INTRODUÇÃO
Imagem pode ser descrita como a ideia que se tem de uma pessoa ou de um objeto. A construção desta é influenciada por fatores determinantes como políticos, sociais e históricos. Dessa forma, as influências das informações ou atitudes que se tem adquirido, as aspirações e desejos creditados por um estado de opinião, constituem uma imagem.1
A categoria profissional constitui-se numa figura representada pela associação ao poder, reconhecimento e status. A propagação profissional dela divulgada para a sociedade é tão relevante quanto o significado da profissão, visto que a divulgação da profissão interfere no desenvolvimento e no seu reconhecimento.1
Válido destacar que estamos analisando a imagem da enfermeira e suas repercussões, os determinantes desse contexto vinculados ao século XX e, nessa época, essa profissão era vista de modo disciplinado, exercida por pessoas do sexo feminino, em uma sociedade onde predominava o conceito de competência intelectual e liderança masculina e o sentimento de religiosidade ou vocacional estava atrelado ao exercício das funções de enfermeira.2
A imagética da enfermeira na visão da sociedade perpassava/perpassa pela construção de estereótipos, signos e símbolos que vinculam sua representação à abnegação e submissão, bem como, as questões de gênero e subjugação do trabalho feminino, seja pela fragilidade da identidade profissional ou pelo reconhecimento social prejudicado face à relevância do cuidado à vida do indivíduo e coletividade.3 Isso implica no preconceito social da imagem dessa categoria, interfere no valor da força de trabalho e no que a sociedade espera desses profissionais.
Nesse aspecto, a literatura aponta3 que foi possível observar a relação do poder da formação de opinião da mídia sobre a visibilidade da imagem da enfermeira, visto que a mídia é compreendida como uma instituição independente, ou seja, que determina suas regras em prol de uma hierarquia de valores, estabelecendo o que ela tem pretensão em divulgar e como o assunto será explanado.
Este artigo parte da articulação dos achados em duas dissertações de mestrado - uma primeira que analisa a imagem da enfermeira entre os anos de 1936 e 1956, constatando que a enfermagem teve uma visibilidade na imprensa escrita, com convocações para candidatas se inserirem nos Corpos Expedicionários de Saúde dos serviços militares e uma segunda dissertação que também analisa a imagem da enfermeira entre os anos de 1970 a 1980, a qual identificou a visibilidade dada pela mídia acerca da organização do conselho profissional, reestruturação da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), e revisão dos currículos da formação em Enfermagem, associado ao além de noticiar o engajamento político das trabalhadoras da enfermagem e, aliado junto à participação de entidades representativas.
Nesse contexto, observa-se que a construção da imagem profissional é contínua e depende do contexto histórico em que se insere.4 Desse modo, os acontecimentos históricos entre os anos de 1936 e 1956, em que a enfermagem teve uma visibilidade entre os meios de comunicação, com convocações para candidatas se inserirem nos Corpos Expedicionários de Saúde dos serviços militares, por outro lado, era um momento de organização do conselho e reestruturação da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) associada ao engajamento político e, aliado à participação de entidades representativas vivenciado nos anos 1970 e 1980, resultaram na construção de dois trabalhos intitulados: “A imagem da enfermeira no jornal “A Tarde” de 1936 a 1956” e “Militância profissional de enfermeira em mídia impressa baiana”.
No primeiro estudo, a justificativa para o recorte temporal está centrada nos acontecimentos desse período, tanto no plano nacional como no nível local, dentre eles: II Guerra Mundial e a Cruz Vermelha – quando mulheres foram convocadas para servir aos interesses de guerra; Era Vargas, em que a profissão de enfermeira contribuiu para propagar a ideia do populismo através das ações no campo da Saúde Pública e a criação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (EEUFBA).
Já no segundo estudo, o contexto histórico das décadas de 1970 e 1980 foi marcado, por um lado, pela proletarização das trabalhadoras da enfermagem, e por outro, pela mobilização política neste campo profissional, em específico, pela revisão do modelo de formação em Enfermagem, e pela estruturação do Conselho e revisão transformações na Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), por meio do “Movimento Participação”. Nesse cenário, compreendemos que a mídia impressa pode ter retratado estes movimentos, influenciada por diversos aspectos do contexto histórico-social, atingindo uma grande esfera da sociedade, trazendo peculiaridades vinculadas à visão dos editores da impressa escrita.
Diante disso, o artigo tem como questão norteadora: Como a imagem da enfermeira foi representada na imprensa escrita brasileira e quais são suas repercussões? E como objetivo: Analisar a imagem da enfermeira na imprensa escrita brasileira nas décadas de 1930 a 1950 e suas repercussões nas décadas de 1970 a 1980.
MÉTODO
A escolha da imprensa escrita, como documento histórico para a pesquisa, é sustentada pela proposta da História Social na dimensão do campo histórico.5 No que diz respeito aos domínios desse campo, o tema da pesquisa direcionou-se para o estudo das enfermeiras no que concerne à atuação política individual ou coletiva desse grupo profissional.
O estudo da história é compreendido como uma ciência composta de mais perguntas do que de respostas para os fenômenos pesquisados, partindo do princípio que o pesquisador tenha o conhecimento do objeto que será necessário estudar, narrar ou interpretar. Ressalta que o estudo da história apresenta o diferencial, no qual o objeto é volúvel porque não é quantificável. Logo, o estudo é composto por indivíduos na sociedade que reagem ou se movimentam diante de questões políticas, sociais, culturais entre outras.6
Acompanhando essa mesma tendência, a história contemporânea considera que o problema pode ser abordado de forma diversificada, abrangendo aspectos mais amplos da sociedade e, assim, passa-se a falar na “história vista de baixo”. Contrapondo-se à descrição biográfica dos grandes homens, os historiadores voltam-se para as grandes massas, para os indivíduos comuns, anônimos, na busca do entendimento a partir de uma nova perspectiva.7 Os historiadores deixam de olhar a história sob a ótica do poder dominante e passam a analisar os acontecimentos e as relações sociais a partir de um novo ponto de vista, antes não concebido pelo paradigma tradicional.
A utilização do jornal como fonte de dados permite ao pesquisador investigar não apenas os fatos ocorridos, mas possibilita a análise de como a mídia representou esses movimentos para a sociedade. Outrossim, trata-se de uma pesquisa documental que é compreendida por meio da reconstrução histórica de determinado fato ou momento vivido, através de documentos, relevantes para a verificação de dados e o acesso às fontes pertinentes do estudo.8
De antemão é preciso salientar que nem todo registro histórico se configura como fonte de dados, pois o documento só é considerado histórico em função de sua importância em determinado contexto e período temporal, analisado a partir do presente e estabelecendo comunicação com fatos passados.9,10
Para esse efeito, a imprensa possui uma atribuição de reproduzir de forma estratégica os ideais dos grupos dominantes, com o intuito de alcançar os seus interesses e o controle social. Desse modo, o jornal, ao publicar acontecimentos ou fatos, propaga a produção de sentidos e fatores que irão influenciar a sociedade.9
Na busca pelo esclarecimento dos objetivos deste estudo foram escolhidos como fontes de dados as reportagens publicadas no Jornal A Tarde, meio de comunicação impressa veiculado no estado da Bahia à época, por este se apresentar como o jornal mais lido, de maior relevância da região soteropolitana e de maior tiragem no período de interesse.11
Optou-se também por trabalhar com material jornalístico por entender que a mídia se configura como importante instrumento na formação de opinião pública, refletindo em mudanças de comportamento e de conceito. Já que, devido ao seu poder de persuasão, as representações que constrói em suas publicações tendem a ser percebidas como verdades.12
Os dados foram coletados via on-line e analisados entre os meses de julho 2017 a janeiro de 2019, por meio de levantamento de notícias publicadas no jornal A Tarde. Todo o acervo jornalístico estava digitalizado e disponível para acesso a partir de computadores localizados na Fundação Pedro Calmon, na cidade de Salvador.
O levantamento dos dados iniciais possibilitou um recorte estratificado do estudo durante o período pesquisado, de acordo com o ano e os meses de maiores publicações que continham os termos de busca, sendo tabulado em uma planilha do Microsoft Excel.
Iniciou-se com uma busca ampla, coletando todas as reportagens divulgadas no período e, em seguida, selecionou-se aquelas que iriam compor o corpus documental para esta pesquisa. Assim, a coleta contemplou três momentos: 1) coleta de todas as reportagens que versavam sobre a categoria durante todo o período de interesse, utilizando os termos de busca “enfermeiras”; “enfermeira”, totalizando 2206 publicações; 2) agrupamento das reportagens por temáticas; 3) seleção das reportagens que evidenciavam a imagem militar e religiosa das enfermeiras, nas décadas de 1940 a 1950, e das reportagens que evidenciavam a precarização do trabalho em enfermagem, nas décadas de 1970 e 1980, totalizando 100 publicações.
Por fim, emergiram as seguintes categorias: A imagética religiosa da enfermeira: caridade, benevolência e vocação; a imagética militar da enfermeira e repercussões da imagética da enfermeira e a precarização do trabalho em Enfermagem. Essa ampla categorização possibilitou a construção de um panorama das publicações sobre as enfermeiras no período de interesse. As categorias que emergiram a partir dos anos selecionados para a análise foram coerentes com os achados totais. Dessa maneira, a categorização descrita engloba os anos de 1936 a 1989, compreendendo os 53 anos pesquisados.
De acordo com as normas e diretrizes estabelecidas pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (CEPSH) e definidas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, houve a dispensa prévia da submissão do projeto de pesquisa ao CEPSH, por se tratar de um estudo de cunho documental e que utiliza apenas documentos públicos e de livre acesso. Além disso, a Resolução nº 510/16 estabelece que não serão registradas e nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP pesquisas que utilizem informações de acesso público nos termos da Lei nº 12.527/2011 e/ou pesquisas que adotem informações de domínio público.
RESULTADOS
Os resultados são apresentados em duas etapas, numa primeira apresentamos a imagética e, na segunda, as suas repercussões. Nesse sentido, entendemos que a precarização do trabalho é determinada, dentre outros, por aspectos sexistas e uma relação com a imagem profissional encontrada em evidência nas três primeiras décadas deste estudo. Assim, os achados das últimas duas décadas serão apresentados como repercussão desse primeiro período.
Em destaque, foram identificadas duas representações centrais da enfermeira na impressa jornalística, a imagética religiosa e militar da profissão. A seguir:
Contudo, no segundo recorte analítico, foram identificadas as repercussões das imagens das enfermeiras como produto/produtoras de outras imagéticas que se escreveram no tempo histórico e que serão produtos de continuidades, rupturas e descontinuidades.
DISCUSSÃO
Os resultados foram sintetizados em dois recortes analíticos: um primeiro com a identificação da imagem e o segundo com a identificação das repercussões. Identificamos que a imagética da enfermeira está situada, de modo mais representativo, nas organizações que cuidavam dos doentes antes da sua profissionalização, a organização religiosa e a militar. Em específico:
A Imagética Religiosa da Enfermeira: caridade, benevolência e vocação
No Quadro 1, podemos identificar a imagem da enfermeira sendo constituída pelos atributos da religiosidade. As práticas de cuidado em saúde eram realizadas pelas religiosas, por isso a constituição da imagem da enfermeira é associada a alguns significados como caridade, dom vocacional e benevolência. De tal modo, que esses atributos são personificados na mulher, ou seja, permeados por questões de gênero.
Quadro 1 A Imagética Religiosa da Enfermeira: caridade, benevolência e vocação
Recorte Jornalístico |
---|
[se refere a enfermeira] [...]São moças que preparadas [...] divina lição da saúde ensinando-lhe a maneira salutar de conduzir o filhinho, a dietética elementar e os tantos cuidados necessários para quem, neste mundo, tem a felicidade de ser mãe. 20/05/37 |
Vestidas de branco, preparadas [...] recebem o sou diploma e no juramento [...]: “Prometemos, sob nossa palavra do honra, perante Deus e nossa Pai: Em todos os lares em que penetrarmos, como mensageiras que somos da Saúde [...] 20/05/37 |
[fala sobre o trabalho da enfermeira] [...] Sacerdócio nobre e humanitário, concretizado em piedosos exemplos de ternura e de amor fraterna a profissão de enfermeira encerra um dos mais belos destinos que é a mulher poderá desejar. [...] A “Escola Ana Neri” é um belo e produtivo núcleo de preparo teórico pratico de enfermeira, dali saindo, anualmente, centenas de profissionais competentes e dedicadas. [...] moças que se candidatam ao referido sacerdócio. [...] 10/02/40 |
Nessa perspectiva, a literatura explica que o sacerdócio se apodera das funções do cuidado, encarado como uma tradição e manifestado pelo poder de cura.13 A religião corresponde às necessidades individuais de sobrevivência do povo que objetiva a contemplação do sucesso material, a saúde do corpo e a imortalidade da alma.
A enfermagem carrega influência das origens das práticas de saúde, associada tanto às questões de gênero como às da religião, sendo caracterizada como maternal, abnegada e submissa.14 Isso traz uma perturbação da imagem entre o ser profissional e o aspecto religioso que implica no status profissional e reconhecimento social.
A formação em Enfermagem era realizada em instituições que difundiam os ideais cristãos, como hospitais e escolas. De modo que, a enfermagem foi estruturada a partir dos pensamentos cristãos, onde o ato de cuidar, prestado por mulheres, estava presente na identidade religiosa da profissão.14
Outro ponto abordado refere-se às congregações religiosas, as quais eram compostas, na maioria das vezes, por mulheres que ajudavam a Igreja Católica a cuidar dos indivíduos convalescentes. As mulheres dedicadas às obras cristãs, por serem do sexo feminino, eram vistas como aptas para o exercício do cuidado, além das atividades domésticas.15 Diante disso, observa-se a atividade humanitária relacionada ao cristão, devido ao exercício das práticas de saúde aos necessitados, emergindo na profissão, através da forma de cuidar, pelo pensamento religioso.
Por fim, a religiosidade influenciou na formação das profissionais de enfermagem agregando os preceitos que a trajetória nos mostra como atributos femininos. Isso repercutiu na formação de uma profissão disciplinar e subordinada diante das relações de poder entre os profissionais de saúde.
A Imagética Militar da Enfermeira
Ao analisar o Quadro 2, especificamente, ao buscarmos a compreensão da inserção da mulher nas forças armadas, identificamos que está atrelada ao valor do corpo do soldado, tal como a habilidade técnica para o cuidado. Essa habilidade foi construída socialmente por meio da cultura do patriarcado. De modo que houve a apropriação do trabalho da enfermeira em benefício da política desenvolvimentista do Estado, constituindo valores militares à profissão.16
Quadro 2 A Imagética Militar da Enfermeira
Recorte Jornalístico |
---|
[fala sobre critérios de admissão da enfermeira no exército] [...] ser brasileira nata; ser solteira ou viúva sem filhos; ter no mínimo 20 anos e máximo 40 anos de idade; possuir diploma de enfermeira ou certificado de curso de samaritana ou de voluntária socorrista, expedidos por escola de reconhecida idoneidade, ou ser portadora de atestado fornecido pelo estabelecimento em que serve; ter comprovada idoneidade moral; reconhecer mediante compromisso escrito, a obrigação de prestar serviço militar [...] 11/01/44 |
[fala sobre a trajetória de uma enfermeira] [...] uma das muitas enfermeiras das F. E. B que estão mostrando ao mundo o valor moral e a firmeza de animo das nossas jovens. Os árduos misteres da enfermagem de guerra não quebraram a fortaleza de espirito dessas moças [...] e não se preocupam somente com os sofrimentos físicos dos soldados. Também contribuem, com a sua jovialidade, para atenuar os choques espirituais dos combatentes. [...] o valor da mulher brasileira na guerra que está confortando com o seu trabalho magnifico aos nossos soldados que combatem valentemente no front da Itália. 11/11/44 |
[em discurso do professor da Cruz Vermelha] apelou para bondade das mulheres a fim de salvar milhares de feridos da guerra que morriam sem tratamento. [fala sobre Ana Neri] a figura varonil de Ana Neri, protótipo enfermeira, quo seguiu para os campos de batalha do Paraguai onde espirito caritativo baiano teve maior realce. 12/02/40 |
Por outro lado, os cursos de capacitação das voluntárias para prestarem cuidados aos feridos durante os conflitos bélicos, divulgados na mídia, foram importantes para promover a visibilidade da profissional enfermeira e potencializar a demanda pela busca da profissão.
Nesse sentido, a inserção do Brasil na guerra fez o governo aderir medidas de proteção para possíveis ataques no território nacional, o que motivou a sensibilização de voluntárias, através da mídia, a se aliarem a favor da pátria. Assim, a enfermagem serviu como emblema de causa para que as mulheres e enfermeiras aderissem à Força Expedicionária Brasileira (FEB), uma vez que estas estariam servindo à pátria e assistindo aos feridos da guerra.17
Apesar da participação das mulheres em guerras de menor proporção, a eclosão da II Guerra Mundial foi um marco para a inserção feminina em lugares antes ocupados por homens nos serviços militares. A incorporação da imagem da enfermeira, sob a figura feminina, demonstrou que elas estariam aptas aos cuidados dos feridos, devido às suas habilidades e técnicas, inerentes à mulher.18
Diante do que foi categorizado no Quadro 2, os signos que eram divulgados sobre o trabalho da enfermeira na área militar estavam relacionados à moral e ao espírito combatente, associando a enfermeira na guerra como uma heroica.
Desse modo, as enfermeiras, quando eram veiculadas nos jornais da época, tinham como símbolos o heroísmo e a atividade humanitária, além de representações sensuais de modelos voluptuosas. Isso demonstra o eixo determinista do gênero, bem como, uma imagética militar conflituosa entre o heroico e a objetificação do corpo da mulher.19
Fica destacado que as enfermeiras militares eram vinculadas à imagem heroica e de amor à pátria. Essas mulheres teriam os adjetivos de defensoras da pátria que estava em ameaça, além da prestação dos cuidados aos soldados feridos.
Corroborando com essa ideia, os discursos jornalísticos divulgados sobre a inserção da mulher na guerra tinham como referência a personagem de Anna Nery, que era associada à imagem da Mãe-Pátria. Dessa forma, servia de exemplo às enfermeiras da FEB que necessitavam se espelhar no decorrer do processo das atividades militares durante o conflito bélico. Isso reflete a intenção simbólica da FEB de que as enfermeiras se apropriaram do modelo de heroína, o qual legitimava na sociedade.18
Repercussões da Imagética da Enfermeira e a Precarização do Trabalho em Enfermagem
A precarização do trabalho é um processo político e social, baseado nas questões macroeconômicas e do capitalismo neoliberal, que objetiva baratear a força de trabalho e a produção deste.20 Para esses autores, esse fenômeno social está baseado na insegurança permanente do trabalhador, submetendo-o ainda mais à exploração.
No Quadro 3, observamos que os baixos salários, a sobrecarga de trabalho, o desemprego e a falta de valorização do trabalho das enfermeiras estão inscritos nas décadas de 1970 e 1980.
Quadro 3 Repercussões da imagética da enfermeira e a precarização do trabalho em Enfermagem
Recorte Jornalístico |
---|
Após quatro anos de estudos [...] o formando [...] consegue é um salário em média de dois mil cruzeiros por oito horas de trabalho. Nos hospitais e clínicas particulares a situação é ainda pior, porque eles pagam menos que isso [...] o que existe é uma política [...] a baixa remuneração e a preferência dos hospitais por atendentes de enfermagem, pagando salários irrisórios. (8.1975) 13/02/75 |
Cerca de 70% do pessoal que pratica enfermagem hoje no Brasil não tem curso nenhum como prevê a legislação, e grande parte dos enfermeiros da área particular ganha pouco mais que o salário mínimo. (40.1984) 11/05/84 |
Maria Ivete denunciou a insensibilidade das organizações que exploram a saúde no setor privado, por não considerarem o risco que corre o paciente em ser assistido por um leigo. [...] (41.1984) 01/08/84 |
Segundo [...] presidente do COREN-BA, o problema encontrado para o desempenho da função se resume à deficiência do pessoal, tanto em qualidade como em quantidade. [...] (16.1978) 28/03/78 |
Já vai longe o tempo em que a classe podia escolher emprego, principalmente na capital [...] há cerca de cinco anos, o desemprego começou a atingir a classe [...] as instituições de saúde, que não admitem profissionais em número suficiente para garantir a qualidade da assistência [...]. (31.1982) 12/05/82 |
O predomínio de mulheres na profissão, a divisão social e técnica do trabalho, a ausência de legislação sobre o piso salarial e jornada de trabalho, a existência de um exército de reserva e a incipiente organização política das enfermeiras contribuem para redução do valor da força de trabalho e, consequentemente, favorecem a desvalorização profissional.21
O trabalho da enfermeira tem origem no trabalho doméstico, historicamente atribuído ao controle e subordinação da mulher e desvalorização social e econômica, como foi demonstrado nas categorias acima. Nesse sentido, embora a profissionalização da enfermagem tenha concedido às enfermeiras um status de profissão e operado mudanças na sua prática, a sociedade manteve um aparato de mercado de trabalho com estrutura de dominação baseada na relação de gênero, conservando as condições de subordinação e desprestígio da profissão.22
Com a expansão e modernização da rede de serviços de saúde no Brasil, houve uma demanda por profissionais de enfermagem para compor os novos postos de trabalho, porém o crescimento da oferta de profissionais de nível superior em contraposição a oferta de profissionais em nível de 2º grau, levou inúmeras instituições a atenderem às exigências econômicas do modelo de saúde, optando pela contratação de mão de obra com custos inferiores, substituindo os enfermeiros por atendentes e auxiliares de enfermagem.23
Esses achados confirmam o objeto deste estudo, quando correlacionamos a imagética religiosa e militar da enfermeira e suas repercussões que imprimem um cuidado invisível, e desvalorizado que implicam em contextos desfavoráveis a saúde do trabalhador e que perpetua a lógica de exploração e subjugação da mulher enfermeira.
Por fim, é válido destacar que os dados do Quadro 1 e 200 tratam das décadas de 1930 a 1940 e os dados do Quadro 3 se referem às décadas de 1970 a 1980. O primeiro bloco de resultados apontou para a imagem da enfermeira e o segundo bloco de resultados, embora também apresente as imagens encontradas nas décadas seguintes, indicou as repercussões na Enfermagem. Essa associação é possível, pois entendemos as pesquisas históricas como um contínuo. Ademais, a literatura aponta como verossímil essa referida articulação.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
Assim, objetivou-se analisar a imagem da enfermeira na impressa escrita brasileira nas décadas de 1930 a 1950 e suas repercussões nas décadas de 1970 a 1980. Percebe-se, que as imagens e suas repercussões são cocriações determinadas no campo social, político e econômico, as quais atravessam o tempo e a história, estando relacionadas aos interesses governamentais e de mercado.
A profissão de enfermeira nasceu para atender a uma demanda do mercado de trabalho e do campo governamental, cingida por valores de exploração da mão de obra, e barateamento da força de trabalho e da produção, com a missão de atender ao hospital em sua formatação de centro de cura e reabilitação, e de sanear as cidades com a redução das epidemias e índices de mortalidade, em especial, a mortalidade infantil.
A imagética religiosa e militar, nesse bojo, ancora valores imprescindíveis à exploração do trabalhador e a sua sujeição, à submissão, à aceitação das condições de trabalho mais perversas e desumanas, à benevolência, à caridade. O seu sentido heroico de servir a pátria vem ancorar valores que, mais tarde, possibilitaram e mantiveram a precarização do trabalho, a baixa remuneração e a falta de reconhecimento social.
Entretanto, a principal possibilidade de libertação das enfermeiras, ou da descontinuidade da história, reside no reconhecimento e defesa das dimensões do trabalho, na amplitude e centralidade do seu fazer, dos saberes e práticas essenciais para cuidar e/ou gerenciar o cuidado, e este guarda repercussões significativas nas outras parcelas de trabalho de outros profissionais.
Por fim, é essencial que a enfermeira compreenda o seu fazer e saber, valorize a venda de sua força de trabalho, se organize politicamente e coletivamente, guardando sua profissão, ao máximo, da mais-valia.