Acessibilidade / Reportar erro

EDITORIAL

A história da educação consolidou-se como área de conhecimento educacional, em meados do século XIX, associada à ideia de que o passado é portador de lições. Nessa chave de leitura, seu estudo permitiria aos educadores apropriarem-se do passado para iluminar as práticas pedagógicas em curso e melhor projetá-las no futuro. Essa noção da história magistra vitae, que predominou por séculos, não encontra mais adeptos no debate entre os especialistas, embora siga forte como representação da função da história entre os leigos.

Na esfera acadêmico-educacional, espaço no qual se situam os leitores e os autores da Revista Brasileira de Educação (RBE), a crítica à história como repositório de exemplos de virtude não representou desinteresse pelo estudo do passado. Com efeito, se o passado não oferecia lições para o presente, o seu conhecimento contribuiria para a compreensão das razões humanas e sociais que levaram à cristalização de formas de ensinar e de organizar o ensino em diferentes contextos culturais e temporais. Além disso, o entendimento da história possibilitava a "desnaturalização" do mundo social, mostrando como os processos formativos resultaram de escolhas, entre outras possíveis, de indivíduos e de grupos sociais, ora em confronto, ora em colaboração, e em posições de poder diferenciadas.

Em sintonia com essa percepção atualizada da função da história, este número da RBE reúne onze artigos, sendo oito associados direta ou indiretamente à história da educação. No primeiro, valendo-se de pontos de vista pedagógico, arquitetônico e urbanístico, Ester Buffa e Gelson de Almeida Pinto apresentam e problematizam o modelo de campus para a organização da universidade brasileira. Os autores destacam a arquitetura modernista racionalista desse modelo, implantado no Brasil a partir dos anos 1960, tendo como horizonte e contraponto as experiências das universidades europeias e norte-americanas. No segundo, Rosa Fátima de Souza discute algumas abordagens e métodos norteadores do recurso da comparação, em termos históricos e educacionais. Nessa perspectiva, foram identificadas as tensões entre o regional, o estadual, o nacional e o internacional, considerando, por um lado, a perspectiva política e, por outro, as representações sobre as identidades. A autora aponta desafios e possibilidades de estudos dessa natureza, compreendendo a comparação como instrumental para a reflexão tanto da produção acadêmica quanto das realidades educacionais dos diferentes países.

José Anchieta de Oliveira Bentes e Maria Cristina Piumbato Innocentini Hayashi retomam o contexto de criação do Instituto Nacional de Surdos (INES) tendo como horizonte analítico as mudanças na percepção e na concepção da educação especial. Para a construção argumentativa, os autores refletem sobre o processo de produção dos conceitos de normalidade, diversidade e alteridade. Somando à perspectiva da educação especial uma visão histórica, Maria Edith Romano Siems-Marcondes apresenta aspectos da trajetória de implantação da educação especial no território federal de Roraima (1970-1990). A autora constrói uma análise da "história vista de baixo", inspirada em E. P. Thompson, assumindo como objetivo analisar a experiência dos sujeitos, evidenciando como Roraima tornou-se campo de aplicação das políticas projetadas pelo regime militar.

A legislação educacional é objeto de estudo em dois artigos. O primeiro, de Juarez José Tuchinski dos Anjos e Gizele de Souza, adota como fonte os regulamentos de instrução e as leis do ensino obrigatório, presentes na legislação escolar da província do Paraná, entre os anos de 1857 e 1883, com objetivo de discutir os processos de escolarização da infância. A lei n. 11.645/2008, que trata da obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena no ensino básico, é discutida por Kelly Russo e Mariana Paladino. As autoras pesquisam a implementação dessa lei na região do Grande Rio (Rio de Janeiro) com base nas representações e práticas de professores, de escolas municipais e estaduais, acerca da lei e do ensino sobre a realidade dos povos indígenas.

Claudio Almir Dalbosco focaliza a teoria da história ao problematizar a concepção rousseauniana de tempo. O autor trabalha com a hipótese de que tal concepção não é especificamente cíclica (antiga) nem só linear (cristã e/ou moderna), mas sim ambivalente, cuja síntese original repousa na noção de perfectibilité. O ensaio conclui argumentando sobre o modo como essa noção de história interfere no projeto educacional esboçado em Émile.

Fechando esse bloco de artigos, associados direta ou indiretamente ao campo historiográfico, Daniel Luciano Gevehr aborda o ensino de história discorrendo sobre os impactos da modernidade e suas diferentes dimensões culturais. Discute como as redefinições dos modelos de ensino da história, antes pautado em memorizações, linearidades e heroicizações, apresentam hoje novos problemas. Entende que a espetacularização dos acontecimentos e a instantaneidade com que são representados impõem a necessidade do ensino de história voltar-se para a leitura de mundo e de seus espaços, buscando assim a articulação entre aonde queremos chegar e o lugar em que estamos agora.

Esta edição traz também dois artigos sobre currículo. No primeiro, o currículo é estudado conforme uma perspectiva analítica das políticas públicas, e, no segundo, é visto na perspectiva da teoria curricular. Cláudia Valentina Assumpção Galian analisa os Parâmetros Curriculares Nacionais e as propostas elaboradas por dois estados brasileiros procurando identificar o conhecimento considerado relevante para ser disponibilizado no ensino fundamental, em ciências naturais e arte. Para a análise, a autora utiliza os conceitos de "recontextualização" e de "conhecimento poderoso". Os resultados sugerem que a discussão sobre as definições curriculares tende a se acirrar quando se trata de disciplina socialmente reconhecida como relevante - as ciências -, mais do que quando se trata de pensar no potencial formativo das artes. Em uma perspectiva discursiva, Hugo Heleno Camilo Costa e Alice Casimiro Lopes, com base em estudos centrados em políticas de currículo, discutem o pensamento de Ivor Goodson com foco na interpretação das comunidades disciplinares, entendidas como subjetivações produzidas na política. O artigo focaliza o que Goodson faz pensar sobre as comunidades disciplinares e como sua noção de subjetividade disciplinar, na produção das políticas de currículo, deve ser objeto de análises críticas quando olhada com base em aportes teóricos pós-estruturalistas.

Encerrando a sessão de artigos, Cristina Pinto Albuquerque, José Soares Ferreira e Graça Brites trabalham com a relação entre educação e empreendedorismo. Nessa articulação, a educação é considerada um elemento estratégico na promoção de modelos de desenvolvimento mais inclusivos, éticos e holísticos. Os autores apresentam a pedagogia empreendedora, associada à capacitação e à educação para a cidadania.

As duas resenhas que finalizam este número estão articuladas às temáticas da história da educação e do currículo. Na obra resenhada por Rafael Severiano, Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial, a autora Maria Betânia Barbosa discute e denuncia a concepção de educação que privilegia os saberes escolares e silencia os saberes diversificados não escolares. Por fim, Internationalizing the curriculum, de Betty Leask, resenhada por José Marcelo Freitas de Luna, tem como foco o processo de internacionalização das instituições de ensino superior (IES) e, por consequência, as maneiras de pensar o currículo.

Esperamos que desfrutem do prazer de uma ótima leitura.

Rio de Janeiro, outubro de 2016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@anped.org.br