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NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.

NEIBURG, Federico. (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas.Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.

Conversas Etnográficas Haitianas é uma inestimável contribuição coletiva à antropologia feita no Brasil e alhures. Além de um convite inicial à conversa, de um posfácio e de um apêndice, a obra contém oito capítulos cujos títulos - sangue, família, dinheiro, comércio, frustração, misturas, feitiço, diáspora e ancestrais - são verdadeiros vetores de conexões por meio dos quais categorias e teorias nativas, artefatos conceituais da disciplina e insights etnográficos se articulam. A eleição dessas categorias, e não de outras mais amplas, como economia, parentesco ou religião, como vetores de conexão não é fortuita, pois não se reduz, de antemão, um complexo de práticas a domínios já delimitados do social.

Isto se evidencia já no primeiro capítulo, no qual Louis Marcelin toma o conceito de sangue como símbolo central de práticas ligadas ao espaço político, modo de classificação de pessoas e comportamentos, elemento central de teorias explicativas nativas sobre o poder, a violência e forças mágicas e metáfora herdada do passado escravista. O sangue tem significados complexos, “inscritos em uma variedade de domínios” (:30NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), como o da família, magia, história, política, nação, do espaço público e do poder. Já se antevê, portanto, o potencial impacto da obra à teoria antropológica contemporânea como um todo, resultado direto, também, de um alentado investimento bibliográfico.

Os capítulos encetam produtivos diálogos com estudos clássicos e contemporâneos sobre o Haiti, com destaque para o cuidadoso debate com a tradição intelectual do país, essa “extraordinária biblioteca haitiana”, para retomar a feliz expressão de Omar Ribeiro Thomaz (:289NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.). Tais diálogos vão muito além da mera citação. As proposições de autores consagrados são referidas, analisadas criticamente e desdobram-se em novas sugestões; do mesmo modo, escritos acessíveis a um público mais restrito têm lugar. Em suma, todas as contribuições amparam-se em um amplo espectro de estudos, clássicos e contemporâneos, sobre o Haiti, produzidos por pensadores haitianos e não haitianos, publicados em inglês ou francês, no próprio país ou alhures.

Em paralelo, há um engajamento com a produção caribeanista e com os grandes debates que a marcaram nas últimas décadas. A análise dos dividendos teóricos em torno da matrifocalidade e da família (Flávia Dalmaso), da migração (Felipe Evangelista e Handerson Joseph), de práticas religiosas e mágicas (Jose Renato Baptista, Rodrigo C. Bulamah e Ana Fiod), de mercados (Evangelista e Federico Neiburg), da violência (Pedro Braum e Marcelin) e da historicidade (Bulamah e Marcelin), para citar apenas alguns exemplos, ganham densidade por meio da alternação de escalas de análise entre o local, o regional e o global, o doméstico, o comunitário e o intracomunitário, o rural e o urbano, a história passada e o presente. Cumpre destacar que não se trata de obra localista, embora assentada em saberes, conhecimentos e práticas locais, nem de um livro sobre uma área cultural ou sobre uma região, o Caribe. Tampouco o Haiti é reduzido analiticamente ao Brasil, ainda que as pistas lançadas por estudos etnográficos ali realizados, como sobre o campesinato, sejam mobilizados com alguma frequência. Com efeito, o livro permite pensar sobre e a partir do Haiti (:13, ênfases de NeiburgNEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.).

Antropólogos e antropólogas interessados em treinar seus olhares e (re)educarem sua atenção encontrarão em Conversas Etnográficas Haitianas valiosas ferramentas heurísticas e pistas metodológicas. No melhor espírito antropológico, os capítulos resultam de pesquisas de campo de longa duração, do aprendizado de línguas (francês e kreyól), do convívio intenso, e intensivo, com pessoas de carne e osso, seja em âmbito doméstico e comunitário, seja em nível transnacional. Enquanto algumas investigações baseiam-se, primordialmente, em povoados rurais (Dalmaso e Fiod) ou em grandes bairros de Porto Príncipe (Braum e Neiburg), outras são multissituadas, extrapolando fronteiras, territórios e nações (Evangelista, Joseph e Marcelin). É bem verdade que alguns capítulos consistem em verdadeiras “etnografias em movimento”, atentas a diversas ordens de imbricações e escalas de configurações de mobilidades entre sujeitos, objetos e ações, para parafrasear Joseph (:236-237NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.). É igualmente evidente que parte da força das investigações conduzidas em localidades específicas provém dos percursos percorridos pelos autores e autoras, cujo aprendizado também se fez em meio a caminhadas, peregrinações e circulações.

Isto é consequência direta do próprio modo como conhecimentos e ensinamentos são obtidos, proferidos, compartilhados e ocultados no Haiti. Aprendemos que há uma relação indissociável entre a constituição de pessoas e de corpos, a aquisição de conhecimentos e a circulação pelo mundo. Assim, peregrinações a sítios religiosos dão mostras de aspectos marcantes da constituição e da reconfiguração de “redes relacionais” no Haiti (:175NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), frequentemente pensadas à luz da noção de mistura, como bem expõe Baptista. Similarmente, a etnografia de Bulamah revela como as pessoas adquirem conhecimentos sobre o passado ao percorrerem os caminhos feitos por antepassados e ao visitarem monumentos históricos e ruínas. Tal engajamento sensorial e existencial está imerso em uma verdadeira “cultura do andar” (:270NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), criando uma “intimidade histórica” com o passado que é fundamental para a constituição de haitianos e haitianas enquanto “pessoas, sujeitos e agentes da história da nação” (:286NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.). Já Evangelista explora a afinidade entre comércio, mobilidade e gênero (:101NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.) por meio da reconstituição da trajetória e da história de vida de Madame Maudeline, cujos conhecimentos práticos obtidos pela atividade comercial no Haiti e na República Dominicana põem em marcha um “conjunto de relações e saberes” (:104NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.) que não tem caráter fixo. Por extensão, a aquisição de habilidades linguísticas, gestuais e corporais, e de negociação e barganha é determinante, pois em situações de intensa mobilidade é preciso “saber-agir” e “saber-circular” (:243NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), como aponta Joseph.

Ao acompanhar os processos de crescimento, fortalecimento e aprendizagem de crianças, Fiod revela como conhecimentos sobre o corpo, plantas medicinais, espíritos e heranças familiares são fundamentais no “processo de formação da pessoa” (:206NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.). Crianças aprendem com adultos e entre si, sendo dotadas de uma notável “capacidade inventiva” (:198NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), mobilizada tanto na compreensão de conceitos quanto em práticas de proteção contra feitiços e ataques de parentes e vizinhos. Este último aspecto, finamente abordado por Fiod, permite tratar de outra contribuição central da obra, a de demonstrar que relações não estão dadas de antemão. Está em jogo uma complexa dinâmica entre princípios de reciprocidade e marcadores da diferença, ajuda e desconfianças mútuas, proximidade e distanciamento, cooperação e conflito, ruptura e proximidade.

Assim, no que diz respeito à ênfase no papel do sangue e da afinidade na constituição de princípios organizativos de relações familiares, Dalmaso destaca a importância do compartilhamento de refeições e da convivência diária na composição de famílias, bem como o papel e a importância de ancestrais e espíritos nas dinâmicas relacionais de grupos de residência. A autora alarga entendimentos restritos sobre quem é e quem compõe famílias ao descrever como “se fazem, se desfazem e se transformam” (:56NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.) vínculos definidos como familiares. Braum, por sua vez, se debruça sobre as bases, formas associativas que se dedicam a uma miríade de ações comunitárias, inclusive de promoção de práticas securitárias, que trazem à tona um “intricado jogo de moralidades” (:141NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.) no qual a categoria de frustração é fundamental, pois figura como causa explicativa de comportamentos violentos e articula entendimentos locais acerca de vínculos de confiança, interdependência, obrigação, respeito e obrigação.

Se fenômenos identificados por termos como violência, crise e instabilidade povoam a vida das pessoas e são objeto de suas reflexões (:132NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), frequentemente há um abismo entre entendimentos locais e aqueles implícitos nos discursos e nas práticas de organismos estatais, de cooperação internacional e de ONGs, que têm no Haiti um amplo campo de atuação e intervenção. Deste modo, e esta é outra tônica da obra, o respeito e a valorização do ponto de vista nativo têm por contraparte a cautela diante dos implícitos de categorias explicativas, inclusive aquelas mobilizadas por intelectuais. Nessa direção, em apêndice à obra, um texto redigido por Lygia Sigaud, Neiburg e Thomaz em 2007 coloca em questão as próprias condições de possibilidade de realização de pesquisas no Haiti, país que historicamente é objeto, e alvo, do etnocentrismo, da primitivização, do racismo e de intervenções militares, além de ser constantemente interpretado sob a chave do excepcionalismo.

Ora, mesmo fenômenos à primeira vista excepcionais não são abordados pelas lentes do exotismo ou da haitianidade. Veja-se a contribuição de Neiburg acerca do dólar haitiano, uma moeda imaginária, sem existência material. A descrição dos usos, das imbricações com outras medidas de valor, da história, dos sentidos e dos conceitos do dólar haitiano revela que essa moeda faz parte de “um espaço criativo, dinâmico e extremamente diversificado” (:85NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.), no qual os domínios da economia, da magia e da política se entrecruzam e se sobrepõem. Se o dólar haitiano é uma moeda imaginária, imaginação não equivale à fantasia, mas antes ao engenhoso, inventivo e criativo.

Por suas diversas virtudes, Conversas Etnográficas Haitianas já nasce com a necessidade de tradução para o inglês, o francês e o kreyól. Os capítulos, em sua imensa maioria, resultam de pesquisas em nível de pós-graduação recentemente concluídas em programas de pós-graduação, em especial no Museu Nacional, sob a orientação de Federico Neiburg. Consolida-se, neste volume, a força de empreendimentos coletivos pautados por diálogos, pela escuta, pelo deixar-se levar pelo campo e pela sensibilidade atenta às miudezas do cotidiano, aos pormenores de vidas, às sutilezas (ver posfácio de Thomaz) de suas reflexões e ensinamentos. O livro pode ser lido transversalmente, pois a passagem de um capítulo para o outro não encerra as linhas contidas em cada contribuição; ao contrário, elas se desdobram e imbricam, se ramificam e se espraiam, gerando diversas confluências. Cada leitor(a) deve conferir a obra por conta própria, enveredar pelos caminhos, não óbvios, percorridos por cada autor e autora, apreciar e saborear os detalhes de descrições vívidas nas quais se anteveem, e se consolidam, relações de conhecimento que expandem os horizontes imaginativos da antropologia, reverberando, e motivando, conversas.

Referência

  • NEIBURG, Federico (org.). 2019. Conversas etnográficas haitianas Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 344 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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