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Icterícia neonatal e deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase

Resumos

A deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase em neonatos pode ser a responsável pela icterícia neonatal. Este comentário científico é decorrente do relato sobre o tema publicado neste fascículo e que preocupa diversos autores de outros países em relação às complicações em neonatos de hiperbilirrubinemia, existindo inclusive proposições de alguns autores em incluir o teste para identificar a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase nos recém-nascidos.

Deficiência de glucosefostato desidrogenase; Ictericia neonatal; Recem-nascido


Glucose-6-phosphate dehydrogenase in newborn babies may be responsible for neonatal jaundice. There is a concern of many authors from other countries in respect to complications in neonates with hyperbilirubinemia; some authors even propose screening for glucose-6-phosphate dehydrogenase deficiency in newborn babies. A scientific report on this subject is published in this issue.

Glucosephosphate dehydrogenase deficiency; Jaundice, neonatal; Infant, newborn


COMENTÁRIOS CIENTÍFICOS SCIENTIFIC COMMENTARIES

Icterícia neonatal e deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase

Amauri Antiquera Leite

Departamento de Análises Clínicas, Faculdade de Ciências Farmacêuticas - UNESP - Araraquara (SP), Brasil

Correspondência Correspondência: Amauri Antiquera Leite Rua Padre Duarte, 989 - Centro 14801-310 - Araraquara (SP), Brasil E-mail: leite.amauri@gmail.com

RESUMO

A deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase em neonatos pode ser a responsável pela icterícia neonatal. Este comentário científico é decorrente do relato sobre o tema publicado neste fascículo e que preocupa diversos autores de outros países em relação às complicações em neonatos de hiperbilirrubinemia, existindo inclusive proposições de alguns autores em incluir o teste para identificar a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase nos recém-nascidos.

Descritores: Deficiência de glucosefostato desidrogenase; Ictericia neonatal; Recem-nascido

ABSTRACT

Glucose-6-phosphate dehydrogenase in newborn babies may be responsible for neonatal jaundice. There is a concern of many authors from other countries in respect to complications in neonates with hyperbilirubinemia; some authors even propose screening for glucose-6-phosphate dehydrogenase deficiency in newborn babies. A scientific report on this subject is published in this issue.

Keywords: Glucosephosphate dehydrogenase deficiency; Jaundice, neonatal; Infant, newborn

O metabolismo do glóbulo vermelho é muito interessante devido a particularidades inerentes desta célula anucleada, que tem como principal função o transporte de oxigênio para os tecidos, contudo, sem consumi-lo. A obtenção de energia calórica se faz pela oxidação da glicose por meio da via anaeróbica, que, apesar de pouco eficiente e pouco produtiva, é suficiente para suprir suas necessidades, principalmente na manutenção de sua forma bicôncava. Para obtenção de energia redutora, o eritrócito precisa desviar 10% da glicose consumida para o ciclo das pentoses fosfato, sendo essa sua única fonte geradora de nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato reduzida (NADPH).

Através do ciclo das pentoses, as enzimas glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) e 6-fosfogliconato desidrogenase (6PGD) reduzem a coenzima nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADP) à NADPH, que será utilizada para a manutenção da glutationa no estado reduzido (GSH), por meio da glutationa redutase. Essa via desempenha importante papel na proteção do glóbulo vermelho frente aos danos provocados pelo estresse oxidativo, que são os responsáveis pela redução da vida média dos eritrócitos.(1-3)

Nos eritrócitos deficientes de G6PD, a diminuição da redução do NADP em NADPH leva a um baixo potencial redutor que interfere na capacidade metabólica oxidativa do organismo, ficando vulnerável a hemólise por não conseguir proteger os grupos sulfidrilas da hemoglobina com formação de corpos de Heinz, com oxidação da membrana do glóbulo, podendo levar a crises hemolíticas de intensidade variável e icterícia neonatal, após ingestão de certas drogas oxidantes, processos infecciosos e oxidativos.(1,4)

A consequência mais grave da deficiência de G6PD é uma acentuada icterícia neonatal, que pode levar a kernicterus. É comum acreditar que a hiperbilirrubinemia é consequência da hemólise, mas, na realidade, o nível de hemoglobina e a contagem de reticulócitos nos lactentes são geralmente normais, e, usando-se técnicas modernas, tem sido demonstrado que existe apenas um modesto e inconsistente encurtamento do tempo de vida dos glóbulos vermelhos, que pode contribuir de forma limitada para a icterícia. A causa principal de icterícia neonatal em lactentes G6PD deficientes é a incapacidade do fígado para conjugar a bilirrubina adequadamente, agravando a bilirrubinemia.(5)

O estudo de Iglessias et al. apresentado nesta revista, demonstra que 3,0% dos recém-nascidos do sexo masculino pesquisados são deficientes de G6PD e um terço apresentou icterícia nas primeiras 48 horas de vida com valores de bilirrubina maiores que 10 mg/dL.(6) O caso mais grave ocorreu com um neonato com deficiência leve de G6PD, mas prolongada e intensa bilirrubinemia, evidenciando outros fatores associados à hemólise, como já abordado anteriormente. Outros estudos também reportam a frequência da deficiência de G6PD variando entre 2% e 3% na população brasileira.(6-11) Estes dados permitem afirmar que possuímos 6 milhões de brasileiros deficientes de G6PD, e se 1% dos neonatos apresentaram episódios de icterícia neonatal de grau variável, associado com deficiência de G6PD, poderíamos dizer que 1,9 milhão dos atuais brasileiros correram risco de icterícia neonatal grave, com risco de kernicterus.

O relatório não oficial mais recente de registros de kernicterus dos Estados Unidos aponta que pelo menos 21% das crianças readmitidas com kernicterus tiveram documentada a deficiência de G6PD.(12)

Estes fatos levam Beutler a fazer uma série de indagações e proposições reflexivas. Todos os recém-nascidos devem ser rastreados? O ser humano e o custo financeiro valem a pena? A análise deve ser limitada a grupos étnicos que são conhecidos por terem altas frequências de gene e, em caso afirmativo, como serão identificados? Ou seria melhor simplesmente monitorar os níveis de bilirrubina de recém-nascidos mais estreitamente, poupando-os assim da tragédia de kernicterus, independentemente das causas?(13)

Recebido: 18/6/2010

Aceito: 8/7/2010

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  • 2. Lukens JN. Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase e deficiências relacionadas que envolvem a via da pentose fosfato e metabolismo da glutationa. In: Lee RG, Bithell TC, Foerster J, Athens JW, Lukens JN. Hematologia clínica de Wintrobe. São Paulo: Manole; 1998. p. 1101-13.
  • 3. McMullin MF. The molecular basis of disorders of red cell enzymes. J Clin Path. 1999;52(4):241-44.
  • 4. Ondei LS, Silveira LM, Leite AA, Souza DR, Pinhel MA, Percário S, et al. Lipid peroxidation and antioxidant capacity of G6PD-deficient patients with A-(202G>A) mutation. Gen Mol Res. 2009;8(4):1345-51.
  • 5. Kaplan M, Hammerman C. Glucose-6-phosphate dehydrogenase deficiency: a hidden risk for kernicterus. Semin Perinatol. 2004; 28(5):356-64.
  • 6. Iglessias MA, Santos RM, Amorin MS, Silva RT, Moreira SS, Barretto OC, Medeiros TM. Deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase eritrocitária em recém-nascidos do sexo masculino e sua relação com a icterícia neonatal. Rev Bras Hematol Hemoter. 2010. No prelo.
  • 7. Leite ER, Lessi JH, Mascarin DB, Leite AA. Pesquisa de deficientes em G6PD nos doadores de sangue da região de Araraquara. Bol Soc Bras Hematol Hemoter. 1996;18(Supl):337.
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  • 12. Johnson LH, Bhutani VK, Brown AK. System-based approach to management of neonatal jaundice and prevention of kernicterus. J Pediatr. 2002;140(4):396-403. Comment in: J Pediatr. 2003; 142 (2):212-3; author reply 214-5. J Pediatr. 2002;141(4):597. J Pediatr. 2002;140(4):385-6. J Pediatr. 2003;142(2):213-4.
  • 13. Beutler E. Glucose-6-phosphate dehydrogenase deficiency: a historical perspective. Blood. 2008;111(1):16-24.
  • Correspondência:
    Amauri Antiquera Leite
    Rua Padre Duarte, 989 - Centro
    14801-310 - Araraquara (SP), Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Recebido
      18 Jun 2010
    • Aceito
      08 Jul 2010
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