INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, na cidade chinesa Wuhan, província de Hubei, registrou-se elevação de casos de síndrome respiratória aguda grave, cuja etiologia a princípio desconhecida foi posteriormente relacionada ao surgimento de um novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2.1 A doença causada por esse agente etiológico foi definida como coronavirus disease-2019 (COVID-19) que, além da alta transmissibilidade, tem como características clínicas desde febre e tosse seca até insuficiência respiratória, falência de múltiplos órgãos e/ou choque séptico.2
Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerou a COVID-19 uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII),3 pois na mesma data a China registrava 7.734 casos e outros 90 casos foram relatados em países como Austrália, Canadá, Finlândia, França, Alemanha, Cingapura, República da Coréia, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos da América (EUA), Filipinas, Índia, Taiwan, Tailândia, Vietnã, Malásia, Nepal, Sri Lanka, Camboja e Japão.4 Em 11 de março de 2020, a OMS classificou a situação da COVID-19 como uma pandemia.3 Diante de tal realidade, líderes de governo, órgãos sanitários locais e internacionais em diferentes níveis elaboraram planos de contingência para tentar diminuir o impacto social e sanitário do contexto de potencial catastrófico.3,5
A OMS registrou até o dia 09 de novembro de 2020, 50.266.033 casos confirmados da COVID-19, com 1.254.567 óbitos.6 Até esta data, os EUA apresentavam a maior prevalência de casos confirmados (9.763.730) e de óbitos (235.562); a Índia ocupava a segunda posição em casos confirmados (8.553.657) e o Brasil a terceira, com 5.653.561 diagnósticos. Todavia, o Brasil é o segundo no ranking mundial em número de óbitos (162.269).6
Entre as estatísticas alarmantes da COVID-19, há registro de que 42.538 mil profissionais de enfermagem no Brasil contaminaram-se pelo novo coronavírus, com 460 óbitos, o que representa uma letalidade de 1,94% entre os trabalhadores da área.7 O maior volume de casos ocorreu nas regiões Sudeste (33,15%) e Nordeste (29,72%); o sexo feminino (85,03%) foi o mais acometido, e a faixa etária predominante foi de 31 a 40 anos (17.825).7
Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e o International Council of Nurses (ICN), o Brasil é o país com mais óbitos de profissionais de enfermagem pelo novo coronavírus no mundo.8 Essa fatal realidade se aguça com as condições de trabalho recorrentemente citadas como precárias para os trabalhadores de enfermagem brasileiros, o que se tornou ainda mais evidente no contexto de pandemia por COVID-19.9
De acordo com relatório da OMS e do ICN, existem cerca de 28 milhões de profissionais de enfermagem no mundo,10 e, no Brasil, são aproximadamente 2,2 milhões de trabalhadores que atuam em diferentes áreas e regiões.7 Apesar deste quantitativo se sobressair em uma comparação absoluta da enfermagem com outras categorias profissionais, estima-se que existe um déficit de quase 6 milhões de trabalhadores de enfermagem no mundo, com destaque para África, Sudeste Asiático e da região do Mediterrâneo Oriental (região da OMS), além de algumas partes da América Latina.11 Este cenário evidencia a necessidade de meios e instrumentos de previsão racional e satisfatória de pessoal de enfermagem, como o dimensionamento.12,13
Atualmente, no Brasil, os parâmetros utilizados para o dimensionamento do quadro de profissionais de enfermagem seguem a Resolução nº 543/2017 do COFEN12 que, em tese, pode garantir a previsão adequada de pessoal em diferentes cenários de prática. No entanto, inadequações sobre esta ou mesmo a própria elevação da carga de trabalho da enfermagem são fatos verificados com frequência.13-15
A deficiência de força e condições de trabalho da enfermagem parece estar em voga no contexto de pandemia por COVID-19. Em todo o mundo seguem expressivos os índices de contaminação9 desta população, que é particularmente afetada por atuar no “front de batalha”, e que também vivencia situações referentes ao aumento da carga de trabalho, privação de descanso, falta de equipamentos de proteção individual (EPI), constante medo de contaminar os familiares, desinformação da sociedade e descontentamento em relação às ações governamentais, dos sistemas de saúde e da população.16,17
Dado contínuo compromisso de suscitar debate que possa fundamentar incremento a respeito de melhores condições de trabalho da enfermagem, o que se torna inadiável no contexto de pandemia vigente e também para a posteridade esperada, este ensaio teórico-reflexivo tem o objetivo de propor discussão ampliada sobre as dimensões que envolvem o dimensionamento de pessoal de enfermagem, articulando-as à realidade da pandemia por COVID-19.
MÉTODO
Ensaio teórico-reflexivo, ancorado em material técnico-científico acerca da pandemia por COVID-19, e, principalmente, nas dimensões e repercussões na carga de trabalho e no (sub)dimensionamento de pessoal de enfermagem neste contexto emergente, no cenário prévio e agravado por ele, bem como de vislumbres futuros. Isso se deu em especial no contexto brasileiro, uma vez que existe organização do trabalho própria da profissão no País, além de meios de provimento e administração de recursos humanos de enfermagem identitários.
As alusões/inferências reflexivas propostas emanaram da junção da interpretação de dados científicos e material técnico do COFEN com a experiência autoral. Neste sentido, a reflexão foi sustentada por pesquisadores com experiência na área de gestão de pessoas em enfermagem e estudantes de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, sediados nos estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Paraná.
A fim de atender ao objetivo proposto de forma sistematizada, o texto foi organizado e desenvolvido em dois eixos condutores, assim rotulados: Dimensões do dimensionamento de pessoal de enfermagem e o cenário agravado pela COVID-19; e, Provimento de profissionais de enfermagem pós COVID-19: há otimismo?
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dimensões do dimensionamento de pessoal de enfermagem e o cenário agravado pela COVID-19
A enfermagem é imprescindível e reputada como essencial nos cuidados à saúde em todo o mundo.18 Corresponde à metade dos trabalhadores da saúde no Brasil e insere mais de 2 milhões de profissionais em nível superior (23%) e médio (77%) no cuidado à saúde no território nacional. Por isso, é impossível cogitar o desenvolvimento do trabalho das instituições de saúde sem sua a atuação.18 Por outro lado, o déficit quantiqualitativo de capital humano (subdimensionamento) – aqui entendido como uma das dimensões laborais do dimensionamento de pessoal de enfermagem –, é uma franca realidade que se perdura no tempo em muitos cenários de prática,19 e algo em tela, até mesmo pela mídia, no contexto de pandemia hodierno.
Estudo20 realizado na Bélgica, Inglaterra, Finlândia, Irlanda, Espanha e Suíça, com 13.077 enfermeiros, constatou que o quantitativo inadequado de profissionais associado ao maior número de pacientes assistidos pode ocasionar sobrecarga de trabalho, insatisfação profissional e burnout. Aos pacientes, este desequilíbrio pode acarretar aumento de eventos adversos e maior taxa de mortalidade.21 Essa realidade delineia com clareza a necessidade de enfermeiros, gestores de enfermagem, entidades de classe e pesquisadores (re)planejarem continuamente meios de previsão e provisão de pessoal, como o dimensionamento.
O dimensionamento de pessoal de enfermagem é um método de previsão (planejamento) de profissionais da área, os quais, no Brasil, são devidamente projetados em número e categoria profissional para atender determinada demanda de clientela com qualidade e segurança, além de permear um meio de viabilização de melhores condições no trabalho.12,13,20 Apesar de sua relevância e possível eficácia como instrumento de gestão de pessoas, percebe-se a insuficiência de enfermeiros em todo o território nacional, principalmente no interior, já que 56,8% residem e trabalham nas capitais, o que repercute negativamente na atuação deste profissional em prol da qualidade do cuidado, e fomenta a sobrecarga para os enfermeiros das localidades interioranas.19 Mesmo em cidades de médio ou grande porte e em regiões de alta densidade populacional, como a Sudeste e a Sul, são relatadas deficiências na adequação de profissionais de enfermagem (especialmente de nível superior), em diferentes níveis de complexidade assistencial.13-15
Com a pandemia de COVID-19, a enfermagem reafirma sua importância, tanto por ter o maior contingente de profissionais de saúde que está ininterruptamente prestando assistência ao paciente, como por possuir competência técnica especializada e uma visão holística sobre o cuidado.18 A OMS declarou que sem a atuação da enfermagem não será possível combater a pandemia, bem como será improvável alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a cobertura universal de saúde.11 Contudo, milhares de profissionais de saúde e de enfermagem, no Brasil e em diversos países como China e Itália, foram afastados das suas atividades laborais por terem adquirido COVID-19, e muitos morreram em decorrência do vírus,21,22 o que reforça que, sem a previsão e provisão adequada de trabalhadores de enfermagem, o enfrentamento da pandemia torna-se ainda mais desafiador (ou inviável).
O aumento da demanda de pacientes por trabalhador de enfermagem (logo, a elevação da carga de trabalho) compromete sobremaneira a qualidade do cuidado prestado e a segurança do paciente, estando associado estatisticamente à maior permanência hospitalar, maior infecção urinária relacionada a procedimentos invasivos e à menor satisfação de pacientes com o cuidado de enfermagem.23 Além disso, a sobrecarga do trabalho repercute em sensação de impotência, insatisfação e desmotivação nos profissionais.24
Em decorrência da redução do quantitativo dos trabalhadores na pandemia pelo absenteísmo-doença, além da sobrecarga de trabalho, profissionais de enfermagem expressam lesões por fricção e cisalhamento em consequência da utilização ininterrupta de EPI, em especial as máscaras N95/PFF2, óculos e a face shield,25 utilizados por jornadas de trabalho prolongadas que, ainda que necessárias para o enfrentamento da COVID-19, são um possível reflexo da escassez e/ou inadequação de profissionais prévia a este contexto.
A sobrecarga de trabalho torna-se ostensiva ante as demandas institucionais e a qualidade do cuidado prestado. Ademais, reconhece-se que não é atípico profissionais de enfermagem trabalharem mais de 60 horas semanais26 e/ou estarem sob sua responsabilidade um número excessivo de pacientes para prestação de cuidados.23,27 No cenário hodierno de intensas mudanças, isso talvez seja ainda mais aguçado, já que é comum que trabalhadores de enfermagem tenham de abdicar ou adiar alguns meios de qualidade de vida no trabalho (como o planejamento de férias), bem como se veem na necessidade de atender não só um volume acentuado de pacientes, como também uma clientela desconhecida e que demanda cuidados peculiares.
A baixa valorização e visibilidade da profissão de enfermagem é evidenciada pelas jornadas de trabalho extenuantes, escassez de insumos, arrocho de trabalhadores, condições de trabalho insalubres, sucateamento das instituições, além da baixa remuneração19,28,29 que influencia os profissionais a terem múltiplos vínculos empregatícios. Por consequência, favorece-se a ineficiência dos trabalhadores na implementação da assistência segura e de qualidade e o esgotamento físico e psíquico.30 Em razão desses e de outros fatores, na pandemia vigente e inclusive fora dela, os profissionais deixam de ausentar-se do trabalho (absenteísmo) para estarem presentes mesmo sob adoecimento ou limitação física e/ou psíquica (presenteísmo).31 Assim, depreende-se que a múltipla jornada de trabalho e as deficiências quantiqualitativas do pessoal de enfermagem foram intensificadas no contexto de pandemia por COVID-19, que impôs outras adversidades ao trabalho, logo, possivelmente propiciou o adoecimento dos profissionais.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), com o intuito de atenuar os prejuízos dos profissionais de saúde ocasionados pela pandemia, recomendou condutas que compreendem a capacitação dos trabalhadores com o propósito de restringir a contaminação, provimento de EPI e de apoio psicossocial para diagnóstico de patologias, estresse e burnout, garantia de jornada de trabalho adequada, repouso, assim como pagamento das remunerações sem delonga, horas extras e licença médica.32 Por outro lado, e em especial no Brasil, verifica-se que os profissionais de enfermagem têm se deparado com escassez de EPI, insumos e capacitação, dimensionamento de recursos humanos inapropriado e baixa remuneração salarial; e, nesse sentido, pesquisadores aludem que é preciso esforço e mobilização por parte dos órgãos representativos da classe junto aos governantes para o estabelecimento de meios que possam garantir melhores condições laborais.33
Estudo realizado na China com profissionais de saúde que enfrentaram a pandemia de COVID-19 identificou problemas psicológicos, tais como depressão, ansiedade, insônia e angustia.34 Esses profissionais estão expostos a estressores adicionais como: o risco de se infectar e contaminar outros, em especial seus familiares, o aumento das responsabilidades laborais (sobrecarga de trabalho e atendimento a uma demanda desconhecida até então), além da redução do autocuidado em virtude da insuficiência de tempo e disposição.35 Deste modo, alude-se que, ainda que a pandemia traga uma série de responsabilidades e demandas adicionais ao usual, a deficiência na adequação de pessoal de enfermagem pode ser mais um fator que contribui negativamente para a resiliência dos trabalhadores que a enfrentam.
Perante o panorama da superlotação das unidades de internação, inclusive leitos de campanha, o COFEN36 estabeleceu parâmetros mínimos para o dimensionamento da equipe de enfermagem para a assistência aos pacientes infectados pela COVID-19 internados em unidades de terapia intensiva (UTI), semi-intensiva, hospitais gerais e de campanha. Como se trata de uma doença com um perfil clínico em construção, os pacientes em unidades de internação devem ser classificados inicialmente como de cuidados intermediários, requerendo seis horas de assistência de enfermagem/paciente/dia. Isto considerado, o cálculo resulta em um quadro de pessoal dimensionado composto por um percentual de 33% (mínimo de seis) de enfermeiros, nas 24 horas, a cada 20 leitos de internação e ajustado à carga horária semanal contratual da equipe.36
Considera-se que a estratégia do COFEN supracitada trata de uma dimensão ética (inerente à profissão enquanto classe) do dimensionamento de profissionais de enfermagem no contexto de pandemia; pois, ainda que de caráter emergencial e de base empírica (como o próprio COFEN36 assume), corresponde a uma resposta da entidade de classe a respeito de uma busca por prover parâmetros mínimos para a adequação do número e qualificação de trabalhadores esperados à demanda imposta pela COVID-19. Não menos importante, para além da qualificação em termos de categoria profissional determinada pelo dimensionamento, considera-se que a qualificação dos profissionais sob o prisma de capacitação é essencial para a disseminação do conhecimento, considerando que a educação permanente, articulada à implementação de protocolos e a práxis fundamentada em evidências, contribui para o aprimoramento da enfermagem.37
Mesmo com o disposto do COFEN, é comum que se vincule pela mídia, por exemplo, que no atual cenário da pandemia há escassez de profissionais capacitados e com experiência para o manejo adequado de equipamentos e cuidados complexos de enfermagem voltados a pacientes graves com COVID-19, além de um número insuficiente de trabalhadores já constatado diversas vezes em muitos cenários de prática antes da pandemia.13-15 Outro aspecto vinculado na mídia no período pandêmico foi a impossibilidade de abertura de alguns serviços emergenciais em razão da insuficiência e/ou inexistência de recursos humanos e outros necessários para a assistência. Destarte, este cenário contribui para o aumento da sobrecarga dos profissionais que estão neste “front”, seja pela carga física e/ou emocional/mental, tendo em vista que, por necessidade dos serviços, muitos profissionais tiveram de ser remanejados e passaram a desenvolver atividades complexas que não faziam parte de seu cotidiano.38
De acordo com o Parecer Normativo 02/2020 do COFEN,36 na assistência aos pacientes infectados pela COVID-19 e internados na UTI, a equipe deverá ser composta, no mínimo, por um enfermeiro a cada cinco leitos, um técnico de enfermagem a cada dois leitos e mais um técnico de enfermagem para apoio às atividades assistenciais a cada cinco leitos, em todos os turnos de trabalho. Já em unidades semi-intensivas, a proporção estipulada é de um enfermeiro para cada oito leitos, um técnico de enfermagem para cada dois leitos e mais um profissional de nível médio para apoio a cada oito leitos, em todo plantão/turno de trabalho.36
O quantiqualitativo de trabalhadores de enfermagem deve ser assegurado para atendimento das necessidades dos pacientes, no entanto, o aumento da taxa de absenteísmo e presenteísmo durante a pandemia39 pode acarretar elevação de risco para o paciente e adoecimento da equipe de enfermagem pela excessiva carga de trabalho. Neste sentido, no contexto dos cuidados críticos, uma pesquisa italiana identificou que a carga de trabalho da equipe de enfermagem mensurada pelo Nursing Activities Score (NAS) foi significativamente maior quando no atendimento de pacientes com COVID-19.40
Outra particularidade que se desdobra no dimensionamento de profissionais de enfermagem na pandemia é o fato de que o COFEN estabeleceu um índice de segurança técnica (IST) de 20%, em razão do expressivo aumento dos afastamentos desta categoria profissional,36 valor que difere do parâmetro mínimo estabelecido fora do contexto de pandemia, que é de 15%.12 O IST tem a finalidade de atribuir um valor adicional ao quadro de pessoal de enfermagem para suprir as ausências previstas e não previstas da equipe12 o que, no contexto de pandemia, por conta do excesso de trabalho e de afastamento/adoecimento de trabalhadores, esperam-se proporções aumentadas de ausências. Mais do que isso, é importante salientar que um estudo recente realizado antes do advento da COVID-19 no interior de São Paulo estimou um IST calculado em torno de 40% (42% para enfermeiros e 38% para técnicos de enfermagem),41 ou seja, mesmo fora do contexto da pandemia, o absenteísmo é uma franca realidade da enfermagem e que pode ser relacionado à carga de trabalho e ao subdimensionamento de pessoal.42
Existe um déficit estimado de 23.961 profissionais de enfermagem no Brasil, sendo 8.430 enfermeiros e 15.531 técnicos/auxiliares,41 o que prejudica a resposta adequada à pandemia de COVID-19 no País, e o atendimento fora dela. Durante o contexto pandêmico foram recebidas 8.680 denúncias pelos Conselhos Regionais de Enfermagem, as quais se referiam especialmente à escassez de EPI, seguida pelo déficit de profissionais de enfermagem.43 Ademais, estudo identificou que o Brasil, a Espanha e Portugal têm dificuldades semelhantes em relação à escassez de enfermeiros e de recursos materiais,31 o que sinaliza que o problema de adequação quanti e/ou qualitativa de pessoal não é uma exclusividade brasileira.
Postula-se que existem dimensões políticas do dimensionamento em enfermagem no cenário de pandemia, bem como em contexto não pandêmico, uma vez que é perceptível que a adequação e o provimento da força de trabalho da categoria perpassam também por esferas decisórias que tendem a extrapolar os interesses diretos de profissionais e/ou lideranças de enfermagem. Ou seja, ainda que de forma correlata e até mesmo “velada”, existem movimentos macro e micropolíticos que podem afetar a adequação do número e qualificação de trabalhadores de enfermagem disponíveis e atuantes em condições laborais dignas.
A Emenda Constitucional nº 95, sancionada em 2016,44 que congelou o dispêndio público por 20 anos e impacta eminentemente o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá interferir na provisão de profissionais de enfermagem, o que tensiona a sobrecarga de trabalho. No contexto da pandemia, é prudente ressaltar que o devido investimento no SUS é essencial para constatação do diagnóstico das infecções por coronavírus e sua restrição, entre outras doenças,45 o que inclui a adequada previsão e provisão do capital humano de enfermagem, já que atua incisiva e imprescindivelmente nestes combates.
A Medida Provisória (MP) 927/2020,46 por sua vez, flexibiliza as leis trabalhistas para o combate da pandemia, adapta as horas extras, a suspensão de exigências em segurança e saúde e altera o regulamento do trabalho: anteriormente, plantão realizado com 24 horas de trabalho previa 24 horas de descanso, já com a MP, outorga-se plantões de 24 horas com 12 horas de descanso.46 Neste sentido, ainda que seja pertinente refletir sobre medidas emergenciais de enfrentamento da pandemia, o que se propõe aqui é reafirmar, de fato, o quanto a enfermagem está exposta à precariedade em caso de não atendimento aos requisitos de adequação de profissionais, que pode ser viabilizada pelo dimensionamento.47 Em outras palavras, o que parece é que, por um lado, medidas alteram a dinâmica laboral da profissão como uma forma de resposta à situação epidemiológica, e, por outro, ela se vê com uma falta prolongada de suporte estrutural, aqui enfocando àquele relacionado ao provimento de recursos humanos.
O Projeto de Lei (PL) nº 2295/2000, que vem sendo debatido e analisado no Congresso Nacional, dispõe sobre a fixação da jornada de trabalho de 30 horas semanais e de seis horas diárias dos profissionais de enfermagem,48 sendo esta uma das principais reivindicações dos trabalhadores de enfermagem. Sabe-se que, em decorrência da excessiva carga de trabalho, da própria natureza do labor de enfermagem, bem como do estresse físico, psíquico e social, a luta pela redução da jornada de trabalho se posta como legítima para os trabalhadores da categoria. Contudo, cumpre ponderar que a obtenção das 30 horas semanais não deve reverberar na redução da remuneração dos profissionais, no arrocho de benefícios trabalhistas,49 tampouco no (maior) sucateamento qualiquantitativo do contingente de trabalhadores. Em claras palavras, um avanço não pode representar um ou mais retrocessos, e, articulando isso com a pandemia de COVID-19, espera-se que exista algum legado dela proveniente.
No ano internacional da enfermagem, também marcado pela pandemia de COVID-19, provoca-se a alteração da desfragmentação da assistência, propondo a partir da liderança dos enfermeiros a transformação ética e satisfatória para a saúde da sociedade.50 A campanha Nursing Now, lançada oficialmente no Brasil em 2019, prevê o fomento da liderança de enfermeiros e sua maior participação na agenda política e em posições decisórias.47 Espera-se que isso signifique um movimento de maior engajamento da profissão no que diz respeito ao poder de definir rumos, incluindo aspectos de interesse à adequação de profissionais de enfermagem, tanto no contexto de pandemia como fora dele, o que interpreta-se como plenamente ajustado à “Meta 2” da campanha, a qual trata do investimento em melhores condições de trabalho.51 Assim, emerge a necessidade de se refletir sobre o período pós-pandêmico.
Provimento de profissionais de enfermagem pós COVID-19: há otimismo?
A COVID-19 é uma patologia eminentemente contagiosa, com inexistência de vacinas e assistência terapêutica efetiva até o momento52 (outubro de 2020). O risco de colapso na saúde é existente, sendo imprescindível expor a vivência dos profissionais de saúde e de enfermagem durante o enfrentamento imposto. Considera-se fundamental que a sociedade condecore esses colaboradores imprescindíveis para que se sintam reconhecidos como fundamentais na assistência à saúde e no desenvolvimento do acesso e da qualidade dos serviços.53,54 Contudo, muito mais do que isso, os trabalhadores de enfermagem precisam que o reconhecimento social à sua bravura seja desdobrado em melhores condições de trabalho, o que inclui, com evidência, a adequação do provimento de pessoal.
Espera-se que os profissionais de enfermagem sejam reconhecidos financeira, social e profissionalmente, e que, em caso de legalização dos PL da carga horária de 30 horas semanais de trabalho e do piso salarial nacional, não haja abertura para retrocessos. Além disso, espera-se que pesquisas e reflexões inerentes às condições de trabalho e às consequências prejudiciais no processo do trabalho no decorrer da pandemia e no pós-pandemia sejam fomentadas com o intuito de elencar as intervenções efetivas para profilaxia e acompanhamento de agravos aos trabalhadores.33,53
Os órgãos governamentais devem ter como prioridade nas suas pautas a segurança e a saúde dos profissionais de saúde, assim como os gestores das instituições de saúde e dos serviços de enfermagem devem promover ambiente de trabalho seguro para os trabalhadores e pacientes. Ademais, as entidades da categoria (sindicatos, conselhos e associações de enfermagem) necessitam garantir as prerrogativas trabalhistas, melhores condições laborais e apoio psicossocial aos profissionais, seja no âmbito público ou privado.53
A pandemia da COVID-19 evidenciou a enfermagem no Brasil e no mundo. Além disso, vem comprovando a magnitude do SUS, dos centros de pesquisas e das universidades (ensino, pesquisa e extensão), os quais contribuem para uma sociedade mais empática aos grupos mais vulneráveis,54 e são imprescindíveis para a viabilização de ações técnicas no enfrentamento da pandemia.
Sobre a previsão de possíveis cenários a respeito do provimento de profissionais de enfermagem no aclamado período pós-pandemia, não cabe afirmar de forma contundente quais serão e o quanto a pandemia impactará as decisões futuras. No entanto, cabe ponderar que a articulação de órgãos governamentais, fiscais, acadêmicos, de lideranças de enfermagem, dos próprios trabalhadores e da sociedade como um todo, pode ser um meio de valorizar de fato o trabalho da enfermagem e, assim, que as repercussões a respeito da adequação dos quadros de profissionais sejam mais factíveis e otimistas. Sabe-se que isso permeia um jogo de interesses por vezes distinto, e, para tanto, o processo de definição honesta e clara de metas que convirjam a um objetivo minimamente em comum pode ser interessante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
A situação sanitária expressa pela COVID-19, no Brasil, parece evidenciar para a sociedade a elevada carga de trabalho e o subdimensionamento de profissionais de enfermagem. Este cenário também demonstra a ambivalência de fortalezas e fragilidades das dimensões que envolvem o dimensionamento de recursos humanos como instrumento de gestão de pessoas na categoria.
Na dimensão laboral, evidencia-se e são reforçadas as repercussões deletérias que a inadequação de pessoal de enfermagem acarreta aos trabalhadores, pacientes e serviços, em múltiplas esferas. Numa visão ética, pontua-se que as iniciativas de órgãos fiscais e regulatórios da profissão sobre a definição de parâmetros que determinem o dimensionamento de pessoal de enfermagem na pandemia e fora dela são profícuas, ainda que isso por si só não garanta a adequação esperada, até mesmo porque fica evidente que existe uma dimensão política que envolve o dimensionamento de recursos humanos. Neste prisma, pondera-se que os interesses (des)articulados macro e micropolíticos da profissão, entidades de classe, governo, serviços e lideranças de saúde/enfermagem, pesquisadores/universidades, e a própria sociedade como um todo tendem a se firmar positiva ou negativamente no cenário de previsão e provisão de pessoal de enfermagem, seja no enfrentamento da pandemia (de forma austera) ou após isso.
Acredita-se que a limitação mais expressiva deste estudo é o fato de terem sido tecidas reflexões críticas à guisa de uma perspectiva sem, no entanto, terem sido consideradas outras possíveis, como as próprias dificuldades que gestores e instituições podem encontrar para melhorarem o provimento de profissionais de enfermagem, principalmente no contexto atribulado da pandemia por COVID-19. Todavia, pondera-se que o estudo tem um efeito teorizante robusto que pode servir de subsídio para debates que venham a suscitar melhores práticas de dimensionamento e adequação de pessoal de enfermagem e, desta forma, repercutir na qualidade do cuidado, em especial no contexto brasileiro que foi mais amplo e profundamente explorado.