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Transmissão do saber prático: as dificuldades do processo ensino - aprendizagem em uma cooperativa autogestionária

Tacit knowing transmission: the difficulties of the teaching/learning process in a self-managed cooperative

Resumos

O artigo apresenta uma intervenção ergonômica realizada em uma cooperativa de produção de artefatos de couro e de material sintético, principalmente calçados e bolsas. Focaliza-se o processo de transmissão do conhecimento prático acumulado por um associado do grupo aos demais integrantes, todos novatos no ofício. Na conclusão, fornecemos elementos para reflexões acerca dos aspectos particulares às intervenções em empreendimentos solidários, quando comparadas às ações ergonômicas desenvolvidas junto a empresas convencionais, e os obstáculos encontrados para se viabilizar a autogestão.

saber tácito; economia solidária; transmissão de saber prático


In this paper, we present an ergonomic action in a cooperative of products of leather and synthetics material, specially shoes and sacs. We focus on the process of tacit knowledge transmission between an associate expert and the others associates, all of them novices in this work. In conclusion, we present the basis to compare ergonomic action in cooperative organizations and ergonomic action in traditional enterprises, and point out the obstacles to promote effective cooperative organizations.

tacit knowledge; social economics; practical knowledge transmission


Transmissão do saber prático: as dificuldades do processo ensino - aprendizagem em uma cooperativa autogestionária1 1 Artigo apresentado no XIII Congresso Brasileiro de Ergonomia. Fortaleza, 29 de agosto a 2 de setembro de 2004. CD-ROM

Tacit knowing transmission: the difficulties of the teaching/learning process in a self-managed cooperative

Giovanni Campos FonsecaI; Francisco de Paula Antunes LimaII; Ada Ávila AssunçãoII

IMestrando do Departamento de Engenharia de Produção - Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais

IIPh.D.'s do Departamento de Engenharia de Produção - Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

O artigo apresenta uma intervenção ergonômica realizada em uma cooperativa de produção de artefatos de couro e de material sintético, principalmente calçados e bolsas. Focaliza-se o processo de transmissão do conhecimento prático acumulado por um associado do grupo aos demais integrantes, todos novatos no ofício. Na conclusão, fornecemos elementos para reflexões acerca dos aspectos particulares às intervenções em empreendimentos solidários, quando comparadas às ações ergonômicas desenvolvidas junto a empresas convencionais, e os obstáculos encontrados para se viabilizar a autogestão.

Palavras-chave: saber tácito, economia solidária, transmissão de saber prático.

ABSTRACT

In this paper, we present an ergonomic action in a cooperative of products of leather and synthetics material, specially shoes and sacs. We focus on the process of tacit knowledge transmission between an associate expert and the others associates, all of them novices in this work. In conclusion, we present the basis to compare ergonomic action in cooperative organizations and ergonomic action in traditional enterprises, and point out the obstacles to promote effective cooperative organizations.

Keywords: tacit knowledge, social economics, practical knowledge transmission.

Economia solidária: uma alternativa popular de geração de trabalho e renda

Nos últimos anos, o mundo do trabalho tem passado por mudanças importantes que determinam abordagens distintas pelas disciplinas que se interessam pela saúde do trabalhador e por outras questões relacionadas ao trabalho concreto. A redução do número de postos de trabalho nas empresas convencionais tem levado ao surgimento de iniciativas individuais e coletivas de geração de renda. Nesse contexto, vêm ganhando destaque os empreendimentos populares sob forma de cooperativas, empresas coletivas, associações e grupos de produção que se alinham aos princípios da economia solidária (sobre o desenvolvimento da economia popular solidária no Brasil, ver textos reunidos em Singer, P. & Souza, A. [orgs.], 2000).

Uma análise mais cuidadosa das situações de trabalho nos empreendimentos solidários revela deficiências de naturezas distintas que, somadas, formam um contexto desfavorável ao desenvolvimento dessas iniciativas. Os problemas enfrentados vão da ausência de linhas de crédito para obtenção de capital de giro e de re-investimento, passando por políticas públicas (que, apesar de serem anunciadas como prioritárias pelos governos, ainda são incipientes), até deficiências de organização interna e de relacionamento com o mercado. Em geral, os trabalhadores possuem habilidades práticas específicas acumuladas em suas trajetórias profissionais, normalmente relacionadas à execução de tarefas de produção, mas raramente possuem competências de gestão necessárias para o relacionamento interno e para estabelecer relações com o ambiente externo.

Neste artigo é apresentada uma ação ergonômica desenvolvida junto a uma cooperativa de produção com o intuito de ressaltar empecilhos para o bom andamento dessas experiências e como a análise ergonômica do trabalho pode contribuir para superar algumas dessas dificuldades. O objetivo é possibilitar uma reflexão sobre os desafios encontrados pela economia solidária diante de uma realidade que produz cada vez mais informalidade e precariedade e na qual começam a surgir alternativas que propõem adotar novas formas de organização do trabalho, como o associativismo. A análise ergonômica do trabalho pode dar uma contribuição decisiva para viabilizar esses empreendimentos autogestionários ao revelar, no trabalho concreto, o que provoca conflitos e desconfiança entre os associados, em especial, no caso em estudo, as dificuldades de aprendizagem de um saber prático em razão de suas dimensões tácitas.

Uma experiência de intervenção junto a um empreendimento solidário

A situação de trabalho analisada desenvolve-se no interior de uma cooperativa de produção de artefatos de couro e material sintético, principalmente calçados e bolsas, situada na região metropolitana de Belo Horizonte. O grupo está em atividade desde outubro de 2003 e foi constituído a partir de um projeto de formação de líderes comunitários da Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS), desenvolvido na gestão Fernando Henrique Cardoso. O Centro Nacional de Formação Comunitária (CENAFOCO) foi implementado em sete regiões metropolitanas do Brasil (Belo Horizonte, Brasília, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória) entre os anos de 2000 e 2002. O público-alvo era formado por jovens e adultos de comunidades que apresentavam alto índice de violência (Pierro, 2003).

Em Belo Horizonte, o CENAFOCO foi implementado por meio de um convênio que reuniu a SEAS e a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), que, por sua vez, estabeleceu parcerias com duas organizações não-governamentais: a Associação Municipal de Assistência Social (AMAS) e a Escola Sindical 7 de Outubro, para a execução do projeto. O programa de formação incluía cidadania e participação, direitos humanos, meio ambiente, voluntariado, estratégia de ação comunitária, elaboração de projetos sociais, dentre outros assuntos. Após os seis meses de duração do programa, os participantes, que nesse período recebiam uma ajuda de custo, deviam estar aptos a desenvolver um projeto social em suas respectivas comunidades. Para isso, o grupo contaria com uma verba disponibilizada pelo CENAFOCO no valor de dez mil reais.

Tendo em vista uma oportunidade de geração de trabalho e renda, o grupo se decidiu pela constituição de uma cooperativa de produção. A escolha da atividade a que o grupo se dedicaria foi influenciada pela experiência de dez anos de um dos integrantes em confecção de calçados e bolsas. Após a definição da atividade, esse integrante, que aqui será denominado instrutor, assumiu o processo de capacitação dos demais associados da Cooperativa, todos novatos no ofício.

Nesse momento, a SMAS solicitou ao Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano (NESTH), ligado à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apoio técnico para constituição dessa cooperativa e de três outras que seriam formadas por grupos também egressos do CENAFOCO. Di ante dessa solicitação, o NESTH convidou outras escolas e grupos de pesquisa da UFMG para integrar o projeto: a Faculdade de Ciências Econômicas, a Faculdade de Direito e o Departamento de Engenharia de Produção (DEP) por meio do Laboratório de Ergonomia. Essa intervenção conjunta foi um projeto-piloto para a incubadora de empreendimentos populares que se encontra em fase de constituição na Universidade.

A intervenção do Laboratório de Ergonomia do DEP iniciou-se na segunda quinzena de agosto de 2003 e identificou dificuldades concretas encontradas durante o processo de constituição do empreendimento. Algumas situações nas quais o DEP contribuiu para a tomada de decisão da cooperativa foram as seguintes:

desenvolvimento da estratégia de capacitação dos associados;

definição do leiaute da unidade produtiva;

estabelecimento de prioridades para investimentos (máquinas, ferramentas, matéria-prima etc.);

identificação de oportunidades de comercialização dos produtos.

Caracterização dos associados

O empreendimento é composto por onze associados: sete mulheres (64%) e quatro homens (36%). Os dependentes diretos dos trabalhadores e das trabalhadoras totalizam trinta e uma pessoas que, somadas aos cônjuges e aos próprios associados, perfazem cinqüenta e um beneficiários dos resultados da cooperativa. Com relação à faixa etária, cinco associados (45%) têm entre 36 e 39 anos e seis (55%) têm mais de 40 anos de idade. A formação escolar dos associados é heterogênea: cinco pessoas (45%) não completaram o Ensino Fundamental (antigo 1° grau), dois associados (18%) interromperam os estudos após concluírem o Ensino Fundamental e quatro integrantes do grupo (37%) têm o Ensino Médio (antigo 2° grau) completo.

Observa-se nos dados apresentados que a população trabalhadora é composta principalmente por mulheres (64%), que a maioria dos associados (55%) encontra-se na faixa etária acima dos 40 anos e, no que se refere à escolaridade, também a maior parte do grupo (45%) não completou o Ensino Fundamental. Essas características fazem da "aposta" no empreendimento não somente uma questão de opção do grupo, mas, para muitos, oportunidade única de acesso ao mercado formal de trabalho, normalmente não receptivo a trabalhadores com esse perfil.

Transmissão do saber prático: uma demanda crucial

Como se desenvolve o processo de ensino-aprendizagem no contexto de um empreendimento autogestionário? A formação de adultos traz questões complexas quanto aos aspectos pedagógicos e, no contexto do cooperativismo, assume contornos de um desafio ainda maior. Os empreendimentos autogestionários normalmente já enfrentam uma série de problemas para se consolidarem, como dificuldades de comercialização e de acesso ao crédito, falta de conhecimentos de gestão administrativa e de produção.

Durante o período de capacitação para a produção, compreendido entre outubro de 2003 e janeiro de 2004, os associados da Cooperativa dividiram-se em dois grupos que desenvolviam suas atividades nos períodos das 7h às 12h e das 13h às 18h. Assim foi definido para facilitar o acompanhamento individualizado das atividades por parte do instrutor e porque vários associados tinham outras atividades, sejam domésticas ou profissionais.

Partindo-se do princípio de que "a aprendizagem de uma habilidade prática só pode ocorrer por meio da prática e de forma progressiva durante a prática" (Lima, 2000) e tendo em vista a necessidade premente de gerar receita para o grupo, decidiu-se pelo desenvolvimento do processo de capacitação aliado a um planejamento de produção a ser comercializada, tendo sido planejado inicialmente um lote composto por trezentos pares de calçados e cem bolsas. Essa estratégia de transmissão de conhecimento, mesmo sendo a mais efetiva para a situação, traz consigo problemas decorrentes do fato dos aprendizes lidarem com os meios de produção (máquinas, ferramentas e matéria-prima) em situação real de trabalho. Logo, os desperdícios de material ou a má utilização das ferramentas e dos equipamentos resultariam em perdas dos já escassos recursos de que o grupo dispunha. Isso criou uma exigência particular para o processo de ensino/aprendizagem.

"A dificuldade maior é porque nós estamos, além de capacitando, produzindo. O que exige muita qualidade exige tempo... É muito complicado você produzir, fazer aquilo 'virar dinheiro' para gerar renda daquilo e, ao mesmo tempo, as pessoas estão aprendendo para fazer 'correto'. Isso é uma coisa muito nova pra elas." (Instrutor)

A definição dos postos de trabalho e a divisão das tarefas foram se estabelecendo lentamente, mais em função da dinâmica imposta pela atividade coletiva do que por critérios formalmente definidos. Vale ressaltar que, até então, o instrutor trabalhava sozinho e que, em função de sua experiência, planejava suas atividades de um modo que seria inviável reaplicar automaticamente para um grupo de quinze aprendizes. Além disso, nem todas as estratégias desenvolvidas em situação real podem ser explicitadas e transformadas em regras a serem seguidas por outras pessoas. Pode-se dizer, portanto, que se desenvolvem concomitantemente no interior do grupo dois processos de aprendizagem: o da produção de calçados e bolsas e o da produção da autogestão.

Descrição do processo de produção

O acompanhamento do período de planejamento da Cooperativa (de agosto a outubro de 2003) facilitou a aproximação da situação de trabalho. Utilizou-se a metodologia da Análise Ergonômica do Trabalho (AET), cujas ferramentas permitiram não só a melhor apreensão dos processos técnicos envolvidos na produção, mas também uma compreensão do contexto em que se desenvolvia o processo de (ensino-aprendizagem) e das dificuldades de transmissão do saber prático. Pode-se dizer que os observadores ocupavam um lugar privilegiado em função da construção de uma relação de confiança com os associados.

O estudo ergonômico iniciou-se com a identificação das etapas do processo produtivo de calçados, que consiste em: 1) modelagem, 2) corte, 3) colagem, 4) pesponto, 5) apara-ção, 6) montagem e 7) acabamento.

Modelagem

Os modelos são a) extraídos de revistas especializadas ou b) adaptados de produtos vendidos no mercado local (engenharia reversa). Em ambos os casos, a modelagem é feita artesanalmente por meio da confecção de um piloto.

Nessa etapa são consideradas questões estéticas (tendências da moda: modelos e cores) e econômicas (tipo de material, melhor aproveitamento da matéria-prima).

Na modelagem são utilizados papelão, papel vegetal, mesa, tesoura, caneta, lápis, régua, esquadro e estilete.

Corte

Para executar o corte, o operador usa moldes confeccionados a partir do piloto criado na etapa anterior. As peças cortadas são agrupadas e encaminhadas à colagem.

Nesta etapa, utilizam-se suporte e lâmina de faca, pedra de afiar (ou esmeril), além do molde em papelão, couro ou material sintético, borracha e uma mesa.

Colagem

O operador cola cada peça enviada pelo setor de corte em seu respectivo forro. Os adornos também são instalados nesse momento: ilhós, pedras, fivelas etc. As peças coladas são agrupadas e enviadas para o pesponto.

O material utilizado na etapa de colagem é composto por cola, solventes, pincéis, tesouras, martelo, turquesa, mesa, bancos, máquinas de fixar botões e acessórios para os calçados.

Pesponto

O pesponto (ou costura) reforça a colagem atendendo a critérios de resistência e estética. As peças pespontadas são agrupadas e enviadas para a aparação.

Linhas, máquina de costura, tesoura, fita métrica, agulhas, lubrificantes para as máquinas e um móvel para organizar as peças são alguns materiais utilizados nesta etapa do processo.

Aparação

Nesta etapa o operador apara as sobras de material, como linhas e partes excedentes do forro. As peças são agrupadas e enviadas para a montagem.

Na aparação, utilizam-se tesouras, facas, uma mesa e um móvel para organizar o material.

Montagem

Todas as etapas anteriores foram necessárias para a confecção do cabedal (peça do calçado que envolve a parte superior dos pés). As mesmas etapas são seguidas para a confecção e o forramento da palmilha (com exceção da palmilha conformada, utilizada em sapatos de salto alto, que não leva pesponto).

Nesta etapa, é feita a montagem do calçado (cabedal, palmilha e solado). Para isso são utilizados os seguintes materiais: prensa, estufa, fôrma, alicate, turquesa, martelo, pincéis, lápis "marca-couro", caneta, tesoura, cola e pregos. Além de uma bancada, uma prateleira e bancos.

Acabamento

Trata-se de uma espécie de controle de qualidade. É quando são retirados resíduos de cola e linhas e quando são feitos os retoques finais. O operador monta a caixa (dobra e encaixe) e a identifica (modelo, referência, número, cor). Finalmente acondiciona o calçado pronto e o encaminha para o estoque.

Para o acabamento, utilizam-se tesoura, solventes e outros materiais ou ferramentas necessários para fazer os possíveis retoques.

O processo de produção de bolsas não foi detalhado aqui por ser similar ao da confecção de calçados, com exceção da etapa de colagem, que não se aplica a este produto.

As situações de aprendizagem

As observações abertas do desenvolvimento do trabalho no interior da cooperativa revelaram que o instrutor ocupava lugar central no processo produtivo, o que fazia com que a análise de sua atividade possibilitasse a compreensão do encadeamento das ações dos outros trabalhadores e, conseqüentemente, um entendimento global do funcionamento da cooperativa.

O instrutor precisava lidar com um quadro de variabilidade para dar conta da capacitação desses sujeitos. Cabia a ele, além de capacitar, coordenar as ações dos associados, decidir sobre alterações no processo mediante situações imprevistas (como em ausências de trabalhadores ou falta de matéria-prima) e interferir em ações paralelas que deveriam convergir em um dado momento. Era o caso da etapa de montagem, na qual cabedal, palmilha e solado precisavam estar preparados para a composição de uma peça única.

O instrutor mantinha "um conhecimento do conjunto da situação, do estado de adiantamento das tarefas, das diferentes pessoas envolvidas..." (Guérin et. al., 2001, p. 60). Ele precisava também se antecipar às situações que envolviam risco de perda de matéria-prima, como era o caso do vazamento de cola nas áreas externas de calçados confeccionados com determinados tipos de materiais que não admitem limpeza com solventes. Esse trabalhador era ainda responsável pelos contatos com fornecedores e clientes, além de monitorar os filhos quanto ao horário das refeições, da saída para a escola e de outras questões referentes à sua vida pessoal e familiar, uma vez que habitava um imóvel localizado ao lado da unidade produtiva.

"... olha gente, quando vocês forem misturar o solvente na cola, tomar cuidado com a de PVC porque ela estraga." (Instrutor)

"Nunca faça assim, senão vira uma bagunça." (Instrutor, referindo-se à forma de organização das grades de calçados. Uma grade de calçados é composta por quatorze pares de tamanhos variados.)

Além de convocadas suas capacidades cognitivas, surgiam outras questões de natureza afetiva e ética, como o "compromisso" que o instrutor firmou com o grupo acerca do sucesso da capacitação e do próprio empreendimento. Esse trabalhador assumiu o risco de fazer uma "aposta" na constituição de uma cooperativa, abrindo mão de um rendimento mensal com o qual poderia contar com mais segurança. Segundo ele, esse fato gerava cobranças de sua esposa quanto à manutenção do nível de renda da família, tendo como referência o período em que trabalhava sozinho. As dificuldades encontradas com os associados e com a produção sempre tendiam a fazer com que ele colocasse em questão a sua decisão:

"Eu até já pensei nisso mesmo: 'Será que foi a escolha certa que eu fiz com essa cooperativa?'. 'Não seria melhor eu ficar quebrando a cabeça até eu conseguir um sócio e tocar [o negócio] do meu jeito?'" (Instrutor)

Situações do cotidiano da produção também pareciam trazer exigências afetivas decorrentes da relação, às vezes conflituosa, com os associados. Era o caso de ocorrências de falhas durante o processo produtivo que o instrutor atribuía à "má vontade" dos colegas.

"Antes tudo saía perfeito, no começo tava todo mundo muito 'chegado' mesmo, agora em vez de melhorar está regredindo. É o mesmo trabalho, repete sempre. Muda o modelo, mas não muda o modo de fazer. É isso que tem que conscientizar... o processo é o mesmo, por isso é que não tem como ficar errando. É falta de concentrar naquilo e prestar atenção. Para mim, então, é só 'corpo mole' mesmo." (Instrutor)

Quando se consideram os processos cognitivos implicados na aprendizagem de uma habilidade prática, pode-se compreender que esses problemas têm relação com a memória de curto e longo prazo e com as diferentes representações do processo em uma fase de construção de esquemas mentais, ainda não sedimentados, por parte dos trabalhadores:

"O... (instrutor) me mostrou, mas eu esqueci." (Associada, a respeito de um ajuste na máquina de costura.)

O imóvel de dois pavimentos que abriga a cooperativa colocava, ainda, exigências físicas em função dos constantes deslocamentos necessários ao acompanhamento das várias etapas do processo por parte do instrutor. Além disso, era freqüente a necessidade de ocupar postos de trabalho de outros associados para demonstrar como a tarefa deveria ser feita, o que gerava inadequações antropométricas.

A alternativa que sugerimos foi a formalização das tarefas passíveis de registro em procedimentos-padrão, criando condições para que o instrutor pudesse se concentrar em atividades que, de fato, exigissem seu acompanhamento pessoal, atividades que tivessem em seu conteúdo a necessidade real de aplicação de seu conhecimento tácito e que não poderiam ser transformadas em regras. Com isso, esperava-se reduzir o número de intervenções, que poderiam ser evitadas com tal formalização, criando instrumentos de apoio ao trabalho coletivo.

As comunicações do instrutor

Para compreender as razões das solicitações dos associados, foram realizadas observações sistemáticas da atividade do instrutor durante três períodos de uma hora, em dias e horários distintos. Procurou-se, com isso, obter informações que contemplassem a variabilidade das situações de trabalho, variabilidade que se fez notar pela produção exclusiva de mochilas escolares no mês de janeiro, produto não previsto na programação inicial, o que evdencia a imprevsibilidade e a sazonalidade do mercado em que a cooperativa atua. Cabe ressaltar que as observações abertas foram feitas nos meses de novembro e dezembro, quando eram produzidos somente calçados femininos em função das festas de final de ano.

Para o registro sistemático das atividades do instrutor, foram determinadas seis categorias de classificação das comunicações, a saber:

a) Comercialização: recepção de pedidos, determinação dos preços e dos prazos de entrega;

b) Equipamentos e ferramentas: ajustes e reparos em equipamentos (como máquinas de costura e prensas) e ferramentas (facas, tesouras, alicates, moldes) utilizados no processo de produção;

c) Matéria-prima: orientações sobre características e localização dos materiais, controle e reposição de estoque;

d) Processo produtivo: distribuição de tarefas entre os operadores e gerenciamento do fluxo da produção;

e) Produto: ação sobre produto acabado ou em processo de produção, como ajustes e controle de qualidade;

f) Transmissão de saber: ação efetiva junto a outro trabalhador com o objetivo de orientar "como fazer".

Deve-se ressaltar que as comunicações observadas aconteciam concomitantemente à produção, enquanto o instrutor ocupava um posto de trabalho de costura. Para a confecção de bolsas e mochilas não é necessária a etapa de colagem. Logo, os postos de trabalho de costura, ou pesponto, tornam-se gargalos potenciais, exigindo a mobilização dos operadores mais experientes a fim de aumentar o ritmo da produção.

A classificação das comunicações foi feita a partir da análise do conteúdo dos diálogos entre o instrutor e os associados. Os resultados são apresentados na tabela a seguir.

Análise das interações

A análise dos resultados das observações sistemáticas, resumidos na Tabela 1, indica que o maior número de comunicações realizadas pelo instrutor refere-se ao processo produtivo. Nos períodos 1, 2 e 3 foram observadas, respectivamente, 20, 21 e 18 intervenções no fluxo da produção, o que equivale a 45% das comunicações registradas no período 1, 39% no período 2 e 52% dos diálogos observados no período 3. As principais ocorrências são orientações sobre o encadeamento das ações, ou seja, para qual posto de trabalho deve seguir o material que teve uma etapa da produção finalizada, além de indicações sobre a quantidade de peças a serem produzidas para evitar falta de material nas etapas posteriores. Nas verbalizações do instrutor:

"Estão precisando de costas aí atrás?", pergunta às costureiras referindo-se à parte posterior das mochilas. "Só tem esses dedinhos [denominação de peças de mochilas] cortados, traz mais", solicitando material ao setor de corte.

As comunicações que envolvem a transmissão de saber totalizaram sete ocorrências no período 1, quinze ocorrências no período 2 e cinco ocorrências no período 3, o que corresponde respectivamente a 16%, 29% e 15% das comunicações realizadas pelo instrutor em cada período.

A variável tempo não é considerada nesta análise pelo fato de as comunicações serem telegráficas (de curta duração). Logo, pode-se atribuir ao tempo os mesmos percentuais das tarefas, havendo margem de erro que pode ser considerada inexpressiva para os objetivos destas observações.

Os resultados das observações sistemáticas mostram que a formalização deve reduzir a quantidade de tarefas realizadas pelo instrutor. Somando-se as orientações sobre tipo e localização de matéria-prima às intervenções no processo produtivo durante as três horas de observação, chega-se a um total de 56% das comunicações realizadas.

Observa-se que as ações mais freqüentes do instrutor são exatamente aquelas com as quais ele não tem experiência alguma. Ora, trabalhando sozinho ele não tinha, obviamente, que coordenar atividades de outras pessoas e organizava a matéria-prima da forma como melhor lhe conviesse.

Com base nesta análise, é possível eleger o processo produtivo e a matéria-prima, itens prioritários para formalização, donde algumas possibilidades de ação podem ser propostas:

descrição do processo produtivo de forma a evidenciar o fluxo a ser seguido, o que deverá possibilitar que cada associado conheça o encadeamento das etapas de produção.

elaboração de listas de materiais que ao mesmo tempo servirão como memória técnica dos modelos produzidos e possibilitarão o acesso dos associados a informações relativas à matéria-prima utilizada.

Algumas iniciativas para formalização dos processos foram introduzidas pelos próprios associados. A organização autogestionária do trabalho parece garantir espaços de autonomia que permitem expressões da criatividade dos associados. A criação desses espaços deve ser estimulada a fim de permitir que as formalizações sejam elaboradas pelos próprios agentes envolvidos no empreendimento, evoluindo para outras áreas como, por exemplo, a adoção de um modelo transparente de balanço financeiro.

o trabalhador do setor de corte escreveu em retalhos de tecido o nome do material para facilitar a identificação quando forem solicitadas peças daquele tipo. Muitas vezes existem materiais muito parecidos visualmente, que são diferenciados por meio do tato, quando é possível ao operador identificar a gramatura e a textura de cada um. A solução encontrada pelo operador dificilmente seria conseguida com catálogos impressos ou com uso de computadores, já que nesses casos seria possível somente a inspeção visual, insuficiente para a identificação da matéria-prima.

o instrutor, que também é responsável pela confecção dos moldes e pela indicação dos materiais utilizados em cada produto, anotou nos moldes o número de peças e o tipo de material que deve ser utilizado para facilitar a etapa de corte.

a trabalhadora que organiza o almoxarifado cortou retalhos de tecido e criou códigos por cores e tipos de material para facilitar a procura em estoque no momento das requisições para a produção.

Conclusão

Os resultados obtidos com a análise ergonômica do trabalho permitem esclarecer algumas dificuldades que já havíamos constatado em cooperativas e em outras empresas autogestionárias: os conflitos entre os associados, inviabilizando o desenvolvimento de uma gestão transparente e da autonomia individual e coletiva. Retomamos aqui apenas um dos problemas detectados nesta cooperativa de calçados e bolsas. Uma das fontes de conflito eram os "erros" dos aprendizes que levavam a perdas de produção e à baixa qualidade. Para evitar isso, o instrutor exercia uma vigilância constante, nem sempre possível dado o leiaute (produção distribuída em dois andares) e as tarefas simultâneas das quais ele próprio devia se encarregar. Para ele era incompreensível que um colega conseguisse fazer certo uma vez e, logo em seguida, repetisse a mesma pergunta ou cometesse "erros". Sua conclusão era de que só poderia ser má vontade ("corpo mole"), o que justificativa a sua descrença no projeto da cooperativa.

No entanto, podemos, após essas análises, explicar esses problemas e conflitos de outro modo. Há várias explicações para os "erros" dos aprendizes. O que parece ser incompreensível (e imperdoável, aos olhos do instrutor) é que alguém piore seu desempenho, tendo feito certo uma primeira vez. Ora, da perspectiva do domínio de uma habilidade prática, isso se explica pela não linearidade do processo de aprendizado: um saber prático não se adquire, de modo consolidado, de um só golpe. De início, o aprendiz consegue fazer, sem saber como e por que obteve sucesso. Apenas mais tarde é que o procedimento se cristaliza e, em parte, toma-se consciência, que surge somente após a capacidade prática.

Do mesmo modo, quando o instrutor diz que não se justificativa o erro porque era a mesma coisa, apenas mudava o produto, está querendo que os aprendizes formulem generalizações que ainda não são capazes de fazer, seja porque ainda não dominam praticamente todos os passos de uma dada tarefa, seja porque ainda não formulam conscientemente certas formas de fazer em regras práticas conscientes.

Diante dessa obscuridade dos processos de aprendizagem, não é difícil entender as razões dos conflitos entre os cooperados e por que, tal como encontramos em outras situações, criam-se clivagens no grupo, separando o "nós" e o "eles" (normalmente aqueles que assumem a direção dos negócios). A tendência natural é que esses conflitos objetivos levem a uma psicologização das relações interpessoais, sendo os problemas, então, explicados a partir de traços de personalidade ou em termos morais ("má vontade"). Este é um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento autêntico da autogestão: o desconhecimento da atividade de um outro. A análise ergonômica do trabalho, ao revelar as dificuldades inerentes ao processo de ensino-aprendizagem de um saber prático, contribui para a intercompreensão e, desse modo, para a viabilização da gestão coletiva da produção.

  • GUÉRIN, F. et al. Compreender o Trabalho para Transformá-lo. São Paulo: Edgard Blücher, 2001.
  • LIMA, F. A Formação em Ergonomia: Reflexões esobre Algumas Experiências de Ensino da Metodologia de Análise Ergonômica do Trabalho. In: Kiefer, C. et al. (orgs.). Trabalho, Educação e Saúde: um Mosaico de Múltiplos Tsons. Vitória: Fundacentro, 2000.
  • PIERRO, M. (coord.) Seis Anos de Educação de Jovens e Adultos no Brasil: Os Compromissos e a Realidade. São Paulo: Ação Educativa, 2003.
  • SINGER, P. & SOUZA, A. (orgs.) A Economia Solidária no Brasil: A Autogestão como Resposta ao Desemprego. São Paulo: Contexto, 2000.
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    Artigo apresentado no XIII Congresso Brasileiro de Ergonomia. Fortaleza, 29 de agosto a 2 de setembro de 2004. CD-ROM
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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