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Condicionantes da aprendizagem da matemática: uma revisão sistêmica da literatura

Resumos

Para além da linguagem natural, o ser humano nasce com o sentido inato de número. Temos a capacidade de determinar o número de objetos de uma pequena coleção, de contar e de fazer adições e subtrações simples sem necessidade de instrução direta. Por volta dos dez anos, uma criança compreende cerca de 10.000 palavras e fala a sua língua materna com 95% de precisão. Contudo, por volta dos onze anos, algumas crianças já afirmam não conseguir compreender matemática. Por que essa diferença? Uma razão é que a linguagem falada e o sentido de número são capacidades de sobrevivência, mas a matemática abstrata não o é. Ao discutir os condicionantes do ensino dessa área do conhecimento, este artigo consiste em uma revisão bibliográfica acerca dos problemas do ensino da matemática. Que teia de interações se estabelece no processo ensino-aprendizagem dessa disciplina? Quanto do que se tem dito e escrito a respeito desse processo não passa de preconceito ou mito? Com este artigo, pretende-se contribuir, de algum modo, para a desmistificação e a melhoria no sucesso da disciplina de matemática. Para tanto, é fundamental compreender o enquadramento estruturante da investigação teórica acerca de diferentes abordagens do conceito de aprendizagem e do que poderá estar em causa, especificamente, nas dificuldades da aprendizagem da matemática. Isso significa rever um conjunto de condicionantes internos (funcionamento do cérebro, língua falada e estilo de aprendizagem) e condicionantes externos (fatores socioculturais e estilos de ensino).

Matemática; Estilos de aprendizagem; Fatores socioculturais; Funcionamento do cérebro


In addition to the natural language, human beings hold this intuitive sense of counting. We have the ability to determine the number of objects in a small collection and carry out simple additions and subtractions without direct instruction. By the age of ten, a child understands about 10’000 words and speaks its native language with 95% accuracy. However, by the age of eleven, some children already claim that they do not understand mathematics. Why is that so? One reason is that spoken language and number sense are survival skills but abstract mathematics is not. This article presents a review of literature on the teaching of mathematics. Which web of interactions is established in the teaching-learning process of this subject? How much of what has been said and written about this process is merely a myth? This piece of writing aims at contributing in some way to the demystification and improvement of success in mathematics. It is, therefore, essential to understand the structural framework of theoretical research on the various approaches on the term of learning and specifically on the difficulties in learning mathematics. This implies reviewing a set of internal (brain function, spoken language and learning style) and external constraints (socio-cultural factors and teaching styles).

Mathematics; Learning styles; Socio-cultural factors; Brain function


Introdução

A matemática sempre foi, e continua a ser, uma área fundamental em todos os sistemas de ensino. É uma ciência muito antiga que faz parte do conjunto das matérias escolares há séculos. Assim, é ensinada com caráter obrigatório durante largos anos de escolaridade e tem sido convocada para um importante papel de seleção social. É considerada, ainda, uma linguagem absoluta, um padrão infalível, a chave para o progresso. As outras ciências, que nos têm permitido compreender os mistérios do ser humano, da natureza, do mundo e do universo, alimentam-se, em grande parte, da matemática. Mas a importância desta, para além de vir de longe, vai mais longe.

Nos séculos VI e V a.C., Pitágoras e os pitagóricos, numa conotação mística, consideravam que a natureza possui uma base matemática e que os númerosgovernam o mundo. A Platão atribui-se a afirmação “Deus geometriza sempre” e conta-se que teria colocado em cima das portas da sua academia a frase “Que não entre quem não saiba geometria”. Já Napoleão invocava a matemática para legitimar relações de poder ao afirmar que “os homens são como os algarismos, só têm valor pela sua posição”. Apesar da importância que lhe está associada, a matemática tem sido considerada, também ao longo dos tempos, uma disciplina de difícil aprendizagem.

Um fato é que é tida, por grande número de estudantes, como difícil, que lida com objetos e teorias fortemente abstratas, mais ou menos incompreensíveis. Mas, perguntamos: quanto das opiniões dos alunos é intrínseco à sua real experiência e não apenas fruto de sentidos repetidos de outras vozes, como ecos de ressonância de dizeres que já foram ditos pelos pais, pelos amigos, pelos media e até por professores? Quanto desse discurso não traz subjacente um outro discurso pré-construído que faz parte da sua memória? Os críticos de educação consideram que somente um reduzido número de alunos é realmente incapaz, em termos de desenvolvimento, de lidar com a matemática, sendo que o fraco desempenho nesta área se deveria, principalmente, a um ensino não adequado. Nessa discussão, uma coisa parece certa: os estudantes que são fracos em matemática nos primeiros anos permanecem fracos nos anos mais avançados (SOUSA, 2008SOUSA, David A. How the brain learns mathematics. Thousand Oaks: Corwin, 2008.).

Uma investigação intercultural da aprendizagem da matéria não se pode cingir apenas aos aspetos cognitivos da mesma (compreensão, raciocínio, resolução de problemas...), sendo a análise de fatores externos indispensável na teorização e pesquisa empírica. Durante muito tempo considerou-se o professor como sendo o motor da aprendizagem dos alunos e aquilo que esses aprendiam dependia do que, e como, esse ensinava; como se o ensino e a aprendizagem fossem autônomos, numa relação unidirecional. Hoje, cada vez mais, utiliza-se a expressão processo ensino-aprendizagem numa clara assunção de que a eficiência e eficácia não são alheios à compreensão de como se processa a aprendizagem nos alunos.

Que interações se estabelecem no processo de ensino-aprendizagem da matemática? Que fatores influenciam positiva ou negativamente essa aprendizagem? Esta complexidade de interações que se estabelecem no processo de ensino-aprendizagem tece-se numa grande multiplicidade de fios, de aspectos a considerar. De um modo geral, podem ser tidas em conta várias condicionantes, quer internas ao aluno quer externas. O funcionamento do cérebro, a língua falada e o estilo de aprendizagem podem ser consideradas como importantes condicionantes internas. Os fatores socioculturais e os estilos de ensino são assumidos como condicionantes externas. Os contornos das fronteiras entre esses dois tipos de condicionantes, e das próprias condicionantes em si, não são nítidos nem estanques, pelo contrário, interpenetram-se, constroem-se e desfazem-se contínua e dialeticamente. Esse é o tema deste artigo.

Condicionante interna: funcionamento do cérebro

O que é o conhecimento, como se processa, qual o papel do cérebro e da língua falada na aprendizagem em geral e da matemática, em particular?

Piaget (1954)PIAGET, Jean. The construction of reality in the child.New York: Basic Books, 1954. aborda cientificamente algumas questões da teoria do conhecimento por meio da gênese das estruturas cognitivas do sujeito. Distingue conhecimento formal de conhecimento empírico e, face à questão de onde provêm esses dois tipos de conhecimento, afasta-se das respostas tradicionais, empiristas e racionalistas. Para os empiristas, a origem do conhecimento residia na realidade, sendo a mente do sujeito o receptáculo passivo do objeto de conhecimento. Para os racionalistas, o conhecimento seria inato e a sua evolução seria apenas a atualização de estruturas pré-formadas. Segundo Piaget (1971), que introduziu o termo construtivismo, a construção do conhecimento passa pela interação entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. Nessa concepção, é o sujeito quem, a partir da ação, constrói as suas representações da realidade interagindo com o objeto do conhecimento. Na conceção piagetiana, a aquisição do conhecimento só ocorre mediante a consolidação de estruturas do pensamento que passam por quatro estádios: sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal.

Apesar de ter sido introduzido por Piaget, o termo construtivismo, segundo Castañon (2009)CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo social: a ciência sem sujeito e sem mundo. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio e Janeiro, Brasil, 2009. Disponível em: <https://ppglm.files.wordpress.com/2008/12/dissertacao-ppglm-gustavo-arja-castanon.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2012.
https://ppglm.files.wordpress.com/2008/1...
, teve desenvolvimentos em muitas áreas: da matemática à lógica; da psicologia à sociologia; da educação à psicoterapia e à neurociência. As principais correntes contemporâneas que fazem uso desse termo são as seguintes:

  • Construtivismo radical, que parte do pressuposto de que o conhecimento não é mais do que uma construção que fazemos com base nos dados subjetivos da nossa experiência. É defendido por teóricos como Ernest von Glasersfeld, Paul Watzlawick e Heinz von Foester;

  • Construtivismo lógico, mais conhecido comointuicionismo, que é uma abordagem da lógica que surgiu dentro da filosofia da matemática, sendo o seu principal proponente Luitzen Brouwer. Em matemática, o construtivismo defende que os objetos matemáticos são construções mentais que ocorrem numa forma de pensamento prelinguística;

  • Construcionismo social (não construtivismo social), cuja principal referência teórica está em Kenneth Gergen. Baseia-se em três pressupostos: a realidade é dinâmica, não possuindo qualquer essência ou leis imutáveis; o conhecimento é apenas uma construção social baseado em comunidades linguísticas; o conhecimento tem consequências sociais e são estas que devem determinar se ele é válido ou não;

  • Sócioconstrutivismo ou construtivismosocial, uma abordagem desenvolvida a partir do trabalho de Lev Vygotsky, que procurou explicar o desenvolvimento humano como desenvolvimento social da criança com o pressuposto de que o conhecimento é uma produção social feita por meio de sistemas e estratégias sociais de mediação-representação. As funções psicológicas superiores são fruto do desenvolvimento cultural, não do biológico.

A teoria piagetiana dos estádios de desenvolvimento influenciou muitas das concepções a respeito do ensino-aprendizagem da matemática, nomeadamente a ideia de que uma criança que não tendo ainda atingido o estádio sensório-motor não possuirá estruturas cognitivas que lhe permitam, por exemplo, perceber a permanência dos objetos. Segundo Devlin (2000)DEVLIN, Keith. The math gene: how mathematical thinking evolved and why numbers are like gossip. New York: Basic Books, 2000., referido porAraújo (2006)ARAÚJO, Luísa. Piagetianos e vygotskianos: mitos pedagógicos e práticas promissoras. In: CRATO, Nuno (Coord.). Desastre no ensino da matemática: como recuperar o tempo perdido. Lisboa: Gradiva, 2006. p. 179-190., essa ideia caiu por terra quando experiências com bebês de poucos meses mostraram que eles tinham “não só o conceito de permanência dos objetos, como compreendiam noções básicas sobre números expressos como quantidades de objetos”.

O sentido de número consiste, de acordo com Devlin (2000)DEVLIN, Keith. The math gene: how mathematical thinking evolved and why numbers are like gossip. New York: Basic Books, 2000., na capacidade de comparar os tamanhos de dois conjuntos mostrados simultaneamente e a capacidade de nos lembrarmos de números de objetos apresentados sucessivamente no tempo. Considerar que o sentido de número é inato não significa, necessariamente, que todos nós podemos tornar-nos grandes matemáticos, mas sim que podemos, potencialmente, ser muito melhores em aritmética e matemática do que aquilo que pensamos. Recentes pesquisas acerca do sentido de número têm vindo a minar a teoria de Piaget (SOUSA, 2008SOUSA, David A. How the brain learns mathematics. Thousand Oaks: Corwin, 2008.).

Uma outra consequência da teoria piagetiana, relacionada com o sentido da conservação do número, foi a crença, que se instalou na forma de ensinar matemática nos primeiros anos de escolaridade, de que contar e aprender a decorar números não seriam ações importantes, nem necessárias, para a construção do conceito de quantidade numérica. Para Piaget (1954)PIAGET, Jean. The construction of reality in the child.New York: Basic Books, 1954., esse conceito só se desenvolveria a partir do raciocínio lógico, entre os quatro e os seis, sete anos de idade, depois de adquirida a noção da conservação do número (BUTTERWORTH, 1999BUTTERWORTH, Brian. What counts: how every brain is hardwired for math. New York: The Free Press, 1999. apud ARAÚJO, 2006ARAÚJO, Luísa. Piagetianos e vygotskianos: mitos pedagógicos e práticas promissoras. In: CRATO, Nuno (Coord.). Desastre no ensino da matemática: como recuperar o tempo perdido. Lisboa: Gradiva, 2006. p. 179-190.).

Essa ideia foi contrariada por uma experiência, realizada por Mehler; Bever (1969), em que utilizaram smarties ouM&Ms e disseram às crianças para escolherem uma das colunas. Por vezes, a coluna de quatro smarties era mais espaçada que a de seis, outras vezes a de seis era mais espaçada que a de quatro e outras vezes as duas colunas tinham o mesmo comprimento. Em todas as condições, mesmo crianças com apenas dois anos escolheram sempre a coluna com maissmarties (ARAÚJO, 2006)ARAÚJO, Luísa. Piagetianos e vygotskianos: mitos pedagógicos e práticas promissoras. In: CRATO, Nuno (Coord.). Desastre no ensino da matemática: como recuperar o tempo perdido. Lisboa: Gradiva, 2006. p. 179-190..

Crato (2006)CRATO, Nuno (Coord.). Desastre no ensino da matemática:como recuperar o tempo perdido. Lisboa: Gradiva, 2006. refere que o prestígio de Piaget (e, em menor escala, de Kohlberg) permitiu que gerações de professores fossem ensinadas a limitar as suas expectativas e ambições face aos seus alunos, de acordo com aquilo que a investigação psicológica supostamente admitia ser possível em cada idade ou estádio de desenvolvimento.

O neurologista Castro-Caldas (2006)CASTRO-CALDAS, Alexandre. Os processos neurobiológicos subjacentes ao conhecimento da matemática. In: CRATO, Nuno (Coord.). Desastre no ensino da matemática: como recuperar o tempo perdido. Lisboa: Gradiva, 2006. p. 196-201. considera que memorização e compreensão são funções complementares e não antagônicas. Entende que do ponto de vista biológico o treino da memória gera mais neurônios e mais ligações entre os neurônios e, por isso, ganha em potencial, referindo que:

[...] aprender de cor os nomes dos afluentes de um rio, por exemplo, gera internamente uma memória abstrata de que os rios têm afluentes, o que facilita a aprendizagem de afluentes de novos rios, podendo ser esta noção generalizada para as estradas e para os caminhos e até para o conhecimento das artérias e veias do organismo. Pode--se considerar que estes processos de memorização geram matrizes complexas destinadas à identificação por analogia, que constitui a forma mais rápida de processar informação no contexto dos mecanismos adaptativos. Quanto mais perfeitas e variadas forem as matrizes de que dispomos mais eficaz será o reconhecimento e o processamento abstrato da informação (CASTRO-CALDAS, 2006CASTRO-CALDAS, Alexandre. Os processos neurobiológicos subjacentes ao conhecimento da matemática. In: CRATO, Nuno (Coord.). Desastre no ensino da matemática: como recuperar o tempo perdido. Lisboa: Gradiva, 2006. p. 196-201., p. 196).

Alerta, contudo, que aprender significa contrariar a rotina da repetição e, como tal, é fator de sobressalto e reação.

A neurociência tem dado grandes e recentes passos que têm influenciado e mudado a qualidade e quantidade de informações a respeito do cérebro. Com as modernas tecnologias médicas, a observação do cérebro em atividade tornou-se possível, o que permitiu alargar, substancialmente, o conhecimento acerca da forma como esse processa conceitos matemáticos. Não se sabe quando e como o ser humano desenvolveu a capacidade de contar, para além da sequência inata de um, dois, muitos...

Segundo Sousa (2008)SOUSA, David A. How the brain learns mathematics. Thousand Oaks: Corwin, 2008., talvez tenha começado do modo como ainda hoje as crianças o fazem, usando os seus dedos. Por um lado, o nosso sistema de numeração de base dez indicia que o processo de contagem possa estar ligado à enumeração dos dedos, por outro, a palavra oriunda do latim,digit, era usada quer com o significado de numeral quer de dedo. Scans do cérebro dão suporte à ideia da conexão número-dedo. Quando estamos fazendo aritmética básica, a maior atividade cerebral situa-se no lobo parietal esquerdo e na região do córtex motor que controla os dedos (DEHAENE et al., 2004DEHAENE, Stanislas et al. Arithmetic and the brain. Current Opinion in Neurobiology, v. 14, n. 2, p. 218–224, Apr. 2004.). Alguns investigadores especulam que os antepassados humanos usaram os dedos nas suas primeiras experiências com números. Posteriormente, a região do cérebro que controla os dedos era a área onde a atividade aritmética mais abstrata estaria localizada nos seus descendentes (DEVLIN, 2000DEVLIN, Keith. The math gene: how mathematical thinking evolved and why numbers are like gossip. New York: Basic Books, 2000.).

Condicionante interna: língua falada

A linguagem é um atributo exclusivo do ser humano. Assume uma importância fundamental na nossa experiência e, consequentemente, no nosso conhecimento. Será a linguagem um mero instrumento de expressão dos nossos pensamentos ou o seu molde? As pessoas pensam de maneira diferente apenas porque falam línguas distintas? A aprendizagem de novas línguas modifica a nossa maneira de pensar?

Estudos de imagens do cérebro revelam que os falantes de língua materna chinesa processam a manipulação aritmética em áreas do cérebro diferentes dos falantes de língua materna inglesa. Os investigadores especulam que o código biológico dos números pode diferir nessas culturas, porque as suas linguagens são escritas de modo muito distindo, o que resultaria em experiências de leitura visual diferentes.

Por outro lado, Hans; Ginsburg (2001)HANS, Yi; GINSBURG, Herbert. Chinese and English mathematics language: the relationship between linguistic clarity and mathematics performance. Mathematical Thinking and Learning, v. 3, n. 2-3, p. 201-220, 2001. referem que a linguagem assume um papel essencial na aprendizagem da matemática, já que é por seu intermédio que são expressas ideias e definidos conceitos matemáticos, assim como são facilitadas as conexões entre diferentes representações matemáticas. Contudo, o poder da língua, enquanto ferramenta cognitiva, pode variar, sendo a língua chinesa um bom exemplo como facilitadora da aprendizagem matemática.

O sistema de dizer os números nas línguas ocidentais traz mais problemas à aprendizagem das crianças relativamente à contagem do que para as crianças asiáticas. Nos sistemas ocidentais é mais difícil reter os números na memória de curto prazo, pois faz com que a aprendizagem da contagem e apreensão do conceito de base dez seja mais difícil, retardando o cálculo.

Segundo Sousa (2008)SOUSA, David A. How the brain learns mathematics. Thousand Oaks: Corwin, 2008., quando tentamos lembrar de uma lista de números, dizendo-os em voz alta, usamos um laço de memória verbal, uma parte da memória imediata que consegue reter informação durante apenas dois segundos. Assim, a extensão da nossa memória fica limitada por quantas palavras conseguimos dizer em menos de dois segundos. O nome dos números chineses é muito mais curto do que o da maioria das línguas ocidentais. A maior parte deles pode ser recitado em menos de um quarto de segundo enquanto pronunciá-los em inglês demora cerca de um terço de segundo. Para se ter uma ideia, os falantes de cantonês têm uma extensão de memória para números de cerca de dez dígitos por oposição aos sete nos falantes de línguas ocidentais, o que facilitaria a memorização para os primeiros. Por outro lado, e ao contrário das línguas ocidentais, as línguas chinesa e japonesa têm uma sintaxe dos números que facilita a aprendizagem e a memorização, pois reflete perfeitamente a estrutura decimal. Em chinês usam-se apenas onze palavras para contar de um a cem. Já em português (ou inglês) usam-se vinte e oito.

No sistema chinês, o nome dos dez primeiros números é completamente arbitrário, tal como noutras línguas, mas, a partir do dez, diz-se dez um, dez dois [...]; a partir do vinte diz-se dois dez, dois dez um, dois dez dois [...], a partir do trinta diz-se três dez, três dez um, três dez dois e assim sucessivamente até chegar ao cem, a partir do qual se retoma a lógica de decomposição do número (ver Tabela 1).

Tabela 1
– Comparação de números português versuschinês

Como resultado, e de um modo geral, as crianças asiáticas aprendem a contar mais cedo e melhor que os seus pares ocidentais (por volta dos quatro anos, as crianças chinesas conseguem, na generalidade, contar até quarenta, enquanto as crianças ocidentais da mesma idade mal chegam a 15). Além disso, conseguem realizar adições e subtrações simples mais cedo também (rapidamente percebem que 32, três dez dois, adicionado a 27, dois dez sete, é 59, cinco dez nove).

Para além desses aspectos relacionados com a contagem e as operações com números, outras questões se tornam mais compreensíveis para os alunos falantes da língua chinesa. As línguas ocidentais integram muitas palavras de origem grega ou latina, de interpretação não imediata como, por exemplo, a palavra portuguesa hexágono que contém dois elementos vindos do grego, hex, que significa seis e gonia, que significa ângulo. Já na língua chinesa, os carateres figura de seis lados. Numa pesquisa nos glossários de livros didáticos de matemática escritos em inglês, realizada por Milligan; Milligan (1983)MILLIGAN, Constance; MILLIGAN, Jerry. A linguistic approach to learning mathematics vocabulary. Mathematics Teacher, v. 76, n. 7, p. 488–497, oct. 1983., constatou-se que 83% dos termos continham elementos de palavras gregas ou latinas. Pelo contrário, a maioria dos termos matemáticos chineses são de natureza descritiva e conceitualmente claros, com um registro concreto e visual (HAN; GINSBURG, 2001)HANS, Yi; GINSBURG, Herbert. Chinese and English mathematics language: the relationship between linguistic clarity and mathematics performance. Mathematical Thinking and Learning, v. 3, n. 2-3, p. 201-220, 2001.. significam

Figura 1
– Diagrama de estilos de aprendizagem de kolb. De acordo com esta teoria, todos os alunos, independentemente do seu estilo de aprendizagem, podem adquirir o mesmo grau de proficiência por meio de metodologias e processos de treino adequados.

Condicionante interna: estilos de aprendizagem

Várias teorias têm sido desenvolvidas para descrever as diferenças observadas na abordagem da aprendizagem dos estudantes, dentre as quais se destacam a teoria das inteligências múltiplas de Gardner (1993)GARDNER, Howard. Multiple intelligences: the theory in practice. New York: Basic Books, 1993. e os estilos de aprendizagem de Kolb (1981)KOLB, David. Learning styles and disciplinary differences. In: CHICKERING, Arthur (Ed.). The modern American college. San Francisco: Jossey-Bass, 1981..

Howard Gardner iniciou, nos anos 70, uma investigação a respeito do desenvolvimento e neuropsicologia que culminou, em 1980, na teoria das inteligências múltiplas, pondo fim à ideia, até então aceita, da existência de uma inteligência geral e única. Esta teoria, segundo a qual há diferentes capacidades humanas, comuns em todas as culturas, que vão desde a inteligência musical à inteligência que envolve a compreensão de si próprio, foi objeto da obra de sua autoria, Frames of mind: the theory of multiple intelligences, publicada em 1983. Gardner defende a existência de oito inteligências efetivamente comprovadas: 1) inteligência linguística ou verbal; 2) a lógico matemática; 3) a espacial; 4) a musical; 5) a cinestésica corporal; 6) a naturalista; 7) a intrapessoal; e 8) a interpessoal. Há, ainda, uma nona, a inteligência existencial, que ainda depende de maior aprofundamento e revisão para ser acrescentada às oito já aceitas. Para que uma competência manifestada num indivíduo possa ser considerada como uma inteligência, Gardner aponta oito sinais ou critérios que, na visão do autor, são essenciais:

  1. Identificação da inteligência e respectiva morada por lesão cerebral;

  2. Existência de idiots savants que revelam grandes limitações em certos níveis de inteligência e excecionalidade em outras, o que permite caracterizá-las isoladamente;

  3. Revelação da inteligência por estímulo ocasional;

  4. Suscetibilidade à modificação da inteligência por treinamento;

  5. Presença da inteligência na história evolutiva da humanidade;

  6. Ser passível de exames específicos que permitam que a autonomia de uma inteligência possa ser investigada;

  7. Constatação da inteligência por meio de exames psicométricos; e

  8. Existência de um sistema simbólico específico que identifique o isolamento dessa inteligência.

Um outro modelo de estilo de aprendizagem foi desenvolvido por David Kolb na década de 80. Kolb (1981KOLB, David. Learning styles and disciplinary differences. In: CHICKERING, Arthur (Ed.). The modern American college. San Francisco: Jossey-Bass, 1981., 1984KOLB, David. Experiential learning: experience as the source of learning and development. New Jersey: Prentice-Hall, 1984.) considera que a interação entre a experiência concreta e a conceitualização teórica faz da aprendizagem um processo cíclico, constituído por quatro etapas: experiência concreta; observação reflexiva; conceitualização abstrata e experiência ativa. Essas etapas estão presentes, de modo diferente, em quatro estilos de aprendizagem, baseados nas dicotomias ativo/reflexivo e abstrato/concreto, como a seguir se descreve:

  • Convergente (pensar e fazer): em que predominam a conceitualização abstrata e a experiência ativa. É o estilo característico de quem é mais atraído para tarefas técnicas e para a resolução de problemas ao invés de questões interpessoais ou sociais e com maior qualificação na aplicação prática de ideias;

  • Divergente (sentir e observar): predomina a experiência concreta e a observação reflexiva. Característico de quem é sensitivo, de quem prefere observar a fazer, tendendo a obter informação e usar a imaginação para resolver problemas, de quem é imaginativo e emocional e se interessa por pessoas, por trabalhar em grupo. Reage bem aobrainstorming, contribuindo para um melhor desempenho. Associado a pessoas ligadas às artes e às ciências humanas;

  • Assimilador (pensar e observar): a conceitualização abstrata e a observação reflexiva são as dominantes neste estilo de aprendizagem, fazendo com que quem nele se enquadra tenda a ser mais interessado em ideias abstratas e não em pessoas. Compreender e criar modelos é uma das suas maiores forças. Indivíduos que trabalham em matemática tendem a ter este estilo de aprendizagem, assim como aqueles cujo trabalho envolve planejamento e pesquisa;

  • Acomodador (sentir e fazer): pessoas com esse estilo de aprendizagem são mais fortes na experiência concreta e na experiência ativa e confiam mais na intuição do que na lógica. Confiam na informação dada por outros em detrimento das suas próprias análises, preferindo uma abordagem prática e experimental e de tentativa e erro na resolução de problemas. São os mais propensos a correr riscos.

A figura seguinte ilustra a ligação entre o ciclo de aprendizagem e os estilos de aprendizagem.

Lilienfeld et al. (2010)LILIENFELD, Scott O. et al. Os 50 maiores mitos populares da psicologia: derrubando famosos equívocos sobre o comportamento humano. São Paulo: Gente, 2010. alertam para o erro em que se poderá incorrer se se limitar o insucesso dos alunos ao fato de os professores não se ajustarem adequadamente ao estilo de aprendizagem do aluno e não se tiver em conta a capacidade de aprender ou a motivação do estudante. Referem, a propósito, um bem-humorado artigo de um satírico jornal norteamericano, The Onion, intitulado “Pais de alunos olfativos exigem currículo baseado no aroma”, no qual é satirizada a ideia de que existe um estilo de ensino para libertar o potencial oculto de todos os estudantes com baixo rendimento escolar.

Consideram que a crença, de que estimular os professores a compatibilizar o seu estilo de ensino com os estilos de aprendizagem dos seus alunos possa melhorar a aprendizagem, não passa de uma lenda urbana da psicologia educacional pois, ao focar o ensino nas capacidades intelectuais mais fortes dos alunos e não em seus pontos fracos, os resultados podem ser o oposto do que se pretende, já que os estudantes precisam corrigir e superar as suas deficiências e não evitá-las. Para além disso, a vida fora da escola nem sempre é compatível com os nossos estilos de aprendizagem preferidos e um bom ensino é aquele que nos prepara para o mundo real.

Condicionante externa: fatores socioculturais

Confúcio elaborou uma doutrina de grande influência na China, razão pela qual este é reconhecido como uma das grandes figuras da cultura chinesa. Os seus ensinamentos tiveram uma influência considerável não só no domínio da educação, como da política, da economia e da cultura, assim como na ética e na moral. De todos os sistemas pedagógicos existentes, esse é, provavelmente, o mais antigo ainda em funcionamento. Com mais de 2500 anos de experiências acumuladas e em pleno processo de aplicação, desenvolvimento e adaptação aos dias atuais, muitas das propostas de Confúcio, ou a ele atribuídas, continuam a ser pertinentes e de grande atualidade.

Associar Confúcio à educação é incontornável e esses vínculos não se cingem ao conceito de educação chinesa tradicional. A sua larga contribuição para o ensino e educação conferiram-lhe um indubitável lugar na história e na cultura. Ora idolatrado, ora execrado, o seu legado influenciou e continua a influenciar o que hoje corresponde a um quinto da população mundial. A influência da sua pedagogia continua percetível nos dias de hoje e os estudiosos questionam-se como as suas ideias resistiram ao tempo. Não serão certamente alheios a essa resposta a validade universal do seu pensamento e ao fato de tocar nas necessidades e nos problemas prementes e permanentes do ser humano.

Muitos observadores ocidentais apontam uma incongruência relativa aos bons resultados na matemática obtidos pelos alunos desses países, uma vez que consideram o seu sistema de ensino e de aprendizagem antiquado e favorável a uma aprendizagem mecanizada e rotineira, não conduzindo ao desenvolvimento de competências superiores. Um sistema de ensino com uma pedagogia centrada no professor, autoritária e com um currículo centralizado e único, que não atende às necessidades educativas diferenciadas e que não propicia a criatividade, por um lado, e, por outro, com estudantes dóceis, obedientes, acríticos, que aprendem por rotinas, com falta de motivação intrínseca, tendo os exames como a sua meta principal (GARDNER, 1989GARDNER, Howard. To open minds: Chinese clues to the dilemma of American education. New York: Basic Books, 1989.). Um sistema de ensino em que, ainda hoje, a educação é uma escada de ascensão social, sendo a admissão às universidades muito competitiva, tal como foi até o início do século XX na China, em que a seleção dos oficiais civis dependia dos competitivos exames imperiais.

Esse “paradoxo do aluno chinês” é, segundo Biggs; Watkins (1996)BIGGS, John; WATKINS, David. Cultural, psychological and contextual influences. Hong Kong: Comparative Education Research Centre, The University of Hong Kong, 1996. p. 69-83., uma incongruência aparente na medida em que existem valores, profundamente enraizados na cultura confuciana e práticas de socialização, que aumentam a receptividade desses alunos para a aprendizagem escolar e que são suscetíveis de induzir a erro os observadores ocidentais. As crianças começam muito cedo a desenvolver crenças a respeito da aprendizagem baseadas na sua cultura e essas crenças norteiam a sua aprendizagem e os resultados que obtêm. Durante séculos, os chineses acreditaram no valor da educação quer para o bem coletivo, quer para o desenvolvimento individual. A grande importância do papel da educação tem não só significado histórico como atual.

Leung (2001)LEUNG, Frederick K.S. In search of an East Asian identity in mathematics education. Educational Studies in Mathematics, v. 47, n. 1, p. 35-51, 2001. sistematizou as seis dicotomias que são usualmente referidas quando se comparam as características da educação matemática asiática e ocidental:

  1. Produto (conteúdos) versus processo: subjacente a esta dicotomia, estão diferentes pontos de vista relativos à matemática. Esta é essencialmente o produto (um corpo de conhecimentos) ou é o processo (um modo próprio de lidar com aspectos particulares da realidade)? Quer os educadores matemáticos ocidentais quer os asiáticos afirmam que ambos os aspectos fazem parte da matemática, mas é a sua posição entre os dois extremos desse continuum que os diferencia. Os acadêmicos ocidentais consideram os seus homólogos asiáticos fora de moda por estarem muito colados aos conteúdos, não seguindo a tendência das últimas décadas de focalizar o ensino-aprendizagem mais no processo do que no conteúdo, nomeadamente por meio de atividades de investigação e de resolução de problemas. Os acadêmicos asiáticos acreditam que os seus homólogos ocidentais vão longe demais na valorização que dão ao processo e reafirmam a importância dos conteúdos no processo de aprendizagem matemática.

  2. Memorização versus aprendizagem significativa: enquanto no ocidente a memorização é associada a uma aprendizagem mecanizada e sem significado, na Ásia é encarada como legítima, por se entender que a aprendizagem é um processo interativo de prática repetida, memorização e compreensão, sendo considerado um ponto de vista demasiado simplista entender a memorização como uma aprendizagem mecanizada.

  3. Estudo árduo versus aprendizagem lúdica: os educadores ocidentais pensam que é importante que os estudantes tenham prazer e se divirtam enquanto aprendem, mas, do ponto de vista asiático a aprendizagem e o estudo implicam necessariamente trabalho árduo, residindo o prazer da aprendizagem, essencialmente, nos resultados alcançados. O autor refere, nesse sentido, à frase afixada na parede de uma escola de Pequim: “a raiz do conhecimento é amarga, os seus frutos são doces”.

  4. Motivação extrínseca versus motivação intrínseca: a motivação intrínseca é muito valorizada no Ocidente e considerada o melhor modo de manter os estudantes interessados em estudar matemática, entendendo-se que a motivação extrínseca, tal como o exame, apenas causa ansiedade e prejudica a aprendizagem. Apesar de na Ásia os educadores não discordarem da importância da motivação intrínseca, os exames têm sido tradicionalmente considerados uma aceitável fonte de motivação para a aprendizagem dos alunos. Consideram ainda que, para além da distinção entre esses dois tipos de motivação não ser clara, podem ser complementares uma à outra.

  5. Ensino numa turma versus ensino individualizado: na perspetiva ocidental, o ensino-aprendizagem individualizado é considerado o modelo ideal e a existência de turmas de alunos é justificada fundamentalmente por razões econômicas ou outras limitações de recursos, enquanto na cultura oriental a educação é entendida principalmente como um processo de socialização sendo as aprendizagens coletivas, em grupo-turma, muito valorizadas. Esta dicotomia de pontos de vista acerca do papel do professor leva a entendimentos diferentes nas duas culturas. Assim, no ocidente, o professor terá como principal função atender às necessidades individuais dos estudantes pelo que, de acordo com essa premissa, os programas e ações individualizados são a forma ideal de ensinar e aprender, em turmas o mais reduzidas possível.

Já nas culturas orientais, o papel do professor como modelo é essencial, pelo que ensinar e aprender num grupo-turma faz todo o sentido sendo a dimensão da mesma um fator não limitativo. Nessa perspetiva, na China, e em geral nas sociedades de cultura oriental, não é a dimensão do grupo-turma que faz a diferença na qualidade do processo ensino-apredizagem, mas sim a qualificação do professor e a forma como ele conduz esse processo.

Leung (2001)LEUNG, Frederick K.S. In search of an East Asian identity in mathematics education. Educational Studies in Mathematics, v. 47, n. 1, p. 35-51, 2001. considera que muitos programas de aprendizagem individualizados simplesmente degeneram, a maior parte de tempo, em interações do estudante com os materiais de aprendizagem (nomeadamente tecnológicos) mais do que com o professor, perdendo, assim, o estudante a oportunidade de discutir/observar/ouvir o professor, ou seja, de aprender tendo o professor como modelo.

  1. Competência científica dos professores versus pedagogia: a explosão do conhecimento e o fácil acesso à informação por meio da Internet contribuíram para a crença de que o professor não poderá competir com esse potencial de conhecimento, minimizando a sua importância no processo ensino-aprendizagem. O professor é, cada vez menos, a fonte de conhecimento, limitando-se a conduzir os estudantes ao conhecimento. É um facilitador da aprendizagem, ajudando-os a aprender a aprender, mesmo quando se trate de assuntos que o próprio professor não domina e às vezes nem conhece. Isso explica que a preocupação principal tenha se deslocado para a competência pedagógica, mais do que para a competência científica. Segundo Leung (2001)LEUNG, Frederick K.S. In search of an East Asian identity in mathematics education. Educational Studies in Mathematics, v. 47, n. 1, p. 35-51, 2001., isso acontece nos países ocidentais com os professores da matemática do ensino básico. Ao contrário, a imagem do professor de matemática nos países asiáticos é ainda a do expert. Essa imagem do professor erudito (scholar teacher) está profundamente enraizada na cultura confucionista e ainda influencia bastante nos dias de hoje a educação nesses países. Um ditado chinês diz que “um professor precisa de ter um balde de água antes de ser capaz de dar aos estudantes uma tigela de água”. Isto implica, no ensino da matemática, que, apesar de a pedagogia ser um fator fundamental no processo ensino-aprendizagem, um bom domínio das matérias em estudo é ainda mais importante.

Nessa perspetiva o professor tem, antes de mais nada, ser um scholare só depois um facilitador de aprendizagem. A dicotomia conteúdo programático/pedagogia aponta, assim, para diferentes visões do papel do professor. Embora em ambas as culturas se considere a competência científica do professor muito importante, nos países chamados asiáticos essa assunção vai mais longe, ao ponto de se considerar não ser possível ser um facilitador da aprendizagem sem se ser umscholar.

Essa posição considera mesmo que sem um sólido conhecimento de matemática avançada é difícil para um professor ensinar bem, mesmo a alunos de nível elementar. Ma (1999)MA, Liping. Knowing and teaching elementary mathematics: teachers’ understanding of fundamental mathematics in China and the United States. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1999. vai ainda mais longe ao afirmar que sem esse conhecimento de matemática avançada não é possível sequer, ainda que no ensino elementar, convocar a pedagogia apropriada. Queirós (1945), na sua corrosiva, mas conspícua receita sobre o ensino, afirmava que para ensinar há uma formalidadezinha a cumprir: saber. Essas singularidades, que decorrem das variáveis culturais no processo de aprendizagem e da sua incorreta interpretação, ao serem analisadas por referência a universos culturais diferentes podem levar a generalizações abusivas e à construção de expectativas sobre os resultados que acabam por não se verificar.

Condicionante externo: estilos de ensino

Ponte (1992)PONTE, João Pedro. O desenvolvimento profissional do professor de Matemática. Educação e Matemática, n. 31, p. 9-12, 1992. refere que o saber matemático assenta em quatro características fundamentais – a formalização, segundo uma lógica bem definida; a verificabilidade, que permite estabelecer consensos acerca da validade de cada resultado; a universalidade, isto é, o seu caráter transcultural e a possibilidade de o aplicar aos mais diversos fenômenos e situações e a generatividade, ou seja, a possibilidade de levar à descoberta de coisas novas e desdobra-se em quatro elementos constitutivos, de acordo com a sua função e nível de complexidade – competências elementares (que implicam processos de simples memorização e execução); competências intermédias (que implicam processos com certo grau de complexidade, mas não exigem muita criatividade); competências complexas (que implicam uma capacidade significativa de lidar com situações novas); e saberes de ordem geral (que incluem os meta saberes, ou seja, saberes com influência nos próprios saberes). O desenvolvimento do saber matemático assenta na ação (manipulação de objetos e de representações numérica, gráfica e algébrica) e na reflexão (pensar sobre a ação, estimulada pelo esforço de explicação e pela discussão). Ponte (1992)PONTE, João Pedro. O desenvolvimento profissional do professor de Matemática. Educação e Matemática, n. 31, p. 9-12, 1992. considera ainda que o substrato conceitual joga um papel determinante no pensamento e na ação e, consequentemente, na prática do professor.

Os estilos de ensino chamados tradicionais são aqueles cujas metodologias e avaliação utilizadas tendem a dar primazia à transmissão de conhecimento do professor para o aluno devendo este, por sua vez, estar apto a reproduzir o que lhe foi transmitido, transformando a aprendizagem num processo mecanicista, em que, tendencialmente, o aluno não é solicitado a pensar nem a desenvolver pensamento independente e criativo. Não há lugar ao pensar a respeito da ação, à reflexão.

Esse método de ensino encontra-se centrado nos conteúdos e o aluno assume um papel passivo, preocupado apenas em memorizar conteúdos e recuperá-los quando solicitados em práticas igualmente tradicionais de avaliação, como testes e fichas de avaliação. É o método de ensino a que Freire (1970)FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.chamou de conceção bancária da educação, em que o professor faz depósitos que os educandos recebem pacientemente, memorizam e repetem, sendo que a única margem de ação que se oferece aos alunos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. A mobilização dos saberes de ordem geral, dos meta saberes, praticamente não acontece. Acredita-se que essas características ocasionam um ensino descontextualizado, refletindo-se na não inserção do aluno na sociedade como um agente crítico e participativo.

No contexto das práticas didáticas dos professores – aquelas que se desenrolam no espaço da sala de aula – as práticas discursivas, pela transversalidade da linguagem na atividade humana, são uma dimensão importante. Se a prática do professor na sala de aula reflete o seu estilo de ensino, o seu discurso é, também, revelador do seu posicionamento nas questões centrais do ensino da matemática, anteriormente mencionadas. Nas Normas Profissionais para o Ensino da Matemática, doNational Council of Teachers of Mathematics, NCTM, (1994)NCTM. Normas profissionais para o ensino da matemática. Lisboa: APM: IIE, 1994. afirma-se que:

[...] o discurso na aula de Matemática reflete o que significa saber Matemática, o que torna algo verdadeiro ou razoável e o que implica fazer Matemática; é portanto de importância central quer a respeito do que os alunos aprendem acerca de Matemática, quer a respeito de como aprendem.

Ernest (1988), referido por Thompson (1992)THOMPSON, Alba G. Teachers beliefs and conceptions: a synthesis of the research. In: GROUWS, Douglas (Ed.). Handbook of research in mathematics teaching and learning. New York: Macmillan: 1992. p. 127-146., com base num trabalho empírico, destaca três elementos capazes de influenciar as práticas dos professores: (1) Os sistemas de crenças do professor sobre a matemática e sobre o seu ensino e aprendizagem; (2) O contexto social onde ocorre o ensino, particularmente os obstáculos e as oportunidades que cria; (3) O nível de pensamento e reflexão do professor.

Quanto às crenças sobre a matemática, Thompson (1992)THOMPSON, Alba G. Teachers beliefs and conceptions: a synthesis of the research. In: GROUWS, Douglas (Ed.). Handbook of research in mathematics teaching and learning. New York: Macmillan: 1992. p. 127-146. argumenta que não se trata de uma relação simples de causa-efeito, mas de uma relação dialética, bastante complexa e de contornos pouco definidos. Por sua vez, Ernest (1988) considera as seguintes tipologias de crenças, relativamente à forma como a matemática pode ser entendida:

  1. Uma caixa de ferramentas (visão utilitarista), sendo o conhecimento matemático um conjunto de fatos, não necessariamente relacionados, e que serve o desenvolvimento de outras ciências e técnicas;

  2. Um corpo estático e unificado de conhecimentos (visão platónica), o que implica que apenas se possa descobrir e não criar;

  3. Um campo aberto de criação humana que se expande continuamente dando origem a modelos e procedimentos (perspetiva de resolução de problemas).

Thompson (1992)THOMPSON, Alba G. Teachers beliefs and conceptions: a synthesis of the research. In: GROUWS, Douglas (Ed.). Handbook of research in mathematics teaching and learning. New York: Macmillan: 1992. p. 127-146. coloca que Chacón sistematiza o papel do professor na sala de aula, de acordo com cada uma dessas visões. Assim, um professor instrumentalista terá um método de ensino prescritivo, enfatizando regras e procedimentos; um platônico irá dar ênfase ao significado dos conceitos e da lógica dos procedimentos matemáticos; e um professor que esteja na linha da resolução de problemas dará grande peso às atividades que levem os alunos a interessar-se pelos processos geradores da matemática. O papel e a intervenção do professor assumem peso crescente, sendo no primeiro caso apenas um instrutor e no último um facilitador ou mediador na construção do conhecimento matemático dos alunos.

Independentemente das conexões que se possam estabelecer entre o estilo de ensino e o sucesso na aprendizagem dos alunos, o papel do professor é incontornável. A importância do professor é sublinhada nas já referidas NCTM quando se afirma que os professores são os principais protagonistas da mudança dos processos pelos quais a matemática é ensinada e aprendida nas escolas. Aí é, ainda, referido que as crenças e as conceções dos professores – e dos alunos – constituem obstáculos que se opõem a mudanças significativas no ensino e aprendizagem da matemática nas escolas.

Última consideração

A natureza singular do ser humano, por um lado, e a sua vertente cultural, por outro, não permitem que o processo ensino-aprendizagem possa ser linear e liminarmente modelado. Impõe-se uma visão holística desse processo e consequente abordagem sistêmica. Nenhuma das condicionantes anteriormente referidas é, per si, fator absoluto de sucesso ou de insucesso. O que resulta bem numas situações pode ter efeitos desastrosos noutras. É essencial pensar e agir fora do quadrado. Sem preconceitos e ideias feitas. A complexa arquitetura das aprendizagens obriga a um design em permanente adaptação; ao desenho e redesenho contínuo de modos, métodos, estilos... numa procura incessante do comprometimento do professor com a aprendizagem dos alunos. Que design de ensino melhor serve essa arquitetura é uma busca incessante... Uma coisa parece certa – a melhoria do ensino da matemática implica, necessariamente, a não sobrevalorização de uma linha metodológica única. Pelo contrário, terá de envolver um processo de diversificação metodológica, assente numa coerente fundamentação psicossocial.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2013
  • Aceito
    15 Abr 2014
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