‘família’” (Bulamah 2015BULAMAH, Rodrigo C. 2015. “Um lugar para os espíritos: os sentidos do movimento desde um povoado haitiano”. Cadernos Pagu, 45:79-110.:98). Nesse sentido, me deparei com situações semelhantes àquelas encontradas por Bulamah (2015) nas quais uma parte da família se convertia enquanto outra parte continuava os serviços necessários à manutenção dos compromissos e das trocas com os espíritos. Alguns dos meus interlocutores, por exemplo, diziam de maneira categórica para que eu não acreditasse se alguém me dissesse que todos da família haviam se convertido pois, na verdade, “sempre sobrava alguém” para cuidar dos lwa (Dalmaso 2014DALMASO, Flávia F. 2014. Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Haiti. Tese de doutorado, Museu Nacional/UFRJ. ). Assim, embora não haja nenhuma garantia de que a situação permaneça como está - como pude observar, na maioria das vezes, as conversões não levam, de fato, a uma ruptura drástica com o passado - a situação relatada aqui parece ser, nas circunstâncias descritas acima, uma exceção a essa regra. Sem outros filhos, além de Liline (ela própria evangélica), ou irmãos, e com a maioria dos sobrinhos(as) evangélicos(as) desde crianças, não havia, pelo menos naquele momento, restado ninguém.

Por isso, preocupada com o que poderia acontecer com a filha, aconselhou-a a deixar o lakou em que moravam e a construir uma nova casa nas terras de seu pai, um lugar seguro e livre dos lwa. Liline não seguiu as recomendações e, mesmo depois do falecimento de sua mãe, continuou a viver no local com a família. Nesse sentido, a morte de Bina, assim como a de um dos gêmeos dois anos antes, foi interpretada na época como mais uma consequência não apenas da negligência iniciada por sua mãe, mas também de sua teimosia em não se mudar do lakou onde vivia.

(Des)encontros: considerações finais

“O Haiti não é igual ao Brasil, aqui não podemos ficar sem religião”, me disse certo dia uma comerciante que conheci no mercado público de Jacmel depois de saber que eu não participava de nenhuma igreja em meu país. A ideia de que a adesão religiosa, de preferência ao protestantismo, em seus diversos seguimentos, é capaz de proteger as pessoas contra o sistema é, de fato, muito difundida entre meus interlocutores. Dani, segunda filha de Violet e Lionel, por exemplo, se sente completamente resguardada porque, nas suas palavras, é “cristã de verdade”, isto é, não mantém nenhuma forma de contato com qualquer coisa que saiba ter relação com o vodu e com os lwa. Seu comportamento habitualmente muito ascético foi se tornando mais perceptível ao longo dos anos em que eu realizava a pesquisa e construíamos nossa amizade. Quando me acompanhava nas minhas jornadas diárias pela cidade, Dani evitava a qualquer custo entrar nos ounfò que, por ventura, eu visitasse, ou na casa dos oungan e manbo que eu conhecia, preferindo sempre aguardar do lado de fora. Esta atitude era uma forma de se resguardar, de deixar bem claro para os lwa que ela não jogava aquele jogo e que estava completamente apartada daquele universo. Na sua opinião, tanto sua prima Liline quanto outras pessoas que se diziam cristãs não agiam dessa maneira e, com isso, abriam espaço para que as perseguições místicas acontecessem.

Em 2016, quando retornei a Jacmel, Liline finalmente havia deixado o lakou de sua mãe e dado a filha, da qual estava grávida na época dos acontecimentos relatados aqui, a uma tia com o intuito de “confundir” ou “enganar” o lwa e assim evitar uma nova morte. Morando em uma pequena casa no terreno que pertencera a seu pai, ela e o marido haviam tido um novo bebê que, com um mês de vida, permanecia bem. Liline passara a frequentar uma nova igreja mais próxima do seu atual lar. No único culto que fui capaz de acompanhar pude testemunhar a presença de dois espíritos, chamados de “governador” e “capitão”, que comandaram quase toda a cerimônia. Eles abordavam adultos e crianças, derramando óleos considerados milagrosos sobre seus corpos e lhes prescrevendo medicamentos feitos com ervas. Exatamente tudo o que, da perspectiva de Dani, não condizia com as verdadeiras práticas cristãs e colocava Liline, seu marido e os filhos em uma situação de risco iminente.

Ao longo do artigo procurei abordar as conexões entre pessoas, terras e espíritos tomando como ponto de partida a noção de sistema, tal como empregada pelos meus interlocutores em sua relação comigo ao longo da pesquisa. Como sublinhei, sistema não é sinônimo de vodu e nem de magia, mas é uma forma recorrentemente utilizada de se falar sobre essas coisas. É a sua natureza, sempre aberta e extensiva, que permite uma constante reavaliação pelas pessoas de suas relações com os espíritos (e outras entidades, como os lougawou) e também a possibilidade para o surgimento de novas interpretações para que outros arranjos sejam postos em prática.

Com isso, meu objetivo foi observar não tanto o plano formal do vodu, entendido como uma religião, patrimônio cultural ou folclore, mas sim as dinâmicas cotidianas em que pessoas, lwa e outras entidades se encontram, interagem e se afetam mutuamente. Nesse sentido, assim como a macumba que, além de ser um “termo acusatório”, evoca “uma identidade e uma afiliação religiosa particular”, também o vodu se expressa “por uma socialidade profundamente marcada pela presença de espíritos que se movem para além das fronteiras do ‘ritual’ e do ‘cotidiano’, do ‘sagrado’ e do ‘mundano’, do ‘passado’ e do ‘presente’, do ‘pessoal’ e do ‘público’, do ‘real’ e do ‘imaginário’” (Cardoso 2014CARDOSO, Vânia Z. 2014. “Spirits and stories in the crossroads”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits. Chicago eLondon: University of Chicago Press . ).

Resgatando certos episódios que cercaram a morte prematura de Bina causada pelo lwa bitasyon que recebeu como herança de sua família materna, procurei destacar a profundidade dos laços que tecem e compõem essas relações. Fazendo parte da eritaj, esses lwa podem permanecer na família por muitas gerações, sendo transmitidos pelo sangue a todos os descendentes do ancestral fundador de um novo lakou ou abitasyon, aquele que primeiro ocupou um determinado pedaço de terra fazendo dele sua casa. Como procurei deixar claro, estes dois conceitos que organizam os espaços de moradia e convivência familiar, principalmente nos meios rurais do Haiti, são fundamentais para a compreensão da natureza das relações familiares, a gosma do quiabo, na qual se encontram misturadas pessoas, espíritos e mortos.

A imagem da gosma do quiabo não foi utilizada de maneira ingênua. Ela serve para nos lembrar o quanto a comida é importante para a criação e a manutenção dos laços de familiaridade entre as pessoas e entre elas e os lwa. Nesse sentido, chamei a atenção para as possíveis consequências de se compartilharem refeições com essas entidades: entrar em uma mesma frequência e ter que lidar com potências que podem ser volúveis, temperamentais e imprevisíveis. Tomar parte nessas relações, entretanto, nem sempre é uma escolha e, como vimos, as circunstâncias que envolveram os acontecimentos relatados aqui dizem respeito a uma situação na qual os vínculos com os lwa não eram desejados por causa da fidelidade de Liline à Igreja Batista. No entanto, ao contrário das suas expectativas, o pertencimento à igreja não foi capaz de protegê-la contra a intervenção do lwa em sua vida e nem de salvar sua filha. Tais circunstâncias revelam que ninguém está livre do compromisso de ter que lidar com os lwa - e com seus efeitos - se assim eles desejarem, e que as teias que entrelaçam e compõem as relações entre pessoas e espíritos costumam ser muito mais embaraçadas do que imaginamos.

Finalmente, procurei mostrar como esses “encontros” também produzem como efeito uma “recomposição de relações” entre as pessoas e os espíritos e entre estes e o mundo (Godoi 2014GODOI, Emília P. 2014. “Mobilidades, encantamentos e pertença: o mundo está rogando, porque ainda não acabou”. Revista de Antropologia, 57 (2):143-170. :160) e como tais relações transcendem os limites do próprio vodu, ultrapassando, na verdade, os contornos de qualquer religião.

Referências bibliográficas

  • BASTIEN, Rèmy. 1961. “Haitian rural family organization”. Social and Economic Studies, 10 (4):478-510.
  • BASTIEN, Rèmy. 1985 [1951]. Le paysan haïtien et sa famille Paris: Karthala.
  • BLANES, Ruy & ESPIRITO-SANTO, Diana, 2014. “Introduction: on the agency of intangibles”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits Chicago e London: University of Chicago Press.
  • BOURGUIGNON, Erika E. 1954. “Dreams and dream interpretation in Haiti”. American Anthropologist, 2, v. 56:262-268.
  • BULAMAH, Rodrigo C. 2013. “O lakou haitiano e suas práticas: entre mudanças e permanências”. Temáticas, 21 (42), v. 2:205-233.
  • BULAMAH, Rodrigo C. 2015. “Um lugar para os espíritos: os sentidos do movimento desde um povoado haitiano”. Cadernos Pagu, 45:79-110.
  • CARDOSO, Vânia Z. 2014. “Spirits and stories in the crossroads”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits Chicago eLondon: University of Chicago Press .
  • CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.), Cultura com aspas e outros ensaios São Paulo: Cosac Naify.
  • CARSTEN, Janet. 1997. The heat of the hearth: the process of kinship in a Malay fishing community New York: Oxford University Press Inc.
  • CARSTEN, Janet. 2000. “Introduction”. In: J. Carsten (org.), Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship Cambridge: Cambridge University Press. pp. 1-35.
  • CARSTEN, Janet. 2013. “Introduction: blood will out”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19:1-23.
  • COMERFORD, John. C. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural Rio de Janeiro: Relume Dumará.
  • DALMASO, Flávia F. 2014. Kijan moun yo ye? As pessoas, as casas e as dinâmicas da familiaridade em Jacmel/Haiti Tese de doutorado, Museu Nacional/UFRJ.
  • DALMASO, Flávia F. 2017. “Família”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas Rio de Janeiro: Papéis Selvagens.
  • DEREN, Maya. 1953. Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti London: Documentext McPherson & Company.
  • DESMANGLES, Leslie G. 1992. The faces of the gods: vodou and roman Catholicism in Haiti Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press.
  • FIOD, Ana. 2017. “Feitiço”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas Rio de Janeiro: Papéis Selvagens .
  • GODOI, Emília P. 2014. “Mobilidades, encantamentos e pertença: o mundo está rogando, porque ainda não acabou”. Revista de Antropologia, 57 (2):143-170.
  • HERKOVITS, Melville. 1971 [1937]. Life in a Haitian valley New York: Octagon Books.
  • HURBON, Laënnec. 1987. Dieu dans le Vaudou Haitien Porto Príncipe: Editions Deschamps.
  • HURBON, Laënnec. 2005. “Le statut du vodou et l’histoire de l’anthropologie”. Gradhiva, 1:153-163.
  • HURBON, Laënnec. 1993. Les Mystères du Vaudou Paris: Gallimard
  • HURBON, Laënnec. 2005. “Le statut du vodou et l’histoire de l’anthropologie”. Gradhiva, 1:153-163.
  • JAMES, C.L.R. 2000 [1938]. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos São Paulo: Boitempo editorial.
  • LAMBEK, Michael. 2011. “Kinship as gift and theft: acts of sucession in Mayotte and ancient Israel”. American Ethnologist, 38 (1):2-16.
  • LOWENTHAL, Ira P. 1987. Marriage is 20, children are 21: the cultural construction of conjugality and the family in rural Haiti Ph.D. Thesis, John Hopkins University.
  • MARCELIN, Louis H. 2017. “Sangue”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas Rio de Janeiro: Papéis Selvagens .
  • MARQUES, Ana C. 2013. “Founders, ancestors, and enemies: memory, time, and space in the Pernambuco Sertão”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19:716-733.
  • McCARTHY BROWN, Karen. 1991. Mama Lola: a vodou priestess in Brooklyn Los Angeles e London: University of California Press.
  • McCARTHY BROWN, Karen. 2006. “Afro-caribbean spirituality: a haitian study case”. In: Claudine Michel & Patrick Bellegarde-Smith (orgs.), Vodou in Haitian Life and Culture: Invisible Powers New York: Palgrave Macmillam.
  • MÉTRAUX, Alfred. 1951. Making a living in the Marbial Valley Paris: Unesco.
  • MÉTRAUX, Alfred. 1958. Le vaudou Haïtien Paris: Editions Gallimard.
  • MÉTRAUX, Rhoda. 1951. Kith and kin: a study of creóle social structure in Marbial, Haiti Ph. D. Thesis, Columbia University.
  • MINTZ, Sidney & TROUILLOT, Michel-Rolph. 1995. In: Donald J. Cosentino, (org.), Sacred arts of Haitian vodou “The social history of haitian vodou”. Los Angeles: UCLA Fowler Museum.
  • OLWIG, Karen F. 2009. “A proper funeral: contextualizing community among Caribbean migrants”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 15:520-537.
  • PINA-CABRAL, João de. 2013. “The core of affects: namer and named in Bahia (Brazil)”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19:75-101.
  • POUILLON, Jean. 1979. “Remarques sur le verbe croire”. In: Michel Izard & Pierre Smith (orgs.), La function symbolique: essais d’anthropologie réunis Paris: Gallimard .
  • RAMSEY, Kate. 2005. “Prohibition, persecution and performance: anthropology and the penalization of vodou in the mid-twentieth century”. Gradhiva, 1:165-179.
  • RICHMAN, Karen. 2005. Migration and vodou Florida: University Press of Florida.
  • RICHMAN, Karen. 2014. “Possession and attachment: notes on moral ritual communication among Haitian descent groups”. In: Paul C. Johnson (org.), Spirited things: the work of “possession” in Afro-Atlantic religions Chicago eLondon: University of Chicago Press . pp. 207-223.
  • RICHMAN, Karen.2014. “Possession and attachment: notes on moral ritual communication among Haitian descent groups”. In: Paul C. Johnson (org.), Spirited things: the work of “possession” in Afro-Atlantic religions Chicago eLondon: University of Chicago Press . pp. 207-223.
  • SAHLINS, Marshall. 2013. What kinship is... And is not Chicago. University of Chicago Press.
  • TOLA, Florencia C. 2014. “The materiality of spiritual presences and the notion of person in an Amerindian Society”. In: R. Blanes & D. Espírito-Santo (orgs.), The social life of spirits Chicago eLondon: University of Chicago Press .
  • TROUILLOT, Michel-Rolph. 1986. Les racines historiques de l’Etat duvaliéren Porto Príncipe: Editions Deschamps .
  • WAGNER, Roy. 2010 [1975]. A invenção da cultura São Paulo: Cosac Naify .
  • WOODSON, Drexel G. 1990. Tout mounn se mounn, men tout mounn pa menm: microlevel sociocultural aspects of land tenure in a nortthern haitian locality Ph.D. Thesis, The University of Chicago.
  • 1
    Haiti e República Dominicana dividem o território da antiga ilha Hispaniola que permaneceu sob o domínio colonial espanhol até 1697. Naquele ano, a parte ocidental da ilha, onde hoje está o Haiti, foi cedida pela Espanha à França por meio dos acordos estabelecidos no Tratado de Rysiwck, tornando-se a colônia francesa Saint Domingue. Ao longo dos anos em que esteve sob o controle francês, Saint Domingue (que se situava em uma parte até então pouco explorada pelo colonialismo europeu) se desenvolveu e se tornou uma das colônias mais prósperas das Antilhas a partir do cultivo de cana-de-açúcar com base no trabalho escravo. No entanto, cerca de 100 anos depois da ocupação francesa, rebeliões por parte dos escravos se espalharam pela colônia, em longas batalhas que perduraram até o ano de 1804, quando Jean Jacques Dessalines proclamou a independência de Saint Domingue. O Haiti, como foi chamado o novo país, se tornou o segundo Estado a se tornar independente (depois dos Estados Unidos) no continente americano, e a “Revolução Haitiana” foi a primeira e única revolta levada a cabo por escravos que teve como resultado o fim da escravidão.
  • 2
    O crioulo haitiano não pluraliza as palavras adicionando a letra s, mas sim a partir do uso do artigo yo (os, as). Por este motivo, espero que o contexto ajude o leitor a identificar o uso da forma plural dos termos em crioulo presentes ao longo do artigo. Acrescento ainda que não frequentei nenhum curso ou escola de ensino formal desse idioma, sendo meu aprendizado proveniente basicamente do convívio com as pessoas em Jacmel, do livro de gramática J’apprends le créole haitien, de livros escolares para crianças e de consultas ao dicionário Vilsen. Apesar de o crioulo ter sido reconhecido como idioma oficial do Haiti por Jean Claude Duvalier em 1979, ainda há muitas divergências em relação à grafia de suas palavras, principalmente entre as pessoas mais velhas que não foram alfabetizadas nessa língua. Portanto, quaisquer possíveis erros no emprego dos termos são de minha inteira responsabilidade.
  • 3
    Todas as traduções presentes no artigo são de minha autoria e inteira responsabilidade.
  • 4
    Mais recentemente, Richman (2014) elaborou uma crítica que considero bastante pertinente a respeito da literatura sobre o vodu. Segundo ela, muitas vezes pressupõe-se que os lwa são universais e que qualquer um que tenha treinamento apropriado pode adorar e ter acesso a qualquer espírito individualmente, como se não houvesse barreiras ontológicas para tal e como se esses espíritos fossem universais. Sob esse aspecto Richman (2014:213-14RICHMAN, Karen. 2014. “Possession and attachment: notes on moral ritual communication among Haitian descent groups”. In: Paul C. Johnson (org.), Spirited things: the work of “possession” in Afro-Atlantic religions. Chicago eLondon: University of Chicago Press . pp. 207-223.) aponta ainda que: “em contraste com as práticas domésticas locais mais igualitárias e particularistas associadas com o culto baseado na família, o que se tornou conhecido como Vodu envolveu codificação, homogeneização e monetização”. Para um bom panorama sobre o interesse da antropologia pelo vodu haitiano, de sua perseguição ao longo do século XIX e primeira metade do séc. XX e dos movimentos pela legitimidade de suas práticas e pela sua sobrevivência que culminaram com a fundação do Bureau d’Ethnologie em Porto Príncipe em 1942, cf. HurbonHURBON, Laënnec. 2005. “Le statut du vodou et l’histoire de l’anthropologie”. Gradhiva, 1:153-163. (2005HURBON, Laënnec. 2005. “Le statut du vodou et l’histoire de l’anthropologie”. Gradhiva, 1:153-163. ) e Ramsey (2005RAMSEY, Kate. 2005. “Prohibition, persecution and performance: anthropology and the penalization of vodou in the mid-twentieth century”. Gradhiva, 1:165-179. ).
  • 5
    O Haiti é dividido administrativamente em 10 departamentos: Sul, Sudeste, Nippes, Oeste (onde se localiza Porto Príncipe, a capital do país), Sudoeste, Noroeste, Nordeste, Grand’Anse, Centro e Norte. Cada um desses departamentos engloba uma capital e diversas comunas que, por sua vez, se subdividem em diversas seções comunais.
  • 6
    De acordo com uma cartografia elaborada pela prefeitura de Jacmel, 53,2% das 8.632 construções situadas nas 16 regiões de Jacmel mais atingidas pelo terremoto sofreram algum tipo de dano. Dentre elas, 16,7% tinham desabado ou sofria risco de desabamento. Mairie de Jacmel, un an après le séisme du 12 janvier 2010: Cartographie des dommages à Jacmel (Mairie de Jacmel, Strasbourg.eu & communauté urbaine, IRCORD e AFD).
  • 7
    Com exceção de Jacmel, todos os outros nomes de lugares e pessoas mencionados ao longo do texto são fictícios.
  • 8
    Os doktè fèy são especialistas em fazer medicamentos que podem ser elaborados com plantas, animais e insetos. Esses remédios incluem banhos, chás ou outras bebidas que são levados pelos pacientes para casa dentro de garrafas.
  • 9
    Para sair da casa de Liline era preciso caminhar por um terreno montanhoso e cheio de pedras durante cerca de uma hora antes de alcançar a via onde era possível tomar uma moto (nem sempre facilmente disponível) e seguir até Jacmel em um novo percurso de mais uma hora e meia de distância.
  • 10
    Em outubro de 2010, nove meses após um terremoto de grandes proporções ter atingido o Haiti e deixado pelo menos 200.000 mortos e milhares de feridos e desabrigados, uma epidemia de cólera se alastrou pelo país que não vivenciava casos da doença há mais de um século. De acordo com um comunicado de imprensa emitido em janeiro de 2013 pelo Ministério de Saúde Pública e da População (MSPP) do Haiti, 639.610 ocorrências de cólera haviam sido registradas até aquele momento, dentre as quais 7.962 fatais.
  • 11
    Olwig (2009OLWIG, Karen F. 2009. “A proper funeral: contextualizing community among Caribbean migrants”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 15:520-537. ) chama a atenção para a importância da realização de funerais apropriados entre migrantes caribenhos na Grã-Bretanha. No Haiti, os funerais costumam reunir muitas pessoas que geralmente chegam aos poucos vindas de várias regiões do país e de fora dele. Os migrantes têm papel fundamental, pois são eles que financiam quase todos os custos necessários que podem envolver desde a compra de comida e bebida para os presentes até a manufatura do caixão, contratação de corais e produção de mídia, como filmagens, por exemplo.
  • 12
    Os assuntos discutidos neste tópico foram explorados mais detidamente em trabalho anterior (Dalmaso 2017DALMASO, Flávia F. 2017. “Família”. In: F. Neiburg (org.), Conversações etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens.).
  • 13
    Essas palavras não esgotam os muitos nomes dados a tais entidades. Além das inflexões regionais, esses termos estão sujeitos a variações que correspondem a situações específicas de enunciação; quem fala, sobre quem se fala e em quais circunstâncias. Protestantes, por exemplo, sempre usam a palavra dyab para se referir aos lwa e a quaisquer outras entidades espirituais, enquanto católicos e adeptos do vodu podem trocar um termo pelo outro aleatoriamente durante uma conversa, utilizando-os como sinônimos. No entanto, essa sinonímia aparente e seu uso não fazem senão revelar a complexidade inerente a esses seres. Cada vez que se troca uma palavra pela outra há um deslocamento sutil que agrega novos sentidos enquanto despreza outros, fazendo com que essas entidades possam ser todos esses nomes e, ao mesmo tempo, cada um deles. Cabe notar ainda que espri é uma palavra que denota inteligência e perspicácia, sendo frequentemente utilizada em Jacmel de maneira elogiosa, como, por exemplo, nas frases: li genyen espri [ela/ele é inteligente/sagaz/perspicaz] ou li vrèman gen espri [ela/ele é, de fato, inteligente].
  • 14
    Compartilham dessa opinião a respeito dos lakou os antropólogos Alfred Métraux (1951MÉTRAUX, Alfred. 1951. Making a living in the Marbial Valley. Paris: Unesco.) e Rhoda Métraux (1951MÉTRAUX, Rhoda. 1951. Kith and kin: a study of creóle social structure in Marbial, Haiti. Ph. D. Thesis, Columbia University. ) que, assim como Bastien, fizeram pesquisas de campo em Marbial na mesma época. Todos eles integravam a equipe que fazia parte de um projeto educacional da Unesco a ser implementado em Marbial, coordenado por Alfred Métraux, entre os anos de 1940 e 1960. Além disso, Herskovits (1971) e Bastien (1985) apontam para o processo de formação dos lakou. Segundo estes autores, tudo começa a partir da construção de uma primeira casa por seu fundador, denominado mèt lakou, que passa a viver no local com sua esposa. À medida que os filhos do casal crescem e decidem se casar, geralmente constroem suas casas em um dos espaços livres do terreno de seus pais e, assim, o lakou também cresce em número de habitantes e casas.
  • 15
    Touissant Louverture nasceu como escravo na antiga colônia francesa de Saint Domingue e liderou a Revolução Haitiana iniciada em 1791, primeira e única Revolução feita por escravos e pessoas livres de cor que obteve sucesso em todo o mundo, levando à independência da colônia em 1804. De acordo com James, C.L.R. (2000JAMES, C.L.R. 2000 [1938]. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo editorial. [1938]) Toussaint fazia parte da “pequena casta privilegiada” de escravos e trabalhou como cocheiro até seu proprietário conceder-lhe liberdade. Seu objetivo, pelo menos inicialmente, não era a independência da colônia, mas sim o fim da escravidão. Em 1801 proclamou-se Governador Geral, mas um ano depois foi traído e capturado a mando de Napoleão Bonaparte, sendo levado para cumprir prisão na França, onde faleceu de pneumonia em 1803 sem ver o resultado do processo que iniciou. Para mais informações sobre Toussaint Louverture e seu protagonismo na Revolução do Haiti, cf. James, C.L.R., (2000).
  • 16
    Muitas dessas sepulturas e desses mausoléus começam a ser construídos ainda em vida, especialmente por aqueles que vivem fora do país, mas cultivam o desejo de morrer e de serem enterrados em sua terra natal.
  • 17
    O medo da zumbificação, que segundo meus interlocutores consiste na retirada e posterior aprisionamento da alma do morto em garrafas, foi relatado em diversos momentos e por diferentes pessoas como outro motivo, ou ainda como o “verdadeiro” motivo, pelo qual a melhor opção era enterrar os seus mortos nos quintais de seus próprios familiares.
  • 18
    Em algumas dessas ocasiões não são nem mesmo utilizados aparatos atualmente considerados fundamentais para o desenrolar das cerimônias, como, por exemplo, o ason, chocalho que simboliza o sacerdócio na religião vodu (McCarthy Brown 2006McCARTHY BROWN, Karen. 2006. “Afro-caribbean spirituality: a haitian study case”. In: Claudine Michel & Patrick Bellegarde-Smith (orgs.), Vodou in Haitian Life and Culture: Invisible Powers. New York: Palgrave Macmillam. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2018
  • Aceito
    22 Nov 2018
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com