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A escola republicana francesa frente às exigências da lógica econômica: qual democracia? Entrevista com André D. Robert

French republican schools against economic logic constraints: which democracy? Interview with André D. Robert

Resumo

De um ponto de vista sociohistórico, é possível apreender as relações de correspondência existentes entre sistema econômico, Estado e escola. É a partir dessa perspectiva que André D. Robert, professor livre-docente da Universidade Lumière Lyon 2, empreende uma análise acerca do sistema escolar francês entre 1945 e 2014. A pergunta norteadora diz respeito à democratização em termos quantitativos e qualitativos. Ambição primeira do ideal republicano de escola, teria ela se tornado uma realidade efetiva no sistema escolar francês? Na entrevista, Robert recorre ao conceito de autonomia relativa para registrar a crescente submissão da escola à economia, nuançada pelo complexo jogo social dos atores envolvidos na definição e implementação das políticas escolares. Apresentando uma tipologia da escola francesa no período das sete últimas décadas, ele avalia o efeito de sucessivas reformas na função da escola na sociedade. Igualmente importantes são as considerações a respeito do papel da instituição escolar na contemporaneidade: estaria a educação duravelmente capturada pelo neoliberalismo? Observando uma reversão parcial nas políticas de desrresponsabilização estatal na administração François Hollande, Robert conclui pela existência, hoje, de uma escola a meio caminho entre os valores e práticas herdados da tradição republicana e as adaptações às exigências contemporâneas da lógica econômica. Um de seus observáveis é a emergência de uma democracia segregativa. Embora o acesso à escola seja cada vez menos dependente de variáveis como origem social, sexo, nacionalidade ou região geográfica, a hierarquia de distribuição dos alunos entre os cursos e oportunidades de ensino mais ou menos prestigiosas se encontra fortemente marcada pela origem social, característica que vem se acentuando nas primeiras décadas do século 21.

Reforma escolar; Escola republicana; Neoliberalismo; Democratização escolar

Abstract

From a sociohistorical point of view, one can understand correspondence relations between the economic system, state and school. It is from this perspective that André D. Robert, associate professor at the University Lumière Lyon 2, undertakes an analysis of the French school system between 1945 and 2014. The guiding question concerns the democratization in quantitative and qualitative terms. First ambition of the republican school model, has democracy become an effective reality in the French school system? In the interview, Robert uses the concept of relative autonomy to record the growing submission from school to economy, nuanced by the complex social game played by the actors involved in the definition and implementation of school policies. Featuring a French school typology of the last seven decades, the author evaluates the effect of successive reforms in the school’s role in society. Equally important are the considerations about the role of the school in contemporary society: has education been lastingly captured by neoliberalism? Observing a partial reversal in the lack of state accountability during François Hollande’s presidency, Robert concludes for the existence of a school model halfway between the values and practices inherited from the republican tradition and the adaptation to contemporary requirements of economic logic. One of his observables is the emergence of a segregative democracy. Although access to education is increasingly less dependent on variables such as social origin, gender, nationality or geographic region, the hierarchy of the distribution of students between courses and learning opportunities more or less prestigious is strongly marked by social origin, which has been increasing in the first decades of the 21st century.

School reform; Republican school; Neoliberalism; School democratization

Apresentação


Crédito da foto: Ravena Olinda (doutoranda em filosofia na Universidade de São Paulo)

Desde 1998, André D. Robert é professor livre-docente da Universidade Lumière Lyon 2, em Lyon, França. É afiliado ao Institut des Sciences et Pratiques d’Éducation et de Formation (ISPEF), organização cujas origens remontam ao curso de ciências da educação da Faculté des Lettres de Lyon, um dos mais antigos da França, criado em 1884. No ISPEF, fundou em 2010 o laboratório de pesquisa Education, Cultures, Politiques, que conduziu durante dois anos. Dirige desde 2007 a école doctorale EPIC (Educação, Psicologia, Informação e Comunicação), que possui cerca de quatrocentos alunos de doutorado e dezenas de pesquisadores convidados – muitos dos quais brasileiros, chegados à França para períodos de doutorado-sanduíche, pós-doutorado e dupla titulação. Dos diversos convênios de cooperação existentes entre instituições brasileiras e o ISPEF de Lyon 2, muitos se concretizaram graças ao empenho pessoal do professor Robert. Em âmbito nacional, ocupou de 2011 a 2015 a presidência da seção de ciências da educação no Conseil National des Universités1 1 - Organismo ligado ao Ministério da Educação da França, que tem por função regular as carreiras dos docentes de ensino superior, pronunciando-se sobre questões relativas à qualificação, ao recrutamento e à promoção na carreira. .

Sua área-base de formação, a filosofia, disciplina que lecionou por duas décadas em diversos lycées2 2 - Estabelecimentos do ensino secundário que conduzem ao bacharelado. A faixa etária presumida é de 16 a 18 anos. franceses, foi pouco a pouco dando lugar a abordagens sociohistóricas em sua trajetória de pesquisa. Seus principais trabalhos investigam políticas públicas em educação e o sindicalismo docente, com foco nas interações entre esses dois domínios. Nascem, assim, análises políticas dos sistemas educativos, estudos dos processos de tomada de decisão em políticas públicas de educação, reformas educacionais e seus efeitos, modelizações dos elementos em jogo nos processos de mudança dos sistemas educativos e investigações sobre a ação das forças sociais ao longo desses processos.

Autor de diversos livros, capítulos de obras coletivas e artigos científicos em língua francesa e inglesa, André D. Robert possui também escritos em português. São capítulos nos livros Associativismo e sindicalismo em educação: teoria, história e movimentos e Sindicalismo em educação e relações de trabalho – uma visão internacional (ROBERT, 2013ROBERT, André. Os sindicatos de professores e a pesquisa em educação. Sobre alguns deslizes epistemológicos. In: GINDIN, Julián; FERREIRA, Márcia Ondina Vieira; ROSSO, Sadi dal (org.). Associativismo e sindicalismo em educação: teoria, historia e movimentos. Brasília: Paralelo 15, 2013.; 2015bROBERT, André. De 1968 à década de 2000: lutas por influência e posições cruzadas dos principais sindicatos de professores franceses (primário e secundário). In: ROSSO, S. Dal; FERREIRA, Márcia Ondina Vieira (org.). Sindicalismo em educação e relações de trabalho – uma visão internacional, pp. 45-64. Brasília: Paralelo 15, 2015b.) e diversos artigos: Ainda é possível falar de escola “à francesa”? Algumas reflexões sobre as políticas educacionais no contexto contemporâneo, traduzido por Alain François, com revisão técnica de Ivany Pino, para a revista Educação & Sociedade (ROBERT, 2007ROBERT, André. Ainda é possível falar de escola “à francesa”? Algumas reflexões sobre as políticas educacionais no contexto contemporâneo. Educação & Sociedade, v. 28, n. 98, p. 211-230, 2007.), Gaulismo e capital humano, um novo paradigma escolar, traduzido por Maria Neves, com revisão científica de José Duarte para a Revista Lusófona de Educação (ROBERT, 2008)ROBERT, André. Gaulismo e capital humano, um novo paradigma escolar. Revista Lusófona de Educação, v. 12, p. 29-40, 2008., Um olhar sobre a obra de Jean-Claude Forquin: a Filosofia e a Sociologia da Educação (ROBERT, 2012)ROBERT, André. Um olhar sobre a obra de Jean-Claude Forquin: a Filosofia e a Sociologia da Educação. Revista Lusófona de Educação, n. 20, p. 157-171, 2012., com tradução de Ana Nobre e revisão científica de Rosa Serradas Duarte, também para a Revista Lusófona de Educação, além de um diálogo com Manuel Tavares na mesma publicação – Crise e crítica da Educação: uma visão macroscópica e prospectiva. Princípios orientadores da formação de professores. Manuel Tavares conversa com André Robert (TAVARES, 2003)TAVARES, Manuel. Crise e crítica da Educação: uma visão macroscópica e prospectiva. Princípios orientadores da formação de professores. Manuel Tavares conversa com André Robert. Revista Lusófona de Educação, v. 2, 2003..

Robert é um intelectual plural. Suas reflexões sobre o sistema educacional e as políticas que o constituem se iniciam a partir de uma perspectiva marcadamente marxista, de orientação althusseriana. Ao longo dos anos, como nos conta nesta entrevista, outros aportes passam a impactar sua trajetória de pensamento: da sociologia crítica francesa à sociologia do currículo britânica; da perspectiva foucaultiana sobre a ordenação e o controle da vida social à pós-modernidade performativa de Lyotard, chegando à admiração pela potência criativa do trabalho de renovação sociológica empreendido por Bruno Latour.

Seu livro mais recente, L’école em France: de 1945 à nos jours (ROBERT, 2015aROBERT, André. L’école en France de 1945 à nos jours. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2015a.), é uma edição ampliada de sua obra-referência de 2010. A ambição é mapear as mutações na função da escola francesa ao longo de sete décadas, período que se estende da liberação do jugo nazista no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) à atual legislatura. A publicação, em 2015, de uma segunda edição ampliada é bem-vinda, por ajudar a balizar os reais pontos de inflexão, em termos de política educacional, entre duas administrações de matizes ideológicos distintos: Nicolas Sarkozy, presidente por um partido de direita – o Union pour un Mouvement Populaire (UMP) atual Les Republicans – entre 2007 e 2012, e François Hollande, eleito pelo Partido Socialista (PS) com a promessa de “refundar” o sistema escolar. Interessa saber, nas palavras do autor, se a escola francesa estaria duravelmente capturada pelo neoliberalismo.

Tanto na França quanto na maioria dos países desenvolvidos, o período analisado se caracteriza, segundo Robert, pela intensificação da ligação entre a escola, a esfera econômica e o mercado de trabalho. Na fase mais recente do capitalismo, dita de mundialização e financeirização exacerbada, esse laço seria ainda mais determinante. Designando a relação pela expressão “captura da escola pela economia”3 3 - Saisissement de l’école par l’économie, no original em francês. , André D. Robert alerta que não basta dizer, à moda de Baudelot e Establet (1971)BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. L’école capitaliste en France. Paris: Maspero, 1971., que a uma economia capitalista corresponde uma escola que é orientada por esse sistema. Uma análise nuançada requer ter em conta o tipo de capitalismo em questão, o tipo de determinação de uma pela outra e as contradições internas que podem surgir, seja no que diz respeito a desigualdades relativas à origem social, gênero, seja em termos de relação formação/emprego. Assim:

Sustentaremos o ponto de vista da dependência relativa da instituição escolar [...] em relação ao regime econômico, tendo presente a noção de autonomia relativa de um “campo”, tal qual analisado por Pierre Bourdieu. Reservando-se o direito de interrogar, ao longo de seu desenvolvimento, as influências da economia – as formas de racionalidade política e as ideologias que a acompanham – sobre a evolução da instituição escolar francesa de 1945 a 2014, nossa obra não pretende recorrer de imediato a um qualificativo (capitalista, liberal, neoliberal ou outro) que encerre a análise. (ROBERT, 2015aROBERT, André. L’école en France de 1945 à nos jours. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2015a., p. 7, tradução nossa)

Recorrendo a Patrice Duran (1999)DURAN, Patrice. Penser l’action publique. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1999., o autor lança mão da noção de política escolar para qualificar e fornecer a real dimensão das mudanças observadas. Concretizadas na forma de leis, decretos e circulares que a administração escolar deve executar, as políticas escolares tornam mais visíveis as conexões entre economia, Estado e escola no fluxo permanente de transformações. A análise da natureza de cada uma das decisões – técnicas, filosóficas, deliberadamente políticas, influenciadas por atores do campo econômico etc. –, do grau de autonomia do legislador e do complexo jogo social entre os atores e instituições envolvidos (governo, sindicatos, sociedade civil organizada etc.) contribui para explicar o resultado das reformas e seu impacto efetivo na escola.

Sua tipologia da escola francesa é ilustrativa das mutações no papel da instituição ao longo desses setenta anos. A construção de cada um dos tipos e sua correspondência com um modelo de sociedade, na perspectiva de Durkheim (1969)DURKHEIM, Émile. L’évolution pédagogique en France. Paris: PUF, 1969., é uma engenhosa inspiração para trabalhos em sociologia e história da educação. Ao período conhecido como “trinta gloriosos”4 4 - Termo criado pelo economista Jean Fourastié (1907-1990) para designar os trinta anos de reconstrução, modernização e expansão da economia francesa no pós-guerra, com efeitos benéficos no nível de vida dos franceses. (1945-1975) corresponderia uma escola que se pretendia moderna e democratizante, característica de um Estado de bem-estar social, promotora do ideal de igualdade de oportunidades e de possibilidades reais de promoção social.

Tal potencial presumido de libertação intelectual e de redução das desigualdades, contestado pela sociologia crítica desde o início dos anos 1960, passa por acentuada crise no período seguinte, jocosamente chamado por jornalistas franceses de “vinte lamentáveis” (1975-1995), a que corresponderia uma escola hesitante quanto aos métodos e às finalidades da educação. Há um questionamento crítico pontual de conceitos como estandardização, universalização e centralização, sem que se opere, porém, uma ruptura efetiva.

O terceiro período (1995 em diante), correspondente à fase atual do capitalismo mundializado e de um Estado empresarial/gerencial, apresenta uma escola incerta. O autor se interroga em que medida o avanço do gerencialismo e da cultura de performance acarretariam, no seio da instituição escolar, novas formas de socialização formativa, por oposição à forma escolar tradicional, na acepção de Vincent (1980)VINCENT, Guy. L’école primaire française. Lyon: PUL, 1980..

O balanço do período registra avanços e recuos. Robert classifica como “sucesso relativo” o passado recente do modelo de escola à francesa. Ela estaria situada “a meio caminho entre os valores e práticas herdados da tradição republicana e as adaptações às exigências ambientais contemporâneas, entre uma orientação cultural que comporta ainda uma forte dimensão crítica e a inscrição numa lógica econômica” (ROBERT, 2015aROBERT, André. L’école en France de 1945 à nos jours. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2015a., p. 336, tradução nossa). Aponta-se a universalização do ensino e a generalização de trajetórias de escolarização cada vez mais alongadas. Estas seriam cada vez menos dependentes de variáveis como classe social, sexo, nacionalidade ou região geográfica. No entanto, o acesso às opções de estudo mais prestigiosas estaria crescentemente relacionado à origem social. Recorrendo aos dados levantados por Pierre Merle (2009)MERLE, Pierre. La démocratisation de l’enseignement. Paris: La découverte, 2009. sobre o bacharelado terminal S5 5 - Etapa preparatória para o bacharelado na série científica S, a mais concorrida. , Robert constata um recuo da presença de classes populares entre 1984-1985 e 2005-2006. A situação atual, portanto, poderia ser caracterizada como uma espécie de democratização segregativa. Num exemplo: filhos de operários possuem muito mais diplomas do ensino superior do que no passado, mas são ainda muito menos diplomados que filhos de executivos.

Supervisor do período de doutorado-sanduíche de um dos entrevistadores, o professor André D. Robert teve a generosidade de responder longamente às perguntas enviadas por e-mail. Na interlocução, o professor apresenta os caminhos que o levaram à perspectiva sociohistórica que anima suas pesquisas e análises sobre o sistema escolar, fala sobre a importância da sociologia francesa contemporânea e sintetiza as linhas de força fundamentais que desembocam na configuração atual do sistema escolar francês.

Esperamos que a publicação desta interlocução ofereça não apenas elementos para a discussão dos aspectos que caracterizam o sistema educacional francês pós-Segunda Guerra, mas também insumos sociológicos e históricos para todos que desejarem compreender os desafios da instituição escolar no contexto contemporâneo de capitalismo globalizado, numa perspectiva relacional entre escola, Estado e sistema econômico.

Referências

  • BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. L’école capitaliste en France. Paris: Maspero, 1971.
  • DURAN, Patrice. Penser l’action publique. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1999.
  • DURKHEIM, Émile. L’évolution pédagogique en France. Paris: PUF, 1969.
  • MERLE, Pierre. La démocratisation de l’enseignement. Paris: La découverte, 2009.
  • ROBERT, André. Ainda é possível falar de escola “à francesa”? Algumas reflexões sobre as políticas educacionais no contexto contemporâneo. Educação & Sociedade, v. 28, n. 98, p. 211-230, 2007.
  • ROBERT, André. Gaulismo e capital humano, um novo paradigma escolar. Revista Lusófona de Educação, v. 12, p. 29-40, 2008.
  • ROBERT, André. Um olhar sobre a obra de Jean-Claude Forquin: a Filosofia e a Sociologia da Educação. Revista Lusófona de Educação, n. 20, p. 157-171, 2012.
  • ROBERT, André. Os sindicatos de professores e a pesquisa em educação. Sobre alguns deslizes epistemológicos. In: GINDIN, Julián; FERREIRA, Márcia Ondina Vieira; ROSSO, Sadi dal (org.). Associativismo e sindicalismo em educação: teoria, historia e movimentos. Brasília: Paralelo 15, 2013.
  • ROBERT, André. L’école en France de 1945 à nos jours. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2015a.
  • ROBERT, André. De 1968 à década de 2000: lutas por influência e posições cruzadas dos principais sindicatos de professores franceses (primário e secundário). In: ROSSO, S. Dal; FERREIRA, Márcia Ondina Vieira (org.). Sindicalismo em educação e relações de trabalho – uma visão internacional, pp. 45-64. Brasília: Paralelo 15, 2015b.
  • TAVARES, Manuel. Crise e crítica da Educação: uma visão macroscópica e prospectiva. Princípios orientadores da formação de professores. Manuel Tavares conversa com André Robert. Revista Lusófona de Educação, v. 2, 2003.
  • VINCENT, Guy. L’école primaire française. Lyon: PUL, 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016
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