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O Tempo vivido em Mrs. Dalloway à Luz da Fenomenologia de Merleau-Ponty

Experienced Time in Mrs. Dalloway in Light of Merleau-Ponty’s Phenomenology

El Tiempo Vivido en La Señora Dalloway a la Luz de la Fenomenología de Merleau-Ponty

Resumo

O romance Mrs. Dalloway, escrito pela inglesa Virginia Woolf (1882-1941), é um marco na literatura universal por apresentar um novo formato na arte da escrita intitulado fluxo de consciência. Esta forma estilística visa descrever as falas e os pensamentos dos personagens por meio do discurso indireto livre, integrado à preleção do narrador. O enredo se passa em um único dia da vida da protagonista Clarissa Dalloway, no qual são captados os ínfimos detalhes do que ela experiencia. Dentre os fenômenos vivenciados encontramos a noção de tempo, por meio da qual o narrador mistura homogeneamente o fluxo passado, presente e futuro. O objetivo deste artigo é discutir a vivência do tempo na referida obra literária pautada numa discussão fenomenológica. Para isto, utilizamos como método a revisão narrativa da literatura de autores que contribuíram para o desenvolvimento da noção de tempo vivido na fenomenologia. É no fluxo do tempo que se dão os significados das experiências na história dos personagens no seu contato ambíguo com o mundo. Concluímos que as descrições elaboradas por Virginia Woolf possibilitam uma aproximação à vivência do tempo, que atravessa a totalidade da dimensão do ser.

Palavras-chave:
Fenomenologia; Tempo vivido; Mrs. Dalloway; Virginia Woolf; Merleau-Ponty

Abstract

The novel Mrs. Dalloway, written by English writer Virginia Woolf (1882-1941), is a landmark in universal literature for presenting a new format in the art of writing named Stream of Consciousness. This stylistic form aims to describe the speeches and thoughts of the characters through free indirect speech, integrated to the narrator’s lecture. The novel takes place in a single day of the life of the protagonist Clarissa Dalloway, capturing the minute details of what she experiences. Among the phenomena experienced we find the notion of time, whereby the narrator mixes the past, present, and future flux into one envelope. This article thus discusses the experience of time in this literary work based on a phenomenological discussion. We conducted a review of the literature including authors that contributed to the development of the notion of experienced time in phenomenology. In the flow of time lie meanings of the experiences of characters in their ambiguous contact with the world. We conclude that the descriptions elaborated by Virginia Woolf allow for an approximation to the experience of time that crosses the totality of the dimension of being.

Keywords:
Phenomenology; Experienced Time; Mrs. Dalloway; Virginia Woolf; Merleau-Ponty

Resumen

La novela La Señora Dalloway, de la escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), es un hito en la literatura universal por presentar un nuevo formato en el arte de la escritura titulado “flujo de conciencia”. Esta forma estilística pretende describir las palabras y los pensamientos de los personajes por medio del discurso indirecto libre, integrado a la prelección del narrador. La historia de la novela se pasa en un único día de la vida de la protagonista Clarissa Dalloway, en el que se captan los ínfimos detalles de lo que ella experimenta. Entre los fenómenos vivenciados encontramos la noción de tiempo, por medio de la cual el narrador mezcla el flujo pasado, presente y futuro en un envoltorio único. El objetivo de este artículo es discutir la vivencia del tiempo en la referida obra literaria pautada en una discusión fenomenológica. Para ello, utilizamos como método la revisión de la literatura de autores que contribuyeron al desarrollo de la noción de tiempo vivido en la fenomenología. Es en el flujo del tiempo que se dan los significados de las experiencias en la historia de los personajes en su contacto ambiguo con el mundo. Concluimos que las descripciones elaboradas por Virginia Woolf posibilitan una aproximación a la vivencia del tiempo, que atraviesa la totalidad de la dimensión del ser.

Palabras clave:
Fenomenología; Tiempo Vivido; Señora Dalloway; Virginia Woolf; Merleau-Ponty

Introdução

Virginia Woolf (1882-1941) foi renomada escritora inglesa, crítica e ativista política nascida em Londres e é considerada a maior figura literária feminina do século XX. Ensaísta, contista, romancista e biógrafa, possui uma bibliografia composta por mais de 12 livros completos publicados, além de coletâneas de contos e ensaios. Entre eles destaca-se o romance Mrs. Dalloway, publicado originalmente em 1925 e reconhecido por muitos críticos literários como a sua principal obra (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.).

A vida intelectual ativa de Virginia Woolf era contrabalanceada pela iminência de episódios maníaco-depressivos e psicóticos. Ela enfrentou essas crises até o fim de sua vida, quando cometeu suicídio aos 59 anos de idade (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.; Boeira et al., 2017Boeira, M. V., Berni, G. Á., Passos, I. C., Kauer-Sant’Anna, M., & Kapczinski, F. (2017). Virginia Woolf, neuroprogression, and bipolar disorder. Revista Brasileira de Psiquiatria, 39(1), 69-71.), deixando um legado narrativo que pulsa vivamente como inspiração poética para os seus leitores e se faz presente até os dias atuais.

Mrs. Dalloway representa um marco na literatura universal e na narrativa ocidental, pois exibe um fiel retrato da sociedade burguesa da época - com seus costumes, regras e influências - ao mesmo tempo em que destaca o universo de sentimentos, pensamentos, sensações e experiências vividas. Por não se restringir aos aspectos situacionais externos e à linearidade narrativa da descrição dos personagens, Woolf recorre ao mundo de significados vivenciados que invadem a vida dos personagens (Horst & Haartmann, 2001Horst, E. R., & Haartmann, G. (2001). A personagem e o fluxo da consciência em Mrs. Dalloway. Revista Guarapuava, 2(2), 62-70.; Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.).

A obra literária insere uma nova forma estilística de descrever os romances por meio do discurso indireto livre, ou seja, as falas e os pensamentos dos personagens estão integrados diretamente com o discurso do narrador (Mello, 2004Mello, J. C. (2004). O jogo de espelhos e O tempo em as horas, de Michael Cunningham. Revista Recorte, 11(1), 1-18.). Fenômeno relevante devido à história de Mrs. Dalloway se passar em um único dia da vida da protagonista. O que poderia tornar esse romance tão importante em face a um roteiro minimalista? A resposta é revelada através do brilhantismo de Woolf ao descrever esse único dia por meio do fluxo de consciência dos personagens (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.), no qual são captados os ínfimos detalhes do que eles experienciam.

Dentre os fenômenos vividos, o romance é atravessado pela temática do tempo em que o narrador mescla os elementos de passado, presente e futuro numa teia indissolúvel e indivisível. A história de Mrs. Dalloway fala sobre o tempo, mas não como uma coisa ou um objeto qualquer, pois ele “é uma das grandes questões da contemporaneidade e, quiçá, de todas as épocas; daquelas que fazem titubear até os mais doutos” (Petterle, 2005Petterle, A. (2005). O tempo das horas: um ensaio sobre o tempo nas narrativas de Mrs. Dalloway e de As horas. Revista de Estudos e Pesquisas em Linguagem e Mídia, 1(3), 01-11., p. 2). A experiência do tempo é o eixo central sob o qual circundam as vivências descritas na narrativa, o que nos permite compreender as sensações, as percepções e os significados vividos pelos personagens fora do eixo linear tradicional.

A temática do tempo ressoa na história da humanidade desde a antiguidade e alcançou a tradição da fenomenologia filosófica (Costa & Medeiros, 2009Costa, V. E. S. M., & Medeiros, M. (2009). O tempo vivido na perspectiva fenomenológica de Eugène Minkowski. Psicologia em Estudo, Maringá, 14(2), 375-383.; Melo et al., 2016Melo, A. K. S., Araújo, V. V., Bloc, L., & Moreira, M. (2016). A experiência do tempo em Merleau-Ponty: contribuições para a fenomenologia clínica. Interação em Psicologia, 20(1), 10-19.), demonstrando o papel do tempo como método de subjetivação e imersão do ser humano no mundo circundante, além de servir de inspiração para o desenvolvimento fenomenológico nos campos da psicopatologia, psiquiatria e psicologia clínica (Melo et al., 2016Melo, A. K. S., Araújo, V. V., Bloc, L., & Moreira, M. (2016). A experiência do tempo em Merleau-Ponty: contribuições para a fenomenologia clínica. Interação em Psicologia, 20(1), 10-19.).

Os estudos fenomenológicos, sejam eles filosóficos ou clínicos, apontam para o tempo como dimensão fundamental da existência e que se desvela como condição de possibilidade de nosso contato ambíguo com o mundo. Husserl (1928/1994Husserl, E. (1994). Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (Trabalho original publicado em 1928)) elaborou inicialmente a análise da consciência interna do tempo, sendo esta a via de desvelamento da intencionalidade da consciência e de nossa constituição subjetiva.

Em momento posterior, inspirado nos últimos anos do pensamento husserliano, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1942/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) , 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)) resgata a temática do tempo para discutir sua implicação na constituição do Lebenswelt, compreendido como o mundo compartilhado por todos nós, sob o qual nossas experiências se desvelam e ganham significados. Esta noção não é o mundo que possuímos como objeto, ele é de ordem pré-reflexiva, imanente e imediata, correspondendo ao mundo de significações de nossas experiências (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ; Moreira, 2016Moreira, V. (2016). From essence to Lebenswelt as a method in phenomenological psychopathology. Estudos de Psicologia (Campinas), 33(3), 403-411.). Para o autor, o tempo vivido, ou tempo da vida, está atrelado ao Lebenswelt de cada sujeito, pois é integrado ao devir como tempo vital e imediato (Tatossian, 1975/2012Tatossian, A. (2012). Fenomenologia da depressão. In: A. Tatossian & V. Moreira. Clínica do Lebenswelt: psicoterapia e psicopatologia fenomenológica (pp. 29-44). São Paulo: Escuta.; 1979/2006Tatossian, A. (2006). Fenomenologia das psicoses. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1979)).

O tempo vivido e imanente manifesta-se na obra Mrs. Dalloway diante da descrição do curso experiencial dos personagens, para além de uma sucessão de momentos presentes. É no fluxo temporal que as percepções atribuem sentidos e significados aos fenômenos experienciados, o que nos revela a íntima relação entre o tempo e a subjetividade presente no romance. Para compreendê-la, utilizaremos como lente a fenomenologia da ambiguidade de Merleau-Ponty (Moreira, 2016Moreira, V. (2016). From essence to Lebenswelt as a method in phenomenological psychopathology. Estudos de Psicologia (Campinas), 33(3), 403-411.), que nos permite fugir da linearidade simétrica das sucessões do instante agora para acessar o tempo que nasce de nossas relações com as coisas e com o mundo intersubjetivamente (Melo et al., 2016Melo, A. K. S., Araújo, V. V., Bloc, L., & Moreira, M. (2016). A experiência do tempo em Merleau-Ponty: contribuições para a fenomenologia clínica. Interação em Psicologia, 20(1), 10-19.).

Neste artigo temos como objetivo descrever a vivência do tempo na obra Mrs. Dalloway à luz da fenomenologia de Merleau-Ponty. Para isto, apresentaremos inicialmente a história narrada no romance. Em seguida, descreveremos o tempo vivido na fenomenologia da ambiguidade de Merleau-Ponty e, por fim, discutiremos a contribuição da lente fenomenológica merleau-pontyana para a compreensão da vivência do tempo na referida obra literária.

Método

Para a construção deste artigo, realizamos uma investigação qualitativa cuja definição epistemológica tem como principal característica estar “voltada para a descoberta e para a constituição de novos espaços de leitura de fenômenos da realidade” (Andrade &Holanda, 2010Andrade, C. C., & Holanda, A. F. (2010). Apontamentos sobre pesquisa qualitativa e pesquisa empírico-fenomenológica. Estudos de Psicologia (Campinas), 27(2), 259-268, p. 261). As pesquisas qualitativas aprofundam os fenômenos estudados, uma vez que abrangem aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, etc., pois cabe ao pesquisador utilizar teorias para a discussão do tema investigado (Creswell, 2010Creswell, J. W. (2010). Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e mistos. Porto Alegre, RS: Artmed.; Stake, 2011Stake, R. E. (2011). Pesquisa qualitativa: estudando como as coisas funcionam. São Paulo, SP: Editora Penso.).

Dentre os tipos de investigações qualitativas, encontramos na revisão de literatura a proposta que melhor se adequa aos objetivos do presente artigo por se tratar de um estudo teórico. Nela, o principal instrumento para a construção dos resultados da investigação é a literatura já publicada mediante o conhecimento produzido por outros autores (Coutinho, 2014Coutinho, C. P. (2014). Metodologia de investigação em ciências sociais e humanas. São Paulo, SP: Almedina.).

Diante deste escopo, buscamos nas bases de dados acadêmicas SciELO, PePSIC, Portal BVS, EBSCOhost e Capes Periódicos por artigos publicados nos últimos 15 anos que fizessem alusão ao tempo vivido na obra Mrs. Dalloway. Para alcançar este objetivo, utilizamos como descritores os seguintes termos: tempo vivido, Mrs. Dalloway e Virginia Woolf. Localizamos apenas sete publicações, as quais foram somadas a textos clássicos no campo da fenomenologia existencial de Merleau-Ponty e seus comentadores, bem como o romance principal de Virginia Woolf que compõe o título deste artigo.

Breve apresentação do romance Mrs. Dalloway

No livro Mrs. Dalloway (Woolf, 1925/1980Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1925)), temos acesso ao fluxo experiencial dos personagens quando o narrador mergulha em mundos vividos de Clarissa Dalloway e Septimus Smith, especificamente. Estes representam os dois núcleos narrativos do romance e suas histórias são contadas em paralelo, uma vez que ambos não chegam a se conhecer pessoalmente.

A história se inicia com a célebre frase, traduzida por Mário Quintana, “Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores” (Woolf, 1925/1980Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1925), p. 7), marcando a narrativa com a saída de Clarissa Dalloway para a floricultura a fim de decorar sua casa para a festa que ela própria estava organizando naquela noite. Ao caminhar pelas ruas londrinas, a personagem é invadida por cheiros, sensações e encontros que a fazem se recordar de momentos marcantes de sua vida, revivendo o passado ao mesmo tempo em que experiencia o presente e planeja o futuro (Assis, 2017Assis, F. G. (2017). Orlandos: intercâmbio entre Virginia Woolf e Sally Potter. Ilha do Desterro, 70(1), 187-198.).

Além dos odores, barulhos e movimentos de uma vibrante Londres pós-guerra, Clarissa encontra amigos e conhecidos em seu trajeto entre a casa e a loja de flores. O primeiro deles é Hugh Whitbread, a quem conhece desde a juventude, e convida para a sua festa, apesar de saber que seu marido Richard Dalloway não o aprecia. Ver Hugh leva Clarissa a lembrar do passado e de suas antigas paixões, representadas inicialmente pela figura de Peter Walsh, um antigo namorado com quem poderia ter se casado.

Após mais de dez anos de distanciamento, Peter visita Clarissa quando ela retorna da floricultura e este reencontro a faz se questionar sobre as escolhas e decisões que tomara em sua vida. Uma nova recordação brota com a aproximação de Peter: a da juventude passada ao lado da amiga Sally na cidade de Bourton, com quem Clarissa também vivera uma relação amorosa. Peter e Sally representam o momento de contravenção social de Clarissa, pois distanciam-na brevemente do retrato patriarcal e conservador da sociedade londrina do século XX. Por sua vez, Clarissa abdica do amor livre pela seguridade social e econômica ao se casar com Richard. Desta união nasce a única filha do casal, Elisabeth, que aparece na história com 15 anos de idade e possui uma relação distante com a mãe (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.).

O reencontro de Clarissa e Peter perturba sobremaneira este último, levando-o a sair atordoado da residência dos Dalloway com a promessa de retornar à noite para a festa. Nesse ínterim, o personagem caminha a esmo pelas ruas londrinas, local onde também encontramos as figuras de Septimus, ex-combatente da Primeira Guerra Mundial que apresenta episódios psicóticos após a vivência traumática nos campos de batalha, e sua esposa Rezia. Septimus. Seus delírios e alucinações se intensificam à medida que a narrativa avança; o encontramos conversando com Evans, o amigo morto na guerra, e ouvindo pássaros cantarem em grego.

O limiar entre a loucura e a sanidade aflora no romance com a presença de Septimus, o qual representa o inverso de Clarissa na narrativa. Enquanto ela tenta a todo custo se sustentar nas fachadas de uma sociedade moderna frívola e cheia de problemas, Septimus denuncia o falso padrão de normalidade. Seu trágico fim ocorre quando ele é confrontado com a presença do médico da família, que tenta interná-lo à força após o culpar pelo agravamento do seu quadro psicótico por meio de um discurso moralista e higienista. Septimus se suicida ao pular da janela de seu quarto na presença do médico e de sua esposa Rezia.

Em seguida, a narrativa retorna ao núcleo de Clarissa por meio dos pensamentos e lembranças de Peter Walsh. Este caminha em direção ao hotel e, ao chegar, se depara com uma carta de Clarissa que conta estar encantada por revê-lo. Peter resolve comparecer à festa e, ao chegar lá, se depara com a realidade da Londres burguesa permeada por bebidas, charutos, belas roupas e conversas polidas.

Clarissa revela seu incômodo diante tal fachada ao pensar que “cada vez que dava uma festa, vinha-lhe aquela sensação de não ser ela própria e de que cada pessoa era irreal em certo sentido” (Woolf, 1925/1980Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1925), p. 163), não reconhecendo a si mesma diante desta superficialidade. Com o passar das horas, entre conversas e amenidades, a personagem Lady Bradshaw anuncia a morte trágica de um paciente de seu marido - Septimus Smith. A morte, mesmo sem convite, adentrara a festa de Clarissa, infiltrando-se em suas angústias.

Enquanto Septimus sucumbe ao tempo da vida pelo suicídio, Clarissa escolhe seguir adiante, carregando seus próprios medos em silêncio na mundaneidade do cotidiano. Ela opta por viver, apesar do medo do tempo que deixa marcas em seu rosto e em seu corpo. O romance termina com um final aberto, inconcluso, assim como a própria vida de Clarissa.

O tempo vivido na fenomenologia da ambiguidade de Merleau-Ponty

A experiência do tempo possui distinção categorial, a qual surge na mitologia grega e alcança o terreno da fenomenologia filosófica, em que encontramos diferenças entre o tempo objetivo e o tempo vivido. Edmund Husserl (1859-1938), considerado o fundador da fenomenologia como corrente filosófica, foi o primeiro autor a inaugurar tais distinções sobre o tempo neste terreno (Zahavi, 2015Zahavi, D. (2015). A fenomenologia de Husserl. Rio de Janeiro, RJ: Via Verita.).

Ao se interrogar sobre o que é o tempo, Husserl (1928/1994Husserl, E. (1994). Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (Trabalho original publicado em 1928)) aponta para a existência do tempo do mundo, objetivo e mensurável, mas ressalta a importância de não nos determos exclusivamente a ele. O ponto-chave para acessar a compreensão fenomenológica do tempo está situado na suspensão de seus dados objetivos, pois o seu eixo central jaz nos traços imanentes e vinculados à consciência intencional vinculada ao mundo. A elaboração da análise do tempo por Husserl representa um marco na fenomenologia filosófica por inaugurar a compreensão dos processos que estruturam a consciência, uma vez que eles são temporais (Zahavi, 2015Zahavi, D. (2015). A fenomenologia de Husserl. Rio de Janeiro, RJ: Via Verita.).

Encontramos posteriormente a obra do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1942/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ; 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)), que elabora uma releitura do pensamento de Husserl, porém insere a dimensão existencial como fundamento da relação homem-mundo na fenomenologia e em suas reflexões sobre a experiência do tempo. Merleau-Ponty (1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)) parte da análise sobre a consciência intencional husserliana para discutir a temporalidade, mas a radicaliza no sentido de uma fenomenologia da ambiguidade ao apontar a intersubjetividade como dimensão constituidora do Lebenswelt.

Os estudos de Merleau-Ponty sobre o tempo surgem desde suas primeiras obras, e é o fio condutor que o levará ao campo da fenomenologia transcendental (Alvim, 2011Alvim, M. (2011). A ontologia da carne em Merleau-Ponty e a situação clínica na Gestalt-Terapia: entrelaçamentos. Revista da Abordagem Gestáltica, 19(2), 143-151.). A experiência do tempo, discutida por Merleau-Ponty, emerge em seus estudos da percepção, comportamento, movimento, corporeidade e existência entrelaçada ao mundo. Ela não é puramente objetiva ou subjetiva, mas se constitui de forma ambígua (Melo et al., 2016Melo, A. K. S., Araújo, V. V., Bloc, L., & Moreira, M. (2016). A experiência do tempo em Merleau-Ponty: contribuições para a fenomenologia clínica. Interação em Psicologia, 20(1), 10-19.).

Como assinala Merleau-Ponty (1942/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ; 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)), o tempo é objetivado ao entrar em contato com o mundo factual e ser apreendido no instante agora, mas ele não se resume à cadeia sucessiva linear representada na linguagem comum pelo passado, presente e futuro, em que o passado ocasiona o presente e este, por sua vez, determinará o porvir num seguimento contínuo e linear.

Não é o passado que empurra o presente nem o presente que empurra o futuro para o ser; o porvir não é preparado atrás do observador, ele se premedita em frente dele, como a tempestade no horizonte. Se o observador, situado num barco, segue a corrente, pode-se dizer que com a corrente ele desce em direção ao seu porvir, mas o porvir são as paisagens novas que o esperam no estuário, e o curso do tempo não é mais o próprio riacho: ele é o desenrolar das paisagens para o observador em movimento (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945), p. 551).

Algo escapa aos traços de materialidade do tempo, e ele não pode ser plenamente definido como coisa ou objeto, uma vez que constitui a consciência enquanto é simultaneamente constituído por ela (Tatossian, 1979/2006Tatossian, A. (2006). Fenomenologia das psicoses. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1979)). A transitoriedade e o inacabamento são as principais características do tempo e sua síntese se dá como eterno recomeço, em que retornamos ao passado longínquo e nos deparamos com uma ordem temporal própria. Nela, o tempo é reaberto no exato instante em que se destaca seu horizonte de porvir e o passado deixa de ser a sua origem (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)). Só alcançamos o tempo em intenção diante do que é experienciado em seu horizonte (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)).

O objeto é visto portanto a partir de todos os tempos, assim como é visto de todas as partes e pelo mesmo meio, que é a estrutura de horizonte. O presente ainda conserva em suas mãos o passado imediato, sem pô-lo como objeto, e, como este retém da mesma maneira o passado imediato que o precedeu, o tempo escoado é inteiramente retomado e apreendido no presente. O mesmo acontece com o futuro iminente que terá, ele também, seu horizonte de iminência (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945), p. 106).

O futuro e o passado estão simultaneamente vinculados ao presente, caminhando a seu lado como as paisagens que se mostram na janela de um carro em movimento. Como o tempo surge da relação intencional que estabelecemos com o mundo e com as coisas que o compõem, o passado e o futuro são preexistentes, o que rompe a cadeia de sucessões lineares (Melo et al., 2016Melo, A. K. S., Araújo, V. V., Bloc, L., & Moreira, M. (2016). A experiência do tempo em Merleau-Ponty: contribuições para a fenomenologia clínica. Interação em Psicologia, 20(1), 10-19.; Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)).

O tempo vivido está vinculado ao devir como dado pré-reflexivo e pré-consciente, pois é o tempo vital e imediato que estabelece íntima relação com a subjetividade. Por não sermos um somatório de eventos psíquicos, a subjetividade se dá no tempo, constituindo-se na duração temporal. Por sua vez, as vivências já ocorridas e retidas no presente reabrem o fluxo experiencial do tempo, construindo novos significados do mundo percebido (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1945)).

Nesse sentido, o tempo se manifesta com características duplas em relação à consciência e à percepção, pois ele existe para a consciência como o “devir histórico que a preparou” (Merleau-Ponty, 1942/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) , p. 318), ou seja, é no decurso do tempo que ela se constitui. Simultaneamente, por não seguir uma direção linear e causal, o tempo também é constituído pela consciência perceptiva. Ele é o jorrar inesgotável situado no centro da consciência, que também possui um significado intelectual e manipulável quando separado dela (Merleau-Ponty, 1942/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ).

A pluralidade de possibilidades de nossa percepção nos lança a um universo de experiências que compõem o mundo percebido. Este não se resume a estados de consciência, estruturas deterministas ou a representações que criamos da realidade. O mundo não é apenas o objeto de uma consciência no instante agora, mas está presente nela, fazendo parte do percurso histórico que a constituiu. Esse dado atrela o tempo à experiência intersubjetiva de nossas relações com o mundo.

A subjetividade é temporalidade e fornece um passado ao presente e uma direção para o futuro. O vivido nos toca, estando presente e permanecendo sem cessar em nossa experiência. Não se vive fora do presente, mas aquilo que é vivido, a dimensão presente, tem o poder de penetrar no tempo e de buscar a eternidade em sua atmosfera temporal (Melo et al, 2016Melo, A. K. S., Araújo, V. V., Bloc, L., & Moreira, M. (2016). A experiência do tempo em Merleau-Ponty: contribuições para a fenomenologia clínica. Interação em Psicologia, 20(1), 10-19.).

O acesso ao fluxo experiencial do tempo se dá no momento presente e, por meio dele, pode emergir o passado longínquo e a expectativa do porvir. Estes últimos não se manifestam como representação, lembrança ou projeção, mas são revividos, presentificados e, com eles, novos significados são atribuídos às vivências despertas na consciência subjetiva. O tempo vivido é composto por uma cadeia complexa e paradoxal. Ao caminhar de mãos dadas com o instante agora ele ilumina todas as experiências e exige que sigamos em direção à fenomenologia da ambiguidade para ser compreendido.

Das badaladas do relógio à experiência vivida do tempo

A “vivência do tempo é um dos principais aspectos do romance” (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264., p. 262), o qual é marcado do início ao fim pelo tempo objetivo, representado pelo soar do famoso relógio londrino - Big Ben -, e cuja função é organizar objetivamente a vivência concreta e rotineira dos personagens em um dia comum, quase enfadonho e no qual aparentemente pouco acontece.

A vivência cronológica se desdobra em horas, minutos e segundos, matematicamente sequenciados e mensurados, dissociando o tempo das experiências humanas subjetivas (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.). Em diversos momentos da história, encontramos os personagens perdidos em seus pensamentos, revivendo histórias antigas ou divagando na expectativa de algo novo, quando as batidas das horas os despertam para a concretude da vida.

Eram precisamente doze horas; doze, pelo Big Ben; cujo sonido foi sendo arrastado para o norte de Londres; mesclando-se com o de outros relógios, confundindo-se, etereamente, com as nuvens e as espirais de fumo, e indo afinal morrer além, entre as gaivotas (Woolf, 1925/1989, p. 92).

O escoar do tempo está intimamente relacionado com as vivências dos personagens. Ele simultaneamente organiza os aspectos da vida cotidiana, do movimento rotineiro da cidade e do período histórico pós-guerra que situa o romance (Petterle, 2005Petterle, A. (2005). O tempo das horas: um ensaio sobre o tempo nas narrativas de Mrs. Dalloway e de As horas. Revista de Estudos e Pesquisas em Linguagem e Mídia, 1(3), 01-11.). Entretanto, a vivência do tempo objetivo ganha papel secundário. Não é ele quem movimenta a história e o mundo experiencial narrado, levando-nos a perceber que as ações externas e concretas do enredo possuem pouca relevância frente à dimensão vivida intersubjetivamente pelos personagens da trama.

O verdadeiro papel das badaladas emitidas pelo Big Ben reside na experiência viva que os personagens do romance possuem do tempo (Ricoeur, 1984/1995Ricoeur, P. (1995). Tempo e narrativa: Tomo III. São Paulo, SP: Papirus. (Trabalho original publicado em 1984).), como encontramos no seguinte pensamento de Septimus: “A palavra hora rebentou sua casca; derramou seus tesouros sobre ele . . . duras, brancas, imortais palavras, que voaram, colocando-se por si mesmas no seu devido lugar em uma ode ao Tempo; uma imortal ode ao Tempo” (Woolf, 1925/1980Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1925), p. 69). Não se trata de reverenciar o tempo cronológico e objetivo nem o tempo pessoal e subjetivo, mas o entrelaçamento ambíguo de ambos que compõe o Lebenswelt como campo intersubjetivo (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ; Moreira, 2016Moreira, V. (2016). From essence to Lebenswelt as a method in phenomenological psychopathology. Estudos de Psicologia (Campinas), 33(3), 403-411.).

O narrador não descreve os acontecimentos linearmente, mas se guia por diferentes perspectivas que se cruzam simultaneamente ao invés de se manter em uma única realidade. Conhecemos o mundo subjetivo de cada personagem e como eles se cruzam entre si num fluxo intersubjetivo. Os pensamentos aparecem, somem e retornam num movimento contínuo, impressionista e por vezes fragmentado, podendo ser estimulado por cheiros, sensações, barulhos e cores (Cordás & Marchetti, 2011Cordás, T. A., & Marchetti, R. L. (2011). Quem tem medo de Virginia Woolf? Psicopatologia, tempo e criatividade em Mrs. Dalloway. Revista Psiquiatria Clínica, 38(6), 261-264.).

Este aspecto da narrativa ilustra a intensidade do tempo vivido, que se distancia da objetividade temporal e mergulha os personagens num turbilhão de vivências, em que presente, passado e futuro se misturam e se constituem mutuamente. Os tempos experiencial e intersubjetivo conectam os indivíduos ao Lebenswelt, esboçando um quadro complexo e ambíguo nas vivências descritas pela autora. A realidade é opaca e seu inacabamento é revelado pela duração temporal que impede o acesso à essência pura dos fenômenos vivenciados no escoamento do mundo.

E como o fio da aranha solitária, que, depois de haver flutuado de um lado para o ouro, afinal se prende à ponta de uma folha, assim o pensamento de Richard, saindo do letargo, pousava agora em sua mulher, em Clarissa, a quem Peter Walsh amara tão apaixonadamente; e Richard tivera uma súbita visão dela durante o almoço; dela e de si próprio; da sua vida em comum (Woolf, 1925/1980Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1925), p. 111).

O tempo vivido, ilustrado na passagem acima, demonstra o cruzamento das experiências do passado, que caminham em direção às situações imersas no instante agora vivido pelo personagem Richard, o que nos permite mergulhar em seu fluxo de pensamentos no exato momento em que eles ocorrem e perduram, desdobrando-se em significações variadas que compõem o mundo experienciado. Como afirma Ricoeur (1984/1995Ricoeur, P. (1995). Tempo e narrativa: Tomo III. São Paulo, SP: Papirus. (Trabalho original publicado em 1984).), a obra se organiza dessa maneira para que o narrador ofereça ao leitor um apanhado de experiências temporais que podem ser compartilhadas e acessadas devido a formato sutil do fluxo de consciência.

O escoamento do tempo e sua duração são registrados duplamente na obra. Entramos em contato com a transitoriedade da vida na passagem dos anos, marcados pelo tempo objetivo, cujo percurso torna a existência finita. Entretanto, esta é vivida experiencialmente atrelada às significações do tempo que não retornará, entrelaçando os elementos subjetivos e objetivos da temporalidade num fluxo contínuo demonstrado no pensamento de Clarissa Dalloway: “Mas o tempo é que ela temia . . ., o fluir da vida; como, ano após ano, a sua parte diminuía; quão pouco podia dilatar o que ainda restava, e absorver, como nos dias juvenis, as cores, o sabor, o tom da existência” (Woolf, 1925/1989, p. 32).

A passagem dos anos é vivida e sentida na experiência que a protagonista tem de seu corpo, pois se percebe “de súbito enrugada, velha, sem alento, com a brisa, o rumor, a floração do dia fora da casa, além da janela, além do seu corpo e cérebro, exauridos agora” (Woolf, 1925/1989, p. 33). A experiência do corpo, como ressalta Merleau-Ponty (1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ), é intimamente conectada à do tempo, pois o corpo é o elemento que nos atrela ao Lebenswelt com seus fios intencionais. Desta forma, os arrependimentos que Clarissa traz de seu passado são vividos no instante agora como experiência retida, e ela sente vivamente seu corpo como velho e cansado devido à impossibilidade de recuperar o tempo que já passou.

Clarissa, mergulhada em dúvidas e arrependimentos, anseia por recuperar o passado perdido e é confrontada por ele quando reencontra as figuras de Peter e Sally em sua festa. O intenso mergulho no passado auxilia implicitamente os personagens a se reconstruírem no momento presente, e o tempo vivido destes doa ao romance uma densidade temporal (Ricoeur, 1984/1995Ricoeur, P. (1995). Tempo e narrativa: Tomo III. São Paulo, SP: Papirus. (Trabalho original publicado em 1984).), bem como lhes confere densidade psicológica e intersubjetiva ao entrelaçar o presente narrado, o passado recordado e o futuro almejado no sentido da ambiguidade do Lebenswelt (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ).

A experiência do tempo vivido na alucinação de Septimus

Desde o princípio do romance, a história de Septimus parece deslocada em comparação ao restante da narrativa, pois possuiu um eixo temporal próprio que não se mistura com o dos demais personagens: Septimus representa a loucura. Ele é a contraposição ao mundanismo e à frívola vida cotidiana de Clarissa, absorvida por sua festa e por seus conflitos pessoais. Da mesma forma que a insanidade se opõe à lucidez, Septimus é o inverso das demais pessoas que comparecerão à recepção de Mrs. Dalloway (Mello, 2004Mello, J. C. (2004). O jogo de espelhos e O tempo em as horas, de Michael Cunningham. Revista Recorte, 11(1), 1-18.).

O personagem Septimus é retratado diante episódios alucinatórios e delirantes, somados a repetidas ideações suicidas, desde as primeiras páginas. Sua experiência temporal é distinta dos demais personagens da história e se apresenta de forma distorcida e alterada como distanciamento da realidade em que o mundo perde sua obviedade. O personagem demonstra dificuldade em habitar o mundo e transitar nele como os demais sujeitos.

O fenômeno da alucinação, destacado na vivência de Septimus, é situado no limiar das dimensões do real e do imaginário, os quais se encontram atrelados ao Lebenswelt. A alucinação “desintegra o real sob nossos olhos, ela o substitui por uma quase-realidade, das duas maneiras o fenômeno alucinatório nos reconduz aos fundamentos pré-lógicos de nosso conhecimento” (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) , p. 448). Ela se situa na interseção do real e do irreal, ambos aspectos que compõem o mundo subjetivo e podem sinalizar os diferentes significados dos fenômenos atribuídos à experiência da realidade (Serbena & Ilkiu, 2016).

Um pardal, pousado na grade em frente, piou ‘Septimus, Septimus’, quatro ou cinco vezes, e, cascateando as suas notas, continuou a cantar, alto, com frescor, em palavras gregas, que o crime não existe, e, tendo chegado um outro pardal, cantavam ambos, com voz prolongada e penetrante, em grego, dentre as árvores do prado da vida, à margem de um rio onde passeavam os mortos, que a morte não existe (Woolf, 1928/1989, p. 27).

A passagem acima retrata um mundo fantástico, em que pássaros falam e cantam em outros idiomas. Apesar da manifestação de um fenômeno impossível, a ruptura com a realidade não é plena, pois os fios intencionais do Lebenswelt de Septimus o conectam com a facticidade mundana por meio do desejo da morte. Os significados manifestos no fenômeno alucinógeno revela a busca pela morte devido aos sofrimentos que o personagem encontra em vida.

A alucinação não é uma sensação, um conteúdo sensorial, uma crença ou um juízo de valor que podemos acessar empírica ou intelectualmente.Quem alucina, consegue distinguir tais delírios da realidade, o que faz necessária a utilização de uma abordagem compreensiva para acessar a experiência alucinatória e seus significados (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ). A alucinação é uma manifestação existencial como possibilidade de ser, ou seja, ela expressa o Lebenswelt de quem alucina como experiência de engajamento do homem ao mundo num contexto intersubjetivo (Serbera & Ilkiu, 2016Serbera, C. A., & Ilkiu, F. M. (2016). Reflexão fenomenológica sobre a alucinação e seu sentido. Revista da Abordagem Gestáltica , 12(1), 21-26.).

Este fator se contrapõe à visão clássica da psicologia e da psiquiatria a respeito da definição da alucinação, a qual era vista como a ausência de objeto na percepção. Fazia-se primordial fornecer validação objetiva mediante critérios empíricos para angariar controle e previsão necessários à lógica organicista tradicional (Campos & Coelho, 2002Campos, E. B. V. , & Coelho, N, Jr. (2002). O conceito de alucinação em Merleau-Ponty: aspectos clínicos e psicopatológicos. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2, 13-27.; Serbera & Ilkiu, 2016Serbera, C. A., & Ilkiu, F. M. (2016). Reflexão fenomenológica sobre a alucinação e seu sentido. Revista da Abordagem Gestáltica , 12(1), 21-26.).

Merleau-Ponty (1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ) se esforça em ultrapassar a linearidade objetiva e dicotômica presente nas discussões acerca das experiências humanas e elabora sua tese da experiência do mundo percebido que se constitui sob o fundamento da existência pré-reflexiva. Para o autor, a subjetividade humana se organiza atrelada ao Lebenswelt e mediada pela experiência do tempo.

No romance, Septimus é assombrado por um mundo imaginário, em que realidade e fantasia se misturam em uma experiência temporal turva e o suicídio emerge como possibilidade de ruptura do decurso das horas (Mello, 2004Mello, J. C. (2004). O jogo de espelhos e O tempo em as horas, de Michael Cunningham. Revista Recorte, 11(1), 1-18.). O Lebenswelt de Septimus retrata a agonia de uma existência insuportável, intensificada pela relação com a morte. A sua vivência do tempo resgata as características místicas e destrutivas de Cronos - tempo cronológico e mensurável -, que engole a vida e traz de volta do mundo dos mortos o fantasma de seu amigo Evans (Ricoeur, 1984/1995Ricoeur, P. (1995). Tempo e narrativa: Tomo III. São Paulo, SP: Papirus. (Trabalho original publicado em 1984).).

Não é desnecessariamente que Septimus resgata em suas experiências alucinatórias o falecido companheiro de guerra, pois a consciência delirante não está fechada em si mesma, inacessível e sem comunicação. Ela reverbera vivências passadas que se abrem num horizonte de possíveis objetivações, mas se enclausuram numa realidade fictícia e distanciada do mundo real (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) ).

No mundo imaginário, Septimus mal concebia a intenção de ver Evans ou ouvir pássaros cantando em grego e já sabia tê-los visto, pois não possui variação de pontos de vista conectados com a realidade. Como aponta Merleau-Ponty, “o imaginário é sem profundidade, não responde aos nossos esforços para variar pontos de vistas, não se presta à nossa observação” (1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) , p. 434), ou seja, não temos poder sobre ele.

Entretanto, o médico que cuidava de Septimus, o doutor Bradshaw, tencionava controlar a doença e os sintomas de seu paciente com uma abordagem terapêutica que priorizava o aprisionamento da loucura. Para convencer a esposa a internar Septimus, o médico lhe dissera: “as pessoas de quem mais gostamos não nos servem quando estamos doentes” (Woolf, 1925/1980Woolf, V. (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1925), p. 142). Tal postura traz demasiados infortúnios ao paciente, culminando em seu suicídio, o que nos leva a questionar e criticar o lugar da prática terapêutica tradicional, que prioriza a cura dos sintomas em detrimento do sujeito que sofre diante à experiência psicopatológica.

Quando Merleau-Ponty afirma que “a alucinação não é uma percepção, mas ela vale como realidade” (1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) , p. 458), ele nos desafia a mergulhar no Lebenswelt do alucinado e compreendê-lo. É um mundo cuja existência encontra-se descentrada, ou seja, não se firma nas trocas com o mundo real, uma vez que se encerra na solitária constituição de um mundo fictício.

O normal não desfruta a subjetividade, ele se esquiva dela, ele deveras está no mundo, tem um poder franco e ingênuo sobre o tempo, enquanto o alucinado se beneficia do ser no mundo para talhar-se um ambiente privado no mundo comum e tropeça sempre na transcendência do tempo (Merleau-Ponty, 1945/2006Merleau-Ponty, M. (2006). Estrutura do Comportamento. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942) , p. 459).

Na experiência alucinatória, Septimus perde o horizonte do mundo, e este representa a fonte inesgotável de onde as coisas são retiradas. A estrutura temporal que funda o movimento vivo das experiências do personagem se modifica, uma vez que o mundo real é esquecido ou recalcado e, assim, a ilusão é aceita. Como afirma Campos e Coelho , “a alucinação é a expressão existencial de uma fixação da dinâmica temporal” (2002, p. 22), o que ressalta a importância da síntese temporal como abertura ao mundo em seu horizonte existencial intersubjetivo.

Considerações finais

A intensa vida de Virginia Woolf se reflete em seus textos e na construção de suas histórias. Seus personagens são descritos em meio a situações cotidianas objetivas e corriqueiras, mas fervilham de emoções, sentimentos, pensamentos e conflitos pessoais, que pouco ou nada transparecem do turbilhão vivido subjetivamente. Uma das grandes habilidades de Virginia Woolf reside em mostrar que os simples momentos da vida cotidiana possuem um elevado nível de profundidade, submersos nos espaços remotos da existência, onde a experiência objetiva existe em mútua constituição com a experiência subjetiva, tal como propõe a fenomenologia de Merleau-Ponty.

Woolf demonstra que o tempo transcende as páginas escritas no romance ao reencontrar as experiências vividas na ambiguidade que caracteriza o Lebenswelt por seus personagens na interseção com seu próprio, de maneira sútil e singular.

No decorrer do romance, percebemos que as descrições elaboradas por Virginia Woolf resgatam a vivência do tempo, que atravessa a totalidade da dimensão do ser e é retratada como fundo que sustenta a construção de todos os seus personagens. As badaladas do relógio sinalizam a constante presença do tempo objetivo, como organizador da vida, da mesma maneira que revelam os fios intencionais que conectam os pequenos acontecimentos da história.

O tempo objetivo faz parte de um arco temporal maior do que ele retrata em si mesmo, pois quando as experiências se movimentam na duração e na transitoriedade da vida, elas revelam a vivência subjetiva do tempo que, entranhadas no mundo, constituem-se intersubjetivamente. Assim, os pequenos eventos narrados no momento presente seguem um caminho inverso e abrem as portas para situações passadas emergirem nas lembranças e recordações da memória dos personagens, atreladas às expectativas do que poderia ter acontecido diante da ausência de um futuro que ainda não ocorreu. O tempo vivido dos personagens aparece no romance na interseção entre o tempo objetivo e subjetivo, entre passado, presente e futuro, como movimento de reversibilidade que caracteriza o Lebenswelt tal como descrito por Merleau-Ponty.

Concluímos que é possível identificar o fluxo experiencial do tempo vivido no sentido merleau-pontyano, sobretudo nas histórias de Clarissa e Septimus que ganham maior destaque na obra. Compreender o vivido temporal na narrativa é uma forma de nos aproximarmos da relação que o tempo estabelece entre objetividade e subjetividade, o que se torna possível na obra devido ao uso da autora da técnica narrativa de fluxo de consciência.

Destacamos ainda a literatura, representada neste artigo pela obra de Virginia Woolf, como uma fértil fonte de ilustração da realidade e do mundo sempre ambíguos, como constituintes do Lebenswelt. A arte, representada aqui pelo campo literário, encontra meios de expressar a riqueza da vida e a complexidade humana, problematizando-as no plano do vivido.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2017
  • Aceito
    06 Jan 2020
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