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O tráfico interestadual de escravos nos Estados Unidos em suas dimensões globais, 1808-1860

The U.S. interstate slave trade in its global dimensions, 1808-1860

Resumo:

O presente artigo explora as dimensões globais de um tema clássico da historiografia norte-americana: o tráfico interestadual de escravos nos Estados Unidos. Após apresentar em linhas gerais algumas das principais contribuições historiográficas sobre o tema, a primeira seção do texto discute as colaborações de trabalhos recentes que têm enfatizado as articulações da escravidão e do tráfico de escravos no Sul dos Estados Unidos com o desenvolvimento do capitalismo global no século XIX. A segunda parte do artigo complementa a primeira em uma tentativa de análise integrada da história do comércio interno de escravos nos Estados Unidos e do tráfico transatlântico de escravos para Cuba e, especialmente, para o Brasil, com foco nas tensões políticas produzidas pelas articulações entre os dois processos.

Palavras-chave:
tráfico de escravos; abolicionismo; segunda escravidão.

Abstract:

The present article explores the global dimensions of a classical theme in the U.S. historiography: the interstate slave trade in the United States. After presenting some of the main works on the subject, the first section of the article discusses recent contributions that have emphasized the connections between slavery and the slave trade in the U.S. South and nineteenth century global capitalism. The second part of the article explores the links between the U.S. interstate slave trade and the transatlantic slave trade to Cuba and, especially, Brazil, with an emphasis on the political tensions generated by them.

Keywords:
slave trade; abolitionism; second slavery.

Em meados da década de 1850, os norte-americanos George W. Gordon e Henry A. Wise concorreram ao governo de seus respectivos estados, Massachusetts e Virgínia. Dez anos antes, os dois atuaram juntos como representantes diplomáticos dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, quando combateram veementemente a participação de cidadãos norte-americanos no contrabando negreiro que grassava no Brasil. A campanha de Gordon ao governo aludia a essa história por meio de um panfleto que descrevia alguns dos principais momentos de sua luta em solo brasileiro, marcada pela apreensão de diversos navios e cidadãos norte-americanos acusados de envolvimento com o tráfico. “Amantes da liberdade, leiam! Leiam!! Leiam!!! E votem no melhor homem”, pedia seu autor. Em um dos casos descritos, o cônsul resgatou três garotos africanos e os enviou para Boston, onde se tornaram livres. Um deles, Pedro Tovookan Parris, participaria ativamente da campanha pela eleição de Gordon ao governo do estado dez anos depois.2 2 American Party (Mass.), and African American Pamphlet Collection (Library of Congress). The Record of George Wm. Gordon: The Slave Trade at Rio de Janeiro, Seizure of Slave Vessels, Conviction of Slave Dealers, Personal Liberation of Slaves, &c. Practice against Theory. Lovers of Freedom, Read! Read!! Read!!! and Vote for the Best Man. Boston: American Head-Quarters, 1856; Parris, 1973, p. 60-68.

Henry A. Wise, por sua vez, recuperou sua experiência no Brasil para defender a escravidão norte-americana. Em uma troca de cartas com um pastor da Nova Inglaterra, amplamente divulgada na imprensa norte-americana em 1854, Wise começava afirmando que a escravidão era um assunto de interesse exclusivo dos estados sulistas. Na sequência, apontava para a violência do tráfico transatlântico de escravos, mas frisava que as políticas antitráfico adotadas pelo “mundo civilizado” pioravam-no. Além disso, prosseguia Wise, comparado à África, o Brasil seria um paraíso para o africano, com escravos “podendo adquirir o direito à liberdade, ao casamento inter-racial, à igualdade social, e onde eles se tornam artesãos úteis”, em referência a argumentos pró-escravistas típicos do Segundo Reinado do Brasil (Marques, 2016MARQUES, Leonardo. The United States and the transatlantic slave trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016., p. 216-217). O jornal Charleston Mercury enalteceu a defesa da escravidão brasileira por Wise, mas criticou sua “imagem exagerada dos horrores do tráfico de escravos” (Karp, 2016KARP, Matthew. This vast southern empire: slaveholders at the helm of American foreign policy. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2016., p. 145).

A resposta de Wise não trazia qualquer referência ao tráfico doméstico de escravos dos Estados Unidos, um silêncio que foi regra na história do Sul escravista. Como descreve Frederick Law Olmsted em seu famoso relato de viagem pelos estados sulistas, para um visitante da Nova Inglaterra era praticamente impossível obter informações a respeito do comércio doméstico de escravos na Virgínia. Apesar de evidente para qualquer um que passeasse pelas ruas de cidades como Alexandria, na Virgínia, base de operações de alguns dos principais comerciantes de escravos do país, o tráfico doméstico era pouco discutido: “a maioria dos senhores de caráter parece ter uma particular falta de vontade de conversar a respeito do tema”. Ainda assim, de acordo com Olmsted, Wise teria sugerido em sua campanha para governador do estado em 1855 que, se a escravidão fosse permitida na Califórnia, o valor de cada escravo subiria para algo em torno de 5.000 dólares, em uma clara referência ao tráfico interno de escravos e o lugar da Virgínia nele (Olmsted, 1856OLMSTED, F. L. A journey in the seaboard slave states: with remarks on their economy. New York: Dix & Edwards, 1856., p. 58).

Entre 1820 e 1860, mais de 875 mil escravos foram carregados por terra, rios e mar entre as regiões exportadoras de cativos do Upper South e as novas fronteiras escravistas do Lower South3 3 Upper South e Lower South se referem às zonas de exportação e importação de cativos, com suas transformações ao longo do tempo. Ao longo da primeira metade do Oitocentos, estados como Kentucky, Tennessee e as Carolinas do Norte e do Sul passaram de importadores a exportadores de cativos. Enquanto isso, novos estados como Mississippi, Louisiana e Texas se tornavam destinos cada vez mais centrais para os movimentos interestaduais de escravos. É importante notar que há uma questão de definição no que diz respeito ao papel do comércio interestadual e das compras e vendas que ocorriam no interior de estados específicos. Na prática, é quase impossível distinguir os dois fenômenos. A documentação é bastante ambígua a esse respeito, à exceção dos registros do porto de Nova Orleans, estes, sim, voltados exclusivamente para o transporte costeiro interestadual. A preocupação do presente artigo é principalmente com os fluxos interestaduais de escravos, ainda que alguns dos exemplos a seguir possam se referir a fenômenos mais localizados. Para uma discussão desse problema, ver o anexo na obra de Steven Deyle (2005, p. 291-296). Para estimativas do tráfico transatlântico, verificar a página www.slavevoyages.org . Se incluirmos os movimentos das três décadas anteriores a 1820, como faz o historiador Michael Tadman, o número passa de 1 milhão (Tadman, 1989TADMAN, Michael. Speculators and slaves: masters, traders, and slaves in the Old South. Madison: University of Wisconsin Press, 1989., p. 6-7, 11-43). A quantidade de indivíduos deslocados entre as duas regiões foi maior que o dobro - na verdade, quase três vezes - do número de africanos desembarcados diretamente da África no país durante todos os séculos anteriores. O motor de todo esse movimento foi a reconfiguração do capitalismo histórico no longo século XIX, marcado pela ascensão da Grã-Bretanha como principal poder industrial, comercial e financeiro do mundo após o fim das guerras napoleônicas. Nesse processo, novas fronteiras escravistas nas Américas se articularam de modo extremamente dinâmico a uma economia mundial em expansão (Tomich, 2011, p. 81-97). Em meados do século XIX, Brasil, Cuba e Estados Unidos tornaram-se os principais produtores de café, açúcar e algodão no mundo, respectivamente. Se em 1810 os estados do Sul dos Estados Unidos eram responsáveis por 16,3% da produção mundial de algodão, quatro décadas depois essa porcentagem saltou para 67%. No final dos anos 1850, 77% dos 800 milhões de libras de algodão importados pela Grã-Bretanha vinha dos Estados Unidos. O país também dominava o fornecimento do algodão para outros países, como França e Rússia. Além disso, uma pequena produção açucareira persistia no estado da Louisiana, colaborando para incrementar os fluxos de cativos entre as diferentes partes do Sul (Marquese, 2004MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 337-338; Beckert, 2014).

Diferentemente de Brasil e Cuba, a expansão da fronteira agrícola no Sul dos Estados Unidos não contou com o fornecimento externo de africanos escravizados. Evidências de um contrabando de escravos para o país após 1820 são extremamente escassas. As estimativas mais recentes apontam para algo em torno de mil escravos - talvez menos - trazidos diretamente da África para os Estados Unidos, entre 1820 e a guerra civil iniciada em 1861. Há também pouquíssimas evidências de um contrabando negreiro a partir do Caribe. No censo nacional de 1870, apenas 1.984 afrodescendentes não tinham como país de nascimento os Estados Unidos. A partir dessas constatações, podemos concluir que o país conseguiu fechar de modo eficaz as suas fronteiras para a entrada de africanos escravizados, separando, assim, a escravidão sulista da produção de cativos na África, principal alvo da primeira onda do antiescravismo anglo-americano (Eltis, 2008ELTIS, David. The U.S. Transatlantic Slave Trade, 1644-1867: An Assessment. Civil War History, Kent, OH, v. 54, n. 4, p. 347-378, dez. 2008. ; Ericson, 2011ERICSON, David F. Slavery in the American republic: developing the federal government, 1791-1861. Lawrence: University Press of Kansas, 2011.). Tal separação foi eventualmente explorada pelos próprios senhores de escravos do Sul, que criaram uma das defesas mais bem-acabadas da escravidão, com ênfase em sua natureza supostamente paternalista e benevolente. O comércio interno de escravos ocupava, evidentemente, um lugar bastante incômodo nesse discurso, o que levou os senhores a silenciar ou minimizar seu papel na sociedade sulista.

Nas últimas décadas, o tema foi colocado no centro de inúmeras interpretações da escravidão norte-americana. Múltiplos aspectos do tráfico interestadual têm sido analisados, com historiadores considerando tanto as experiências dos indivíduos que foram comprados e vendidos quanto as implicações políticas mais amplas, geradas pela existência desse mercado.

Recentemente, um número considerável de trabalhos analisa a escravidão sulista com enquadramentos mais amplos, reacendendo debates clássicos, como o das relações entre capitalismo e escravidão. A primeira seção do presente artigo apresenta em linhas gerais essa historiografia do tráfico interestadual de escravos, com ênfase nos trabalhos recentes que exploram dimensões globais dessa história. A seção seguinte oferece uma narrativa do tráfico interestadual de escravos, que busca integrar elementos não apenas globais, mas também atlânticos e hemisféricos (Greene e Morgan, 2009GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. (Org.). Atlantic history: a critical appraisal. New York: Oxford University Press, 2009. ), com foco nas tensões políticas geradas pela participação dos Estados Unidos no contrabando negreiro para Cuba e, principalmente, para o Brasil. Tratar de modo integrado as duas vertentes do trato negreiro aponta para processos que extravasaram as fronteiras dos Estados Unidos e, consequentemente, pode ajudar a transcender o Estado-Nação como unidade fundamental de análise. O presente artigo é um experimento nessa direção.

Historiografia

Em um breve e instigante ensaio sobre Casa Grande e Senzala, Luiz Felipe de Alencastro nota que, ao descrever as relações entre senhores e escravos, Gilberto Freyre “faz total abstração dos fluxos comerciais que atravessavam as fazendas. O tráfico de escravos desaparece no topo da estrutura enquanto as variações da demanda de produtos agrícolas somem da base”. Considerando as implicações desse procedimento, ele prossegue: “Cortada dos grandes rios do comércio internacional, a sociedade agrária do Nordeste, descrita por Freyre, torna-se um lago, um caldeirão de cultura”. Daí a formação da sociedade patriarcal brasileira, estática, pouco dada a transformações no tempo (Alencastro, 1987, p. 20-21).

Em parte inspirado em Freyre, Eugene Genovese descreveu um Sul escravista também atravessado por relações pessoais de cunho paternalista em seu clássico de 1974, Roll, Jordan, Roll. Segundo sua leitura, foi o fim do tráfico transatlântico que forçou os senhores de escravos a ter maior preocupação com sua força de trabalho, alimentando o ethos paternalista que conectou organicamente os dois grupos e que foi interpretado e utilizado de modo particular por cada um deles. Porquanto o tráfico transatlântico foi efetivamente extinto, devido a uma série de leis implementadas nas duas primeiras décadas do Oitocentos, ele foi omitido da análise do autor em questão. Igualmente ausente de sua análise, está o comércio interestadual de escravos, que permitiu a expansão da fronteira do algodão ao longo das décadas seguintes (Genovese, 1976). Genovese reserva ainda menos atenção para as compras e vendas interestaduais de escravos que U. B. Phillips, outra de suas inspirações historiográficas, de quem recupera a própria noção de paternalismo enquanto conceito-chave para a compreensão do Sul escravista. Em American Negro Slavery, Phillips dedica um capítulo inteiro à existência do tráfico doméstico de escravos. Sem qualquer esforço de sistematização dos casos que apresenta, o historiador, no entanto, tende a minimizar o papel do tráfico nos poucos comentários gerais que faz a esse respeito (Phillips, 1918, p. 187-204).

A pouca atenção dada por Genovese ao comércio doméstico de escravos estava em sintonia com parte da historiografia do princípio dos anos 1970. Novos estudos em torno do tema, no entanto, começaram a surgir ao longo das duas décadas seguintes, culminando com a publicação do livro de Michael Tadman em 1989TADMAN, Michael. Speculators and slaves: masters, traders, and slaves in the Old South. Madison: University of Wisconsin Press, 1989., a análise mais sistemática do tráfico regional de escravos nos Estados Unidos até então produzida. Fazendo uso dos instrumentos oferecidos pela New Economic History, Tadman apresentou estimativas dos movimentos de migração forçada através do Sul que são, atualmente, as mais aceitas na bibliografia sobre o tema. De acordo com o historiador, 154.712 escravos foram transportados do Upper para o Lower South nos anos 1820, 284.750 nos anos 1830, 183.902 nos anos 1840 e 250.728 nos anos 1850, somando 874.092 ao longo das quatro décadas (Tadman, 1989, p. 11-47). A estimativa é um pouco mais alta do que a oferecida em 1904 por Winfield Collins, de aproximadamente 740.000, para o mesmo período. Nas décadas seguintes, os pesquisadores que se dedicaram ao tema tiveram poucas discordâncias com relação ao volume do fluxo interestadual de cativos e suas variações ao longo do tempo, marcado por uma inflexão na década de 1840, resultante do Pânico de 1837 (Deyle, 2005DEYLE, Steven. Carry me back: the domestic slave trade in American life. New York: Oxford University Press, 2005., p. 283-289). O debate fica mais complicado quando entram em questão as formas e os sentidos dessas migrações forçadas. A maioria desses escravos acompanhou os seus senhores ou foi vendida em um dinâmico mercado interestadual? No caso de vendas, estas se deram em situações de necessidade econômica ou como parte de um ethos que visava acima de tudo o lucro? Qual foi o impacto desse comércio sobre a família escrava? Quais foram suas implicações políticas mais amplas?

De acordo com Tadman, tanto escravistas quanto abolicionistas construíram uma série de mitos em torno do comércio interestadual de escravos. No caso de abolicionistas, a imagem de que estados como Virgínia e Maryland teriam se especializado na criação de escravos (slave-breeding) para abastecer as fronteiras escravistas do Lower South, com fazendas dedicadas à atividade (stud farms), entra em conflito com a bibliografia que demonstrou a existência de famílias e comunidades escravas, como os clássicos de John Blassingame e Herbert Gutman. Não que senhores de escravos não enxergassem as vantagens econômicas em se ter uma força de trabalho escravizada capaz de se autorreproduzir, ou mesmo que fazendas dedicadas a esse tipo de atividade não possam ter existido, mas o predomínio dessa configuração, tal como delineada pela literatura abolicionista, não resiste ao escrutínio das fontes levantadas por Tadman (1989, p. 4-5, 121-129).

A principal crítica de Tadman, no entanto, é direcionada à ideologia senhorial e suas repercussões historiográficas, com o já citado trabalho de Genovese servindo de alvo privilegiado. O tráfico de escravos era um elemento difícil de ser defendido abertamente, e sulistas preferiam enfatizar o bem-estar de sua população escrava em comparação aos trabalhadores livres de cidades industriais. Diante de acusações mais diretas, minimizava-se o comércio de escravos. Com isso, os próprios comerciantes de escravos seriam outsiders e a venda de escravos ocorreria apenas em situações de infortúnio econômico, e, ainda assim, senhores evitavam a separação de famílias escravas. Tais casos, na leitura de Tadman, eram excepcionais; escravistas especulavam ativamente no mercado. De acordo com suas estimativas, ao menos 60% do movimento de cativos do Upper para o Lower South se deu por meio da compra e venda, uma estimativa por ele oferecida como conservadora (Tadman, 1989, p. 111-120).

O livro de Tadman representou um marco na historiografia, e historiadores aprofundaram, posteriormente, diversos aspectos adicionais do comércio interestadual de escravos. Os trabalhos de Walter Johnson, Edward Baptist e Steven Deyle exploraram, entre outras coisas, a experiência dos próprios cativos que se encontraram presos nas redes do tráfico interestadual (Johnson, 1999; Baptist, 2002; Deyle, 2005). O livro de Baptist, por exemplo, demonstrou como os escravos elaboraram sua própria interpretação da escravidão e do tráfico, descrita pelo autor como uma vernacular history, que associava o cativeiro a um ato de roubo, mais especificamente o roubo de pessoas. Para construir essa interpretação, o historiador explorou as narrativas de ex-escravos publicadas a partir da década de 1820, enquanto expressões das experiências vividas, contadas e recontadas pelas populações escravizadas do Sul. No centro dessa historiografia escrava, estava a imagem da “migração forçada como a revelação das crueldades mais profundas da escravidão e como o evento mais dramático de suas vidas” (Baptist, 2002). Alguns desses trabalhos, como os de Johnson e Deyle, discutiram as percepções de fazendeiros e comerciantes de escravos a respeito do tráfico. O tema foi aprofundado por Robert Gudmestad em seu livro de 2003GUDMESTAD, Robert H. A troublesome commerce: the transformation of the interstate slave trade. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2003., com uma importante discussão em torno das diferentes visões presentes no Upper South e Lower South, bem como de suas transformações - e eventual convergência - ao longo do tempo. David Lightner, por sua vez, explorou as implicações políticas do tráfico doméstico de escravos em escala nacional, tema que também receberia a atenção de Deyle em sua síntese sobre o tráfico (Lightner, 2006).

O enquadramento do livro de Tadman, assim como dos outros trabalhos citados anteriormente, limita-se ao espaço do Estado-Nação. Em um dos raros momentos no qual fez referência ao contexto mais amplo, Tadman indicou que as vendas de escravos no mercado interno poderiam ser lidas como produto da expansão do sistema mundial, já que foi o algodão produzido por esses escravos que alimentou boa parte da industrialização do Atlântico Norte, em uma referência aos trabalhos de Immanuel Wallerstein. Por outro lado, uma figura como o já citado U. B. Phillips consideraria a venda de escravos para as novas áreas como decisões tomadas pelos senhores visando ao bem-estar de seus cativos. Ainda assim, seriam ocasiões excepcionais, ocorridas apenas quando tais senhores se encontrassem em situações economicamente difíceis. Nos dois casos, de acordo com Tadman, apesar da radical distinção em termos ideológicos, se diluiria a responsabilidade pessoal desses senhores em função de pressões mais amplas. A pergunta que motiva o autor é outra: “eram aquelas atitudes [de senhores em relação aos seus escravos] essencialmente humanas e paternalistas ou movidas pela especulação e pelo lucro?”. Tendo demonstrado o intenso envolvimento de senhores no mercado interestadual e o fato de que esse mercado implicava a separação de uma entre cada cinco famílias escravas, Tadman optou pela segunda alternativa (Tadman, 1989, p. 130-132). No entanto, a oposição criada pelo historiador entre as estruturas mais amplas e as ações de senhores de escravos, com ênfase nestas, elimina - ou, no mínimo, restringe - da análise as articulações entre múltiplas escalas históricas. Como bem demonstra o próprio Wallerstein, o comportamento de escravistas envolvidos na especulação e na busca de lucros estava em plena sintonia com os imperativos do sistema mundial, no qual a incapacidade de competir de acordo com seus ditames acabava por punir alguns de seus participantes (Wallerstein, 2001, p. 16-17).

Enquadramentos mais amplos voltaram à tona em um conjunto de trabalhos recentes sobre a escravidão norte-americana oitocentista, alguns deles produzidos pelos mesmos pesquisadores que já vinham contribuindo para a historiografia do tráfico interestadual de escravos. Em River of Dark Dreams, Walter Johnson explora os múltiplos efeitos da expansão da fronteira norte-americana do algodão e da escravidão no Vale do Mississippi ao longo do século XIX. Tomando como ponto de partida os processos de mercantilização da terra, do trabalhador e do dinheiro, em uma formulação tipicamente polanyiana (ainda que sua referência teórica mais explícita seja David Harvey), Johnson constrói uma interpretação extremamente rica - apesar de relativamente estática - da escravidão no Sul dos Estados Unidos. Aqui, o comércio interestadual de escravos também ocupa uma posição privilegiada. Iniciado a partir das atividades de um punhado de especuladores individuais, que compravam pequenos grupos de escravos em antigos estados do Sul, como Virgínia e Maryland, e os transportavam para a fronteira em expansão, logo o trato negreiro se tornou um negócio altamente lucrativo e organizado, marcado pela emergência de firmas especializadas, a construção de estruturas de transporte e venda dos cativos, além de sistemas de comunicação, que conectavam amplamente os diversos agentes envolvidos no negócio. A partir dos relatórios produzidos por esses agentes, Johnson descreve o surgimento de um sistema de classificação de escravos que permitia que “as diferenças físicas entre todos os tipos de corpos humanos fossem abstraídas em uma escala única de comparação baseada no preço que eles [os agentes] pensavam que uma dada pessoa poderia ter em um dado mercado” (Johnson, 2013, p. 41). Esse mercado interno, na visão de Johnson, dava unidade à economia escravista que se estendia de Louisiana a Maryland. A articulação da região à economia mundial, por sua vez, terminava por produzir determinações externas sobre o trato negreiro. O preço dos cativos, que eram negociados nesse mercado interno, era estabelecido principalmente com base nos valores pagos pelo algodão em praças distantes, como Nova Iorque e Liverpool. A espiral de trocas, crédito e especulação acompanhava uma radical transformação física do Vale do Mississippi, que, no segundo quarto do Oitocentos, emergia como uma das maiores regiões exportadoras de produtos primários do mundo.

Outros dois livros publicados recentemente também colocaram o tráfico interestadual no centro de suas análises. Em The Half Has Never Been Told, Edward Baptist discute alguns dos elementos que permitiram a expansão da produção algodoeira ao longo da primeira metade do Oitocentos, em especial a intensificação da extração de trabalho da população escravizada. Para tanto, retoma a vernacular history que havia sido objeto de análise em seu livro anterior. Fica evidente, também, a sua preocupação em articular a dinâmica da escravidão sulista ao contexto mais amplo que a envolvia. Essa relação se materializou por meio de correntes de endividamento em escala global, centradas em grandes centros financeiros, como Londres e Nova Iorque. Transações financeiras que atravessavam o mundo, portanto, implicavam a mercantilização de corpos, terras e capital no Sul dos Estados Unidos. Em outras passagens, Baptist traça comparações com a escravidão no Brasil e em Cuba, além de explorar elementos de política internacional que aproximaram os três espaços escravistas em meados do Oitocentos. Apesar de breves, tais passagens revelam um importante diálogo de Baptist com a historiografia brasileira (Baptist, 2014).4 4 Antes da publicação do livro, Baptist participou de debates no Brasil (Baptist, 2013; Izecksohn, 2013; Marquese, 2013).

Em The Business of Slavery, Calvin Schermerhorn também coloca as ligações entre o capital especulativo e o comércio interestadual de pessoas escravizadas como fio condutor de seu estudo. Com foco, principalmente, nas companhias envolvidas no tráfico interno de escravos, o autor aprofunda a discussão em torno da gradativa profissionalização e expansão do negócio, bem como de suas transformações no tempo. Temas pioneiramente explorados por Tadman, como o lugar dos traficantes na sociedade sulista, são observados por Schermerhorn por meio da análise das trajetórias de alguns dos principais comerciantes envolvidos no negócio. Como indicado pelo subtítulo de seu livro, o autor está preocupado principalmente com o papel da escravidão e do trato negreiro na ascensão do “capitalismo norte-americano”, por ele concebido como um “sistema altamente estruturado de comércio caracterizado por endividamentos que encadeavam as ambições, expectativas e imaginações de credores em pagamentos futuros”. Na ponta dessa cadeia de endividamentos, estava, inevitavelmente, a cidade de Londres, grande credora do mundo no longo século XIX.

Esses trabalhos recentes convergem na ênfase em uma dimensão global fundamental para a história do tráfico interestadual de escravos: o papel de práticas especulativas que conectaram a expansão da escravidão sulista aos grandes centros financeiros do Atlântico Norte. Processos globais também aparecem em outros momentos, como na discussão do imperialismo escravista dos anos 1850 em Johnson (2013JOHNSON, Walter. River of dark dreams: slavery and empire in the cotton kingdom. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2013. , p. 303-394) ou nas breves considerações de Baptist a respeito de como a penetração de interesses escravistas no governo federal se refletiu na política externa do país, no início dos anos 1840. No entanto, à exceção do laço econômico com o capitalismo financeiro, os processos globais discutidos nesses trabalhos geralmente seguem um movimento de dentro para fora das fronteiras dos Estados Unidos. Um olhar sobre o tráfico interestadual de escravos, que leve em consideração os embates entre forças escravistas e antiescravistas no resto do hemisfério, pode apresentar caminhos para incorporar as articulações mundiais da história nacional dos Estados Unidos.

O contrabando negreiro para as Américas e o tráfico doméstico de escravos dos Estados Unidos

Desde a fundação do país, o tráfico de escravos gerou tensões entre diferentes partes do Sul. Jefferson reclamava que, nos debates relacionados à Declaração da Independência, uma aliança entre estados como Carolina do Sul e Geórgia, ávidos por escravos, e os da Nova Inglaterra, região de onde vinham os principais traficantes, levou à exclusão de uma passagem na qual criticava o apoio dado pelo rei da Inglaterra ao trato negreiro. A aliança entre as duas regiões se repetiu nos debates constitucionais, com a aprovação de um artigo que proibia o governo federal de intervir no tráfico transatlântico de escravos por vinte anos, deixando a decisão em torno do fechamento do trato negreiro a critério de cada estado. Um dos representantes da Carolina do Sul, Charles Pinckney, sintetizou com perfeição os interesses em jogo quando defendeu abertamente que a Virgínia iria “ganhar com o fim das importações. O valor de seus escravos aumentará & ela já possui mais do que quer. Seria injusto requerer que S. C. [Carolina do Sul] & a Geórgia se unissem à federação em termos tão desiguais” (Marques, 2016MARQUES, Leonardo. The United States and the transatlantic slave trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016., p. 24-25). Em fins do Setecentos, a região de Chesapeake, principal zona escravista durante a era colonial, encontrava-se em uma situação delicada, com o declínio de sua produção de tabaco e uma enorme população excedente de escravos (Tadman, 2000TADMAN, Michael. The demographic cost of sugar: debates on slave societies and natural increase in the Americas. The American Historical Review, v. 105, n. 5, p. 1534-1575, 2000.; Krause, 2012KRAUSE, Thiago Nascimento. A formação de uma classe dominante: a gentry escravista na América Inglesa Continental (Chesapeake & Lowcountry, c. 1640-c. 1750). História Unisinos, v. 17, n. 1, p. 12-23, 2012. ).

Em 1807, um ano antes de expirar o prazo que proibia a intervenção federal no trato negreiro, foi estabelecida a lei que aboliu formalmente o tráfico transatlântico de escravos (implementada a partir de 1 de janeiro de 1808), em votação quase consensual na Câmara, com 113 votos a favor e 5 contra. Um contrabando negreiro de baixo volume emergiu, em grande medida associado ao corso que se expandia no contexto das guerras napoleônicas e, em um segundo momento, dos movimentos de independência da América espanhola. Estimativas são de que menos de 10 mil cativos foram ilegalmente introduzidos no país entre 1808 e 1820. Enquanto isso, o tráfico interestadual de escravos se consolidava no Sul do país, gerando uma crescente convergência de interesses econômicos entre Upper South e Lower South. Tal aproximação levaria à construção de uma política para estabilizar o comércio costeiro - incluindo de escravos - do Sul dos Estados Unidos, constantemente prejudicado pela ação de corsários e contrabandistas. Consequentemente, novas medidas foram tomadas entre 1818 e 1820 visando tanto ao fim da pirataria quanto ao fortalecimento das políticas contra o trato negreiro. Piratas foram executados a partir de 1819, e a participação no tráfico se tornou crime de pirataria a partir de 1820. A tradicional comunidade de traficantes de Rhode Island, envolvida principalmente no comércio negreiro para Cuba e em declínio já desde 1808, foi praticamente desmantelada (Marques, 2016MARQUES, Leonardo. The United States and the transatlantic slave trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016., p. 95-101).

Esse processo se refletiu na consolidação de uma firme oposição ao trato negreiro em todo o Sul. Como argumenta David Brion Davis, o apoio à abolição do comércio atlântico de escravos “permitiu que os fazendeiros com mais escrúpulos construíssem uma barreira mental que os separava da violência da ‘produção africana de cativos’ e dos horrores públicos da middle passage” (Davis, 2011, p. 23). Essa barreira mental, no entanto, colocava o comércio interestadual de escravos em um lugar ideologicamente incômodo na região, a despeito de sua centralidade para o desenvolvimento do Sul. Como demonstra Robert Gudmestad, a convergência ideológica entre Upper South e Lower South em torno do tráfico interno ocorreria apenas na década de 1830, com a emergência de uma defesa da escravidão mais bem-acabada, como as produzidas por figuras como Thomas R. Dew e James Henry Hammond. Essa aceitação, no entanto, se refletiu menos na defesa do comércio interestadual de cativos como instituição positiva do que em um silêncio em torno de suas reais dimensões e efeitos (Gudmestad, 2003). A grande mudança foi o desaparecimento de críticas ao tráfico doméstico no Upper South, como as realizadas pelo virginiano John Randolph, que em 1816 o condenava como “o tráfico mais infernal que já manchou os anais da raça humana”, ainda que se opusesse à intervenção federal em nome do direito de propriedade dos senhores de escravos (Wood, 2012WOOD, Nicholas. John Randolph of Roanoke and the politics of slavery in the Early Republic. Virginia Magazine of History and Biography, Virgínia, v. 120, n. 2, p. 106-143, 2012. , p. 117-118).

Era exatamente essa tensão que se aprofundava quando críticos da escravidão aproximavam o tráfico interestadual de escravos de seu congênere transatlântico. Esse tipo de recurso acompanhou a emergência do tráfico doméstico de escravos desde praticamente o seu surgimento. Durante a Crise do Missouri (1819-1820), figuras como Timothy Fuller e Rufus King demandavam que o Congresso proibisse a introdução de escravos no novo estado. Boa parte do debate girou em torno do poder do Congresso em controlar o comércio interno de escravos, com seus defensores recorrendo ao mesmo artigo da Constituição que permitia que o governo interferisse no tráfico transatlântico de escravos a partir de 1808. Críticas aproximando os efeitos do tráfico transatlântico e doméstico de escravos, como a separação de famílias, foram recorrentes. Ao longo da década de 1820, opiniões contrárias ao tráfico interno de escravos continuariam sendo veiculadas por meio da publicação de autobiografias de ex-escravos e de periódicos antiescravistas. Figuras como Benjamin Lundy e William Garrison se envolveram em confrontos diretos com traficantes de escravos, como Austin Woolfolk, de Maryland. De modo geral, no entanto, não havia muita clareza sobre quais caminhos seguir para se alcançar a abolição do tráfico interestadual de escravos. Com a fundação da American Anti-Slavery Society e a publicação do The Liberator em princípios da década de 1830, a pressão pela abolição do tráfico interestadual de escravos se intensificou e levou ao aumento de pedidos para que o Congresso enfrentasse a questão. Retomavam-se argumentos que haviam permeado a Crise do Missouri, incluindo os paralelos entre os dois tipos de comércio de escravos. A estratégia, no entanto, continuou a não apresentar grandes resultados (Deyle, 2005DEYLE, Steven. Carry me back: the domestic slave trade in American life. New York: Oxford University Press, 2005., p. 174-205; Lightner, 2006LIGHTNER, David L. Slavery and the commerce power: how the struggle against the interstate slave trade led to the Civil War. New Haven: Yale University Press, 2006. , p. 48-64, 90-112).

A tentativa de forçar o governo dos Estados Unidos a regulamentar o tráfico interestadual de cativos saiu de cena a partir dos anos 1840, como resultado de uma reconfiguração das estratégias abolicionistas norte-americanas. Ao longo da década de 1830, antiescravistas como Salmon Chase e Theodore Weld vinham afirmando que a Constituição dos Estados Unidos não protegia a propriedade privada de escravos, um dos pontos fundamentais do liberalismo pró-escravista. Essa perspectiva ficaria evidente em dois casos de 1841 na Suprema Corte: um relacionado ao tráfico transatlântico de escravos, e outro à sua contrapartida doméstica. No famoso caso do Amistad, John Quincy Adams concluiu que a Constituição do país reconhecia escravos apenas como pessoas e não como propriedade, o que seria evidenciado, de acordo com ele, pelo próprio esforço dos criadores da Constituição de não inserir a palavra escravo ou escravidão em qualquer parte do documento. Poucas semanas depois, o juiz John McLean seguiu linha semelhante em sua arguição no caso Groves v. Slaughter, relacionado à introdução de escravos no Mississippi. A questão central era: poderia o estado do Mississippi proibir o tráfico de escravos para seu interior sem ferir a cláusula da Constituição federal que dava ao Congresso o poder de regulamentar o comércio interestadual? Em uma votação sem grandes dissidências, a corte decidiu que o Congresso não tinha o poder de interferir em questões relacionadas à escravidão nos estados. A arguição de McLean, no entanto, frisava que a Constituição estadual não feria a sua congênere federal, porque a cláusula desta referente ao comércio interestadual dizia respeito apenas aos fluxos de mercadorias, e não de escravos. Em relação aos escravos, a Constituição os tratava somente como pessoas, e não como propriedades. McLean invertia o argumento abolicionista que pedia a intervenção do Congresso no tráfico interestadual de escravos ao longo dos anos 1830, com a decisão final do caso automaticamente invalidando as petições com esse fim. De acordo com James Oakes, a decisão e, principalmente, a argumentação de McLean foram recebidas com entusiasmo por abolicionistas. “Da caneta de um juiz sentado na Suprema Corte dos EUA veio a afirmação sem ambiguidades de que a Constituição reconhecia escravos apenas como pessoas e não como propriedade”, argumenta o historiador. “A doutrina antiescravista radical estava migrando para o mainstream” (Oakes, 2013). Apesar da mudança estratégica, críticas ao tráfico de escravos em todas as suas formas continuavam a ser veiculadas enquanto parte de um ataque mais amplo à escravidão, promovendo um ideário que seria recorrentemente mobilizado nos futuros debates em torno da expansão da escravidão para novos territórios. A força dessa crítica derivou de uma série de processos hemisféricos e atlânticos iniciados na década de 1830.

Desde a primeira metade dos anos 1830, o tráfico doméstico de escravos nos Estados Unidos vinha gerando algumas tensões internacionais. Em três ocasiões distintas, navios negreiros operando na rota entre Chesapeake e Louisiana - nomeadamente, Comet (1830), Encomium (1832) e Enterprise (1835) - naufragaram em águas próximas a colônias britânicas no Caribe ou nelas tiveram que buscar refúgio em função de condições climáticas desfavoráveis. Em todos os casos, os cativos a bordo das embarcações foram libertados por autoridades britânicas, gerando tensões diplomáticas com os Estados Unidos. Com os olhos voltados para a emancipação no Caribe britânico, iniciada em 1833, sulistas desenvolveram múltiplas interpretações em torno de quais seriam os verdadeiros interesses do abolicionismo imperial da Grã-Bretanha. A enorme desconfiança aumentaria ainda mais com os casos do Hermosa, em 1840 e, principalmente, do Creole, no ano seguinte. No primeiro caso, 38 cativos foram emancipados após o navio naufragar próximo às Bahamas britânicas. No segundo, 19 de 135 escravos que estavam sendo carregados de Chesapeake para Nova Orleans se revoltaram e levaram o navio para Nassau, nas Bahamas, onde foram eventualmente emancipados pelas autoridades britânicas. “Assim acabava a rebelião escrava de maior sucesso na história americana”, argumenta Don Fehrenbacher, “conseguida com colaboração britânica”. Joshua Giddings, um dos antiescravistas que vinha participando ativamente da construção da nova fase do abolicionismo norte-americano, aproveitou a ocasião para defender que os escravos do Creole não haviam quebrado nenhuma lei dos Estados Unidos, já que a escravidão era um assunto da esfera estadual e o governo federal não tinha qualquer autoridade sobre a instituição fora de suas fronteiras (Fehrenbacher, 2001, p. 108-110).

Também em meados dos anos 1830, mais especificamente em 1835, a permissão para a apreensão de navios espanhóis carregando equipamentos relacionados ao tráfico transatlântico de escravos (por meio de uma emenda ao tratado antitráfico anglo-espanhol de 1817) levou diversos negociantes envolvidos no trato para Cuba a buscar refúgio na bandeira dos Estados Unidos, única nação que ainda não possuía um acordo antitráfico com a Grã-Bretanha que incluísse o direito mútuo de busca entre as duas marinhas. Embarcações dos Estados Unidos vinham sendo compradas por traficantes em função de sua notável qualidade e velocidade desde os anos 1820, mas a partir de 1835 o interesse se estendeu ao uso da bandeira do país, o que implicava a participação de cidadãos norte-americanos no papel de agentes, capitães e marujos, dentre outras ocupações. Entre 1835 e 1861, a presença de recursos dos Estados Unidos no contrabando negreiro para Cuba e para o Brasil expandiu dramaticamente, o que inevitavelmente levou a uma série de tensões diplomáticas adicionais com a Grã-Bretanha. Em fins da década de 1830, conforme a bandeira dos Estados Unidos aparecia no tráfico para Cuba, autoridades britânicas pediam explicações ao cônsul norte-americano na ilha, Nicholas Trist, acusado de permitir o livre acesso de traficantes aos navios norte-americanos. Dentre suas várias réplicas, Trist sugeriu que o ataque ao tráfico cubano era parte de uma conspiração para favorecer a produção algodoeira do Brasil - financiada, de acordo com ele, pelo capital britânico - em detrimento do concorrente norte-americano (Marques, 2016MARQUES, Leonardo. The United States and the transatlantic slave trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016., p. 132-134).

Em meados dos anos 1840, o tráfico transatlântico de escravos retornaria de modo ainda mais explosivo para a esfera pública norte-americana. Relatos da presença de embarcações norte-americanas no contrabando negreiro para o Brasil vinham sendo enviados para o governo dos Estados Unidos desde o início da década, mas foi durante a atuação do embaixador Henry A. Wise e do cônsul George W. Gordon ao longo do ano de 1844 que a questão efetivamente estourou na esfera pública. Os dois diplomatas foram responsáveis pela apreensão de inúmeros navios e capitães norte-americanos para serem julgados nos Estados Unidos. Particularmente marcante foi o caso do Kentucky, navio norte-americano que, equipado para o tráfico, embarcou 500 escravos e uma tripulação de brasileiros em Moçambique. Os norte-americanos e britânicos continuaram a bordo, ao menos formalmente, como passageiros. Um dos marinheiros britânicos posteriormente contaria para o cônsul norte-americano os detalhes da viagem, marcada por uma insurreição escrava pouco após a saída da costa. A repressão dos brasileiros, de acordo com o testemunho, foi extrema, com enforcamentos, tiros e mutilações, além de certo espírito esportivo atravessando todo o processo (o relato fala de marinheiros tentando acertar os pés decepados de escravos nos indivíduos que foram arremessados ao mar). Outros foram mantidos vivos, mas sofreram punições brutais, também descritas em detalhes (Conrad, 2001CONRAD, Robert Edgar. In the hands of strangers: readings on foreign and domestic slave trading and the crisis of the Union. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 2001., p. 101-104).

Os eventos relacionados à participação norte-americana no contrabando negreiro para o Brasil foram amplamente divulgados na imprensa dos Estados Unidos ao longo de 1844 e 1845, com a publicação de parte significativa das correspondências de Wise e Gordon no Brasil. Manifestações de apoio às suas ações eram publicadas em diversos jornais do país. Em sintonia com o pró-escravismo norte-americano de sua época, parte das publicações expunham as acusações de Wise de que o trato negreiro era um negócio que contava com ampla participação não apenas de norte-americanos (em sua absoluta maioria vindos do Norte), mas também de agentes e capitalistas britânicos, crítica que apareceria em uma mensagem do presidente John Tyler ao Congresso em fevereiro de 1845 (Marques, 2016MARQUES, Leonardo. The United States and the transatlantic slave trade to the Americas, 1776-1867. New Haven: Yale University Press, 2016., p. 160-168).

Antiescravistas rapidamente associaram os acontecimentos no Brasil ao comércio interestadual de cativos nos Estados Unidos, de modo a tentar derrubar as separações artificiais construídas por senhores sulistas. A crítica ganhava força especial pela discussão em torno da anexação do Texas, que marcou a corrida eleitoral de 1844 e se materializou com a eleição de James Polk no ano seguinte. Uma nota publicada no Berkshire County Whig em maio de 1845 chamava a atenção para como inúmeros jornais se mostravam indignados com o tráfico transatlântico de escravos em função das denúncias feitas por Wise, sem perceberem que a perseguição do ministro aos norte-americanos envolvidos no contrabando se dava “justamente no momento em que o tráfico doméstico de escravos tem recebido um enorme impulso da anexação do Texas”. A seguir a nota sugeria que os traficantes perseguidos estariam trazendo escravos para o Brasil, Cuba e outros pontos do Golfo do México para, eventualmente, introduzi-los de forma ilegal no Sul, em detrimento do comércio interno.5 5 Berkshire County Whig, 22 mai. 1845.

Mais contundente foi a longa nota publicada pelo Emancipator and Republican, de Boston, a qual sugeria que a escolha de um embaixador da Virgínia, por um presidente virginiano, para representar o país no Rio de Janeiro, visava cortar o suprimento de escravos para o Brasil e, assim, favorecer a produção de açúcar da Louisiana, principal compradora de escravos da Virgínia. A nota recortava, então, trechos da correspondência de Wise com o representante britânico nos quais o virginiano tecia críticas agudas ao tráfico transatlântico de escravos. Na sequência, o periódico comentava: “agora o que é notório no Brasil é o seguinte, o que a bandeira americana e cidadãos americanos estão fazendo entre África e Brasil é precisamente o que a bandeira americana e cidadãos americanos estão fazendo entre Washington e Nova Orleans - entre Richmond e Texas!”. Wise criticava o envolvimento de donos de navios no contrabando para o Brasil, prosseguia a publicação, mas esquecia “da existência dos Hope H. Slatters, of Franklin e Armfields”, em uma referência explícita a alguns dos principais negociantes envolvidos no tráfico interestadual de escravos.6 6 Emancipator and Republican (Boston, Mass.), 7 mai. 1845.

Outros críticos apelavam para a ficção. Em Wise and the Slaver, conto publicado em diversos periódicos, assinado com o pseudônimo Vattel (provavelmente em referência ao teórico do direito internacional, Emer de Vattel), o autor contava um caso que supostamente teria ocorrido com Wise em uma viagem do Brasil para os Estados Unidos. Nela, Wise havia se deparado com um navio carregando escravos da Virgínia para a Louisiana. Inicialmente pensando que o navio estivesse envolvido no tráfico transatlântico de escravos, Wise se apresentou como “o grande exterminador do tráfico de escravos”. Uma vez esclarecidas as circunstâncias da viagem, Wise se acalmou e, aliviado, explicou a diferença entre o tráfico doméstico e o tráfico transatlântico de escravos:

Cada negro carregado da África para o Brasil, Porto Rico ou Cuba ajuda a aumentar o volume de açúcar produzido naqueles países, e consequentemente a baixar seu preço nos mercados do mundo. O resultado é a diminuição dos lucros dos fazendeiros de açúcar da Louisiana, e consequentemente a diminuição da demanda por escravos. Em tal estado de coisas, os estados produtores de escravos (slave-breeding) devem manter seus negros em casa ou vender a preço de água. Isto eles não fariam, e mantê-los em casa logo levaria à abolição da escravidão em todos os estados escravistas do Norte.7 7 Portsmouth Journal of Literature and Politics (Portsmouth, New Hampshire), 24 mai. 1845

Resolvidos os mal-entendidos entre as duas tripulações e passadas as confraternizações, Wise retornava para seu navio quando ouviu uma voz gritando seu nome no porão do navio. Era Tom, um escravo de propriedade de seu vizinho, e cuja esposa e filhas eram do próprio Wise. Vendido no tráfico interestadual de escravos, Tom implorava para que Wise o levasse de volta para sua família. O embaixador, então, comprou o escravo e o levou de volta para seu navio, permanecendo pensativo pelo resto do dia. Antes de dormir, cochichou para si mesmo: “P****! Realmente acredito que, tivesse eu nascido na Nova Inglaterra, seria um abolicionista tão inflamado quanto o próprio Garrison”.8 8 Ibid

Em texto anterior, também assinado por Vattel, o autor selecionou passagens da correspondência de Wise para argumentar que, se os governos da Grã-Bretanha, da França e dos Estados Unidos fornecessem todo o apoio de suas forças navais ao ministro, ele acabaria com o “tráfico infernal de escravos” em um único ano. No ano seguinte, “tendo cumprido sua missão no Hemisfério Sul, nosso herói retornará para os Estados Unidos empolgado com a vitória e, tendo seus ‘olhos’ bem abertos, irá finalmente perceber a imoralidade do tráfico doméstico de escravos”. O ano de 1847 testemunharia a extinção do tráfico de escravos nos Estados Unidos. “Concluímos com a sugestão de que o Sr. Wise deveria, enfim, ser eleito membro correspondente da American and Foreign Anti-Slavery Society.”9 9 Portsmouth Journal of Literature and Politics (Portsmouth, New Hampshire), 10 mai. 1845.

A mobilização de eventos relacionados ao contrabando negreiro brasileiro para uma crítica do tráfico interestadual de escravos norte-americano e defesa do projeto antiescravista de conter a expansão da escravidão para novos territórios encontrou sua forma mais bem-acabada em um impressionante discurso feito em 1848 na Câmara dos Deputados por Sidney Lawrence, democrata eleito por Nova Iorque que logo se filiaria ao Free Soil Party. Tendo no centro a questão da escravidão em novos territórios, discussão revivida pela anexação do Texas e pela Wilmot Proviso, Lawrence preparou um longo ataque contra alguns dos principais argumentos que vinham sendo veiculados a favor da instituição. Diante do liberalismo escravista de John C. Calhoun, que defendia o direito de carregar suas propriedades, incluindo escravos, para onde quer que fosse, Lawrence mobilizava o argumento de que a Constituição não tratava escravos como coisas, e sim como pessoas, tal como defendido em diversos casos na Suprema Corte. Em outra passagem, Lawrence pergunta por que proibir o tráfico transatlântico de escravos se a escravidão, de acordo com sulistas, era considerada essencialmente correta. O discurso culminou com um ataque feroz ao trato negreiro, que incluía uma longa citação do depoimento relacionado ao Kentucky, caso que, como vimos, estava relacionado a uma insurreição escrava a bordo de um navio norte-americano envolvido no contrabando para o Brasil. Na sequência, o deputado pedia a todos que deixassem de lado as cenas revoltantes em navios negreiros e barracões na África para pensar na compra e venda de escravos que continuava a ocorrer sistematicamente na capital dos Estados Unidos. Após citar a indignação de um viajante, que se deparou com um grupo de 40 escravos acorrentados para serem vendidos no interior, Lawrence perguntou:

Não teria o Sr. Wise sentido as mesmas emoções? Poderia ele ter feito qualquer distinção entre o caso que ele tão eloquentemente descreveu e isso. O presidente Tyler denuncia com razão tais cenas como “revoltantes para a humanidade”, quando ocorridas na África selvagem; poderia ele dizer menos sobre isso? Diz-se, eu sei, que nossa Constituição o tolera aqui; também pode ser dito que as leis da África o toleram lá. Que direito temos nós de nulificar as leis escravistas da África enquanto buscamos perpetuar e estender as nossas?10 10 United States. Congress. The Congressional Globe, [Volume 19]: Thirtieth Congress, First Session, Appendix. Washington D.C.: Blair & Rives, p. 683-684.

O apelo aos sentimentos de Wise não era novidade. Para além das ironias veiculadas em contos como Wise and the Slaver, não foram poucos os que efetivamente acreditaram que a experiência no Brasil pudesse ter mudado a visão do virginiano. A crítica do Emancipator and Republican, anteriormente mencionada, comentava que outro periódico, o Boston Atlas, esperava que o ministro empregasse todos os seus esforços para acabar com o tráfico interestadual de escravos quando voltasse para os Estados Unidos. “Vã esperança, tememos”, adicionava o Emancipator. Em princípios da década de 1850, um jornal da Filadélfia ainda nutria esperanças semelhantes de que Wise teria “retornado do Brasil como um grande reformista”, relembrando aos seus leitores a luta impiedosa de Wise contra a cumplicidade de cidadãos norte-americanos no contrabando negreiro. O autor teria sido informado de que o “intercurso social e oficial frequente que ele [Wise] teve a oportunidade de ter com pessoas de ascendência africana de sucesso, teve o efeito de, em grande medida, eliminar alguns de seus antigos preconceitos americanos, e que suas visões e sentimentos na discussão de cor passou por uma mudança admirável”.11 11 Pennsylvania Freeman, 2 jun. 1851.

Wise teria que reafirmar suas inclinações pró-escravistas na própria Virgínia. Em um debate estadual em torno dos critérios para a seleção de seus representantes - se deveria ser baseada no número de pessoas ou de propriedades -, Wise se colocou a favor das propostas da parte oeste do estado, que, por ter muito menos escravos que a outra metade, propunha que a base fosse populacional. Acusado de abolicionista, o ex-ministro se mostrou indignado: “Eu, que tenho defendido a instituição desde que nasci, que quase fui sacrificado em sua defesa. Eu, que acabei de ficar quatro anos atrás salvando a bandeira dos Estados Unidos da poluição do tráfico de escravos perpetrado pela Velha Inglaterra e Nova Inglaterra.”12 12 New Hampshire Sentinel (Keene, New Hampshire), 29 mai. 1851 Uma coisa era o tráfico transatlântico de escravos, outra completamente distinta era a escravidão dos Estados Unidos, incluindo o tráfico interestadual de escravos, que, apesar de não ter defesas muito explícitas na esfera pública, estava no centro do apoio sulista à anexação do Texas.

Apesar das transformações estratégicas no abolicionismo norte-americano a partir dos anos 1840, as críticas ao tráfico doméstico, cada vez mais acompanhadas de referências ao tráfico transatlântico de escravos, prosseguiram enquanto parte do projeto de dissociar o governo federal da escravidão e restringir a expansão desta nos novos territórios. Na esfera pública mais ampla, a crítica ao tráfico atingiu o seu auge com a publicação do clássico de Harriet Beecher Stowe, Uncle Tom’s Cabin, que colocava no centro de sua narrativa as violências do comércio interestadual de escravos. Em sintonia com o abolicionismo de sua época, a autora utilizava o tráfico interno para desconstruir as barreiras ideológicas levantadas por senhores sulistas. Em determinado momento, após descrever o caso de uma escrava que se suicidara após ter seu filho vendido por um traficante, Stowe levanta uma série de questões em torno da cumplicidade do país com o tráfico interestadual de cativos. Ela conclui notando como havia uma série de indivíduos que se apresentavam como “Clarksons e Wilberforces” em suas críticas ao tráfico transatlântico de escravos, figuras edificantes de se ouvir e observar. “Comercializar negros da África, caro leitor, é tão horrível! Não se deve nem pensar nisso! Mas comercializá-los a partir de Kentucky, - aí é algo bem diferente!” A autora desferia um profundo golpe nas barreiras mentais que sulistas vinham construindo há décadas (Stowe, 1852, p. 194).

As críticas antiescravistas se combinavam com processos mais amplos para produzir importantes transformações ideológicas também no Sul. As dúvidas levantadas por publicações como Boston Atlas e Pennsylvania Freeman em torno do compromisso de Wise com a escravidão talvez fossem sinceras, mas o mais importante era que, ao veicular esse tipo de informação, os jornais acabaram por fortalecer receios que se disseminavam pelo Sul do país naquele momento. Desde o reinício dos debates acerca da escravidão em novos territórios nos anos 1840, crescia o medo em alguns locais do Sul de que o tráfico interestadual de escravos pudesse levar a um gradual descompromisso com a instituição por parte de antigos estados escravistas como Maryland e Virgínia. As ironias exploradas por Vattel em seus contos abolicionistas começavam a ser vistas como possibilidades concretas. Como solução, surgiram propostas como a de proibir o mercado interestadual de cativos, que, no entanto, teve um apoio ínfimo. Mais eficaz, em certo sentido, e particularmente explosivo, foi o projeto de reabertura formal do tráfico transatlântico de escravos, veiculado inicialmente por Leonidas Spratt em seu jornal Southern Standard (publicado a partir de 1853 em Charleston, na Carolina do Sul). Três anos depois, o próprio governador da Carolina do Sul defendia publicamente o fim do ato que proibira o tráfico transatlântico de escravos a partir de 1808. A possibilidade era considerada e debatida com seriedade em outras partes do Sul. Reabrir o tráfico transatlântico, na leitura de seus defensores, resolveria alguns dos problemas que afligiam o Sul: abaixaria os custos de produção na fronteira escravista, possibilitaria a inclusão de novos estados escravistas na União, disseminaria a propriedade escrava entre as parcelas mais pobres da população sulista e, principalmente, resolveria a demanda dos novos territórios do sudoeste sem enfraquecer a instituição no Upper South (Johnson, 2013JOHNSON, Walter. River of dark dreams: slavery and empire in the cotton kingdom. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2013. , p. 395-420; Deyle, 2005DEYLE, Steven. Carry me back: the domestic slave trade in American life. New York: Oxford University Press, 2005., p. 78-84).

Nos debates que se seguiram, defensores da proposta reconheciam que a maioria dos norte-americanos considerava o tráfico transatlântico de escravos cruel, mas que isso seria produto da mistificação abolicionista. Como abolicionistas em décadas anteriores, essas figuras também traçaram paralelos entre os tráficos transatlântico e interestadual de escravos. O objetivo, no entanto, não era condenar o fluxo doméstico, e sim reviver a sua versão internacional. Spratt chegava a defender o trato transatlântico como mais humano:

Presentemente, eles [os escravos] são separados de seus lares em Maryland, na Virgínia, e nas Carolinas do Norte e do Sul, e a questão é: não seria preferível que eles fossem trazidos da África? Assim eles poderiam ser trazidos com menos desumanidade do que qualquer outra população trabalhadora que pode ser levada de um país a outro, e infinitamente menos do que o que caracteriza o comércio entre os estados. (Deyle, 2005DEYLE, Steven. Carry me back: the domestic slave trade in American life. New York: Oxford University Press, 2005., p. 85)

Em um estranho sinal da força que a crítica ao tráfico de escravos havia alcançado, defensores da reabertura de sua versão transatlântica mobilizavam argumentos construídos por abolicionistas contra o tráfico doméstico.

Considerações finais

Durante a crise dos anos 1850 nos Estados Unidos, reapareciam tensões semelhantes às que permearam os debates constitucionais de fins do Setecentos. Dessa vez, no entanto, a aliança entre os estados nos extremos Sul e Norte da União contra os do meio - materializada no artigo constitucional que protegeu o tráfico atlântico entre 1787 e 1807 - havia se tornado impossível. A crítica ao tráfico de escravos, tanto em sua versão doméstica quanto transatlântica, avançara significativamente na maioria dos estados do Norte. Naquele momento, a estratégia de forçar o governo a regulamentar o tráfico interestadual de escravos tinha ficado para trás. Ainda assim, a ascensão do Partido Republicano, com sua estratégia de conter a escravidão nos territórios onde ela já existia, dependeu da ampla mobilização do ideário antitráfico, construído ao longo de décadas pelas articulações entre a atuação de abolicionistas, insurreições escravas dentro e fora dos Estados Unidos e processos mais amplos que envolveram o país em tensões internacionais. Ao mesmo tempo em que fecharam as suas portas para o tráfico transatlântico de escravos e construíram um comércio interestadual colossal, os Estados Unidos forneceram recursos que possibilitaram o contrabando negreiro para as duas outras grandes sociedades escravistas do Oitocentos. O aparecimento desses recursos no tráfico transatlântico retornava para a esfera pública norte-americana de modo explosivo, permitindo que abolicionistas efetuassem de forma bastante eficaz não apenas uma associação entre a “instituição peculiar” dos senhores sulistas e o comércio internacional de cativos, mas também uma relação mais estreita entre este e os esforços para introduzir a escravidão (acompanhada do comércio doméstico de escravos) em novos territórios na região oeste do país.

Em um de seus primeiros discursos contra a escravidão, o futuro líder do Partido Republicano, Abraham Lincoln, descreveu o Ato Kansas-Nebraska, responsável por revogar o Compromisso do Missouri, como uma ferramenta de expansão da escravidão e o conectou a uma possível reabertura do tráfico transatlântico de escravos. “A lei que proíbe a introdução de escravos da África e a que por tanto tempo proibiu sua introdução no Nebraska”, disse Lincoln, “dificilmente podem ser diferenciadas com base em qualquer princípio moral; e a revogação daquela pode tranquilamente gerar desculpas para esta”. Em seu discurso de três horas, Lincoln voltou ao tema algumas vezes, sempre com a mesma conclusão: “Se o povo de Nebraska tem o direito sagrado de carregar e manter escravos lá, é igualmente sagrado o seu direito de comprá-los onde puderem encontrá-los pelo menor preço. Esse lugar será certamente na costa da África; contanto que vocês consintam em não enforcá-los por irem lá comprá-los” (Basler, 1953BASLER, Roy P. (Ed.). The collected works of Abraham Lincoln. New Brunswick: Rutgers University Press, 1953. v. 2., p. 256).

Com as ações contemporâneas de sulistas a favor da reabertura do tráfico de escravos, inclusive com a organização de algumas poucas expedições para a África, tais acusações ganhavam novo peso. A isso se combinavam outros processos de escala hemisférica, como a articulação entre Nova Iorque, Angola e Cuba, que permitiu que o contrabando negreiro para a colônia espanhola continuasse até o início da década de 1860 (Harris, 2016HARRIS, John A E. Circuits of wealth, circuits of sorrow: financing the illegal transatlantic slave trade in the age of suppression, 1850-66. Journal of Global History, Cambridge, v. 11, n. 3, p. 409-429, nov. 2016.).

Um olhar mais cuidadoso para os discursos antiescravistas na esfera pública durante a década de 1850 provavelmente revelará articulações como as apresentadas e discutidas no presente artigo. Não por acaso, a plataforma do Partido Republicano de 1860 declarava em um de seus 17 artigos que a reabertura do tráfico era um crime contra a humanidade e que o Congresso deveria realizar todos os esforços possíveis pela supressão final de um comércio tão execrável. A Guerra Civil foi um conflito em torno da escravidão e do tráfico de escravos não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o hemisfério.

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  • 2
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  • 3
    Upper South e Lower South se referem às zonas de exportação e importação de cativos, com suas transformações ao longo do tempo. Ao longo da primeira metade do Oitocentos, estados como Kentucky, Tennessee e as Carolinas do Norte e do Sul passaram de importadores a exportadores de cativos. Enquanto isso, novos estados como Mississippi, Louisiana e Texas se tornavam destinos cada vez mais centrais para os movimentos interestaduais de escravos. É importante notar que há uma questão de definição no que diz respeito ao papel do comércio interestadual e das compras e vendas que ocorriam no interior de estados específicos. Na prática, é quase impossível distinguir os dois fenômenos. A documentação é bastante ambígua a esse respeito, à exceção dos registros do porto de Nova Orleans, estes, sim, voltados exclusivamente para o transporte costeiro interestadual. A preocupação do presente artigo é principalmente com os fluxos interestaduais de escravos, ainda que alguns dos exemplos a seguir possam se referir a fenômenos mais localizados. Para uma discussão desse problema, ver o anexo na obra de Steven Deyle (2005, p. 291-296). Para estimativas do tráfico transatlântico, verificar a página www.slavevoyages.org
  • 4
    Antes da publicação do livro, Baptist participou de debates no Brasil (Baptist, 2013; Izecksohn, 2013; Marquese, 2013).
  • 5
    Berkshire County Whig, 22 mai. 1845.
  • 6
    Emancipator and Republican (Boston, Mass.), 7 mai. 1845.
  • 7
    Portsmouth Journal of Literature and Politics (Portsmouth, New Hampshire), 24 mai. 1845
  • 8
    Ibid
  • 9
    Portsmouth Journal of Literature and Politics (Portsmouth, New Hampshire), 10 mai. 1845.
  • 10
    United States. Congress. The Congressional Globe, [Volume 19]: Thirtieth Congress, First Session, Appendix. Washington D.C.: Blair & Rives, p. 683-684.
  • 11
    Pennsylvania Freeman, 2 jun. 1851.
  • 12
    New Hampshire Sentinel (Keene, New Hampshire), 29 mai. 1851

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2017
  • Aceito
    06 Maio 2017
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