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Inquirir em nome de Afonso II: a jurisdição régia a serviço da aristocracia cristã (Portugal, século XIII)

To inquire in the name of Afonso II: The king’s jurisdiction at the service of the Christian aristocracy (Portugal, 13th century)

Resumo:

Este artigo aborda as inquirições de Afonso II, ocorridas em 1220. Assim como as demais inquirições levadas a cabo por monarcas posteriores, elas costumam ser avaliadas em conjunto. Em termos institucionais, naturalizam-se análises que, por meio de um fio condutor, consideram todas as iniciativas régias como derivadas de um plano político de centralização. Assim, no caso de Afonso II, as “leis gerais de 1211”, as “confirmações gerais de 1217” e as “inquirições gerais de 1220” configuram um conjunto de instrumentos que constituiriam o seu “plano de centralização do poder”. Entretanto, pensamos que é possível acrescentar formas diversas de ver o problema das inquirições, de maneira a contribuir para uma compreensão do poder régio na Idade Média, em Portugal, que considere as instituições em um cenário político ampliado, no qual a atuação do monarca não “roube a cena” aos demais atores.

Palavras-chave:
Inquirições de 1220; Jurisdição Régia; Afonso II

Abstract:

This article discusses the Afonso II Inquiries of 1220. As other inquiries carried on by further monarchs, they are usually considered as a whole. In an institutional perspective, the analysis is naturalized by a driving force that considers all the king’s initiatives as derived from a political plan of centralization. Therefore, in the case of Afonso II, we should mention the “general laws of 1211”, the “general confirmations of 1217” and the “general inquiries of 1220” as a bundle of instruments that constitutes his “plan of power centralization”. Otherwise, it is possible to add different forms of interpreting the problem of the inquiries in order to contribute to a better understanding of the royal power in Portugal, in the Middle Ages, that considers the institutions in a wider political scenario, in which the king’s performance doesn’t “steal the scene”.

Keywords:
Inquiries of 1220; King’s Jurisdiction; Afonso II

As inquirições régias medievais portuguesas são consideradas pela historiografia como manifestação clara da força do poder monárquico. Em termos concretos, tratar-se-ia de um instrumento pelo qual enviados do rei se deslocam por determinadas regiões do reino para inquirir sobre temas que interessam à Coroa. Normalmente, o foco incide sobre bens e direitos que, supostamente, teriam sido usurpados por outros poderes, prejudicando a jurisdição régia. Nas localidades escolhidas para levar a cabo a inquirição, reúnem-se testemunhas que serão interrogadas pelos enviados régios com o objetivo de fazer um levantamento, por meio da memória dos inquiridos, que permita esclarecer sobre os direitos em questão.

Entre os séculos XIII e XIV registram-se várias inquirições desse tipo, nos reinados de Afonso II (1220), Afonso III (1258), D. Dinis (1284; 1303-1304; 1307-1311) e Afonso IV (1343) (Sottomayor-Pizarro, 2015SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de. As inquirições medievais portuguesas (séculos XIII-XIV), fonte para o estudo da nobreza e memória arqueológica - breves apontamentos. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015, p. 117-134., p. 128-129). Juntamente com outros instrumentos de governo, como a elaboração de leis, a confirmação de privilégios, os registros de chancelaria, e a criação de ofícios ligados à governação do reino, as inquirições adquiriram, em termos historiográficos, grande protagonismo como evidência incontornável daquilo que se identifica como processo de centralização do poder monárquico em Portugal. Nesse sentido, “processo de centralização” como conceito político significa, para a historiografia, a existência de um projeto régio, cujos objetivos pretendem viabilizar o monopólio do exercício do poder por meio do combate e eliminação das demais forças políticas que se lhe oponham. De forma geral, as inquirições régias portuguesas medievais costumam ser analisadas diacronicamente e sua sucessão no tempo entendida como “processo”. Metodologicamente, considera-se que a experiência adquirida em cada inquirição alimenta as posteriores, com claro intuito de aprimoramento desse instrumento de poder.1 1 A bibliografia é muito extensa, uma vez que a maior parte dos autores que se dedicaram a estudar as inquirições sustenta essa interpretação. Remeto para a lista bibliográfica, ao final do artigo. As inquirições são comparadas entre si, dando muitas vezes a sensação de tratar-se de fenômenos institucionais descontextualizados e autorreferenciais. Tal como ocorre em outros aspectos do exercício do poder, pensamos que é possível acrescentar formas diversas de ver o problema das inquirições de maneira a contribuir para uma compreensão do poder régio na Idade Média, em Portugal, que considere as instituições em um cenário político ampliado, no qual a atuação do monarca não “roube a cena” aos demais atores.

Neste artigo, propomo-nos refletir sobre as inquirições de Afonso II, ocorridas em 1220. Assim como as demais inquirições, levadas a cabo por monarcas posteriores, elas costumam ser avaliadas em conjunto, como referimos, aplicando-se lógicas interpretativas similares para os demais instrumentos de governo desenvolvidos em cada reinado. Em termos institucionais, naturalizam-se análises que, por meio de um fio condutor, consideram todas as iniciativas régias como derivadas de um plano político de centralização. Assim, no caso de Afonso II, as “leis gerais de 1211”, as “confirmações gerais de 1217” e as “inquirições gerais de 1220” configuram um conjunto de instrumentos que constituiriam o seu plano de centralização do poder. No que se refere às leis de 1211, frequentemente são interpretadas como pretensão de legislar sobre a totalidade do reino, como desejo do monarca de submeter os súditos à sua vontade. Mas também é possível, em uma perspectiva política que considere o caráter pluralista e corporativo daquela época, entender que essas leis objetivavam, sobretudo, corrigir os desvios de conduta dos oficiais régios e apresentar o monarca como defensor do reino. Em 1211, Afonso II acabava de ascender ao trono, em um ambiente de acirradas disputas políticas, e essas leis enunciavam uma disposição de concórdia. Não se tratava de leis cujo caráter geral se contrapusesse aos particularismos, como se o monarca, de maneira “precoce”, tivesse a intenção de promulgar um código com a capacidade objetiva de eliminar as subjetividades (Coelho, 2019COELHO, Maria Filomena. Las Leyes de 1211: la voz del rey de Portugal a servicio de la concordia. Temas Medievales (Buenos Aires). v. 27, n. 1, p. 1-26, 2019.). A forma como esse corpus legal costuma ser interpretado vincula-se a um desenho muito mais amplo da história de Portugal na Idade Média que, ao reduzir o Estado à monarquia, identifica alguns atos legislativos dos reis da primeira dinastia como ensaios “precoces” de centralização do poder (Coelho, 2014COELHO, Maria Filomena. Revisitando o problema da centralização do poder na Idade Média: reflexões historiográficas. In: NEMI, Ana; ALMEIDA, Néri de Barros; PINHEIRO, Rossana(Org.). A construção da narrativa histórica (séc. XIX-XX). Campinas: Ed.Unicamp/FAP-Unifesp, 2014, p. 39-62.).

Dentro do próprio reinado de Afonso II, as leis de 1211 assumem na interpretação historiográfica o papel de formulação política de um projeto de centralização do poder, cujas consequências se manifestariam na exigência das confirmações e nas inquirições. Assim, as leis de 1211 teriam aberto o caminho para que o rei estivesse em condições de exigir que os súditos que possuíam bens e direitos outorgados pelos monarcas anteriores submetessem essas concessões à sua confirmação. A documentação que registra os atos efetivos de confirmação elaborados em 1217 é muito pequena, levando a duas conclusões possíveis: ou bem os atos escritos ter-se-iam perdido, ou Afonso II não conseguiu que os súditos se submetessem à sua vontade. De toda forma, ainda que o rei não tenha conseguido êxito, o importante seria o intento, “claramente” manifestado, de introduzir instrumentos de controle, visando à construção do Estado. Ao aceitar que houve resistência por parte dos poderosos em submeter as concessões à confirmação de Afonso II, poder-se-iam explicar as inquirições de 1220 como resposta de força do rei à rebeldia dos súditos poderosos (Vilar, 2015aVILAR, Hermínia V. As Inquirições no contexto do reinado de Afonso II. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015a, p. 81-98., p. 97-98). Para se contrapor, o rei teria decidido mandar inquirir sobre seus direitos no coração da revolta, “o Norte senhorial”. Entretanto, cremos que também as famosas confirmações poderiam ser interpretadas de forma a colocá-las em uma perspectiva menos confrontada com os valores políticos da sua época (Coelho, 2016COELHO, Maria Filomena. Entre Bolonha e Portugal: a experiência política do conceito de iurisdictio (séculos XII e XIII). Revista da Faculdade de Direito - UFPR (Curitiba). v. 61, n. 2, 2016, p. 61-93., p. 77).2 2 “Sem dúvida, o poder de confirmar revela superioridade. Entretanto, a manifestação dessa superioridade, ao contrário do afastamento, revela a aproximação do rei aos súditos ao introduzir o monarca na malha necessária ao reconhecimento da posse de direitos e de jurisdições. Nesse sentido, seria interessante conhecer melhor a lógica que orientava a utilização desse instrumento, pois pela historiografia deduz-se que não parece ter servido para eliminar as práticas patrimonialistas da própria monarquia, que continuou distribuindo patrimônio e direitos da coroa entre os súditos merecedores de benefícios. Ao mesmo tempo, tampouco se poderia afirmar que o fato de ter capacidade para distribuir e confirmar mercês garanta ao rei um controle sobre os beneficiados, pois, uma vez mais, os exemplos de ‘desobediência’ apontados pela própria historiografia são muito numerosos.”

Os três grandes momentos institucionais do reinado de Afonso II - leis gerais, confirmações gerais e inquirições gerais - estariam interconectados e, para muitos autores, fariam parte de um plano geral de centralização do poder. Entretanto, deve-se ressaltar que o adjetivo “gerais”, que amplia o alcance de cada um desses instrumentos, é fruto de épocas posteriores, introduzido por cópias tardias que modificaram a dimensão política dos originais para atender a novas circunstâncias do poder monárquico. Ainda assim, a especificidade que o conceito “geral” circunscreve na Idade Média, quando usado pelo rei, deve ser entendido como atinente à jurisdição régia (Coelho, 2019COELHO, Maria Filomena. Las Leyes de 1211: la voz del rey de Portugal a servicio de la concordia. Temas Medievales (Buenos Aires). v. 27, n. 1, p. 1-26, 2019.).3 3 “Así, lo que se llamó leyes generales en la Edad Media no puede ser traducido por los conceptos a los cuales damos hoy día el mismo nombre y que se oponen a los derechos particulares. En realidad, aquello que se nombraba como ley general únicamente se podía aclarar por medio de y en estrecha vinculación con los derechos subjetivos. Los contenidos abarcados por las Leyes de 1211, aunque con la clara intención de que fueran aplicadas a la totalidad del reino (por lo tanto, con carácter general), reforzaban en cada línea los derechos particulares: de la Iglesia, de la nobleza, de los débiles (“mesquinhos”) (...) En ningún momento, la voz regia da muestras de pretender sustituir o suprimir los derechos particulares, sino de corregir los abusos — incluso los cometidos por el mismo monarca — que perjudican los derechos de cada uno, afectando el reino y al bien común.” Ou seja, o “geral” engloba tudo aquilo a que o direito do rei afeta. Aquilo que pertence a outras jurisdições não faz parte do geral, mas do particular (Kern, 2012KERN, Fritz. Kingship and law in the Middle Ages. New Jersey: The Lawbook Exchange, 2012.).

Objetivos e eficácia do ato de inquirir

Apesar do caráter precoce que comumente se atribui às inquirições de 1220, o ato de inquirir constituía um instrumento bastante conhecido e utilizado em distintas épocas e instâncias de poder.

A inquirição, amplamente praticada na época carolíngia pelos missi dominici ou para a redação dos polípticos, parece ter desaparecido do reino da França embora tenha sobrevivido do outro lado da Mancha e nas terras de dominação inglesa. No final do século XII, o procedimento abrange todos os campos da ação política, dominial, judiciária e administrativa do príncipe capeto. O desenvolvimento do processo romano-canônico, a ação da Inquisição no reino, o aumento deste último e a progressiva instalação de uma administração territorial podem explicar essa generalização (Dejoux, 2012DEJOUX, Marie. Gouverner par l’enquête au XIIIe siècle: les restitutions de Louis IX (1247-1270). Tese (Doutorado em História Medieval), Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne. Paris, 2012., p. 2).4 4 “L’enquête, largement pratiquée à l’époque carolingienne par les missi dominici ou pour la rédaction des polyptyques, semble avoir disparu du royaume de France alors qu’elle avait perduré outre-Manche et dans les terres sous domination anglaise. À la fin du XIIe siècle, la procédure se diffuse à tous les champs de l’action politique, domaniale, judiciaire et administrative du prince capétien. Le développement de la procédure romano-canonique, l’action de l’Inquisition dans le royaume, l’agrandissement de ce dernier et le progressif déploiement d’une administration territoriale peuvent expliquer cette généralisation.”

O fato de que esse instrumento político tenha se difundido, como ação e como registro, não esclarece, entretanto, de que forma as informações coletadas foram utilizadas. Sobre as inquirições de 1220, o Prof. José Mattoso (1992MATTOSO, José. Dois séculos de vicissitudes políticas. In: MATTOSO, José (Coord.). História de Portugal, v.2: a monarquia feudal. Lisboa: Estampa , 1992, p. 116-140., p. 116) chegou mesmo a revelar certa decepção, pois “não se conhecem medidas concretas de Afonso II para reprimir [as usurpações]”. Elas não produziram um resultado prático: “Quem lê hoje o estendal de sonegações feitas pelos senhores locais (ou interpretadas como tal pelos inquisidores) esperaria que o rei tomasse medidas claras e vigorosas para assegurar a eficácia da cobrança” (Mattoso, 2001MATTOSO, José. O triunfo da monarquia portu­guesa: 1258-1264. Análise Social (Lisboa). v. 35, n. 157, p. 899-935, 2001., p. 909). Embora não se conheçam as consequências imediatas - o que poderia ser atribuído a lacunas documentais - não é incomum que a historiografia identifique desdobramentos institucionais e jurídicos dentro de um arco temporal mais alargado, ao vincular diferentes iniciativas administrativas, como já referimos. Nesse sentido, as inquirições seriam a própria consequência das leis gerais e das confirmações gerais, devendo ser entendidas como instrumento de retaliação política, derivadas da desobediência ao monarca.

Ainda no que se refere ao problema da eficácia, relativamente às inquirições como instrumento político, é interessante recordar que também o famoso Domesday Book, onde se registraram as inquirições régias realizadas na Inglaterra, foi alçado pela historiografia inglesa ao patamar de evidência incontestável do poder monárquico. Michael Clanchy (1993CLANCHY, Michael. From memory to written record. Oxford: Blackwell’s, 1993., p. 34), por exemplo, sublinha a precocidade desse instrumento de governo inglês, embora reconheça que as informações contidas nesses registros não foram utilizadas pela monarquia antes do século XIII. Nos últimos anos, os especialistas têm se inclinado por interpretações mais matizadas, tendendo a problematizar e a ampliar o cenário em que transcorreram as inquirições que deram origem ao Domesday Book, introduzindo outros atores políticos que dividem o protagonismo com a realeza e que se beneficiariam do ato de inquirir. Num estudo inspirador, David Roffe (2007ROFFE, David. Decoding Domesday. Suffolk: Boydell, 2007.) ressalta que as inquirições, hoje resumidas aos registros escritos guardados nos arquivos e transformados pelos historiadores em instrumentos notariais e de chancelaria com o objetivo de servir como arma política nas mãos da monarquia contra os súditos, encerravam outra dimensão - talvez mais importante. O próprio ato ritual jurídico/político de inquirir certamente tinha grande impacto e eficácia como encenação do poder.5 5 “Quando analisadas em conjunto, percebe-se que as Inquirições eram bons instrumentos para reestruturar os compromissos políticos (pactos). A própria mise em scène dos procedimentos, pode ser entendida como espécie de ‘pastoral política’ para reafirmar e restabelecer a ordem senhorial. (...) De qualquer forma, resta interpretar então de que forma teriam sido usadas as Inquirições. Pensamos que a explicação que mais se adequa à mentalidade política feudal é aquela que vincula a decisão de levar a cabo as Inquirições ao campo da representação política e da propaganda. O simples fato de que o monarca tivesse agentes e oficiais circulando pelo norte do reino fazendo indagações publicamente sobre os seus direitos era, por si só, uma imagem com grande força política. Nesse mesmo sentido, o monarca contribui para a preservação e difusão da imagem de bom governante. Cuidar e preservar o patrimônio régio faz parte do ‘bom governo’ que, em termos da justiça não se restringe ao rei. Nas inquirições, os súditos, por meio das acusações e denúncias, participam ativamente na execução do ‘bom governo’. O processo em si, como espetáculo público, mostra uma prática de ‘bem governar’, traduzindo-se na difusão de princípios éticos de governo; efetiva propaganda política” (Coelho, 2010, p. 44, 53). Hermínia Vilar (2015b, p. 149) também parece concordar com essa perspectiva: “Para mais, o deambular desta comissão por terras que lhe eram conhecidas, tanto por parte dos clérigos como dos leigos, interpelando comunidades que lhe estavam, por vezes, sujeitas ou ligadas à exploração das suas propriedades, afirmava inquestionavelmente o poder e a presença do poder do rei, mas fazia-o através dos seus representantes implantados na região inquirida. E este espaço de pressão e de influência não seria irrisório.” Não somente emergia a imagem do rei - posto que ausente fisicamente - mas fortaleciam-se os inquiridores que, frequentemente, pertenciam ao poder local, palco das inquirições. O processo de inquirir permitia também “tomar a temperatura política” de determinadas regiões do reino (Roffe, 2007ROFFE, David. Decoding Domesday. Suffolk: Boydell, 2007., p. 67). Em termos historiográficos, seria importante marcar a diferença entre o momento em que os inquiridores arguiam testemunhas e a elaboração dos registros que conhecemos hoje. A maneira como a chancelaria régia traduziu e reordenou esses depoimentos certamente difere da forma como foram conduzidos in loco. Com relação ao Domesday Book, destaca-se o fato de não se conhecerem os questionários, aplicados em cada localidade, e que formaram a base de informações para a confecção do registro sobrevivente, gerando problemas de interpretação entre os estudiosos (Keats-Rohan, 2015KEATS-ROHAN, Katherine S. B. The English case: the production of the Domesday Book from the Domesday Inquest. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015, p. 29-46., p. 38).

O teatro do poder que se instala no momento de inquirir testemunhas, tal como notou Thierry Pécout, se beneficia amplamente de uma cultura política que reconhece naqueles que detêm a autoridade para inquirir espécie de fautores da verdade. O objetivo anunciado é o de estabelecer a verdade.

A inquirição régia não se reduz a um método, resultado apenas da reflexão dos juristas, mas também de teólogos relativamente a provas, evidências e das relações entre razão humana, e projeto divino, mas ela constitui o próprio estabelecimento da verdade, a sua formulação como resultado da formalização processual, para não dizer ritual (Pécout, 2015PÉCOUT, Thierry. Indagatio diligens et solers inquisitio: l’enquête princière, domaniale et de réformation: France actuelle, Provence angevine, XIIIe-XIVe siècles. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês(Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015, p. 47-78., p. 48).6 6 “... l’enquête princière ne se réduit pas à une méthode, issue de la réflexion non seulement des juristes, mais aussi des théologiens à propos de la preuve, du notoire et des relations entre raison humaine, réel et dessein divin, mais elle constitue la forme même de l’établissement de la vérité, la formulation de cette dernière résultant de la formalisation procédurale, pour ne pas dire rituelle.”

Em termos documentais, também as inquirições de 1220 sobreviveram por meio de registros que não refletem o momento em que os inquiridores ouviram as testemunhas, mas da reelaboração desses depoimentos na chancelaria régia, sendo impossível saber o que foi suprimido e/ou acrescentado pelos escrivães (Vilar, 2015bVILAR, Hermínia V. O rei e a Igreja no inquérito régio de 1220: traços de uma imagem. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015b, p. 135-150., p. 136). De acordo com Saul Gomes (2015GOMES, Saul A. As inquirições régias ducentistas entre o Vale do Douro e o Mondego: contextos e datações. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês(Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015, p. 99-114., p. 108),

Tratar-se-á em todos os casos, cremos, de textos graficamente refeitos, ou seja, de cópias de minutas originais que, levadas à chancelaria real, foram aqui agrupadas e tratadas de modo concertado ou conjugado, envolvendo o contributo de vários escribas e seguindo normas de apresentação gráfica e codicológica predefinidas.

O resultado mais visível da reordenação operada na chancelaria, posteriormente, sobre as informações coletadas durante o ato de inquirir é a subdivisão dos conteúdos, numa estrutura quadripartite: reguengos, foros e dádivas, padroados e bens das ordens (Vilar, 2015aVILAR, Hermínia V. As Inquirições no contexto do reinado de Afonso II. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015a, p. 81-98., p. 97; Sottomayor-Pizarro, 2015, p. 128). Com pequenas variações, opera-se uma hierarquização dos apartados temáticos, citando em primeiro lugar o que diz respeito ao monarca e, por último, à Igreja. Mas, ao analisar os registros referentes à área entre o Douro e o Mondego, por exemplo, Saul Gomes (2015GOMES, Saul A. As inquirições régias ducentistas entre o Vale do Douro e o Mondego: contextos e datações. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês(Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015, p. 99-114., p. 108) informa que primeiro se perguntava sobre o padroado da matriz, depois sobre os bens reguengos, seguido dos bens e direitos das ordens, com raras menções a bens nobiliárquicos. A diferença que se observa entre as duas listagens ajuda a entender, no primeiro caso, a valorização que se operou no registro posterior com relação ao protagonismo régio e, no segundo, a motivação política que esteve na base das inquirições de 1220.

A jurisdição do inimigo sob ataque

Do ponto de vista da história, as instituições ganham especial valor quando analisadas de maneira a identificar, ao mesmo tempo, suas características formais/doutrinárias e sua utilização no campo político. Para os historiadores, os registros das disputas jurisdicionais, por exemplo, são excelente material para compreender como os interesses particulares eram habilmente redimensionados por meio dos canais jurídicos (Bowman, 2015BOWMAN, Jeffrey A. Writing and power: anthropological approaches to medieval records. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015, p. 153-164., p. 156).7 7 “From this perspective, records of disputes are opportunities not merely to explore how institutions strove to maintain order and to advance their own interests, but also of how individual disputants engaged with the people and institutions that sought to administer justice. The emphasis then is not so much on the institutions, but on how individual actors responded to conflict and legal processes, how they sought to prove their claims in legal fora, and at the broadest level how they sought to prevail and prosper within particular social and micropolitical contexts.” Tal perspectiva, entretanto, não significa que se deva operar um exercício de contrastar discurso e prática, no qual esta tenderia a evidenciar a deturpação daquele, mas de mostrar como a ação política - vitoriosa8 8 Normalmente, os registros sobreviventes refletem o lado vitorioso dos conflitos, muito embora seja possível desvendar nas entrelinhas que o lado perdedor também recorreu às instituições como forma de luta política. - ao recorrer a esses instrumentos acaba por adensar ainda mais a sua institucionalidade. Esse é, certamente, o caso das inquirições de 1220, cujo enredo precisa ser detalhado, para que tenhamos ideia do nível de complexidade política que as envolveu.

Apesar de conhecidas por seu alcance “geral”, as inquirições não abrangeram a totalidade do reino. Na verdade, em termos geográficos, foram bastante limitadas. Em termos políticos, seu objetivo era também reduzido. Dir-se-ia, até, eficientemente concentrado. Tratava-se de fazer inquirições nos domínios do arcebispo de Braga, Estevão Soares da Silva, territórios que se estendiam Entre Douro e Minho, Trás os Montes e Norte da Beira.

Estevão Soares da Silva tornou-se arcebispo de Braga, em 1213. Sua carreira eclesiástica é fruto das redes de poder a que pertencia por laços familiares e de fidelidade. Conhecem-se suas ligações aos Riba de Vizela, importante linhagem do Norte de Portugal, uma vez que sua irmã, Estevainha Soares da Silva, casou-se com Martim Fernandes de Riba de Vizela. A proximidade desse grupo com a corte régia evidencia-se, por exemplo, no fato de Estevainha ter sido aia do futuro Sancho II e de seu marido ostentar a posição de mordomo do rei (Vilar, 2008VILAR, Hermínia V. D. Afonso II: um rei sem tempo. Mem Martins: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2008., p. 72).

Apesar desses laços de colaboração e amizade, a partir de 1219 observa-se o estabelecimento de um conflito aberto entre o monarca e o arcebispo de Braga, cujas acusações mútuas são desveladas por meio das bulas que o papado envia para a Península Ibérica, entre 1220 e 1222, com o intuito de solucionar os enfrentamentos. Embora não consigamos saber ao certo os motivos que deram origem ao conflito, podemos acompanhar a versão dos acontecimentos que o próprio arcebispo ia dando em Roma e que Honório III oficializava com o selo papal. Tudo havia começado com a indignação de Afonso II ao tomar conhecimento das decisões de uma assembleia convocada pelo arcebispo de Braga, de adverti-lo sobre a maneira desrespeitosa com que agia contra a Igreja. A reação do rei teria sido violenta, pois, por meio de alguns membros dos concelhos de Guimarães e de Coimbra, mandara atacar e destruir possessões de Estevão Soares da Silva. A gravidade dos atos, que já vinham se desenrolando desde 1219, levara o arcebispo a excomungar os envolvidos, inclusive o próprio rei. De toda forma, sentindo-se fragilizado em sua posição e com a escalada da violência das ações, o arcebispo, amedrontado e receando por sua integridade física, fugiu do reino e dirigiu-se a Roma para pedir a intervenção de Honório III. Pelas primeiras bulas emitidas sobre o caso e despachadas para diversas personagens, o papa ampliava o cenário das disputas, conclamando o rei de Leão, Alfonso IX, a proteger o arcebispo de Braga e seus interesses e, colocando os bispos de Astorga, Orense, Tui e Palência a par da situação, exortava-os a renovarem as excomunhões proferidas por Estevão Soares da Silva (Vilar, 2015aVILAR, Hermínia V. As Inquirições no contexto do reinado de Afonso II. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015a, p. 81-98., p. 92).

O enredo dos acontecimentos, contado pelas bulas, levou a historiografia a interpretá-lo como mais uma oposição entre poder temporal e espiritual. Entretanto, quando se amplia a lente de observação, percebe-se que o cenário do poder envolvia interesses que, se muitas vezes se manifestavam por meio de uma retórica jurisdicional temporal/espiritual, na ação política diluíam as fronteiras sociais entre laicos e eclesiásticos. Hermínia Vilar chama a atenção para alguns aspectos que, a nosso ver, possibilitam considerar o problema das inquirições de 1220 para além de um modelo historiográfico que, de forma esquemática, reduz a iniciativa a uma confrontação típica entre os dois gládios.

Mas retomemos os ataques perpetrados contra os bens do bispo e anteriormente referidos. Ataques que, realizados pelos membros dos concelhos de Coimbra e de Guimarães, teriam funcionado como a gota de água no conflito talvez até então oral entre os dois poderes. Se seguirmos de perto a cronologia proposta pela bula de Dezembro de 1220 e que data a excomunhão do rei de cerca de um ano antes, isso significaria que estes atentados poderiam ter tido lugar nos últimos meses de 1219, ou seja, pouco após a assinatura do tratado do Boronal entre Afonso II e Afonso IX de Leão e após a última grande deslocação do rei português ao Norte do reino. Neste contexto, não nos interessa discutir o que terá estado na base da assinatura deste tratado, ou seja, as conquistas então feitas por Afonso IX, mas antes a doação que no mesmo mês de Junho o rei leonês fez a Estêvão Soares da Silva de confirmação de posse do couto da vila e do couto de Ervededo, situado na terra de Límia, numa zona que Afonso IX controlava militarmente, com raras interrupções, desde a invasão de 1212. Outorga que tanto Alexandre Herculano como Júlio Gonzalez atribuem à influência do bastardo Martim Sanches, filho de Sancho I e de Maria Aires Fornelos e tenente das terras de Límia, na qual se encontrava o couto de Ervededo, a par de seu meio irmão, Pedro Sanches, então mordomo do rei leonês. Terá sido pouco depois desta outorga e aproveitando a ausência de Martim Sanches que membros do concelho de Guimarães se dirigiram ao couto de Ervededo, então na posse do arcebispo de Braga, e aí destruíram e incendiaram diferentes bens. Desta forma, reagia Afonso às críticas lançadas pelo arcebispo, mas também à doação do couto por parte de Afonso IX. Mas reagia também contra os perigos de reconstituição de uma aliança entre Afonso IX e Pedro Sanches, agora alargada a Estêvão Soares da Silva e a Martim Sanches. Neste contexto, as lutas referidas pelo Livro de Linhagens e que teriam oposto, no Norte do reino, Martim Sanches e os cavaleiros do rei, teriam tido lugar após estes ataques, provavelmente no decurso de 1220, após um afastamento do monarca apresentado como forçado pelos seus apoiantes, mas, muito provavelmente, determinado pelas limitações de Afonso II (Vilar, 2015aVILAR, Hermínia V. As Inquirições no contexto do reinado de Afonso II. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; FONTES, João Luís Inglês (Ed.). Inquirir na Idade Média: espaços, protagonistas e poderes (séculos XII-XIV). Tributo a Luís Krus. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2015a, p. 81-98., p. 93).

O cenário descrito possibilita, portanto, interpretar os embates entre Afonso II e o arcebispo de Braga como parte de interesses muito mais amplos, envolvendo vários atores poderosos. As bulas denunciam ainda que a situação se agravou entre o monarca e o arcebispo devido aos reiterados desrespeitos de Afonso II aos bens e direitos eclesiásticos, tais como a imposição de tributos e cargas consideradas injustas, e o julgamento de clérigos em tribunais régios. De acordo com a versão que Estevão Soares da Silva contava em Roma, esses abusos teriam aumentado com o tempo, a ponto de ver-se obrigado a convocar uma assembleia daqueles clérigos que o apoiavam, na qual se decidiu admoestar o rei, aproveitando também para exigir que ele abandonasse o que a bula chama de “vida adúltera”. A reação do monarca, ainda de acordo com a bula, teria sido desmesurada, atacando os bens de Braga por meio de milícias comandadas por homens dos concelhos de Guimarães e de Coimbra, ao que o arcebispo respondeu com a excomunhão dos envolvidos e a interdição do reino (Vilar, 2008VILAR, Hermínia V. D. Afonso II: um rei sem tempo. Mem Martins: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2008., p. 286, 292). Aquilo que, pela voz papal, se reduzia a um embate entre duas personagens, cada qual investida de sua jurisdição, cresce em complexidade política quando o historiador acrescenta outras tipologias documentais que denotam dinâmicas mais pluralistas características das redes de poder. O problema passa a ser considerado à luz de movimentações e estratégias no contexto das disputas territoriais entre Portugal e Leão, na Galícia, abrangendo, além dos dois monarcas, uma aristocracia - laica e eclesiástica - cujas bases de poder estendem-se aos dois reinos. No plano eclesiástico, os acontecimentos revelam também que há uma cisão, uma vez que vários clérigos importantes apoiam o partido do rei, ou, dizendo com mais precisão: opõem-se a Estevão Soares da Silva. Certamente, para estes, Afonso II não merecia as acusações que o arcebispo lhe fazia em Roma.

E o panorama torna-se ainda mais complexo quando se verifica que as inquirições foram levadas a cabo nos domínios do arcebispo e que os inquiridores eram todos homens interessados em ajustar contas com Estevão Soares da Silva. Do lado eclesiástico, destacam-se os abades de Santo Tirso, de Pombeiro, de Santa Marinha da Costa, de São Torquato, e o prior de Guimarães; do lado laico, alguns membros do concelho de Guimarães, como o juiz Ramiro Pires, o tabelião Martim Martins, Martim Esteves e João Pires (PMH, 1888PMH. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTORICA. Inquisitiones. v. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1888., p. 1).

Desde o início do governo de Estevão Soares da Silva, à frente do arcebispado de Braga, as relações com os abades de Santa Marinha da Costa e de São Torquato, bem como com o prior de Guimarães, eram de enfrentamento (Vilar, 2008VILAR, Hermínia V. D. Afonso II: um rei sem tempo. Mem Martins: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2008., p. 240, 285). Tratava-se de uma questão jurisdicional, uma vez que essas comunidades não reconheciam a autoridade diocesana de Braga - apenas a metropolítica - o que constituía uma situação de nullius dio­coesis. Ou seja, os abades exerceriam, em seus respectivos mosteiros, poder similar ao do bispo, reconhecendo a Braga unicamente a jurisdição arcebispal. Para Estevão Soares da Silva, essa situação era insustentável, tal como o manifestou em 1213, ao papa, que expediu em seu favor a bula Cum non liceat, pela qual se exigia que os desobedientes reconhecessem também a autoridade episcopal de Braga. Nessa bula, o pontífice não deixou de registrar o quão surpreso estava diante da contumácia com que resistiam à autoridade de Estevão Soares da Silva, e, sem meias palavras, conclui tratar-se de crime cuja gravidade era comparável ao cometido pelos idólatras.9 9 1214, Novembro, 13 — Innocencius seruus seruorum dei. Dilectis filiis Vimaranis. et de Costa. et sancti torquati prioribus Bracarensis diocesis salutem et apostolicam benedictionem. Cum non liceat a capite membra discedere. nos sufficimus admirari. quod sicut referente uenerabili fratre nostro Bracarensi archiepiscopo nostris est auribus intimatum cum ecclesie uestre in ipsius sint diocese constitute. Uos nullum exemptionis priuilegium pretendentes obedire sibi tamquam epíscopo uestro contumaciter recusatis. Cum igitur crimen ariolandi sit repugnare. ac scelus ydolatrie nolle adquiescere sustinere nollentes ut subditi prelatis suis non obediant ut tenentur discretioni uestre per apostólica scripta mandamus et in uirtute obedientie precipimus quatinus prefato archiepiscopo et ecclesie bracarensi obedientiam et reuerentiam debitam sicut alii clerici sue diocesis faciunt de cetero sine contradictione aliqua impendatis (Costa, Marques, 1989, p. 346).

A vontade do pontífice transformou-se em duas concórdias que seriam pactuadas em 1214, entre Estevão Soares da Silva e os abades de Santa Marinha da Costa e de São Torquato. Entretanto, com a Colegiada de Guimarães a concórdia seria celebrada apenas em 1216, mas cujos resultados políticos mostraram-se bastante frágeis, com consequências de longa duração. O pactuado em 1216 ficou conhecido como “composição antiga”, a qual seria substituída, em 1553, por uma “composição nova”, uma vez que os litígios jurisdicionais com Braga não cessaram nesse longo arco de tempo (Soares, 1980SOARES, António Franquelim Sampaio Neiva. Conflictos jurisdicionais entre a Colegiada e o Arcebispo de Braga (século XIII a 1831). In: Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, 1., 1980, Guimarães. Actas..., v. 1. Braga: Oficina Gráfica Barbosa Xavier, 1980, p. 11-29., p. 12-14). De acordo com Soares (p. 28-29),

Até 1213 a colegiada viveu, talvez, embora só de facto, numa completa autonomia. Com a composição antiga (1216) reconheceu-se, por um lado, ao arcebispado o seu direito de visita e de recepção da respectiva procuração e, por outro, aos priores a jurisdição nos cónegos e porcionários à semelhança do bispo nos seus diocesanos, restando ao arcebispo a do metropolita nos seus sufragâneos. Estes dois pontos interpretou-os cada um dos contendores de harmonia com seus interesses: enquanto o do arcebispo de Braga entendia que podia visitar a colegiada jure diocesano, e não apenas jure metropolítico, uma vez que ele tinha nela o equivalente ao poder dum bispo. Só assim se pode compreender a luta titânica entre as duas partes até 1553.

No caso da Colegiada de Guimarães, de São Torquato e de Santa Marinha da Costa, estamos diante de mosteiros sobre os quais Afonso II exercia o padroado, podendo-se atribuir ao vínculo jurídico a escolha daqueles abades para comporem o grupo dos inquiridores. Entretanto, talvez seja importante notar que o laço não transformava os eclesiásticos em reflexo dos interesses e alinhamentos régios. No início de seu arcebispado, Estevão Soares da Silva mantinha boas relações com Afonso II, como prova a sua reiterada presença entre os confirmantes dos principais documentos expedidos pela chancelaria régia. Mas essas relações de colaboração não impediram que os três mosteiros do norte levassem adiante uma agenda própria, que antagonizava com a do arcebispo.

Apesar das inquirições terem sido realizadas em nome do rei, não deixa de chamar a atenção o fato de serem os abades de Santo Tirso e de Pombeiro as autoridades a encabeçar cada uma das rubricas que registram os bens e direitos inquiridos. Os dois mosteiros pertencem ao patronato de duas das linhagens aristocráticas mais importantes do “Norte senhorial”: os Maias e os Sousas (Silva, 1995SILVA, Maria Joana Corte-Real Lencart e. O costumeiro de Pombeiro: uma comunidade beneditina do século XIII. Dissertação (Mestrado em História Medieval), Universidade do Porto. Porto, 1995.; Fontes, 1996FONTES, João Luís I. A Terra de Vermoim nas Inquirições de 1220: o povoamento e a propriedade régia. In: Congresso Histórico de Guimarães, 2., 1996, Guimarães. Actas..., v. 6. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1996, p. 94-107., p. 95). As duas casas monásticas compartilham frequentemente interesses políticos, como resultado, inclusive, do entrelaçamento que se opera entre as duas redes aristocráticas.10 10 Interessante notar que no calendário litúrgico do Mosteiro de Pombeiro, o dia 28/01 é dedicado à celebração de santo Tirso mártir, uma comemoração que não se registra na tradição beneditina do noroeste da Península Ibérica, pois não está presente no Missal de Mateus nem no Breviário de Soeiro (Silva, 1995, p. 157, 171). João Pires da Maia juntou-se ao partido do rei contra as tramas políticas que envolveram as mudanças provocadas pelo protagonismo de Martim Sanches na Galícia e que envolviam também o arcebispo de Braga (Mattoso, 1995MATTOSO, José. Identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal. 2v. Lisboa: Estampa, 1995., v. 1, p. 177). Aliás, é no contexto dessas peripécias que o Livro de Linhagens refere o episódio em que Afonso II teria estanciado em Santo Tirso (PMH, 1856PMH. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTORICA. Scriptores. v. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1856.). Este mosteiro alimentava contenciosos jurisdicionais com o arcebispo de Braga, desde o final do século XI, sobretudo em torno da jurisdição episcopal, uma vez que, para Santo Tirso, era mais interessante defender a obediência à diocese do Porto.11 11 É claro que isto nem sempre foi assim. Entre 1216 e 1217, o abade de Santo Tirso recorreu ao papa Inocêncio III e, depois, a Honório III, para solicitar a proteção da Santa Sé contra os avanços da diocese do Porto sobre bens e direitos que lhe pertenciam (Correia, 2008, p. 305-306). Mas não era esse o entendimento dos sucessivos arcebispos que insistiam em transformar suas eventuais passagens e alojamento no mosteiro em provas jurídicas da sujeição diocesana de Santo Tirso ao metropolita. Braga dizia que era prandium, enquanto Santo Tirso insistia em tratar-se apenas de um ato de cortesia e benevolência. O fato é que a expansão da Arquidiocese de Braga ia se construindo por meio da invasão dos limites de outras dioceses, como a do Porto, cujas linhas fronteiriças passavam justamente pelos domínios tirsenses. Na verdade, o contencioso faz parte da história das duas instituições:

D. Pedro [primeiro bispo da Sé restaurada], realmente, ultrapassou o leito do Ave, que sempre se houve como fronteira das dioceses do Porto e Braga, no troço que iria da foz do Vizela até desaguar no Atlântico, em Vila do Conde. Assim, pouco a pouco introduzirá no mapa da geografia diocesana uma dúzia de paróquias e mosteiros numa faixa tangente ao rio, desde S. Martinho do Campo, a leste, até as portas do mosteiro de Santo Tirso. E só aqui estacou, porque encontrará dois grandes opositores à sua desmedida ambição: o abade do mosteiro, D. Gaudemiro, e o padroeiro principal e fidalgo, Soeiro Mendes da Maia (Correia, 2008CORREIA, Francisco Carvalho. O Mosteiro de Santo Tirso, de 978 a 1588: a silhueta de uma entidade projectada no chão de uma história milenária. Tese (Doutorado em História Medieval), Universidade de Santiago de Compostela. Santiago de Compostela, 2008. Disponível em:<Disponível em:https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/10347/2416/1/9788498870381_content.pdf >. Acesso em: 5 jun 2019.
https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/1...
, p. 144).

No reinado de Afonso II, o abade de Santo Tirso era D. Mendo Peres (II), o qual esteve à frente do mosteiro entre 1178 e 1224 (Correia, 2008CORREIA, Francisco Carvalho. O Mosteiro de Santo Tirso, de 978 a 1588: a silhueta de uma entidade projectada no chão de uma história milenária. Tese (Doutorado em História Medieval), Universidade de Santiago de Compostela. Santiago de Compostela, 2008. Disponível em:<Disponível em:https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/10347/2416/1/9788498870381_content.pdf >. Acesso em: 5 jun 2019.
https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/1...
, p. 179). Seu pertencimento à linhagem da Maia garantiu-lhe protagonismo político já no reinado de Sancho I, do qual foi testamenteiro e conselheiro, e manter-se-ia no reinado de Afonso II, quando aparece como testemunha e confirmante de vários documentos, ademais de também figurar como testamenteiro deste monarca, em 1221 (Correia, 2008CORREIA, Francisco Carvalho. O Mosteiro de Santo Tirso, de 978 a 1588: a silhueta de uma entidade projectada no chão de uma história milenária. Tese (Doutorado em História Medieval), Universidade de Santiago de Compostela. Santiago de Compostela, 2008. Disponível em:<Disponível em:https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/10347/2416/1/9788498870381_content.pdf >. Acesso em: 5 jun 2019.
https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/1...
, p.188).

Sobre os nomes que compõem o grupo de inquiridores, na qualidade de juiz e de tabelião, sabe-se que eram homens bem assentados na terra de Guimarães, e que integravam as redes locais, que se sentiam afetadas pelas pretensões do arcebispo de Braga. O tabelião Martim Martins assumiu a função em 1212, para a qual, além dos conhecimentos específicos, o capacitava sua condição social de homem-bom e proprietário de bens fundiários na região. Em termos políticos, certamente fazia parte dos grupos que controlavam o poder na cidade, pois participou diretamente, em 1219, nos ataques perpetrados contra os bens e direitos de Estevão Soares da Silva, assim como o juiz Ramiro Pires (Nunes, 1980NUNES, Eduardo Borges. Martim Martins, primeiro tabelião de Guimarães. In: Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, 1., 1980, Guimarães. Actas..., v. 1. Braga: Oficina Gráfica Barbosa Xavier, 1980, p. 25-30., p. 27, 29). Este, do mesmo modo que Gomécio de Rupela, possuía bens e direitos registrados nas próprias inquirições (PMH, 1888PMH. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTORICA. Inquisitiones. v. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1888., p. 9, 12).

As inquirições começaram por Guimarães, segundo informam os registros documentais:

Estas são as inquisições do reguengo do termo de Guimarães e de outros julgados descritos abaixo, as quais fizeram o abade de Santo Tirso, o abade de Pombeiro, e o prior de Guimarães, e o prior da Costa, e o prior de São Torquato, e Gomécio de Rupella, e o mestre Mendo, frade da Costa, e o juiz Ramiro Pires, e o vilão João Pires, e Fernão Domingues, e Martim Esteves, e o tabelião Martim Martins, por mandado do senhor rei Afonso, filho do senhor rei Sancho e foram feitas no mês de agosto, na Era de MCCLVIII (PMH, 1888SOARES, António Franquelim Sampaio Neiva. Conflictos jurisdicionais entre a Colegiada e o Arcebispo de Braga (século XIII a 1831). In: Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, 1., 1980, Guimarães. Actas..., v. 1. Braga: Oficina Gráfica Barbosa Xavier, 1980, p. 11-29., p. 1).12 12 “Hec sunt Inquisitiones de Regalengis de termino Vimaranensi et de aliis Judicatibus inferius scriptis, quas fecerunt abbas Sancti Tirsi, abbas Polumbarii, et prior Sancti Torcati, et Gomecius de Rupella, et magister Menendus frater Costensis, et judex Ramirus Petri, et Joahannes Petri villanus, et Fernandus Dominici, et Martinus Stephani, et tabellio Martinus Martini, per mandatum domini Regis Alfonsi, fillii domini Sancii, et fuerunt facte in mense Augusti sub Era M.CC.L.VIII.” Como se sabe, a data refere-se à Era de César, à qual se devem subtrair 38 anos, para se obter o ano de Cristo. Neste caso, 1220.

O termo de abertura, em que se designam os encarregados de representar o monarca, é bastante esclarecedor do cenário político. São esses os personagens que devem assumir a tarefa em todas as localidades em que se montou o “espetáculo” das inquirições, que consistia em ouvir várias testemunhas sobre a titularidade de bens e direitos, as quais se apresentavam encabeçadas pelo pároco. A escolha de Guimarães, como ponto de partida das inquirições, poderia ser interpretada à luz da tradição como berço da monarquia portuguesa, mas tampouco se deve esquecer que tanto os Maias, como os Sousas, tinham ali seus paços (Mattoso, 1987MATTOSO, José. A nobreza medieval portuguesa: a família e o poder. Lisboa: Estampa, 1987., v. 1, p. 348).

Do ponto de vista jurídico, seria de esperar que as inquirições, ao serem ordenadas pelo rei, somente averiguassem sobre aquilo que lhe pertencia, ou seja, sobre o que dizia respeito à sua jurisdição. Aliás, é essa a intenção manifestada no preâmbulo de cada apartado, quando se esclarece que se trata das “inquisições do reguengo”, das “inquisições dos foros” (PMH, 1888SOARES, António Franquelim Sampaio Neiva. Conflictos jurisdicionais entre a Colegiada e o Arcebispo de Braga (século XIII a 1831). In: Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, 1., 1980, Guimarães. Actas..., v. 1. Braga: Oficina Gráfica Barbosa Xavier, 1980, p. 11-29., p. 75), das “inquisições sobre as igrejas do arcebispado de Braga, das quais o rei é, ou não, patrono” (PMH, 1888SOARES, António Franquelim Sampaio Neiva. Conflictos jurisdicionais entre a Colegiada e o Arcebispo de Braga (século XIII a 1831). In: Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, 1., 1980, Guimarães. Actas..., v. 1. Braga: Oficina Gráfica Barbosa Xavier, 1980, p. 11-29., p. 169).13 13 “Hec sunt Inquisitiones de ecclesiis Archiepiscopatus Bracharensis, de quibus dominus Rex est patronusvel non (...).” Há uma concentração do padroado régio, sobretudo, em terra de Celorico: 15 igrejas (PMH, 1888, p. 194). Porém, é importante sublinhar que no último apartado, dedicado às Ordens, não se observa a mesma rubrica que encabeça cada uma das anteriores, definidora da jurisdição régia que legitimava a ação inquisitória. Neste caso, inicia-se apenas com o título “Do termo de Guimarães de quanto possuem as ordens em cada um dos lugares” (PMH, 1888SOARES, António Franquelim Sampaio Neiva. Conflictos jurisdicionais entre a Colegiada e o Arcebispo de Braga (século XIII a 1831). In: Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, 1., 1980, Guimarães. Actas..., v. 1. Braga: Oficina Gráfica Barbosa Xavier, 1980, p. 11-29., p. 211). O editor da Portugaliae Monumenta Historica, diante da diferença formal, sentiu-se na obrigação de colocar uma nota em que avisa que “falta o título ou rubrica inicial, que se lê nas outras divisões”. Na verdade, não cremos que tenha sido um descuido dos compiladores medievais, pois parece um forte indício de que se compreendia que, em termos jurisdicionais, o rei não poderia inquirir sobre aquilo que não lhe pertencia, como era o caso do que, evidentemente, somente poderia pertencer às ordens. Assim, o estratagema de encabeçar o apartado referente ao padroado com uma rubrica que indicava que se averiguaria o que pertencia - ou não - ao rei, não cabia no último caso. A saída foi suprimir a rubrica, mas não o conteúdo, sobretudo porque, para os inquiridores, era provavelmente o ponto que mais lhes interessava.14 14 Sobre esse particular, veja-se também a opinião de Hermínia Vilar (2015b, p. 138): “... interessam-nos, em especial, os dois últimos grupos, respeitantes ao direito de padroado e aos bens detidos pelas ordens. Com efeito, se o primeiro procurava, de forma clara, organizar o cadastro do direito de padroado detido pelo rei, mais do que a identificação das diferentes instituições que o detinham, já que a informação relativa aos outros padroeiros que não o rei é esparsa e pouco presente na maior parte dos depoimentos, ao contrário do que será, por exemplo, a prática em 1258, o segundo procurou, antes de mais, cadastrar os bens das ordens, ou seja, das instituições eclesiásticas, tanto regulares como seculares. Desta forma, o património régio apenas surge referido neste último grupo por entre os interstícios do não nomeado. Ou seja, neste último grupo estamos perante uma parte do questionário que visava a identificação clara do património eclesiástico e não do régio”. Mais adiante, a autora reforça essa ideia, com a qual concordamos plenamente: “ver neste esforço de cadastro da propriedade das ordens uma exclusiva vantagem régia é uma ideia redutora” (p. 143). Grifos nossos.

Os inquiridores perguntavam sobre os direitos do rei, de forma ampla, mas também sobre seus domínios senhoriais. Em Guimarães, por exemplo, as propriedades do monarca eram formadas principalmente por casais, mas há também menções a parcelas avulsas referidas por meio de um rico vocabulário que esclarecia sobre tipos de cultura a que estavam destinadas, ou aos diferentes formatos e dimensões dos terrenos. De toda forma, essas unidades de produção dominiais encontravam-se aforadas pela coroa, tal como faziam os demais senhores (Gameiro, 1996GAMEIRO, Odília A. A propriedade régia em Guimarães nas Inquirições de 1220. In: Congresso Histórico de Guimarães, 2., 1996, Guimarães. Actas..., v. 6. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1996, p.149-179., p. 152). A leitura das inquirições permite observar que o rei recebia foros em bastantes lugares, mas quase sempre de maneira muito parcelada. Tal panorama requeria a existência de uma rede de mordomos que gerenciassem a cobrança das rendas em nome do rei. De acordo com Hermínia Vilar (2008VILAR, Hermínia V. D. Afonso II: um rei sem tempo. Mem Martins: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2008., p. 243),

Pouco se sabe também sobre esses mordomos que surgem como os primeiros oficiais régios responsáveis pela coleta dos tributos devidos ao rei. Pouco se conhece sobre suas origens sociais, sobre o processo que presidia à sua escolha ou mesmo sobre a forma como prestavam contas das suas cobranças. (...) não raras vezes ao longo destas inquirições, são referidos e identificados como tendo ligações às testemunhas e, como tal, à população das localidades nas quais faziam a cobrança dos direitos. Em alguns casos parecem pertencer a uma mesma família, que faz circular ao longo de gerações sucessivas estas funções, noutros o cargo parece ser rotativo e percorrer os principais representantes de uma localidade.

Inicialmente, poder-se-ia concluir que semelhante lógica resultaria na patrimonialização do ofício régio, comprometendo sua eficácia administrativa. Entretanto, talvez o quadro possa ser entendido de outra forma se os parâmetros de governo não forem identificados na perspectiva monopolista, mas pluralista, do poder. Os mordomos recebiam o ofício como um benefício, ao qual correspondia um serviço, que só poderia ser executado por princípios personalistas. Era justamente com esse intuito que os monarcas medievais iam formando sua “rede de governo”: laços pessoais - não impessoais - com os súditos.

De acordo com essa lógica, embora perguntassem pelos bens e direitos da Coroa, os inquiridores iam conseguindo, ao mesmo tempo, testemunhos públicos que atestavam sobre os bens e direitos que pertenciam às instituições e aos grupos políticos que eles próprios representavam. Nesse sentido, devemos lembrar que, certamente, os bens e direitos que a Coroa aforara nas regiões inquiridas acabavam também por beneficiar membros que poderiam pertencer a qualquer uma das partes em confronto. Averiguar se os bens e os direitos do rei estavam “bem” atribuídos seria uma oportunidade para, eventualmente, proceder a uma redistribuição mais conveniente. Contudo, devemos ressaltar que reiteradamente registra-se a fórmula: “perguntados se alguma coisa era ali negada [ao rei], disseram, não.”15 15 Essa constatação parece-me contrariar o que às vezes se defende como justificativa para a escolha da região em que as inquirições se desenvolveram. Nessa perspectiva, ter-se-iam escolhido os domínios do arcebispo de Braga, por ser um enclave de intensa senhorialização e onde se esperaria encontrar maior número de apropriações indevidas dos direitos régios (Vilar, 2008, p. 237). Entretanto, os registros das Inquirições de 1220 provam justamente o contrário. Ou, bem, os que decidiram pelas inquirições com esse objetivo não tinham nenhuma ideia sobre a realidade política local, ou, então, eles tinham outra intenção...

No que se refere aos reguengos e foros, os registros apontam com detalhe o que se deve ao rei, mas quando as testemunhas esclarecem que este não tem direitos na localidade, os inquiridores não se preocuparam em registrar a quem eles pertenciam. Na verdade, a exceção ocorre quando esses bens e direitos pertencem a mosteiros, inclusive dos próprios inquiridores - Guimarães, Santa Marinha da Costa, São Torquato, Santo Tirso, Pombeiro - ou ao arcebispo de Braga. Não há interesse em registrar aquilo que pertence à aristocracia laica.

De maneira bastante sintomática, os inquiridores não deixaram de fora o próprio couto de Braga. Em se tratando de inquirições régias, dificilmente encontrariam ali bens e direitos pertencentes à Coroa dignos de registro, e eles sabiam disso. Desde a restauração da Sé, em 1071, entendia-se que a jurisdição eclesiástica de Braga estendia-se, em certas regiões, ao foro externo. Uma situação jurídica que seria revigorada, em 1112, pelos Condes D. Henrique e D. Teresa, por meio da elevação da

... cidade de Braga, sede da Arquidiocese, e o seu termo à condição de ‘senhorio’, abdicando, a favor do arcebispo Maurício Burdino e seus sucessores, de todos os seus direitos judiciais, militares e fiscais, transformando-a numa verdadeira terra imune. Esta situação de privilégio viria a ser enriquecida pelo Infante D. Afonso Henriques, quando, em 27 de Maio de 1128, a troco do auxílio militar solicitado ao arcebispo D. Paio Mendes, além de outras compensações, lhe ampliou a área do senhorio de Braga ... (Marques, Cunha, 2001-2002MARQUES, José; CUNHA, Maria Cristina de A. Conflito de jurisdições e documentos judiciais: o caso de Braga. Braga: Câmara Municipal, 2001-2002. Disponível em: <Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/54849?locale=pt >. Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 6-7).

Seja como for, o objetivo político de atingir o arcebispo no coração de seus domínios, por meio da presença do teatro da inquirição, era o que mais importava. Ali se fizeram as mesmas perguntas relativas ao reguengo, aos foros, ao padroado e aos bens das ordens. Tal como era de se esperar, em “terra de Braga” a arquidiocese tem amplos domínios, inclusive de “voz e coima”. O senhorio jurisdicional do arcebispo apresenta-se de forma densa, estendendo-se do padroado de igrejas espalhadas pelos domínios, à posse de granjas e de grande número de casais. Também nesse sentido, o rei não aparece como patrono de nenhuma das igrejas do couto de Braga, muito embora os inquiridores não tenham deixado de inquirir ali sobre esse aspecto. Em seus domínios, e tal como revelam os inquiridos, o arcebispo exercia a jurisdição eclesiástica - foro interno e externo - e a senhorial - cível e criminal (Marques, Cunha, 2000-2001MARQUES, José; CUNHA, Maria Cristina de A. Conflito de jurisdições e documentos judiciais: o caso de Braga. Braga: Câmara Municipal, 2001-2002. Disponível em: <Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/54849?locale=pt >. Acesso em: 5 jun. 2019.
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, p. 8).

Hoje é quase impossível recompor, em termos políticos, o que cada informação significava. Às vezes, entrevê-se algum indício que, a depender das circunstâncias, seria valioso para os inquiridores. Por exemplo, em Albergaria do Campo, registra-se que a arquidiocese de Braga tinha o padroado da igreja e 16 casais, mas o mosteiro de Pombeiro tinha ali “entradas” (PMH, 1888PMH. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTORICA. Inquisitiones. v. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1888., p. 238). À primeira vista, pode parecer uma informação sem importância, mas a depender do que estivesse em jogo, em termos do xadrez político, poderia ser uma das confirmações que Pombeiro desejava obter para, juntamente com outras, minar o poder de Estevão Soares da Silva. Em São Pedro de Scutariis, depois de dizerem que o rei não era patrono da igreja, as testemunhas acrescentaram que “o pároco da igreja foi a Roma, e não deixou lá nenhum clérigo” (PMH, 1888CLANCHY, Michael. From memory to written record. Oxford: Blackwell’s, 1993., p. 206). Essa informação remete para a possibilidade de tratar-se de uma igreja da órbita de Braga, cujo pároco teria acompanhado o arcebispo na fuga (Vilar, 2008VILAR, Hermínia V. D. Afonso II: um rei sem tempo. Mem Martins: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2008., p. 242). Em outros momentos, os inquiridos afirmam isso claramente, como no julgado de Travassós, relativamente às paróquias de Santo André, Santa Eulália de Gontim e São Pedro de Queimadela, quando dizem que ali “não há prelado/abade, o qual foi com o Arcebispo sem deixar clérigo em seu lugar” (PMH, 1888PMH. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTORICA. Inquisitiones. v. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1888., p. 60, 149, 199, 249).16 16 Interessante notar que no caso de Santa Eulália, o rei dividia o padroado com os paroquianos. No que se refere a São Pedro de Queimadela, embora se afirme, nos apartados relativos aos reguengos, ao padroado e aos bens das ordens, que a paróquia estava vaga em virtude do abade ter partido com o arcebispo, no apartado reservado aos foros e dádivas diz-se que ali não há pároco por se tratar de eremitério (PMH, 1888, p. 150). Nesse caso, o registro de que a paróquia estava vaga de fato podia significar uma oportunidade política. Mesmo aqueles dados que se referem exclusivamente à jurisdição régia, poderiam ser utilizados para aumentar ou diminuir a abrangência de uma das redes, uma vez que se tratava de bens e direitos amplamente aforados. Da mesma forma, o fato de que se tenha registrado que os “mosteiros inquiridores” tinham o padroado desta ou daquela igreja não nos permite saber se era notícia “nova”, como resultado de mudança operada no ato de inquirir, ou se, realmente, constituía direito anterior, reafirmado naquele momento.

Considerações finais

Ao analisar as Inquirições de 1220, percebemos a possibilidade de considerá-las de uma forma diferente daquela que vem sendo adotada de modo predominante pela historiografia. Em lugar de entender o ato de inquirir como resultado exclusivo da vontade régia, pensamos ser mais operativo ampliar o cenário para incluir outros atores políticos que se valeriam daquele instrumento. Embora não se conheçam os questionários para as testemunhas inquiridas, os conteúdos posteriormente reelaborados na chancelaria régia permitem deduzir o objetivo político que se perfilava por meio do ato de inquirir. Para os inimigos do arcebispo de Braga, Estevão Soares da Silva, além das incursões bélicas que castigaram seus domínios e interesses em diferentes lugares, a partir de 1219, as inquirições apresentavam-se como arma jurídica de grande impacto simbólico, permitindo que os abades de Santo Tirso, de Pombeiro, de São Torquato, de Santa Marinha da Costa, o prior de Guimarães, e alguns homens-bons do concelho de Guimarães, atingissem o arcebispo por meio da jurisdição régia. Não há dúvida que também Afonso II tinha interesse em punir Estevão Soares da Silva, porém a escolha dos inquiridores, as matérias e os territórios inquiridos são, neste caso, extremamente casuísticos e personalistas.

A tendência atual da historiografia para reduzir as Inquirições de 1220 à vontade de Afonso II e, sobretudo, para traduzi-las como manifestação precoce da centralização do poder régio, empobrece um cenário político extremamente rico de alianças e estratégias institucionais. As inquirições eram instrumento conhecido e usado pelo corpo eclesiástico. No caso em análise, poderia ter sido mobilizado sem o recurso ao rei. Por outro lado, somente a jurisdição régia dotava as inquirições de um alcance que extrapolava os domínios que pertenciam a cada um dos inimigos do arcebispo. A jurisdição de Afonso II possibilitava que eles andassem por toda a parte, inclusive no couto de Braga, sentando estrado e perguntando publicamente o que queriam saber - ou o que queriam que se soubesse.

Não temos conhecimento sobre quem teve a ideia de levar a cabo as inquirições; se o monarca ou os inquiridores. Se foram estes, evidencia-se que o rei é considerado, mesmo no “Norte Senhorial”, um ator importante ao qual vale a pena se juntar para fortalecer posições frente a um inimigo. Se foi o rei, a escolha dos inquiridores revela que Afonso II entende a vantagem de governar e dividir o poder com aqueles que o defendem do inimigo.Mas nenhuma das hipóteses autoriza concluir que se tratasse de exercer o poder de maneira monopolista e centralizadora. Os interesses claros que uniam os abades de Santo Tirso, de Pombeiro, de Santa Marinha da Costa, de São Torquato, e o prior de Guimarães, contra o arcebispo de Braga, impedem que consideremos a nomeação desses eclesiásticos, para a função de inquiridores, como a de meros “funcionários régios”, encarregados unicamente de preservar a jurisdição de Afonso II. O cenário político do Norte de Portugal e da Galícia, nessa época, permite-nos seguir as estratégias empregadas pelos vários atores e grupos em contenda, entre as quais a jurisdição régia, colocada a seu serviço. Entretanto, cremos que era justamente a dinâmica aristocrática de utilizar os instrumentos do poder régio que fortalecia essas instituições.

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  • 1
    A bibliografia é muito extensa, uma vez que a maior parte dos autores que se dedicaram a estudar as inquirições sustenta essa interpretação. Remeto para a lista bibliográfica, ao final do artigo.
  • 2
    “Sem dúvida, o poder de confirmar revela superioridade. Entretanto, a manifestação dessa superioridade, ao contrário do afastamento, revela a aproximação do rei aos súditos ao introduzir o monarca na malha necessária ao reconhecimento da posse de direitos e de jurisdições. Nesse sentido, seria interessante conhecer melhor a lógica que orientava a utilização desse instrumento, pois pela historiografia deduz-se que não parece ter servido para eliminar as práticas patrimonialistas da própria monarquia, que continuou distribuindo patrimônio e direitos da coroa entre os súditos merecedores de benefícios. Ao mesmo tempo, tampouco se poderia afirmar que o fato de ter capacidade para distribuir e confirmar mercês garanta ao rei um controle sobre os beneficiados, pois, uma vez mais, os exemplos de ‘desobediência’ apontados pela própria historiografia são muito numerosos.”
  • 3
    “Así, lo que se llamó leyes generales en la Edad Media no puede ser traducido por los conceptos a los cuales damos hoy día el mismo nombre y que se oponen a los derechos particulares. En realidad, aquello que se nombraba como ley general únicamente se podía aclarar por medio de y en estrecha vinculación con los derechos subjetivos. Los contenidos abarcados por las Leyes de 1211, aunque con la clara intención de que fueran aplicadas a la totalidad del reino (por lo tanto, con carácter general), reforzaban en cada línea los derechos particulares: de la Iglesia, de la nobleza, de los débiles (“mesquinhos”) (...) En ningún momento, la voz regia da muestras de pretender sustituir o suprimir los derechos particulares, sino de corregir los abusos — incluso los cometidos por el mismo monarca — que perjudican los derechos de cada uno, afectando el reino y al bien común.”
  • 4
    “L’enquête, largement pratiquée à l’époque carolingienne par les missi dominici ou pour la rédaction des polyptyques, semble avoir disparu du royaume de France alors qu’elle avait perduré outre-Manche et dans les terres sous domination anglaise. À la fin du XIIe siècle, la procédure se diffuse à tous les champs de l’action politique, domaniale, judiciaire et administrative du prince capétien. Le développement de la procédure romano-canonique, l’action de l’Inquisition dans le royaume, l’agrandissement de ce dernier et le progressif déploiement d’une administration territoriale peuvent expliquer cette généralisation.”
  • 5
    “Quando analisadas em conjunto, percebe-se que as Inquirições eram bons instrumentos para reestruturar os compromissos políticos (pactos). A própria mise em scène dos procedimentos, pode ser entendida como espécie de ‘pastoral política’ para reafirmar e restabelecer a ordem senhorial. (...) De qualquer forma, resta interpretar então de que forma teriam sido usadas as Inquirições. Pensamos que a explicação que mais se adequa à mentalidade política feudal é aquela que vincula a decisão de levar a cabo as Inquirições ao campo da representação política e da propaganda. O simples fato de que o monarca tivesse agentes e oficiais circulando pelo norte do reino fazendo indagações publicamente sobre os seus direitos era, por si só, uma imagem com grande força política. Nesse mesmo sentido, o monarca contribui para a preservação e difusão da imagem de bom governante. Cuidar e preservar o patrimônio régio faz parte do ‘bom governo’ que, em termos da justiça não se restringe ao rei. Nas inquirições, os súditos, por meio das acusações e denúncias, participam ativamente na execução do ‘bom governo’. O processo em si, como espetáculo público, mostra uma prática de ‘bem governar’, traduzindo-se na difusão de princípios éticos de governo; efetiva propaganda política” (Coelho, 2010COELHO, Maria Filomena. Inquirições régias medievais portuguesas: problemas de abordagem e historiografia. In: PÉCOUT, Thierry(Dir.). Quand gouverner, c’est enquêter: les pratiques politiques de l’enquête princière, Occident, XIIIe-XIVe siècles. Actes du colloque d’Aix-en-Provence et Marseille, 19-21 mars 2009. Paris: De Boccard, 2010, p. 43-54., p. 44, 53). Hermínia Vilar (2015b, p. 149) também parece concordar com essa perspectiva: “Para mais, o deambular desta comissão por terras que lhe eram conhecidas, tanto por parte dos clérigos como dos leigos, interpelando comunidades que lhe estavam, por vezes, sujeitas ou ligadas à exploração das suas propriedades, afirmava inquestionavelmente o poder e a presença do poder do rei, mas fazia-o através dos seus representantes implantados na região inquirida. E este espaço de pressão e de influência não seria irrisório.”
  • 6
    “... l’enquête princière ne se réduit pas à une méthode, issue de la réflexion non seulement des juristes, mais aussi des théologiens à propos de la preuve, du notoire et des relations entre raison humaine, réel et dessein divin, mais elle constitue la forme même de l’établissement de la vérité, la formulation de cette dernière résultant de la formalisation procédurale, pour ne pas dire rituelle.”
  • 7
    “From this perspective, records of disputes are opportunities not merely to explore how institutions strove to maintain order and to advance their own interests, but also of how individual disputants engaged with the people and institutions that sought to administer justice. The emphasis then is not so much on the institutions, but on how individual actors responded to conflict and legal processes, how they sought to prove their claims in legal fora, and at the broadest level how they sought to prevail and prosper within particular social and micropolitical contexts.”
  • 8
    Normalmente, os registros sobreviventes refletem o lado vitorioso dos conflitos, muito embora seja possível desvendar nas entrelinhas que o lado perdedor também recorreu às instituições como forma de luta política.
  • 9
    1214, Novembro, 13 — Innocencius seruus seruorum dei. Dilectis filiis Vimaranis. et de Costa. et sancti torquati prioribus Bracarensis diocesis salutem et apostolicam benedictionem. Cum non liceat a capite membra discedere. nos sufficimus admirari. quod sicut referente uenerabili fratre nostro Bracarensi archiepiscopo nostris est auribus intimatum cum ecclesie uestre in ipsius sint diocese constitute. Uos nullum exemptionis priuilegium pretendentes obedire sibi tamquam epíscopo uestro contumaciter recusatis. Cum igitur crimen ariolandi sit repugnare. ac scelus ydolatrie nolle adquiescere sustinere nollentes ut subditi prelatis suis non obediant ut tenentur discretioni uestre per apostólica scripta mandamus et in uirtute obedientie precipimus quatinus prefato archiepiscopo et ecclesie bracarensi obedientiam et reuerentiam debitam sicut alii clerici sue diocesis faciunt de cetero sine contradictione aliqua impendatis (Costa, Marques, 1989COSTA, Avelino de J. da; MARQUES, Maria Alegria F. Bulário português: Inocêncio III (1198-1216). Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989., p. 346).
  • 10
    Interessante notar que no calendário litúrgico do Mosteiro de Pombeiro, o dia 28/01 é dedicado à celebração de santo Tirso mártir, uma comemoração que não se registra na tradição beneditina do noroeste da Península Ibérica, pois não está presente no Missal de Mateus nem no Breviário de Soeiro (Silva, 1995, p. 157, 171).
  • 11
    É claro que isto nem sempre foi assim. Entre 1216 e 1217, o abade de Santo Tirso recorreu ao papa Inocêncio III e, depois, a Honório III, para solicitar a proteção da Santa Sé contra os avanços da diocese do Porto sobre bens e direitos que lhe pertenciam (Correia, 2008, p. 305-306).
  • 12
    “Hec sunt Inquisitiones de Regalengis de termino Vimaranensi et de aliis Judicatibus inferius scriptis, quas fecerunt abbas Sancti Tirsi, abbas Polumbarii, et prior Sancti Torcati, et Gomecius de Rupella, et magister Menendus frater Costensis, et judex Ramirus Petri, et Joahannes Petri villanus, et Fernandus Dominici, et Martinus Stephani, et tabellio Martinus Martini, per mandatum domini Regis Alfonsi, fillii domini Sancii, et fuerunt facte in mense Augusti sub Era M.CC.L.VIII.” Como se sabe, a data refere-se à Era de César, à qual se devem subtrair 38 anos, para se obter o ano de Cristo. Neste caso, 1220.
  • 13
    “Hec sunt Inquisitiones de ecclesiis Archiepiscopatus Bracharensis, de quibus dominus Rex est patronusvel non (...).” Há uma concentração do padroado régio, sobretudo, em terra de Celorico: 15 igrejas (PMH, 1888, p. 194).
  • 14
    Sobre esse particular, veja-se também a opinião de Hermínia Vilar (2015b, p. 138): “... interessam-nos, em especial, os dois últimos grupos, respeitantes ao direito de padroado e aos bens detidos pelas ordens. Com efeito, se o primeiro procurava, de forma clara, organizar o cadastro do direito de padroado detido pelo rei, mais do que a identificação das diferentes instituições que o detinham, já que a informação relativa aos outros padroeiros que não o rei é esparsa e pouco presente na maior parte dos depoimentos, ao contrário do que será, por exemplo, a prática em 1258, o segundo procurou, antes de mais, cadastrar os bens das ordens, ou seja, das instituições eclesiásticas, tanto regulares como seculares. Desta forma, o património régio apenas surge referido neste último grupo por entre os interstícios do não nomeado. Ou seja, neste último grupo estamos perante uma parte do questionário que visava a identificação clara do património eclesiástico e não do régio”. Mais adiante, a autora reforça essa ideia, com a qual concordamos plenamente: “ver neste esforço de cadastro da propriedade das ordens uma exclusiva vantagem régia é uma ideia redutora” (p. 143). Grifos nossos.
  • 15
    Essa constatação parece-me contrariar o que às vezes se defende como justificativa para a escolha da região em que as inquirições se desenvolveram. Nessa perspectiva, ter-se-iam escolhido os domínios do arcebispo de Braga, por ser um enclave de intensa senhorialização e onde se esperaria encontrar maior número de apropriações indevidas dos direitos régios (Vilar, 2008, p. 237). Entretanto, os registros das Inquirições de 1220 provam justamente o contrário. Ou, bem, os que decidiram pelas inquirições com esse objetivo não tinham nenhuma ideia sobre a realidade política local, ou, então, eles tinham outra intenção...
  • 16
    Interessante notar que no caso de Santa Eulália, o rei dividia o padroado com os paroquianos. No que se refere a São Pedro de Queimadela, embora se afirme, nos apartados relativos aos reguengos, ao padroado e aos bens das ordens, que a paróquia estava vaga em virtude do abade ter partido com o arcebispo, no apartado reservado aos foros e dádivas diz-se que ali não há pároco por se tratar de eremitério (PMH, 1888, p. 150).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2019
  • Aceito
    18 Ago 2019
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