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A Natureza da Ciência na escola por meio de um material didático sobre a Gravitação

The Nature of Science in school by means of a educative material on Gravitation

Resumo

Apresentamos neste trabalho os resultados de uma pesquisa que objetivou estabelecer um conjunto de recomendações para um tratamento didático da Natureza da Ciência, junto a alunos de Física do Ensino Médio. Para esse fim, elaboramos uma unidade de ensino composta por textos sobre o desenvolvimento da Gravitação, com um olhar epistemológico baseado nos elementos da epistemologia de Lakatos, juntamente com apresentações eletrônicas e atividades baseadas nos assuntos trabalhados. Entre nossas constatações, consideramos aspectos relacionados ao uso de textos nas aulas, na apresentação de termos específicos da epistemologia aos alunos, e nas dificuldades enfrentadas tanto pelos alunos quanto pelos professores.

Palavras-chave:
Ensino de Física; Natureza da Ciência; História e Filosofia da Ciência; Gravitação no Ensino Médio; Relatividade Geral no Ensino Médio

Abstract

We present in this work the results of a research that aimed to establish a set of suggestions for a didactic treatment of the Nature of Science, with students of physics in High School. To this goal, we developed a teaching unit composed of texts on the development of Gravitation, with an epistemological view based on the elements of Lakatos epistemology, along with electronic presentations and activities based on the subjects studied. Among our findings, we consider aspects related to the use of texts in class, the presentation of specific terms of epistemology to students, and the difficulties faced by both students and teachers when working with the unit.

Keywords:
Physics Teaching; Nature of Science; History and Philosophy of Science; Gravitation in High School; General Relativity in High School

1. Introdução

Apesar da área de História e Filosofia da Ciência ter sido relativamente bastante revisitada nesta última década [1] A. Cachapuz, F. Paixão, J.B. Lopes e C. Guerra, Alexandria 1, 1 (2008). [1, 2][2] T.N. Silva, B.R.G. Santos e G.L.F. Batista, in: Anais do XX Simpósio Nacional de Ensino de Física (SBF, São Paulo, 2013), p. 1-8., seus resultados, assim como outros produzidos pela pesquisa em Ensino de Ciências, ainda têm produzido pouco impacto nas salas de aula [3] L.O.Q. Peduzzi, A. Zylbersztajn e M.A. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 14, 239 (1992). [4] O. Freire Jr., in: Epistemologia e Ensino de Ciências, editado por Waldomiro José da Silva Filho (Arcadia, Salvador, 2002), p. 13-30. [5] D. Delizoicov, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 21, 145 (2004). [6] F. Rezende e F. Ostermann, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 22, 316 (2005). [7] Fábio L.A. Pena e Aurino R. Filho, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 25, 424 (2008).. Pena e Filho sugerem que os principais entraves residem na formação do professor, “o que implica em ações, no âmbito da graduação e da pós-graduação, que favoreçam a relação entre a pesquisa em Ensino de Física e a prática docente” [8][8] Fábio L.A. Pena e Aurino R. Filho, op. cit., p. 435.. Mas acreditamos que uma preocupação deva também se dar com os professores em atuação nas salas de aula, ou seja, que já estão na docência hoje. Não apenas com a produção de materiais adequados que visem fornecer ao professor subsídios para aulas mais consoantes com recomendações das pesquisas em Ensino de Ciências, mas também com maneiras de fazer com que esses materiais cheguem efetivamente à sala de aula [9][9] K.M. Zeichner, in: Cartografias do Trabalho Docente: Professor(a)-Pesquisador(a), editado por C.M.G. Geraldi, D. Fiorentini e E.M. de A. Pereira (Mercado de Letras, Campinas, 1998), p. 207-236..

Mas mesmo que fosse resolvido o problema de se fazer os resultados das pesquisas chegarem até os professores em atuação, teríamos que decidir qual história e qual filosofia da ciência levar aos alunos. Existem, na academia, diferentes posições filosóficas a respeito da atividade científica, que podem causar “uma certa perplexidade entre os professores e investigadores em Didática das Ciências e leva a questionar se faz sentido falar de uma concepção correta de ciência e se vale, pois, a pena incluir a filosofia da ciência nos programas de formação de professores” [10][10] D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J. C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Revista Ciência & Educação 7, 135 (2001).. Nossa visão se assenta em uma resposta positiva a esta última questão, uma vez que, se não existe o método científico, no singular (conforme discutiremos), podemos ao menos traçar um quadro mais compromissado com a natureza da atividade científica na medida em que isso é possível e desejável, por meio da análise de episódios que demonstram a produção do conhecimento científico.

A história da ciência pode propiciar uma abordagem de grande valia em relação a esta aceitação, enquanto que discussões devidamente instrumentalizadas sobre a Natureza da Ciência podem enriquecer a visão do aluno sobre as características e o alcance desta, fugindo, ainda, dos discursos equivocados ou mesmo pseudocientíficos muitas vezes propalados na sociedade. Em outras palavras e parafraseando Gerald Holton, podemos assim contribuir para uma maior sanidade social (“A educação científica não é apenas uma questão de democracia, mas de sanidade social” [11][11] B.J. Oliveira e Olival Freire Jr., Caderno Brasileiro de Ensino de Física 23, 322 (2006).).

Vários autores têm defendido se trabalhar com abordagens históricas e filosóficas [12] R. de A. Martins, Boletim da Sociedade Brasileira de História da Ciência 9, 3 (1990). [13] M.R. Matthews, Caderno Catarinense de Ensino de Física 12, 164 (1995). [14] A. Villani, Ciência e Educação 7, 169 (2001). [15] J. Solbes e M. Traver, Enseñanza de las Ciencia, 19, 151 (2001). [16] F. Lang. da Silveira e L.O.Q. Peduzzi, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 23, 26 (2006). [17] L.O.Q. Peduzzi, A. Zylbersztajn e M.A. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 14, 239 (1992). [18] D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J. C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, op. cit. [19] M.A. Moreira, N.T. Massoni e F. Ostermann, Revista Brasileira de Ensino de Física 29, 127 (2007). [20] E.S. Teixeira, O. Freire Jr. e C.N. El-Hani, Ciência & Educação 15, 529 (2009).. Como Matthews muito bem sintetizou, os aspectos históricos e epistemológicos no ensino:

podem humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade; podem tornar as aulas de ciências mais desafiadoras e reflexivas, permitindo, deste modo, o desenvolvimento do pensamento crítico; podem contribuir para um entendimento mais integral da matéria científica, isto é, podem contribuir para a superação do “mar de falta de significação” que se diz ter inundado as salas de aulas de ciências, onde fórmulas e equações são recitadas sem que muitos cheguem a saber o que significam [21][21] M.R. Matthews, op. cit., p. 165..

Visando trabalhar com essas potencialidades, buscamos então parcerias com professores em atuação no Ensino Médio, procurando maneiras de se compreender melhor algumas questões que aportem práticas de ensino consonantes com o tipo de abordagem citada acima. O objetivo deste trabalho foi estabelecer um conjunto de recomendações para um tratamento didático da Natureza da Ciência baseado na visão de Lakatos, como conteúdo de ensino em aulas de Física no Ensino Médio, mediante uma abordagem da Gravitação. Buscando atingir esse objetivo, estruturamos as seguintes questões para nortear nossa pesquisa: 1. Qual a recepção geral, por parte dos professores e alunos, de um material didático que trata da Natureza da Ciência baseado na visão de Lakatos, mediante uma abordagem da Gravitação? 2. Qual a influência da utilização desse material na compreensão dos alunos sobre a Natureza da Ciência na visão de Lakatos? 3. Que dificuldades foram apresentadas pelo professor ao implementar a unidade de ensino proposta? 4. Que dificuldades foram apresentadas pelos alunos ao longo da implementação da unidade de ensino proposta?

2. A Natureza da Ciência: concepções adotadas

A Natureza da Ciência assume diferentes concepções por diferentes autores [22][22] N.G. Lederman, in: Handbook of Research in Science Education, editado por S. Abell e N.G. Lederman (Routledge, New York, 2007), p. 831-879.. Consideramos que o que chamamos de Natureza da Ciência é essencialmente seus modos de proceder, suas características e vicissitudes. “A Natureza da Ciência refere-se tipicamente à epistemologia da ciência, ciência como uma forma de conhecer, ou aos valores e crenças inerentes ao conhecimento científico e seu desenvolvimento” [23][23] N.G. Lederman, op. cit., p. 833.. De modo geral:

A Natureza da Ciência é entendida como um conjunto de elementos que tratam da construção, estabelecimento e organização do conhecimento científico. Isto pode abranger desde questões internas, tais como método científico e relação entre experimento e teoria, até outras externas, como a influência de elementos sociais, culturais, religiosos e políticos na aceitação ou rejeição de ideias científicas [24][24] Breno A. Moura, Revista Brasileira de História da Ciência 7, 32 (2014)..

Como já mencionamos, existem diferentes tipologias para o modus operandi da ciência, e, para qualquer tentativa de explicação ou caracterização da atividade científica, haverá críticas ou contrapontos que evidenciam diferentes formas de se ver como a ciência funciona.

Contudo, apesar de haver diferentes visões a respeito da Natureza da Ciência, julgamos que é possível estabelecermos um conjunto de características que, se não exaurem as discussões sobre o funcionamento da ciência, ilustram em boa medida alguns pontos mais consensuais1 1 É preciso também certa cautela com um consenso e seu uso em atividades didáticas semelhantes à nossa, uma vez que esse consenso relativo pode vir a se tornar um novo conjunto de metodologias tidas por prescritivas do que é fazer ciência. Apesar de alguns autores defenderem a utilização de elementos mais consensuais a respeito da atividade científica no ensino, existem outros que são críticos a essas tentativas (ver, por exemplo, [25]). a esse respeito, como os apontados por Gil Pérez et. al. [10][10] D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J. C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Revista Ciência & Educação 7, 135 (2001)., apresentados na sequência. Não devemos impedir que o labirinto de significados a respeito da atividade científica nos impeça de ter uma visão esclarecida do todo. Apesar das divergências em relação à ciência,

Existem, sem dúvida, alguns aspectos essenciais em que se verifica um amplo consenso2 2 Ver nota anterior. e que convém destacar, evitando-se que variações e divergências ocultem o que há de comum nas diferentes abordagens, situação particularmente importante e necessária em Educação em Ciência [26][26] D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, op. cit., p. 135..

Para estruturar os textos trabalhados, com os professores e alunos, concentramo-nos em elementos da epistemologia de Lakatos, delineados brevemente a seguir, por considerarmos sua filosofia bastante didática para um primeiro contato com questões sobre Natureza da Ciência.

Para Lakatos [27][27] I. Lakatos, in: A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, editado por I. Lakatos e A. Musgrave (Cultrix, São Paulo, 1979), p. 109-243., as teorias científicas são mais bem caracterizadas como programas de pesquisa. Um programa de pesquisa possui um conhecimento de base, um núcleo firme que é preservado ao máximo no sentido de tê-lo como o mais caro conceito que sustenta o programa. No caso da física quântica, por exemplo, o próprio conceito de quantização (que batiza a teoria), ou seja, de que grandezas físicas como a energia assumem valores discretos, pode ser eleito como núcleo firme do programa3 3 Poderíamos acrescentar a este núcleo a noção de incerteza, advinda de contradições originárias da natureza dualística das partículas, e a questão da probabilidade intrínseca à teoria, ao menos segundo a interpretação corrente da mecânica quântica. . Acabar com a noção de quantização colapsaria o programa, e por isso os cientistas que trabalham com este último, ao se depararem com dificuldades explicativas produzidas com ele, irão se lançar em novas conjeturas e hipóteses para evitar um ataque direto ao núcleo do programa. Similarmente, podemos nos referir à Lei da Gravitação Universal e às três leis de Newton como núcleo firme de toda a mecânica newtoniana, e aos postulados referentes àconstância da velocidade da luz e do princípio da equivalência das leis físicas como núcleo firme da relatividade einsteniana.

Naturalmente, ao longo do desenvolvimento de um programa de pesquisa surgem anomalias, inadequações entre a previsão teórica e a constatação empírica, que colocam em cheque o núcleo do programa. Mas este será protegido de um ataque direto através de hipóteses auxiliares que procurarão compatibilizar o programa com as anomalias constatadas. Estas hipóteses auxiliares formam então um cinturão protetor, um conjunto de estratagemas de proteção ao núcleo firme. “Esse ‘núcleo’ é ‘irrefutável’ por decisão metodológica de seus protagonistas: as anomalias só devem conduzir a mudanças no ‘cinturão protetor’ da hipótese auxiliar” [28][28] I. Lakatos, op. cit., p. 163..

Para que o cinturão protetor exerça efetivamente esta proteção, ele não pode ser algo estático. Pelo contrário, ele é constantemente modificado, expandido e sofisticado conforme as necessidades. Um dos pontos chave da filosofia de Lakatos é justamente esta proteção, que sugere que um programa deve ser salvo de uma refutação prematura por meio de um ataque direto ao seu núcleo. A procura de explicações para as anomalias, preservando, deste modo, o núcleo firme, é um recurso fundamental que permite que o programa sobreviva pelo tempo necessário para mostrar seu possível valor heurístico, sua capacidade de explicar e prever novos eventos.

Se a característica básica da ciência fosse descartar as teorias que prontamente demonstram anomalias, então boa parte de nossas teorias não existiria, uma vez que todas elas passaram por crises deste tipo. O cinturão protetor mostra-se, assim, um recurso heurístico essencial para o crescimento do programa de pesquisa. Por exemplo, no séc. XIX foi constatada uma discordância entre as previsões da gravitação newtoniana para a órbita do planeta Urano e a efetiva observação desta. Mas os newtonianos não consideraram que a mecânica newtoniana estivesse refutada.

Adams e Leverrier, por volta de 1845, atribuíram tal discordância àexistência de um planeta ainda não conhecido -- o planeta Netuno -- e, portanto, não levado em consideração na órbita de Urano. Essa hipótese permitiu também calcular a trajetória de Netuno, orientando os astrônomos para a realização de novas observações que, finalmente, confirmaram a existência do novo planeta [29][29] F. Lang da Silveira, Caderno Catarinense de Ensino de Física 13, 221 (1996)..

A hipótese de Adams e Leverrier não só proporcionou a manutenção do programa, como também permitiu que ele progredisse ao prever a existência de algo novo, posteriormente ratificado. Com o dado empírico corroborando a previsão teórica, vem também a constatação de que a hipótese auxiliar tornou o programa progressivo, ou seja, com uma maior capacidade explicativa e preditiva. Este recurso objetivando-se a preservação do núcleo firme é conhecido, na epistemologia de Lakatos, como heurística negativa. O esforço para se alterar e refinar o cinturão protetor é associado à heurística positiva, que permite ainda identificar quais elementos estão sujeitos a refutações.

A heurística negativa especifica o “núcleo” do programa, que é “irrefutável” por decisão metodológica dos seus protagonistas; a heurística positiva consiste num conjunto parcialmente articulado de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as “variantes refutáveis” do programa de pesquisa, e sobre como modificar e sofisticar o cinto de proteção “refutável” [30][30] I. Lakatos, op. cit., p. 165..

Naturalmente, um programa de pesquisa pode chegar em um ponto onde não consegue manter sua progressão, havendo, assim, sua degeneração ou regressão, ou seja, suas hipóteses auxiliares não resultam em predições empiricamente corroboradas. Usando mais uma vez o exemplo da gravitação newtoniana, ainda no séc. XIX foram constatadas anomalias sutis na órbita do planeta Mercúrio, mas suficientes para colocar o programa novamente em cheque. Da mesma forma que anteriormente, chegou-se a especular a existência de um planeta em suas vizinhanças, mas este planeta nunca foi encontrado. A referida anomalia, uma pequena diferença entre o periélio previsto para Mercúrio e o periélio realmente observado, só foi resolvida por um programa de maior sucesso explicativo, no caso a Teoria Geral da Relatividade4 4 A Teoria Geral da Relatividade, naturalmente, não foi desenvolvida com este propósito. “As anomalias do periélio do planeta Mercúrio não desempenharam nenhum papel na construção da teoria, não obstante terem sido incorporadas e determinadas por ela com uma precisão extraordinária” [31]. .

A característica progressiva ou regressiva de um programa pode então ser usada na escolha racional entre teorias concorrentes, escolhendo-se o programa progressivo em detrimento do regressivo. Isto vai de encontro à noção comum de que uma teoria pode ser “provada” através da experimentação ou de que, devido à experimentação, as teorias são obtidas. Mesmo Einstein parece ter percebido a limitada importância do experimento ao sugerir que “uma teoria deve ser testada pela experiência, mas não é possível construir uma teoria partindo da experiência” [32][32] S. Simon, op. cit., p. 143., ao se referir às suas equações do campo gravitacional. A experimentação é essencial para se avaliar o programa e verificar até que ponto ele se mantém progressivo, mas o que irá definir seu abandono será a existência de um outro programa com maior capacidade explicativa e preditiva.

Em síntese, apresentamos no diagrama 1 os principais elementos de um programa de pesquisa.

Diagrama 1:
Um diagrama para a Metodologia dos Programas de Pesquisa, de Lakatos.

Apesar de considerarmos a epistemologia de Lakatos bastante ilustrativa para um primeiro contato com elementos da Natureza da Ciência, não ficamos restritos aos elementos discutidos acima. Buscamos, ao longo dos textos construídos para a pesquisa, uma narrativa que contemplasse aspectos consensuais a respeito da atividade científica, conforme Gil Pérez et al. [10][10] D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J. C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Revista Ciência & Educação 7, 135 (2001).. Usamos então esses aspectos como recomendação para nosso trabalho, como se segue:

  1. em primeiro lugar, devemos recusar um “Método Científico” bem delimitado, como se tivéssemos uma receita bem definida, com regras a serem seguidas mecanicamente. Apesar de existirem métodos na ciência, no plural, devemos nos recusar a propalar a noção de senso comum de que existe o método científico, uma cartilha que os cientistas supostamente seguem em suas pesquisas;

  2. devemos recusar um empirismo ingênuo, ou seja, a noção de que o conhecimento científico é resultado de “dados puros”, de que nossos sentidos levam diretamente ao conhecimento. Toda observação implica em um sistema teórico complexo em sua interpretação, e esse sistema teórico determina inclusive o que é observado. Nossos sentidos são nossa interface com a natureza, mas nosso conhecimento é uma construção complexa de nossas faculdades mentais;

  3. devemos insistir no caráter hipotético da atividade científica e na devida contextualização da experimentação. Os experimentos possuem um papel de destaque na pesquisa científica, uma vez que são com eles como nos comunicamos com a natureza, mas a experimentação só se justifica frente a uma hipótese anterior que lhe dê significado. Em suma, o conhecimento científico está mais associado a tentativas de explicação e formas complexas de testar essas;

  4. devemos evidenciar a busca pela coerência global. Um resultado experimental, sozinho, nunca é o bastante para se refutar ou comprovar uma hipótese. Deve-se, antes, contextualizar o resultado obtido frente ao programa de pesquisa que lhe dá significado, e buscar sistematicamente alternativas para o resultado obtido. Nossas explicações devem ser continuamente postas em revisão, e devem fazer parte de um conjunto explicativo maior, de princípios mais gerais, como a teoria atômica da matéria, a Termodinâmica, o Eletromagnetismo, a Gravitação. Algo que pode ser sintetizado na máxima “explicar cada vez mais com cada vez menos”;

  5. por fim, devemos mencionar o caráter social do empreendimento científico. Os cientistas fazem parte de grupos que trabalham sob um paradigma, e os esforços de um se dão a partir do contexto produzido por muitos. O cientista em geral trabalha com problemas colocados por instituições, colaborando com o status quo de determinado campo. Devemos contextualizar o que um determinado cientista faz, deixando claro como ele se encaixa na evolução dos conceitos de uma dada disciplina que se desenvolve dentro de um contexto social.

Ao estabelecermos essas diretrizes, permitimos que nossa narrativa didática assuma um perfil geral aportado nas características da atividade científica comentadas, que é justamente o que entendemos por Natureza da Ciência. Naturalmente, cada característica comentada não se apresenta como um item separado dos demais, a ser discutido pontualmente com os alunos. O objetivo é contemplar em boa medida essas diretrizes, de modo a construir uma caracterização apropriada da atividade científica.

Em síntese, pode dizer-se que a essência da orientação científica - deixando de lado toda a ideia de “o método” - se encontra na mudança de um pensamento, atitude e ação, baseados nas “evidências” do senso comum, para um raciocínio em termos de hipótese, por sua vez mais criativo (é necessário ir mais além do que parece evidente e imaginar novas possibilidades) e mais rigoroso (é necessário fundamentar e depois submeter as hipóteses à prova cuidadosamente, isto é, confrontar com o mundo, duvidar dos resultados e procurar a coerência global) [33][33] D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J. C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, op. cit., p. 138..

Acreditamos que, mesmo sendo possível elencarmos outras caraterísticas para a atividade científica, as comentadas aqui representam um ponto de partida adequado para uma orientação para o trabalho com os alunos, sendo que a atitude geral sintetizada na citação acima passa a ser nosso norte.

3. Procedimentos metodológicos

A presente pesquisa foi implementada em duas turmas do primeiro ano do Ensino Médio, conduzida dentro do contexto profissional de um dos pesquisadores, a saber, as instituições federais de ensino, particularmente o Instituto Federal Catarinense (IFC -- Campus Blumenau) e o Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC -- Campus Jaraguá do Sul), no segundo semestre de 2015, sendo caracterizada como qualitativa. Para Flick, “esse tipo de pesquisa visa a abordar o mundo ‘lá fora’ (e não em contextos especializados de pesquisa, como os laboratórios) e entender, descrever e, às vezes, explicar os fenômenos sociais ‘de dentro”’ [34][34] Uwe Flick, Introdução à Pesquisa Qualitativa (Artmed, Porto Alegre, 2009), p. 8.. Alguns elementos que propiciam esta compreensão consistem na:

escolha adequada de métodos e teorias convenientes; no reconhecimento e na análise de diferentes perspectivas; nas reflexões dos pesquisadores a respeito de suas pesquisas como parte do processo de produção de conhecimento; e na variedade de abordagens e métodos [35][35] Uwe Flick, op. cit., p. 23..

Os procedimentos adotados foram sinteticamente os seguintes: 1. Elaboração de uma unidade de ensino composta por: a) um texto sobre os elementos da epistemologia de Lakatos, destinado à discussão da Natureza da Ciência junto aos professores implementadores de nossa proposta; b) três textos sobre o desenvolvimento da Gravitação, contemplando importantes momentos da evolução de seus conceitos sob um olhar epistemológico; c) três apresentações eletrônicas para ilustrar os assuntos tratados nos textos e subsidiar as discussões pretendidas; d) atividades baseadas nos assuntos trabalhados, promovendo a discussão em classe para uma melhor apreensão dos elementos estudados. 2. Busca de parcerias com professores de física em atuação nos Institutos Federais de Educação Científica e Tecnológica, contexto da pesquisa. Essa parceria se caracteriza basicamente pela intenção do professor em participar da pesquisa, desde seu planejamento e implementação da unidade de ensino até as entrevistas. 3. Acompanhamento da prática dos professores com a unidade de ensino proposta, de modo a obter um importante conjunto de conhecimentos acerca do quotidiano em sala de aula. 4. Avaliação das atividades realizadas junto aos professores e alunos participantes: suas influências, sua recepção, suas dúvidas, dificuldades, e a eficácia geral da dinâmica proposta. 6. Apontamentos e possíveis conclusões e contribuições para novas implementações.

A implementação foi feita em sete encontros, entre exposições dialógicas de apresentações eletrônicas, discussão dos textos e atividades correlatas, conforme veremos na sequência. Para avaliar nossa proposta junto aos alunos, elaboramos dois questionários, um sobre os conteúdos discutidos e outro sobre a recepção dos alunos em relação a essa proposta, também apresentados na sequência. Para obtermos um retorno confiável, o questionário sobre os conteúdos discutidos passou por um processo de validação, que é um procedimento indispensável para se aferir sua qualidade, por meio de um retorno de participantes que atestem, direta ou indiretamente, como no caso de alunos voluntários participantes, a clareza e intencionalidade das questões. No presente caso, o questionário foi validado junto a colegas da área de ensino, que leram e sugeriram alterações, bem como por meio de uma implementação piloto, ocorrida no semestre anterior à implementação definitiva.

4. Caracterização da produção do material didático

A unidade de ensino proposta, intitulada “Elementos da Natureza da Ciência em um Estudo sobre a Gravitação”, constituiu-se de um conjunto de três textos e apresentações eletrônicas5 5 Os textos e apresentações eletrônicas estão disponíveis em http://luizarthury.wix.com/isaque-alberto. , para ilustrar e subsidiar sua discussão. Ao final desse conjunto, há a indicação “para saber mais”, onde se apresentam algumas fontes ao aluno interessado em aprofundar os assuntos discutidos. A escolha do conteúdo de Gravitação deu-se inicialmente em função de um crescente interesse nosso pelo tema, ao constatar que a evolução dos conhecimentos associados a esse campo conceitual propiciou boa parte do desenvolvimento da física, desde a época de Newton até os dias atuais [36][36] Luiz H.M. Arthury, A Cosmologia Moderna à Luz dos Elementos da Epistemologia de Lakatos. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.. Isso se relaciona, ainda, com lacunas no Ensino de Física:

Apesar de sua relevância social, cultural e histórica, de sua relação com desenvolvimentos tecnológicos, como as tecnologias espaciais, que fazem parte do funcionamento da nossa sociedade, a gravitação não vem sendo trabalhada no ensino médio, o que descaracteriza a própria mecânica newtoniana, uma vez que este assunto constitui quase um terço do currículo de física nesse nível de ensino [37][37] H.C. da Silva, Discursos Escolares Sobre Gravitação Newtoniana: Textos e Imagens na Física do Ensino Médio. Tese de Doutorado, UNICAMP, 2002, p. 1..

Nossa proposta didática buscou, assim, valorizar esse conteúdo nas aulas de Física do Ensino Médio, servindo como um complemento, no mínimo6 6 Dizemos “no mínimo”, no caso de o professor “apenas” quiser contextualizar melhor o assunto de Gravitação. Nossa intenção é obviamente muito mais abrangente, com os elementos da Natureza da Ciência sendo parte integrante e indissociável de nossa proposta. , ao conteúdo de Gravitação presente nos livros didáticos, que não costumam permitir ao aluno maiores reflexões a respeito da importância histórica desse episódio, e também sobre aspectos da própria atividade científica [38][38] Kleber L. Nogueira, Wilton S. Dias e Mikael F. Rezende Junior, in: Atas do XVIII Simpósio Nacional de Ensino de Física (SBF, Vitória, 2009), p. 9.. Com vista a propiciar aos alunos os elementos pretendidos da Natureza da Ciência, por meio do importante contexto da Gravitação, elaboramos então nosso material, com cuidados que transcendem a simples exposição de seus conteúdos, como discutiremos na sequência.

Para a elaboração das apresentações eletrônicas, além de elementos dos textos produzidos e imagens correlatas, foram adaptados trechos de filmes e documentários devidamente editados para seu uso na apresentação. Utilizou-se trechos do documentário da BBC, The Story Of Science [39][39] Michael J. Mosley, The Story Of Science: Episódio 1, “O Que Há Lá Fora” (Filme-vídeo). BBC, British Broadcasting Corporation, 2010., episódio 1, sobre a evolução dos conceitos da cosmologia, do documentário COSMOS, episódio 3 [40][40] Seth MacFarlane, Ann Druyan e N. de Grasse Tyson, COSMOS: Episódio 3, “Quando o Conhecimento Domina o Medo” (Filme-vídeo). National Geographic Channel, Fuzzy Door Productions, 2014., da PBS-NOVA, The Elegant Universe [41][41] Brian Greene, The Elegant Universe (Filme-vídeo). PBS-NOVA, 2003., que contém ilustrações bastante didáticas de elementos da gravidade, e do filme “Einstein and Eddington” [42][42] Philip Martin, Einstein and Eddington (Filme-vídeo). Company Television, BBC - British Broadcasting Corporation, 2008., sobre o contexto do teste da Relatividade Geral.

O material foi produzido observando-se características de um material significativo, que é aquele que atenta a algumas funções, conforme apontamentos de D. Bob Gowin, professor emérito da Universidade de Cornell. Segundo esse autor [43][43] B.D. Gowin, Educating (Cornell University Press, New York, 1981), p. 112., os materiais educativos, como elementos importantes na educação, têm algumas funções básicas. São elas:

  1. Como veículos do critério de excelência. Materiais educativos são instrumentos calibrados para o uso no ensino e aprendizagem. Para que sejam uma referência básica na educação como um todo, precisam passar por dois grandes testes: precisam estar devidamente articulados em relação ao campo específico de conhecimento, e também em relação aos critérios principais da educação. Desta forma, os materiais também são uma autoridade no sentido de servir ao aluno como fonte de consulta confiável, inclusive nos casos onde há conflitos e discordâncias entre o professor e o aluno. Isto se o material estiver de acordo com os testes referidos acima. Assim, os materiais educativos servem, ainda, como organizadores conceituais que permitem sua consulta, tanto pelo aluno como pelo professor, sempre que houver necessidade de lembrar ou analisar algum ponto de seu conteúdo. Para garantirmos esse critério de excelência, todos os textos construídos, apesar de serem suficientemente fluidos ao aluno, seguiram rigorosamente a literatura acadêmica da área, passando ainda por repetidas revisões de especialistas (colegas da área e avaliadores do trabalho).

  2. Como registro de eventos primários usados para promover novos eventos. Servem ao propósito de permitir um crescimento cognitivo cada vez maior, com a meta final de possibilitar que o aluno necessite cada vez menos de seu auxílio, assim como alguém que está aprendendo a andar de bicicleta necessita cada vez menos das rodinhas de apoio [44][44] B.D. Gowin, op. cit., p. 113.. Mas, contrariamente ao que acontece com a analogia, o material antigo não perde o seu propósito. Pode certamente ser reutilizado em outras situações didáticas futuras, integralmente ou com adaptações e acréscimos adequados a esta nova situação. Para servirem a esse propósito, construímos os textos sempre a partir de significados mais simples aos alunos, ou seja, mantendo sempre em mente os subsunçores7 7 Os subsunçores são conhecimentos prévios que os alunos possuem, e que servem de base para a construção de novos conceitos (ver, por exemplo, [45]). possíveis de serem explorados.

  3. Multiplicadores de idéias e significados. É indiscutível sua importância como aporte na obtenção de conhecimento sem que o sujeito precise repetir todos os passos para se chegar àquele.

Gostaríamos de acrescentar, às funções já descritas, o caráter chamativo e motivador do material educativo, o que poderíamos associar a uma função de instigador à aprendizagem. Embora possamos identificá-lo como característica do material, acreditamos que esta também pode ser uma função desejada. O aluno estará em melhores condições de apreender novos significados se for atraído para tal. Um bom material certamente jogará com o pendor do aluno em direção ao que se pretende, fazendo-se as melhores escolhas e caminhos possíveis na obtenção de questões que o motivem na busca do conhecimento.

O sentimento de que algo é significante, que tange suas curiosidades, é o primeiro passo para que o aluno seja aportado a mundos ulteriores ao seu. “A experiência de sentimentos significativos no contexto do ensino dá aos estudantes razões para escolherem aprender” [46][46] B.D. Gowin, op. cit., p. 132.. Quando isto ocorre, o conhecimento passa a ser sua recompensa intrínseca [47][47] B.D. Gowin, op. cit., p. 133.. Ao constatar que o conhecimento permite compreender cada vez mais com cada vez menos, o aluno chega a um ponto crucial de sua educação. Pois compreende a importância de sua compreensão.

Para construirmos esse conjunto de textos, preocupamo-nos com algumas escolhas didáticas e de contingência, ou seja, de que modo poderíamos redigir uma sequência didática que fosse adequada ao nível de escolaridade do aluno, que permitisse abordarmos os conteúdos pretendidos de modo o mais próximo possível dele. Escolhemos então uma narrativa que, além de fundamentada (o critério de excelência, de Gowin), fosse suficientemente fluida ao aluno. Nossos propósitos com essa unidade de ensino estiveram genuinamente voltados à facilitação do trabalho com esse assunto (a Natureza da Ciência) pouco familiar neste nível de escolaridade, e pensamos que os materiais produzidos para esse fim devam ter antes uma preocupação de atingir realmente o aluno, do que propriamente se constituir como (mais) um compêndio acadêmico para (mais) um conjunto de conhecimentos que os alunos devem apreender.

Por exemplo,

os trabalhos produzidos pelo historiador da ciência poderiam ser úteis para discutir diferentes aspectos da NDC, vinculados ao recorte estabelecido em cada trabalho. Porém, a textualização, os pré-requisitos conceituais de campos normalmente envolvidos e o aprofundamento dado aos objetos históricos tornam os trabalhos históricos especializados inadequados ao Ensino Médio. Em geral, tais trabalhos requerem pré-requisitos para serem compreendidos que os alunos da escola básica não possuem. Além disso, a didatização do saber não se limita a torná-lo compreensível, mas volta-se também aos aspectos motivacionais de modo a contribuir para o engajamento dos alunos nos processos de aprendizagem, levando em conta as metodologias educacionais adequadas e coerentes com as concepções de ciência, de seus processos de construção e de ensino [48][48] Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 28, 48 (2011)..

Procuramos, como parte do critério de excelência e Gowin, contemplar também outros cuidados correlatos, específicos ao contexto do ensino da Natureza da Ciência, apontados por Forato, Pietrocola e Martins [49][49] Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, op. cit., p. 43., das quais destacamos:

  1. cuidado com a seleção do conteúdo histórico, a escolha pertinente de episódios que permitam o trabalho didático pretendido, ou seja, que satisfaça os propósitos pedagógicos e epistemológicos. Entendemos que os episódios escolhidos, referentes àGravitação, constituem momentos de grande relevância para as discussões pretendidas, até mesmo porque parte da própria argumentação engendrada pelos pensadores trabalhados se dá nesse contexto da história da física;

  2. cuidado com o tempo didático, que é o tempo efetivamente disponível na escola para se trabalhar os conteúdos pretendidos. Pode-se supor que um professor de física ou química ou biologia tenha adquirido suficiente maturidade profissional para realizar uma boa estimativa sobre o tempo necessário para tratar um conceito da ciência em suas aulas. Entretanto, estamos diante de conteúdos de natureza distinta quando pensamos em inserir conhecimentos sobre a ciência, em uma perspectiva que busque contemplar requisitos didáticos e historiográficos. A característica multidisciplinar da HC a torna complexa por si só, e viabilizá-la em ambiente real de sala de aula não é trivial, ainda mais quando o propósito pedagógico envolve a aprendizagem de aspectos epistemológicos da ciência [50][50] Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, op. cit., p. 45.. Deste modo, ao construirmos os textos, tentamos antever sua condução concreta em sala de aula, de modo a constituir uma proposta consciente de trabalho -- por parte dos alunos e do professor;

  3. cuidado com a simplificação e a omissão, posto que são inevitáveis em qualquer proposta didática ao mesmo tempo em que são fatores que determinam a “versão” da história e da Natureza da Ciência que será discutida com os alunos. Como é algo que não pode ser evitado, então devemos ter o discernimento do que trazer e do que não trazer aos alunos, para que não incorramos nós mesmos nas visões inadequadas que pretendemos atacar. Ainda, o que escolhemos trazer aos alunos certamente será uma discussão simplificada em relação ao corpo de argumentações originais deste ou daquele epistemólogo, do que lembramos as críticas em relação à inclusão da história da ciência no ensino de ciência, que apontam que toda história, por ser uma simplificação, seria uma história de má qualidade. Mas não podemos confundir simplificação com distorção (embora isso certamente seja um grande desafio). Uma coisa é dizermos que a Terra é uma esfera (o que não é), outra é dizermos que é um cubo, lembrando do argumento de Isaac Asimov sobre a relatividade do erro [51][51] Isaac Asimov, A Relatividade do Erro (Edições 70, Lisboa, 1991).. Apesar disso, precisamos de sobriedade para aceitar que toda história contada por nós terá um viés, e será limitada em algum nível. Tomarmos ciência dessa limitação é imprescindível para minimizarmos os problemas decorrentes da omissão deliberada de episódios. Veja, por exemplo, a maioria dos relatos sobre o episódio de Galileu e a recusa dos seus contemporâneos em olharem pelo telescópio. A problemática da intermediação de instrumentos para o estudo do mundo natural era um problema pertinente aos homens daquele período. A concepção em geral propagada é que os homens apenas se recusavam a olhar pelo telescópio para não admitir as mudanças no mundo supralunar. O resultado dessa omissão pode se configurar numa visão simplista, superficial e equivocada de um episódio tão rico da história da ciência [52][52] Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, op. cit., p. 46.;

  4. finalmente, devemos ter em conta a possível (ou mesmo provável) falta de formação específica do professor, que deve servir de alerta para o modo como propomos que a unidade de ensino seja trabalhada. Essa unidade precisa garantir uma certa autossuficiência nesse sentido, ou seja, deve permitir ao professor gerenciar o andamento das atividades, sem que uma possível insuficiência de conhecimentos específicos sobre a Natureza da Ciência prejudique significativamente toda a proposta. Para minimizar estes problemas, é imprescindível que o professor participe de atividades de preparação que, no nosso presente caso, consistem em promover previamente a discussão de um texto de suporte, além da discussão de cada um dos textos da unidade de ensino, juntamente com o repasse de cada slide das apresentações eletrônicas. Esta preparação, além de otimizar a implementação do material educativo, acaba por se constituir como uma atividade de formação continuada, e parte de nossos propósitos com essa pesquisa é justamente estabelecer alguns facilitadores nesse sentido.

Mesmo considerando que não se pretende transformar o professor em historiador ou epistemólogo da ciência, é possível desenvolver ações que busquem fornecer-lhe elementos para lidar com os desafios dos usos da HFC em ambiente escolar, principalmente durante sua formação inicial e em projetos de extensão voltados à formação continuada de professores em serviço [53][53] Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, op. cit., p. 49..

Os textos e apresentações constituem três momentos didáticos (um texto e uma apresentação para cada momento), que consideramos como episódios centrais para as discussões pretendidas. O primeiro momento, Um despertar na Grécia, faz uma contextualização dos temas a serem discutidos, com uma ênfase no contexto da antiga Grécia em relação às tentativas de se compreender o cosmos. Nosso objetivo foi apresentar alguns conceitos importantes para as discussões posteriores, como as hipóteses ad-hoc e a sugestão do papel hipotético das teorias científicas. Ainda, as discussões a respeito dos dois sistemas, geocêntrico e heliocêntrico, formam a base para os desenvolvimentos posteriores, utilizados como área temática para as discussões sobre a Natureza da Ciência.

Após essas primeiras discussões envolvendo as tentativas de se defender um ou outro sistema, o segundo momento didático, A supremacia da gravidade, entra mais profundamente nos aspectos relacionados ao enfrentamento de qual teoria é supostamente melhor, ou seja, os procedimentos de escolha entre teorias rivais. Nesse segundo momento didático, abordamos frontalmente os elementos da epistemologia de Lakatos, aproveitando o profícuo contexto do surgimento da Gravitação universal de Newton, momento para ricas discussões a respeito da força de uma teoria (força heurística) e elementos de teste de hipóteses. No terceiro momento, A gravidade revisitada, essas questões são estendidas ao contexto da fase de regressão da Gravitação newtoniana e progressão da Gravitação einsteiniana, permitindo um aprofundamento dos assuntos referentes à Natureza da Ciência, ilustrados aqui pela epistemologia de Lakatos [27][27] I. Lakatos, in: A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, editado por I. Lakatos e A. Musgrave (Cultrix, São Paulo, 1979), p. 109-243..

Em todos esses momentos didáticos, pretendemos trazer importantes conceitos da Gravitação. Contudo, não foi nosso propósito estruturar uma unidade de ensino que substitua esse tópico específico do currículo da disciplina de física no Ensino Médio. Assim, por exemplo, procuramos discutir as contribuições de Kepler ao tema, mas não propomos situações envolvendo suas três leis. Da mesma forma, detemo-nos em boa medida na Gravitação newtoniana, mas não sugerimos exercícios usando a equação da Gravitação universal presente nos livros didáticos. Devemos ratificar que nosso propósito foi a discussão dos elementos da Natureza da Ciência pretendidos, embora os conceitos específicos da física sejam parte importante e indissociável dessa proposta. Deste modo, vemos nesta unidade de ensino um material sem vínculos obrigatórios com uma determinada etapa do currículo de física. Contudo, pensamos que sua implementação possa se somar à unidade de Gravitação, sendo que uma implementação anterior ao conteúdo desse tópico pode servir como uma excelente contextualização ao ensino dos elementos curriculares específicos, como as Leis de Kepler e a Lei da Gravitação Universal.

5. O retorno dos alunos

Os resultados gerais, para ambas as turmas onde a unidade foi implementada, foram bastante similares. Apresentaremos a seguir alguns resultados obtidos com a turma A, com um total de 34 alunos e alunas participantes. Deste total, avaliamos nessa pesquisa os questionários de 29 alunos, excluindo 5 que apresentaram questões em branco, mas consideramos todos os 34 alunos no questionário de receptividade, apresentado logo mais.

Em uma das etapas da unidade de ensino, os alunos realizaram uma atividade em grupo que consistia na avaliação de trechos a respeito da Natureza da Ciência, presentes em alguns livros didáticos [54][54] Cassiano R. Pagliarini, Uma Análise da História e Filosofia da Ciência Presente em Livros Didáticos de Física para o Ensino Médio. Dissertação de Mestrado, Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo, 2007, p. 65.. Para a realização dessa atividade, os alunos se dividiram em 5 grupos, cada grupo recebendo uma folha com dois trechos de livros didáticos de física versando sobre algum aspecto da atividade científica, na visão do autor. A equipe deveria ler com atenção e discutir o que era afirmado, emitindo um parecer sobre sua visão a respeito. Os alunos não foram instruídos a respeito de como deveria ser esse parecer, se deveria conter necessariamente os elementos discutidos em sala, mas com essa atividade pretendemos avaliar se eles mobilizariam esses conhecimentos. Após a deliberação das equipes, alguns representantes de cada uma fizeram a leitura de seu parecer parar toda a turma, que poderia também se manifestar a respeito.

Os resultados dessa atividade foram, de modo geral, bastante positivos, com os alunos discutindo eloquentemente. Apresentamos nos Quadros 1 e 2 alguns trechos dos pareceres redigidos.

Quadro 1:
Pareceres do grupo A.
Quadro 2:
Pareceres do grupo C.

No penúltimo encontro foi realizada uma atividade avaliativa individual, para um maior retorno em relação às aprendizagens esperadas pelos alunos. Ambos os professores participantes da pesquisa acharam por bem considerar o resultado dessa avaliação como um indicador a ser incluído nos registros habituais de notas dos alunos, ao longo do semestre. Julgamos essa escolha acertada, para uniformizar essa atividade em relação ao andamento dos conteúdos previstos para o semestre. Apesar de essa unidade de ensino ser diferenciada em seu propósito e conteúdos trabalhados, ela se constitui como possível inclusão (como de fato é nossa intenção) no andamento de qualquer classe de física do Ensino Médio, por meio da intenção de qualquer professor interessado em trabalhar os assuntos presentes na unidade.

Para estabelecer um critério de valoração de modo a permitir que pudéssemos avaliar de alguma forma as aprendizagens esperadas, fizemos uma categorização [58][58] K. Charmaz, A Construção da Teoria Fundamentada: Guia Prático Para Análise Qualitativa (Artmed, Porto Alegre, 2009). para cada resposta, como se segue: Quando a resposta não se relaciona claramente com o pretendido para a questão, categorizamos essas como respostas inconclusivas. Ao lermos todas as respostas, sentimos a necessidade de criar essa categoria para classificar aquelas que, mesmo com alguma coerência, não respondem à questão. Quando julgamos a resposta do aluno inadequada em relação aos aspectos pretendidos para o tema em discussão, usamos a categoria indício fraco. Ou seja, atribuímos um indício fraco de aprendizagem a essas respostas. Quando a resposta contém alguma inconsistência, mas demonstra, em seu todo, aspectos considerados adequados em relação ao pretendido, atribuímos um indício moderado. Por fim, quando a resposta demonstra uma boa desenvoltura, estando significativamente próxima ao pretendido para a questão, usamos um indício forte.

Com o intuito de ilustrar nosso processo de categorização, apresentaremos nas tabelas a seguir algumas questões e respectivas intencionalidades para cada uma, e discutiremos alguns resultados obtidos juntamente com trechos representativos de cada categorização. Para nos referirmos a cada aluno, usaremos uma notação simples que indica o número do aluno em uma listagem do total de alunos da turma. Enfatizamos que essas categorizações refletem a visão do pesquisador nesse sentido, uma subjetividade que é inevitável em qualquer avaliação desse tipo.

As questões oferecidas aos alunos por meio de questionário, visando a mobilização individual de seus conhecimentos, versaram sobre aspectos da Natureza da Ciência discutidos ao longo da unidade de ensino. Os resultados gerais obtidos com a turma, a partir da categorização realizada conforme descrito anteriormente, são apresentados na Tabela 1.

Tabela 1:
Resultados gerais a partir da categorização realizada para as respostas dos alunos ao questionário.

A apresentação de todos os resultados obtidos tornaria esse artigo demasiadamente longo, do que seguimos com alguns exemplares. A primeira questão, dividida em sete itens, visou a manifestação do aluno em relação a diversas afirmativas sobre aspectos da Natureza da Ciência, solicitando a ele uma avaliação a respeito. O primeiro item, que apresentamos na Tabela 2 como exemplar, “Os antigos gregos se destacaram na história por suas tentativas de explicar a natureza sem recorrer à mitologia, o que ocasionou teorias corretas para os fenômenos observados no céu”, intentou fazer o aluno expor sua visão sobre os assuntos discutidos sobre a antiga Grécia, contexto histórico que constitui o início das discussões promovidas na unidade de ensino. Ao sugerir que os antigos gregos elaboraram teorias corretas para os fenômenos naturais, pretende-se avaliar se o aluno identifica o termo “teorias corretas” como inadequado, elemento que julgamos importante em relação à superação de uma visão de ciência acabada, de teorias definitivas. Consideramos que “teorias corretas” remete a resultados inquestionáveis, que contradizem os aspectos discutidos nas aulas sobre teorias progressivas, que tão só (o que julgamos muito) são metodologicamente tidas como melhores que outras.

Tabela 2:
Exemplares de respostas dos alunos à primeira afirmativa da primeira questão.

A segunda afirmação da questão 1, “Experimentos servem para provar uma teoria”, apresentada na Tabela 3, visou obter do aluno sua visão a respeito da experimentação realizada na ciência, para avaliar em que medida essa visão supera concepções ingênuas relacionadas tanto à experimentação como elemento decisório a favor (ou contra) de uma teoria, quanto à imagem de “prova” como condição definitiva de uma teoria. Esse último elemento guarda uma polissemia que exige diferentes olhares para diferentes respostas, uma vez que mesmo Karl Popper, filósofo da ciência que muito insistiu na impossibilidade de provar teorias, usava esse termo como condição de teste.

Tabela 3:
Exemplares de respostas dos alunos à segunda afirmativa da primeira questão.

Na medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas, e não seja suplantada por outra, no curso do progresso científico, poderemos dizer que ela “comprovou sua qualidade” ou foi “corroborada” pela experiência passada [59][59] K. Popper, A Lógica da Pesquisa Científica (Cultrix, São Paulo, 1993), p. 34..

Assim, pode-se provar uma teoria por meio de experimentos, em um sentido de teste, mas não se pode provar uma teoria em um sentido definitivo, de terminantemente provada, inquestionável.

Outro exemplar, mostrado na Tabela 4, é a sétima e última afirmativa da primeira questão: “O método científico, que os cientistas seguem, consiste em: a) observação dos fenômenos, b) medida de suas grandezas, c) constatação de padrões e d) indução das leis e teorias científicas”. Essa afirmativa teve a clara intenção de fazer o aluno a se manifestar em relação a um suposto método científico bem definido, uma cartilha que os cientistas seguem em suas pesquisas.

Tabela 4:
Exemplares de respostas dos alunos à sétima afirmativa da primeira questão.

O último exemplar que trazemos, apresentado na Tabela 5, é a quinta questão do questionário, que solicitou ao aluno se posicionar como um juiz que precisa decidir entre teorias concorrentes, sugerindo critérios para se escolher a melhor teoria. Apesar de a questão não sugerir que esses critérios devessem ser baseados nos elementos da Natureza da Ciência discutidos ao longo da unidade de ensino, seu propósito claramente remeteu a um uso adequado dos termos centrais discutidos. Apesar de o aluno já ter sido solicitado a se posicionar em relação a alguns conceitos dos elementos da Natureza da Ciência estudados, com essa questão pretendemos avaliar em que medida o aluno mobilizaria aqueles conceitos em uma argumentação a favor de uma teoria.

Tabela 5:
Exemplares de respostas dos alunos à quinta questão.

Apesar de termos obtido uma boa visão geral do envolvimento dos alunos ao longo das atividades, e também de algumas dificuldades, ao término da unidade de ensino fornecemos aos alunos um pequeno questionário para averiguar sua visão a respeito da unidade de ensino trabalhada. Mais especificamente, perguntamos o que os alunos acharam das aulas e do material didático, se eles tiveram alguma dificuldade, e se gostariam que esse tipo de discussão estivesse presente também em outros momentos da disciplina de física. Mostramos esses resultados no Quadro 3. De todo modo, o que realmente nos interessou foi ter ciência de todas as respostas dos alunos, do que mostramos nas Tabelas 6- 9, alguns exemplares das categorias mostradas no Quadro 3. Ainda, importante mencionar que o aluno não foi identificado de modo algum, não colocando seu nome no questionário, para que pudesse responder de modo mais confortável e sincero possível, do que não fizemos uma codificação em relação ao autor de cada resposta, indicado apenas por A (aluno).

Tabela 6:
Exemplares das respostas dos alunos à primeira questão do questionário de receptividade: “1. O que você achou das aulas sobre a Natureza da Ciência e a Gravitação? Comente”.
Tabela 7:
Exemplares das respostas dos alunos à segunda questão do questionário de receptividade: “2. O que você achou do material didático?”.
Tabela 8:
Exemplares das respostas dos alunos à terceira questão do questionário de receptividade: “3. Que dificuldades você encontrou ao longo das aulas?”.
Tabela 9:
Exemplares das respostas dos alunos à quarta questão do questionário de receptividade: “4. Você gostaria que esse tipo de discussão que fizemos estivesse presente também em outros conteúdos de Física?”.
Quadro 3:
Categorização das respostas dos alunos ao questionário de receptividade.

Ficamos satisfeitos com os resultados obtidos, onde os alunos sugeriram uma receptividade bastante positiva em relação à proposta como um todo. A ampla maioria de alunos também sugeriu que gostaria que que esse tipo de discussão estivesse presente em outros conteúdos da física, e mesmo em outras unidades curriculares, conforme algumas respostas.

Chamou nossa atenção que alguns alunos, cujas respostas indicam uma baixa receptividade, sugeriram que esse tipo de discussão não poderia ser feito em conteúdos com cálculos, “não tendo muita teoria nem assunto para discutir”. Ainda, outro aluno sugeriu que prefere os cálculos. Pensamos que isso indica uma concepção inadequada da própria unidade curricular de física, concepção essa causada pelo ensino, naturalmente. Uma parcela considerável dos alunos que demonstraram ser bastante favoráveis às discussões feitas, como indicam as respostas à quarta questão, apontaram como essas discussões alteram a imagem que tinham da física. Percebemos como muitos alunos tem uma visão empedernida da física, onde “a aula geralmente é uma montanha de fórmulas sem contexto”, citando uma frase que consideramos bastante sugestiva.

6. O retorno dos professores

Após a finalização da implementação da unidade de ensino, conduzimos uma entrevista com cada professor, para averiguar alguns aspectos a respeito de suas visões sobre as atividades realizadas. As informações obtidas com essas entrevistas formaram um importante conjunto de dados utilizados para tecermos nossas considerações à guisa de conclusão de nosso trabalho, mais à frente.

Entrando na parte da entrevista voltada diretamente às atividades realizadas ao longo da unidade de ensino e ao material produzido para esse fim, perguntamos primeiramente a respeito dessa unidade como um todo, sobre como o professor avaliou sua estrutura. Tivemos, ao nosso ver, uma receptividade muito positiva a esse respeito, apesar de algumas importantes ressalvas a serem relevadas. O professor A comenta:

Eu achei que ela foi bem clara, e ela segue um norte, que é chegar à conclusão que uma teoria, ela nunca está terminantemente fechada, ou acabada, enfim, ela é suscetível a mudanças. E eu acho que isso ficou bem claro, né. Os textos eu achei que ficaram excelentes, a linguagem do texto ela é clara e acessível, principalmente pro aluno, né, e junto com as figuras e com a própria apresentação dos slides, eu acho que ficou muito fácil a compreensão (Professor A).

O professor B também demonstrou uma boa receptividade em relação à unidade como um todo:

No geral ela tá muito bem estruturada. Ela tem textos bem construídos, que não são cansativos pro aluno, que trazem coisas que eles nunca viram no livro didático e nem em outras fontes. Então... as apresentações estão bem conectadas com o texto, elas complementam bem o texto (Professor B).

Perguntamos a seguir aos professores a respeito de sua visão a respeito da eficácia da unidade de ensino, no sentido de mobilizar o interesse do aluno e propiciar a ele os elementos básicos da Natureza da Ciência propostos. Lembrando Gowin, quando sugere que o entendimento do aluno costuma vir acompanhado de uma reação positiva a esse respeito, o professor A lembra do momento onde os alunos teceram considerações a respeito de trechos de textos sobre a atividade científica:

Então, eu acredito que foi muito válido, também até observando o comportamento dos próprios alunos. Isso pode ser visto quando eles responderam aquelas questões relacionadas aos extratos dos textos, dos livros didáticos. Muitos alunos riram, eles riam da forma como era afirmado e como era colocada no livro, né, principalmente em relação à queda da maçã. Então essa reação do aluno, com aquela afirmação, e exporem o porquê que isso não pode ser admitido como verdade, eu acho que já... isso já é um sucesso, digamos assim, da própria unidade de ensino. Já mostra que alguma coisa já ficou com eles (Professor A).

Pudemos constatar a partir do retorno dos alunos, de forma geral, que realmente “alguma coisa ficou com eles”, como o professor A mencionou. Essa percepção do professor também é compartilhada por nós, como discorreremos na sequência desse trabalho. Também consideramos interessantes as reações dos alunos na atividade sobre os trechos dos livros didáticos, conforme relatamos nessa seção, anteriormente. O professor parece ter percebido o “tom geral” da turma em relação à nossa proposta como um todo, que realmente esteve ao encontro de nossas expectativas (ainda que com aspectos a melhorar, como discutiremos em nossa conclusão).

O professor B também foi positivo em sua avaliação:

Considerando que essa é certamente a primeira vez que eles têm contato com uma discussão desse tipo, então a eficácia foi muito grande. Porque eles partiram do zero, praticamente, não necessariamente todos, né, mas... saíram praticamente do senso comum, e eles conseguiram se apropriar de pelo menos dois conceitos fundamentais, que é a força heurística e explicação ad hoc (Professor B).

Apesar de o professor B ter exemplificado a apreensão dos alunos por meio dos conceitos de força heurística e explicação ad hoc, consideramos que a abrangência de seus significados seja muito maior, como apontaremos mais adiante. De modo geral, ambos os professores demonstraram uma ciência positiva em relação ao impacto da proposta sobre os alunos, e também em relação às possíveis otimizações do material.

Ambos os professores fizeram, em suas respostas integrais até esse ponto da entrevista, alguns apontamentos a respeito de algumas limitações do material e dificuldades ao longo dos trabalhos com ele, mas fizemos na sequência a pergunta do roteiro específica a esse respeito, ou seja, sobre quais dificuldades o professor encontrou ao trabalhar com essa unidade de ensino. Percebemos que o professor A foi mais específico em relação às atividades desenvolvidas e o professor B comentou sobre elementos mais abrangentes da educação. O professor A comenta:

Assim... eu posso dividir essas dificuldades em duas classes, digamos. Uma dificuldade minha, como professor, e outra dificuldade, no caso, da relação professor-aluno, professor-turma, no caso de desenvolvimento de uma aula. As mais relevantes que eu cito pode ser o que: a atenção da turma durante todo o período de discussão dos textos, aí retorna aquela discussão das questões anteriores, de que eu posso ter deixado muito tempo aberto, ou deixar os alunos divagarem muito, né, então isso acabou... às vezes saía daquela linha de raciocínio que a gente estava, e a turma dispersava um pouco [...] Eu percebi que meio que polarizou algumas partes da sala. Alguns alunos contribuíram muito, que às vezes tinha que até tentar cortar levemente, pra eles não tomarem conta da aula, e alguns não contribuíram nada. Esse é outro problema que eu não atribuo à unidade de ensino em si, porque é uma coisa inerente à turma. Quando o aluno é mais fechado, ele é mais fechado e não vai contribuir mesmo. E eu como professor, no caso, eu tive dificuldade porque eu não conhecia, por exemplo, a filosofia de Lakatos. Além disso, alguns conteúdos lá da relatividade geral, por exemplo, eu tive que reestudar, pra eu não dar bobeira lá (Professor A).

Parece que o problema maior, segundo o professor, é justamente a dinâmica de envolvimento da turma e sua gerência. Nesse sentido, concordamos com o professor que isso seja um elemento mais associado às características da turma do que propriamente da proposta oferecida a eles. O professor cita, em sua resposta integral, o problema de seu desconhecimento da epistemologia trabalhada com os alunos, apesar de não ser nossa intenção que o professor seja necessariamente conhecedor desse tema para trabalhar com o material, uma vez que nossos esforços pretenderam contemplar o cuidado didático desse, inclusive ao professor, com o texto a respeito da filosofia de Lakatos. Pensamos que esse tipo de dificuldade é esperada e comum em qualquer proposta que traga elementos não tradicionais ao ensino de física, nesse nível de ensino (e, por se tratar do Ensino Médio, isso vale também para a Gravitação de Einstein). Ficamos agradecidos com a probidade do professor, e percebemos que sua condução dos assuntos sobre a epistemologia esteve bastante consoante aos elementos trazidos no texto a esse respeito.

O professor B, como mencionado, fez algumas considerações de âmbito mais geral da educação:

A dificuldade é porque quando você trabalha com outra perspectiva filosófica, você quer alargar o horizonte epistemológico do aluno, enquanto a educação geral... ela faz o contrário, na educação básica, né, ela estreita o horizonte epistemológico do aluno, apresentando conteúdos de ciência despersonalizados, descontextualizados, dessincretizados... quando você quer alargar o horizonte epistemológico, você tem que refazer o contrato didático do aluno. Pra mim essa é a maior dificuldade. E mudar esse contrato com um trabalho é pequenininho, um mês, não dá, você vai perturbando o contrato didático ao longo de um ano inteiro pra você obter um resultado. Então a dificuldade tá alí... alguns alunos não compreenderam qual era a proposta... que era ler, era discutir, era perguntar, era... confrontar o colega e fazer uma discussão com ele. Esses alunos ficaram calados, e pelas respostas na avaliação não se apropriaram dos assuntos (Professor B).

E apesar da constatação de que alguns alunos não se apropriaram dos assuntos, pensamos julgamos bastante importante outro trecho da resposta do professor:

Ah, uma coisa, eles pediram pra fazer isso ano que vem de novo. “Professor, ano que vem vamos fazer isso de novo com outro conteúdo?”. Eles vieram solicitar isso. Eles gostaram de fazer um estudo de ciência que não fosse operativo, né, de fazer cálculos, mas fosse histórico filosófico. Então os alunos pediram, esses alunos que participaram querem de novo, e os alunos que ficaram muito quietos na sala de aula já têm essa característica, de não participar muito, tá, esses alunos daí... a dificuldade foi que eles não se apropriaram da nova proposta. Enfim, tem que fazer o trabalho de novo, tem que insistir com esses alunos, que uma hora eles entram na jogada, entendeu, é que tem que insistir mais com esses alunos, normal, né? (Professor B).

Inicialmente o professor comenta a respeito de uma dificuldade extrínseca ao material, que seria o rompimento com uma forma hegemônica de ensino que funciona por meio de uma transposição que retira o pensamento histórico e epistemológico dos conteúdos de física. Também vemos em propostas como essa uma perturbação no modus operandi típico escolar. E pensamos que isso é, em princípio, algo positivo. Sobre o trabalho específico com o material, o professor lembra dos alunos que foram pouco participativos, não tendo o mesmo aproveitamento que outros alunos, conforme indícios obtidos ao longo das aulas e com o questionário. Mas conforme o professor, esses alunos pareceram possuir essa idiossincrasia, anteriormente à implementação da unidade de ensino. Concordamos que se deva sempre insistir com esses alunos.

Complementando a pergunta anterior, questionamos a respeito de quais elementos o professor mudaria nesta proposta. O professor A responde:

Achei os textos muito interessantes, né, mas mudaria... os textos não, as apresentações também não, talvez diminuir o tempo de discussão. Né, porque duas aulas foi muito... como a gente já comentou, alguns alunos começaram a divagar muito, então tentaria acelerar a discussão, por mais que ficasse até um pouco corrido, evitando a dispersão da turma. Outro ponto, que já comentei, seria essa proposta dos alunos formularem as hipóteses, mas não só formularem, e irem atrás e tentar corroborar ou não aquelas hipóteses deles. Mesmo com coisas bem simples, como os furos na parede, ou porque a árvore está torta, esse tipo de coisa (Professor A).

Em sua resposta o professor sugere uma diminuição no tempo para as discussões, apesar de considerarmos que isso seja mais uma questão de condução da turma do que propriamente do planejamento da aula. De todo modo, concordamos que seja possível otimizar o tempo destinado às discussões, desde que isso não represente uma diminuição no envolvimento coletivo da turma.

O professor B sugere brevemente:

O que eu trabalharia primeiro é incluir um momento extra que seria usando alguma metodologia... de debate, como um júri simulado. E estimular que o aluno defenda um lado que ele não concorda, que ele se aproprie daqueles argumentos pra defender (Professor B).

Julgamos pertinentes as observações do professor, e consideramos importante mencionar que uma atividade de júri simulado foi pensada ao longo de nossos planejamentos das aulas, mas por questões de calendário acadêmico (afetado por uma greve em ambas as instituições de ensino), tivemos que fazer alguns ajustes para contemplar o que julgávamos essencial. Não temos dúvidas de que esse tipo de atividade pode ajudar no processo de mobilização dos conhecimentos apreendidos pelos alunos, e pretendemos contemplar parte dessa intenção com a atividade sobre os pareceres dos trechos dos livros didáticos, a respeito de alguns elementos da atividade científica. A julgar pelo resultado geral das respostas ao questionário, pensamos que os alunos entenderam em boa medida as questões solicitadas. Mas concordamos, conforme já sugerimos e ainda discutiremos mais à frente, que alguns pontos podem ser melhorados.

Aproximando-se do final da entrevista, perguntamos aos professores se eles usariam materiais como esse mais frequentemente em sua prática, caso fossem mais acessíveis, em livros e sites, por exemplo. O professor A, em sua resposta integral, tece algumas sugestões a respeito do trabalho com propostas semelhantes. Diretamente sobre a pergunta, comenta:

Isso poderia ser utilizado já no primeiro ano, já nas primeiras aulas, fazer algo... pra eles pensarem mesmo. Pra eles discutirem, pra física não começar já no primeiro ano com aquela coisa, com aquela matematização. O aluno já vai ter um outro olhar, “ôpa, mas física não é só número?” [...] Então, se tivesse mais acesso, eu usaria com certeza (Professor A).

O professor A sugere que esse tipo de proposta poderia se estender a outros conteúdos (sendo que as pesquisas em ensino de física efetivamente têm propiciado outras propostas semelhantes). Alguns anseios do professor também são os nossos, como trazer esse tipo de discussão já para o primeiro ano do Ensino Médio.

O professor B enfatiza a questão da disponibilidade de materiais:

Olha, mesmo que assim... olha, é minha experiência pessoal, eu também trabalho com essa área, e mesmo eu que trabalho nessa área tenho dificuldade de fazer [materiais], então imagina quem não trabalha. Então multiplica por dez a dificuldade, então... é claro que a dificuldade de incorporar isso no Ensino Médio é a disponibilidade do material. [...] A realidade do brasil é que, como falta professor, falta professor de ciências, falta professor de física, os professores têm que dar “trocentas” aulas, a realidade é que o professor tem muito pouco tempo de preparação, então fica impossível o professor do Ensino Médio preparar material, então esse material tem que aparecer. E tem que aparecer já com uma proposta didática, de aplicação, entendeu, como foi a tua proposta. Aquilo... veio uma proposta já estruturada, de como aplicar, de sugestão de avaliação, de atividades, e isso aí facilita por demais assim... pra você aplicar, então o professor se sente seguro de que alguém mais experimente, e que estudou muito aquele tema, estruturou... fica um chão mais seguro (Professor B).

Também concordamos que a disponibilidade de materiais deve ser uma preocupação, mas pensamos que a disponibilidade é condição necessária, mas não suficiente, para se promover um ensino mais preocupado com questões a respeito da Natureza da Ciência.

Como percebemos um pouco de resistência à leitura dos textos, por parte da turma B, finalizamos a entrevista com o professor B perguntando sobre sua visão a respeito do uso dos textos nas aulas, e também sobre novas possibilidades de se usar o material produzido para a unidade de ensino.

O Brasil tem um problema de leitura, com os alunos. Os alunos não leem. Mas os alunos têm que ler! Então é lógico que não é fugindo desse problema... não, tem que trabalhar com texto sim [...] E eu não vejo problema estrutural no texto. É um texto que tá no tamanho certo. Não é cansativo de ler aquele texto. É um texto adequado pra o Ensino Médio. Então pra mim tem que continuar trabalhando com texto. O que poderia ser feito é trabalhar com hipertexto (Professor B).

Complementando essa questão, perguntamos ao professor se ele usaria esse material em forma de hipertexto, do que ele responde:

Com toda a certeza! Sem dúvida nenhuma. E seria até interessante incluir nesse site alguma coisa formativa para o professor que vai usar. Se isso estiver em um hipertexto, num site, acho que vai ser fantástico, pro aluno poder usar, usar no celular em sala de aula, consultar o hipertexto, ler o texto até no celular, ler num tablet... seria a cereja do bolo, ser transformado em hipertexto. E como eu falei, não tem que fugir do texto. Tem que incorporar coisas ao texto (Professor B).

Estaremos, a partir de agora, estudando adaptações no sentido de contemplar essa sugestão do professor, que naturalmente é também nossa intenção. E também concordamos a respeito de que não se pode prescindir do uso de textos nessas atividades. Em sua resposta integral, o professor sugeriu ser “conservador” a esse respeito, dizendo que não se pode “fugir” do uso de textos, o que não consideramos um conservadorismo, ao menos não em um sentido de reacionarismo didático. Pensamos que, e também à semelhança do professor, esse tipo de tema exige textos que guiem a sequência didática. E talvez sejamos ainda mais “conservadores” no sentido de que, ao nosso ver, o trabalho com textos é algo que deve ser cada vez mais incentivado. O texto exige do aluno que ele mobilize faculdades mentais de atenção e abstração, e se existem resistências ao seu uso é mais por uma (ir)responsabilidade escolar, pensamos, que não tem feito esforços suficientes para que os alunos leiam cada vez mais, do que propriamente uma idiossincrasia desses alunos.

7. Conclusão

Apresentamos a seguinte síntese em relação às questões norteadoras de nossa pesquisa: os alunos foram bastante receptivos em relação à proposta como um todo, ficando na maior parte do tempo curiosos e participativos. Constatamos alguns momentos onde isso é potencializado, particularmente ao longo das exibições dos vídeos, durante as apresentações eletrônicas, na atividade de ilustração de hipóteses formulada pelos alunos, e na atividade sobre os trechos dos livros didáticos. Quanto aos professores, houve igualmente um interesse evidente com os assuntos presentes na proposta didática. Tanto em relação ao tema quanto em relação à sua abordagem histórica e epistemológica. Ambos os professores avaliaram de forma bastante positiva toda a proposta, particularmente em relação aos textos e apresentações.

Podemos associar a influência de nosso material com sua eficácia em mobilizar, junto ao aluno, os elementos abordados sobre a Natureza da Ciência. Conforme suas falas apresentadas nas seções anteriores, vemos uma clara eficácia da proposta, com a grande maioria dos alunos apresentando uma desenvoltura notável em suas respostas. Percebemos um bom nível de sofisticação nas visões apresentadas, e particularmente uma boa reprodução (crítica) dos assuntos comentados do ponto de vista da epistemologia de Lakatos. Entendemos que houve uma boa mobilização, por parte do aluno, da noção de que a ciência se apoia primordialmente em estruturas teóricas em relação aos seus aspectos empíricos, diminuindo significativamente uma imagem empírico-indutivista da atividade científica.

Os dois professores participantes da pesquisa se mostraram, em maior ou menor grau, à vontade com o andamento das atividades, de modo geral. Especificamente em relação à unidade de ensino, as dificuldades mais presentes estiveram em torno do andamento previsto pelos planos de aula, o que de modo algum vemos como algo essencialmente problemático (nossa visão a esse respeito implica em que uma boa aula, aquela que centraliza o aluno em seus processos, fugirá quase necessariamente dos planos de ensino). Em menor grau esteve a dificuldade com o assunto específico de epistemologia, mais por parte de um dos professores, o que, como comentamos, não afetou de modo substancial sua exposição em sala. Do que resta as dificuldades inerentes às vicissitudes da sala de aula como um todo, que não associamos à nossa proposta.

A partir das respostas apresentadas pelos alunos, juntamente com a observação de suas falas ao longo das aulas, percebemos algumas dificuldades mais voltadas à compreensão inicial dos conceitos da gravitação einsteiniana e dos elementos apresentados sobre a Natureza da Ciência. O que, mais uma vez, associamos à apreensão de conceitos novos, não necessariamente em relação à nossa proposta. Por isso a importância das revisitações, por meio de atividades realizadas pelos alunos, além da exposição do professor. Contudo, podemos citar aqui algumas dificuldades mais pontuais com o conceito do princípio da equivalência, no contexto einsteiniano da gravitação, e no conceito de núcleo firme, no contexto da epistemologia tratada. Isso sugere uma maior atenção a esses termos, por parte do professor, ao longo de toda a implementação da unidade de ensino.

Em relação ao nosso objetivo de construir um conjunto de recomendações para uma implementação adequada de nossa proposta, trazemos a seguir algumas constatações mais relevantes e sugestões decorrentes.

  1. Os alunos utilizam os materiais como fonte confiável para a realização de atividades e consultas várias. Assim, apesar das possíveis resistências à leitura (ou devido a essas), por parte do aluno, o professor deve incentivar esses momentos. Percebemos que existe uma heterogeneidade em relação ao envolvimento com o texto. Alguns alunos ficaram bastante interessados na leitura, e explicitaram isso em algumas respostas sobre a receptividade do material. Entrementes, ficou clara a resistência por parte de outros alunos. De modo geral, percebemos que os alunos não gostam de ler em sala de aula.

  2. Não percebemos um obstáculo significativo relativo à introdução de termos específicos da filosofia da ciência, como os apresentados em relação à epistemologia de Lakatos. Contudo, pensamos que o uso reduzido desses termos seja um critério de parcimônia desejável, em função de o aluno já estar sujeito a conteúdos e abordagens pouco usuais para ele. A memorização precisa dos termos específicos que aparecem em nossas narrativas sobre a Natureza da Ciência são menos importantes, pensamos, que os processos a que eles se referem. Muitos alunos mobilizaram adequadamente esses termos, como hipóteses ad hoc e força heurística, mas percebemos que mesmo os alunos que não utilizaram esses termos demonstraram perceber os significados básicos correlatos a eles. Não pensamos que trazer ao aluno toda uma gama de elementos da teoria do conhecimento fosse desejável, ao menos no caso específico de nossa proposta. Pensamos que, como em qualquer atividade de ensino, o aluno vai lenta e progressivamente adquirindo sentidos para esses termos, de um modo dinâmico e mais significativo do que simplesmente apresentá-los como sucessivos verbetes. Quanto a contemplar todos os aspectos tidos por consensuais para a Natureza da Ciência, com a mesma profundidade de tratamento, pensamos não ser algo factível em um único trabalho. Nossa proposta se configura como um início adequado para um processo contínuo ao longo de toda a formação escolar do aluno.

  3. O professor implementador da proposta não deve se eximir de uma leitura atenta e compromissada do texto de apoio. Devido às especificidades de nossa abordagem, pouco presente nas aulas de física, vemos como imprescindível essa etapa para dirimir possíveis dúvidas iniciais em relação aos assuntos a serem trabalhados com os alunos, e para adquirir a desenvoltura necessária ao bom andamento das atividades. O mesmo vale para o acompanhamento atento dos planos de ensino, uma vez que o conjunto de preparações realizadas pelo professor são parte direta de nossa proposta. Constatamos que o aluno frequentemente conduz as discussões para aspectos não contemplados pelos materiais: “Por que o Sol está nessa posição no sistema geocêntrico?”, “No vídeo com o Sol desaparecendo, o que aconteceria com nós quando [a Terra] saísse pela tangente? O que aconteceria com a vida na Terra?”, “Como sabemos que é o espaço que é curvo e não apenas a luz?”. Esse tipo de curiosidade bastante positiva causará alterações (inevitáveis e mesmo desejáveis) na programação pensada. Pensamos que isso passa por um equilíbrio entre resolver a curiosidade do aluno e retomar o planejado para a referida aula, e por isso mesmo os planos de ensino não devem ser vistos como algo “engessado”. Mas ter ciência deles é o que justamente permite uma aula dialógica, sem que se perca a organização geral.

  4. A atividade de discussão sobre os trechos de livros didáticos produziu um excelente envolvimento dos alunos. Esse envolvimento sugere que nessa atividade muitos elementos ainda não suficientemente compreendidos pelos alunos podem ser elucidados, pelo professor e pelos próprios alunos. Assim, sugerimos atenção especial a essa atividade, por parte do professor. As discussões entre os alunos se demonstrou muito produtiva em boa parte do tempo destinado para tal, mas pudemos perceber que o empenho dos alunos diminuiu com o alongamento da atividade. Na aula do debate sobre os trechos dos livros, os alunos discutiram efusivamente na primeira metade, diminuindo sensivelmente na segunda. E o mesmo ocorreu com a apresentação dos pareceres, onde o primeiro parecer de cada grupo foi recebido com bastante atenção e discussão pela maioria dos alunos, e o segundo parecer já ocasionou uma receptividade mais branda. Por isso, pensamos que outras implementações devam cuidar com o tempo para essas atividades, mas manter ou mesmo ampliar o alcance das mesmas. Isso pode ser conseguido com uma maior flexibilidade na programação do número de aulas disponíveis, onde essa atividade de discussão e pareceres dos grupos esteja fracionada.

  5. Os alunos ficam bastante atraídos com os vídeos exibidos nas apresentações eletrônicas e em boa parte dessas. Mais uma vez, o professor deve atentar e aproveitar esses momentos para retomar os elementos mais centrais das discussões, sempre mantendo o aluno no centro das conversas. No contexto do teste da gravitação de Einstein, os alunos ficaram bastante atentos, o que se mostrou ainda como um grande facilitador para as discussões sobre os elementos da Natureza da Ciência discutidos. O que nos mostra que, mesmo nosso objetivo precípuo sendo o ensino desses elementos, os exemplares escolhidos para tal (em nosso caso, a Gravitação) devem ser cuidadosamente trabalhados, uma vez que desses exemplares surgirá a necessidade do aluno querer pensar a respeito dos temas pretendidos.

  6. Muitos alunos se mostraram desejosos em participar quando questionados, e pensamos que isso pode ser uma estratégia a ser mais bem trabalhada. Quando os professores discutiram a noção de hipótese ad hoc, muitos alunos desejaram dar sua contribuição, e, portanto, pensamos que essa atividade possa ser ampliada, envolvendo inclusive uma sistematização nesse sentido. Nesse momento, onde o aluno fica em contato direto com alguns modos de proceder da ciência, o professor pode aproveitar para enfatizar algumas características, como a imaginação do cientista. Sugerimos um acréscimo ao tempo didático destinado para essa atividade, a depender da percepção do professor quanto à relação entre produtividade e interesse por parte dos alunos. Como já sugerimos anteriormente, isso não pode limitar a amplitude dos assuntos tratados na unidade de ensino, enfatizando muito um aspecto desses assuntos em detrimento de outros.

Enfatizamos que esses itens apresentados se apresentam como possíveis norteadores para se pensar atividades correlatas, mas que cada atividade, cada classe e cada professor, necessitarão de estratégias e andamentos que melhor se adaptem às suas características. Pensar em um conjunto de parâmetros fechados seria tão limitado quanto as tentativas de se enumerar os passos seguidos pelo cientista para se fazer ciência. Contudo, vemos que isso não exclui a possibilidade de vislumbrarmos caminhos mais adequados do que outros, como os discutidos para a atividade científica. E, da mesma forma que materiais educativos, segundo Gowin, servem como multiplicadores de significados8 8 Função de um material educativo, segundo Gowin, de permitir o crescimento do conhecimento do aluno a partir de significados mais simples. , inteirar-se de caminhos já trilhados, como os pretendidos em nossa proposta didática, pode permitir que essa atividade inicie de forma mais promissora. É nesse sentido que nossas considerações a respeito da implementação adequada de nossa proposta podem servir como um ponto de partida fundamentado para outros caminhos, outras possibilidades.

  • 1
    É preciso também certa cautela com um consenso e seu uso em atividades didáticas semelhantes à nossa, uma vez que esse consenso relativo pode vir a se tornar um novo conjunto de metodologias tidas por prescritivas do que é fazer ciência. Apesar de alguns autores defenderem a utilização de elementos mais consensuais a respeito da atividade científica no ensino, existem outros que são críticos a essas tentativas (ver, por exemplo, [25][25] Alexandre Bagdonas, João Zanetic e Ivã Gurgel, Revista Brasileira de História da Ciência 7, 242 (2014).).
  • 2
    Ver nota anterior.
  • 3
    Poderíamos acrescentar a este núcleo a noção de incerteza, advinda de contradições originárias da natureza dualística das partículas, e a questão da probabilidade intrínseca à teoria, ao menos segundo a interpretação corrente da mecânica quântica.
  • 4
    A Teoria Geral da Relatividade, naturalmente, não foi desenvolvida com este propósito. “As anomalias do periélio do planeta Mercúrio não desempenharam nenhum papel na construção da teoria, não obstante terem sido incorporadas e determinadas por ela com uma precisão extraordinária” [31][31] S. Simon, in: Filosofia, Ciência e História: Uma Homenagem aos 40 Anos de Colaboração de Michael Paty com o Brasil, editado por M. Pietrocola e O. Freire Jr. (Fapesp, São Paulo, 2005), p. 137..
  • 5
    Os textos e apresentações eletrônicas estão disponíveis em http://luizarthury.wix.com/isaque-alberto.
  • 6
    Dizemos “no mínimo”, no caso de o professor “apenas” quiser contextualizar melhor o assunto de Gravitação. Nossa intenção é obviamente muito mais abrangente, com os elementos da Natureza da Ciência sendo parte integrante e indissociável de nossa proposta.
  • 7
    Os subsunçores são conhecimentos prévios que os alunos possuem, e que servem de base para a construção de novos conceitos (ver, por exemplo, [45][45] M.A. Moreira e E.F.S. Masini, Aprendizagem Significativa: A Teoria de David Ausubel (Ed. Moraes, São Paulo, 1982).).
  • 8
    Função de um material educativo, segundo Gowin, de permitir o crescimento do conhecimento do aluno a partir de significados mais simples.

Referências

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    Alexandre Bagdonas, João Zanetic e Ivã Gurgel, Revista Brasileira de História da Ciência 7, 242 (2014).
  • [26]
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  • [28]
    I. Lakatos, op. cit., p. 163.
  • [29]
    F. Lang da Silveira, Caderno Catarinense de Ensino de Física 13, 221 (1996).
  • [30]
    I. Lakatos, op. cit., p. 165.
  • [31]
    S. Simon, in: Filosofia, Ciência e História: Uma Homenagem aos 40 Anos de Colaboração de Michael Paty com o Brasil, editado por M. Pietrocola e O. Freire Jr. (Fapesp, São Paulo, 2005), p. 137.
  • [32]
    S. Simon, op. cit., p. 143.
  • [33]
    D. Gil Pérez, I. F. Montoro, J. C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, op. cit., p. 138.
  • [34]
    Uwe Flick, Introdução à Pesquisa Qualitativa (Artmed, Porto Alegre, 2009), p. 8.
  • [35]
    Uwe Flick, op. cit., p. 23.
  • [36]
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  • [37]
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    Seth MacFarlane, Ann Druyan e N. de Grasse Tyson, COSMOS: Episódio 3, “Quando o Conhecimento Domina o Medo” (Filme-vídeo). National Geographic Channel, Fuzzy Door Productions, 2014.
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  • [45]
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  • [46]
    B.D. Gowin, op. cit., p. 132.
  • [47]
    B.D. Gowin, op. cit., p. 133.
  • [48]
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  • [50]
    Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, op. cit., p. 45.
  • [51]
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  • [52]
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  • [53]
    Thaís C.M. Forato, M. Pietrocola e R. de A. Martins, op. cit., p. 49.
  • [54]
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  • [55]
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  • [56]
    Cassiano R. Pagliarini, op. cit., p. 90.
  • [57]
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  • [59]
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2017
  • Aceito
    14 Dez 2017
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