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Neurobiologia e cognição

Neurobiology and cognition

ENTREVISTA

Neurobiologia e cognição* * Entrevista realizada por e-mail pelo professor Alfredo Pereira Jr., Departamento de Educação (Instituto de Biociências - Universidade Estadual Paulista, Unesp/Botucatu), entre novembro e dezembro de 2000, por ocasião da indicação do Prêmio Nobel de Medicina a cientistas da área de Neurociência.

Neurobiology and cognition

Armando Freitas da Rocha

Palavras-chave: Neurociência; cognição; inteligência.

Keywords: Neuroscience; cognition; intelligence.

Palabras-clave: Neurociencia; cognición; inteligencia.

Introdução

O Prêmio Nobel de Medicina foi recentemente concedido a três cientistas que trabalham na área de Neurobiologia: Paul Greengard, Arvid Carlsson e Eric Kandel. Seus trabalhos mostram que a atividade bioquímica do cérebro tem estreitas ligações com os processos cognitivos. O Prof. Greengard estudou por quarenta anos a comunicação entre células nervosas por meio de sinais bioquímicos, mostrando que o transmissor chamado dopamina desempenha um papel central nos distúrbios cognitivos presentes na esquizofrenia e nas doenças de Parkinson e Alzheimer. O Prof. Carlsson desenvolveu estudos que conduziram ao tratamento da doença de Parkinson com levadopa, e também realizou os primeiros estudos para tratamento da depressão com inibidores da reabsorção da serotonina (dos quais uma das últimas versões é o famoso Prozac). O Prof. Kandel realizou trabalhos de grande importância teórica para o entendimento dos mecanismos moleculares subjacentes aos processos de aprendizagem e memória. Descobriu que a conversão da memória de curto prazo em memória de longo prazo requer a ativação de genes, conduzindo a uma linha de pesquisa na qual se observou que animais geneticamente modificados apresentam capacidades de aprendizagem diferenciadas.

Para discutir o significado dos estudos em Neurobiologia para o entendimento dos processos cognitivos, inclusive a cognição humana, realizamos uma entrevista com o Prof. Dr. Armando Freitas da Rocha, um dos mais destacados pesquisadores brasileiros da área. O Prof. Armando é titular aposentado da UNICAMP, e continua em plena atividade de pesquisa, como visitante na Disciplina de Informática Médica da USP, coordenador do Núcleo de Estudos da Aprendizagem e Cognição da UNICID e em sua própria empresa, a EINA (Estudos em Inteligência Natural e Artificial); assessora diversas instituições, destacando-se o seu continuado trabalho de pesquisa sobre as bases neurobiológicas da deficiência mental, junto à APAE de Jundiaí/SP.

Interface: Para quem trabalha no âmbito das relações humanas, um dos problemas mais difíceis é a avaliação dos processos cognitivos. Noções como "inteligência" teriam um correlato na Neurociência?

Armando: Sim. A inteligência é uma propriedade de uma classe de sistemas, chamados Sistemas Inteligentes de Processamento Distribuído. É um sistema composto de agentes (por exemplo, neurônios) que se especializam na solução de uma tarefa específica (exemplo, neurônios visuais, auditivos, motores etc.) e que se associam para resolver problemas complexos. A solução de um problema complexo depende fundamentalmente de como os agentes se associam. No cérebro, a solução dos problemas complexos depende da conexão que se estabelece entre os neurônios especializados na solução de diferentes tarefas. A plasticidade dessas conexões permite que se aprenda a solucionar novos problemas. É como na vida em sociedade. Cada um de nós se especializa em uma área, e nos associamos de maneiras diferentes para resolver problemas complexos. Em um hospital, a atividade dos profissionais especializados nos vários tipos de tratamento é relativa às doenças das quais os pacientes são portadores.

Interface: Atualmente parece estar bem estabelecido entre os neurocientistas que a memória e a aprendizagem têm uma base molecular.

Armando: Os diversos neurônios, das diversas áreas cerebrais, se especializam em tarefas definidas. Assim, uns são especializados para o processamento de informação visual, outros para processamento de estímulos verbais, outros coordenam a motricidade, outros definem apetites etc.

Os processamentos cerebrais dependem de como esses neurônios podem ser associados. Isto é, dependem da eficácia da transmissão sináptica entre eles.

O aprender, por exemplo, de uma resposta motora a uma informação verbal, depende de aumentar a eficácia da transmissão sináptica entre neurônios encarregados da análise do som verbal e aqueles encarregados de controlar a resposta motora.

A memória e a aprendizagem dependem, portanto, do relacionamento entre neurônios, relacionamento este que é governado por moléculas.

Interface: E como seriam estes mecanismos?

Armando: Todo o processamento cerebral tem uma base bioquímica. A atividade elétrica da membrana depende do aporte metabólico para essa membrana, que por sua vez é controlado por vários sistemas enzimáticos, ativados pelos próprios íons envolvidos na gênese do potencial elétrico de membrana. A transmissão de informação entre os neurônios depende de uma troca molecular intensa entre esses neurônios. Assim, a chegada do pulso elétrico na terminação nervosa do neurônio pré-sináptico acarreta a entrada de cálcio, que controla a liberação de moléculas denominadas transmissores, estocadas em vesículas, nessa terminação. O transmissor é liberado pela célula pré-sináptica para agir na membrana da célula pós-sináptica.

O acoplamento químico entre o transmissor e receptores específicos para esse transmissor, localizado na membrana da célula pós-sináptica exerce uma de duas funções:

1. Abrir um canal iônico permitindo que a atividade elétrica da célula pré-sináptica influencie a atividade elétrica da célula pós-sináptica ou

2. Ativar uma cadeia de reações enzimáticas, chamada de via de transdução de sinal, ou simplesmente VTS.

Interface: Essa cadeia enzimática poderia interferir na expressão dos genes dos neurônios? E isso teria algum papel na cognição?

Armando: Muitas dessas VTSs podem influenciar a leitura dos genes, e dessa maneira controlar as proteínas que serão produzidas pela célula pós-sináptica. Isto é, muitas dessas VTSs determinam as proteínas a serem produzidas pela célula pós-sináptica. Muitas dessas proteínas são liberadas pela célula que as produzem, para controlar outras VTSs de células vizinhas, inclusive as células pré-sinápticas.

Muitas das VTSs das células pré-sinápticas e pós-sinápticas controlam a produção do próprio transmissor e seu receptor. Dessa maneira, a atividade em uma sinápse pode definir a quantidade de mediadores e receptores utilizados na transmissão da informação nessa própria sinapse.

Essa base molecular do controle da eficácia da transmissão da informação em termos das sinapses é o mecanismo básico para explicar o aprendizado e a memória.

Interface: Essa teoria contribui para se entender o comportamento humano? Por exemplo, se ao olhar uma foto antiga me lembro de fatos da época, que não estão na foto e que não foram revividos durante muitos anos, como é possível que tal informação fosse "armazenada" nos neurônios durante este tempo?

Armando: Um episódio é uma relação entre informações sensoriais e respostas motoras e/ou emocionais, que são coerentes num tempo e num espaço. A memória deste episódio é a estabilização das sinapses entre os neurônios envolvidos nos processamentos dessas informações sensoriais e aqueles envolvidos na determinação das respostas motoras e emocionais associadas.

A base molecular do aprendizado e da memória deve ser entendida dessa maneira. Isto é, a partir do controle de processos que estabilizam sinapses relevantes ao fato a ser aprendido ou memorizado.

A memória biológica é uma memória endereçada por conteúdo. Em outras palavras, é definida a partir de relações entre eventos ou fatos. Dessa maneira, a evocação de um dado evento deve, em geral, facilitar a lembrança de outros fatos a ele relacionados.

Interface: E a deficiência mental pode ser detectada, diagnosticada e tratada por meios científicos, possibilitando um melhor desenvolvimento das potencialidades do deficiente?

Armando: A deficiência mental é normalmente caracterizada com o uso de testes psicométricos, ou os populares testes de QI (coeficiente de inteligência). Se o indivíduo obtém uma pontuação, em geral, menor que 70 pontos, é definido como deficiente mental.

Quando se procura identificar as causas desse baixo rendimento nos testes, encontra-se uma quantidade muito grande de explicações. Nosso grupo terminou um estudo eletroencefalográfico e de ressonância magnética em um grupo de 150 crianças com QI menor que 70 pontos. Cerca de 50% dessas crianças apresentaram diversos tipos de lesões cerebrais na ressonância, mas os outros 50% tinham uma estrutura macroscópica cerebral preservada. O estudo eletroencefalográfico evidenciou, em muitas dessas crianças, uma disfunção funcional caracterizada, principalmente, pela pouca ativação de algumas áreas cerebrais ou por associações mal caracterizadas de neurônios.

Entretanto, mostrou também que os erros cometidos, e o tempo utilizado na solução de um conjunto de tarefas definidas, diminuíram com o aumento da escolaridade dessas crianças. Esse aumento no desempenho foi acompanhado por uma mudança adequada da atividade cerebral. Tais resultados são muito semelhantes aos observados em crianças normais, por outros pesquisadores.

Interface: Os conhecimentos fornecidos pela Neurociências poderiam servir para a formulação de processos de ensino mais eficientes?

Armando: Sim. Será fundamental respeitar a funcionalidade cerebral da criança quer normal, quer portadora de deficiências ou distúrbios de aprendizagem, para que ela possa desenvolver melhor toda sua capacidade cognitiva.

Por exemplo, o melhor conhecimento dos circuitos neurais para a linguagem oral, visual e motora são usados, hoje, para modelar processos mais eficientes de alfabetização, que estão sendo utilizados no mundo inteiro. A aplicação dessas novas estratégias na APAE-Jundiaí tem gerado resultados muito bons, aumentando o número de crianças que estão aprendendo a ler e escrever, bem como estimulando esse aprendizado em idades mais precoces. O mais interessante é que o aprendizado nessas circunstâncias obedece regras muito semelhantes àquelas descritas para as crianças normais.

Outra área que está mudando a partir do conhecimento fornecido pelas Neurociências é o ensino da matemática, que deixa de ser fundamentalmente baseado em memorização de fatos matemáticos (as famosas tabuadas), para ser centrado na compreensão das propriedades fundamentais de conjuntos e relações espaciais.

Grande número de resultados empíricos obtidos na neurociência podem ser relevantes para a educação. Existem aplicações médicas, como a droga Ritalin, destinada a combater as desordens de atenção em crianças hiperativas, permitindo um melhor aproveitamento escolar (a qual tem sido também usada indevidamente em crianças que não apresentam este distúrbio, como meio de melhorar o rendimento, mas com possíveis danos à saúde).

No estudo sobre os fundamentos da Educação, pode-se tomar como referência resultados sobre o funcionamento do cérebro para se repensar a prática educacional1 1 Vide Pereira Jr., Comentário a respeito das bases neurobiológicas da aprendizagem. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.2, n.2, p.233-6, 1998. . As considerações feitas pelo Prof. Armando sugerem duas possíveis conclusões.

Primeiro, uma vez que o cérebro trabalha com um processamento distribuído da informação, possuindo regiões especializadas para diferentes modalidades sensoriais, e dado que a aprendizagem e memória estão relacionadas com padrões de conexão neuronal, pode-se inferir que os processos de aprendizagem que mobilizem diferentes modalidades, induzindo atividade cerebral distribuída e coerente, tem maior possibilidade de consolidação, no sentido da formação de traços de memória robustos e suscetíveis de utilização na vida prática. Por exemplo, uma lição de biologia sobre animais, apresentada com recursos multimídia, em que as crianças possam ouvir os sons que esses animais produzem, ou mesmo acompanhada de uma visita de campo, teria, do ponto de vista neurobiológico, maior possibilidade de gerar aprendizagem que uma simples aula expositiva.

A segunda conclusão, estreitamente vinculada à primeira, diz respeito à motivação que as crianças teriam para aprender um determinado conteúdo. Como o Prof. Armando apontou, o cérebro não está disponível para absorver qualquer informação que lhe seja apresentada; ao contrário, ele se estrutura em termos de padrões de atividade eletroquímica que definem núcleos de interesse, para os quais é dirigido o foco da atenção. Para se motivar alguém a aprender, é preciso atingir esses núcleos de interesse, ainda que de forma desestabilizadora (apresentando desafios às crenças previamente existentes no aluno). Caso a informação apresentada passe ao largo dos temas para os quais o cérebro foi previamente mobilizado, as chances de aprendizagem se tornam bastante reduzidas.

Recebido para publicação em: 01/12/00.

Aprovado para publicação em: 20/12/00.

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    Entrevista realizada por e-mail pelo professor Alfredo Pereira Jr., Departamento de Educação (Instituto de Biociências - Universidade Estadual Paulista, Unesp/Botucatu), entre novembro e dezembro de 2000, por ocasião da indicação do Prêmio Nobel de Medicina a cientistas da área de Neurociência.
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    Vide Pereira Jr., Comentário a respeito das bases neurobiológicas da aprendizagem.
    Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.2, n.2, p.233-6, 1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2001
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