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Prólogo: Benedito Nunes, o pequeno pai do tempo

MEMÓRIA

Prólogo: Benedito Nunes, o pequeno pai do tempo

Nelson Sanjad; Andréa Sanjad

Museu Paraense Emílio Goeldi. Belém, Pará, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Nelson Sanjad Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Magalhães Barata, 376 - São Braz. Belém, PA, Brasil. CEP 66040-170 ( nsanjad@museu-goeldi.br)

O que ensinei aos estudantes?

Ensinei-lhes a boa arte do cepticismo:

a duvidar de tudo, a tudo interrogar

adequadamente com conhecimento de causa

(Benedito Nunes, 2009, p. 26).

Benedito José Vianna da Costa Nunes nasceu em Belém, no dia 21 de novembro de 1929, filho único de Benedito da Costa Nunes e de Maria de Belém Vianna da Costa Nunes. A morte súbita do marido fez com que Maria de Belém, ainda grávida, retornasse à casa da família, na Avenida Gentil Bittencourt, onde Benedito nasceu e foi acolhido por seis dedicadas tias. Uma delas foi sua professora do curso primário, Theodora da Cruz Vianna, carinhosamente chamada de Dodó, que mantinha na própria casa o Colégio Sagrado Coração de Jesus. Benedito lembrava com frequência as aulas de Dodó, ministradas na mesa da sala de jantar, em meio a cadernos de caligrafia e livros. Foi para ela que Benedito transferiu as honras do título de Professor Emérito, recebido da Universidade Federal do Pará (UFPA) em 1998. Benedito também se lembrava dos passeios que fazia com as tias, dos vizinhos, dos amigos, dos personagens que povoavam as ruas da Belém de outrora, das brincadeiras, dos bondes, dos doces, dos livros que lhe caíam às mãos e do quintal - o mágico quintal com sua casa de madeira elevada, palco e cenário da fantasia de criança.

O restante da formação primária e o ginasial foram feitos no Colégio Moderno, um dos mais tradicionais de Belém, entre 1941 e 1948. Foi quando Benedito conheceu Haroldo Maranhão e Maria Sylvia Ferreira da Silva Nunes, esta, filha do desembargador Cursino Loureiro da Silva, por duas vezes presidente do Tribunal Regional Eleitoral (1945-1946 e 1952-1954), e de Raimunda Ferreira da Silva, professora, que atendia pelo apelido de Mimi. Benedito e Maria Sylvia também cursaram juntos a Faculdade de Direito, entre 1949 e 1952. Tornaram-se companheiros de todas as horas, casando-se no ano de sua formatura. Viveram dois anos na casa dos pais de Maria Sylvia e, em 1954, mudaram-se para a casa recém construída de Angelita Ferreira da Silva, cunhada mais velha de Benedito, a Dadá, como os amigos a chamavam, primeira mulher a se formar em Engenharia no Pará, professora universitária, ligada ao movimento teatral e artístico da cidade. Nessa casa, localizada na Travessa da Estrela, com traços modernistas, incluindo um belo painel de azulejos na fachada - desenhado por Angelita e executado por Rui Meira, os três conviveram por décadas, até o falecimento de Angelita, em 1996, constituindo grande biblioteca e reunindo com frequência os amigos para rodadas de conversa, leitura, música, cinema e refinada mesa.

Benedito definia-se, essencialmente, como professor (apesar de ter tido outras experiências profissionais, como as do escritório de advocacia de José Tomás Maroja, da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia e do Tribunal de Contas do Estado do Pará). No mesmo ano de sua formatura, fez o Exame de Suficiência aplicado pelo Ministério da Educação, para o ensino de Filosofia no curso médio. Começou a lecionar em 1949, no Colégio Moderno, e depois também nos colégios Marista Nossa Senhora de Nazaré, Gentil Bittencourt, Santa Rosa e Paes de Carvalho, onde ministrou as disciplinas Filosofia, História Geral e História do Brasil. Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Pará, criada em 1955, lecionou História da Filosofia e Ética nos cursos de Pedagogia, Ciências Sociais, História e Biblioteconomia. Em 1961, deixou o ensino secundário e foi contratado pela UFPA, criada quatro anos antes. Foi efetivado em 1964 e, dois anos depois, nomeado Professor Titular, ministrando as disciplinas Introdução à Filosofia, História da Filosofia e Ética. Entre 1962 e 1967, coordenou o Serviço de Teatro, onde Maria Sylvia também ensinava.

O golpe militar de 1964 - "o grande trauma de nossa geração" (Nunes, 2009, p. 21) - e o posterior endurecimento do regime de exceção mudaram as perspectivas do casal Nunes. O clima de desconfiança, o constrangimento e o abatimento substituíram o otimismo dos anos anteriores, quando Benedito e Maria Sylvia lideraram um intenso e bem sucedido movimento teatral. A casa de Angelita e dos Nunes era o centro onde os espetáculos eram concebidos, produzidos e ensaiados. Talvez por esse motivo, por duas vezes, os militares tenham decidido fazer buscas na residência, o que só não ocorreu porque, em ambos os momentos, erraram de endereço (segundo Benedito, seu nome fora envolvido em um Inquérito Policial Militar por "certo coronel"). Em uma das vezes, os militares foram parar na casa do vizinho, que prontamente se identificou como sendo Benedito, poupando-lhes o estorvo da visita. As graves notícias que circulavam e o clima de delação incentivado nas universidades contribuíram para que os Nunes deixassem o Brasil, em 1967, rumo à França. Ali, enquanto Maria Sylvia frequentava os cursos livres do Collège de France, Benedito fazia pós-graduação (Troisième cycle universitaire) no Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Sorbonne, sob a orientação de Leon Bourdon. Também teve a oportunidade de fazer os cursos de Paul Ricoeur e Maurice Merleau-Ponty, e de dar aulas de Literatura Brasileira na Universidade de Haute Bretagne, em Rennes, onde proferiu curso sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Ambos, Benedito e Maria Sylvia, foram testemunhas do ambiente cultural parisiense e dos conflitos estudantis de 1968. Contudo, por mais ricos e estimulantes que esses anos tenham sido, não foram suficientes para manter os Nunes longe de casa. Em 1969, retornaram para Belém.

Novamente no magistério, Benedito dedicou-se com afinco a uma série de seminários e cursos de aperfeiçoamento promovidos pela UFPA para graduados e professores. Foi aprovado em exame de Livre Docência aplicado pelo Ministério da Educação. Em 1975, apresentou o projeto e a exposição de motivos para a criação do curso de Filosofia, tornando-se, no ano seguinte, seu primeiro coordenador e presidente do colegiado. Colaborou com diversas unidades da UFPA, em cursos de treinamento, graduação, aperfeiçoamento, especialização, mestrado e doutorado. Após sua aposentadoria, em 1992, continuou dando aulas no curso de Mestrado em Letras, lecionando a disciplina Teoria da Crítica.

Benedito também foi professor em outras instituições. No Brasil, ministrou cursos na Universidade Estadual de Campinas, em 1977 e 1979; na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1982; na Universidade de Brasília, em 1986; na Universidade Federal da Paraíba, em 1988; na Escola Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em 1992, 1993 e 1994; e na Universidade Federal do Ceará, em 1993. No exterior, além do curso ministrado em Rennes em 1968-1969, Benedito esteve na Universidade do Texas em Austin, como Edward L. Tinker Visiting Professor, em 1980; novamente na Universidade de Haute Bretagne, em 1983-1984; novamente na Universidade do Texas, em Austin, em 1989; na Universidade Vanderbilt, em Nashville, Estados Unidos, em 1990; e na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2002.

Mais recentemente, entre 2004 e 2010, retornou com regularidade ao magistério, ministrando cursos abertos e fazendo palestras no Centro de Cultura e Formação Cristã (CCFC), da Arquidiocese de Belém, a convite do admirável padre Fabrizio Meroni. Em um dos cursos, memorável como reconstrução do pensamento ocidental (e com algumas incursões pelo oriente), percorreu toda a história da filosofia, dos pré-socráticos aos contemporâneos, exibindo livros e imagens, disposto a responder muitas perguntas. Durante um ano, uma vez por mês, sempre aos domingos, das oito ao meio dia, uma audiência de mais de 500 estudantes, professores e seminaristas lotava o auditório do CCFC - localizado a mais de dez quilômetros do centro da cidade, na BR 316, muito mal servida de transporte coletivo. Brincávamos com o professor pop, que "dos padres" (como dizia) pedia apenas, no intervalo das aulas, um bom café da manhã, com tapioquinha, pão francês e biscoitos.

Benedito foi modesto ao afirmar que aprendeu a ensinar "a duras penas - a ensinar e a ensinar-me" (Nunes, 2009, p. 19). Também foi modesto ao se reconhecer autodidata, qualidade que podemos considerar na base de sua liberdade de pensamento. O filósofo nunca se filiou a escolas e modismos, nunca se considerou um especialista, não frequentava academias (embora tivesse sido convidado para a Academia Brasileira de Filosofia, em 1989) e nem partidos políticos ou igrejas. Não possuía discípulos, no sentido estrito do termo, isto é, seguidores, continuadores ou sectários, o que seria incoerente com o ceticismo que professava. Benedito orgulhava-se de ser um livre pensador, capaz de transitar pela história das ideias com desenvoltura, fazendo perguntas e buscando relações no tempo e no espaço. Seus méritos foram conquistados por esforço próprio, em sua própria biblioteca, nutrida semanalmente com as novidades editoriais. Sua trajetória intelectual foi construída a partir de indagações originais direcionadas à literatura e à filosofia.

Benedito compartilhou seu conhecimento e soube selecionar o melhor do conhecimento alheio. Por diversas vezes, identificou os autores que o influenciaram no desenvolvimento de um método de análise literária, como Martin Heidegger. Declarou suas predileções literárias e poéticas, como Leon Tolstói, Jorge Luis Borges e Carlos Drummond de Andrade (cujas obras deixava separadas em seu gabinete de trabalho, em uma estante sobre a mesa, sempre à vista dos olhos e ao alcance das mãos)1 1 Vale a pena consultar a entrevista que Benedito Nunes deu a Lúcio Flávio Pinto, publicada como "Um roteiro dos livros de um sábio paraense", no jornal "A Província do Pará", em 26 de maio de 1991. . Foi generoso com seus alunos, e foram tantos. Para alguns, talvez os mais interessados ou insistentes, franqueava a biblioteca e se dedicava um pouco mais, orientando trabalhos ou simplesmente conversando. O mesmo acontecia com os amigos, sobretudo os mais novos, que comungavam do prazer pela leitura ou do interesse pela filosofia, pela história, pela arte e pela ciência. Benedito não se incomodava em ser tratado como o manancial, a fonte segura e fértil de informação, semeador e crítico ao mesmo tempo. Estava sempre aberto, pronto a ajudar (desde que depois de sua sesta).

Em complemento às atividades de professor, Benedito lia e escrevia. Sua forma de raciocinar era quase indissociável da palavra escrita. Aulas e mesmo cursos inteiros eram concebidos primeiro no papel. Benedito os preparava com o auxílio de fichas de leitura, programas minuciosamente elaborados, cópias manuscritas de trechos de livros, traduções, notas e diários. Esse conjunto fragmentário e disperso em variados suportes frequentemente era transformado em texto, orgânico, coerente, que acabava vindo à luz em livros, revistas e jornais.

Benedito começou nessa lida desde cedo, ainda menino. Dodó costumava mostrar com orgulho, aos que visitavam sua casa, o caderno de estórias escrito por Benedito, quando ainda era seu aluno, tão bem guardado em uma caixa de papel. No Colégio Moderno, seguiu publicando pequenos textos no jornal do grêmio estudantil, que chegou a presidir. Ainda bem jovem, tentou a poesia e a ficção, mas desistiu logo depois dos primeiros acordes, e apesar do estímulo do amigo Mário Faustino. Suas primeiras críticas e ensaios saíram na imprensa: a partir de 1956, inicia-se longa lista de artigos, principalmente, na "Folha do Norte", em "A Província do Pará", no "Jornal do Brasil", em "O Estado de São Paulo" e em "O Estado de Minas", atividade literária que permaneceu intensa até 1973. Em dois desses jornais, manteve por bom tempo colunas fixas: o "Rodapé da Crítica" (em "A Província...") e as "Crônicas de Belém" (no "Estadão").

Benedito também enveredou pelas atividades editoriais. Na década de 1950, criou com amigos duas revistas de estudos literários e divulgação cultural, a "Norte" e a "Encontro", que não passaram dos primeiros números por falta de financiamento. Foi membro do conselho consultivo ou editorial de muitos periódicos brasileiros e estrangeiros, além de referee frequentemente requisitado, incluindo o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Escreveu apresentações, introduções, resenhas. Organizou antologias e edições críticas de vários escritores, como Raimundo de Farias Brito, Mário Faustino, Platão, Clarice Lispector, Haroldo Maranhão, Dalcídio Jurandir e o livro de homenagens a Francisco Paulo Mendes.

De sua lavra saíram uma centena de artigos publicados em periódicos brasileiros e estrangeiros; quase cinco dezenas de capítulos de livros; traduções, como o longo poema "Crônica", de Saint-John Perse; ensaios publicados na forma de álbum ou de livretos (booklet), sendo três autobiográficos ("Quase um plano de aula", "Dois ensaios e duas lembranças" e "Crônica de duas cidades - Belém e Manaus", este último com Milton Hatoum); e 12 livros, excetuando as recentes coletâneas que reuniram textos já publicados, todos dedicados aos estudos literários e filosóficos. Dos livros, três foram escritos com intenções didáticas, tendo sido encomendados pelas respectivas editoras e com várias reedições: "Introdução à Filosofia da Arte" (1966), "Filosofia Contemporânea" (1966) e "O tempo na narrativa" (1988).

Essa obra, extensa e diversificada, que toca vários campos do conhecimento, como filosofia, literatura, artes e ciências sociais, é lida e valorizada, é mesmo saudada com unanimidade, mas é pouco estudada, pouco analisada em suas concepções mais elementares, pouco destrinchados os seus elementos constituintes e as relações sofisticadas que estabelece não apenas entre campos do conhecimento, mas também, dentro de um mesmo campo, entre objetos de estudo. Existem apenas alguns poucos ensaios, dissertações e teses que se debruçaram sobre os escritos de Benedito, geralmente privilegiando este ou aquele recorte ou texto. Podemos supor que ainda levará algum tempo para que estudiosos deem conta da multifacetada obra, e também da biografia, da história intelectual e do método de trabalho e reflexão do filósofo paraense. O que se espera é que, nessa empreitada, prevaleçam a maturidade e a erudição necessárias para uma apreciação crítica.

Tivemos a sorte de trabalhar com Benedito, auxiliando-o na organização da edição crítica de "A Paixão Segundo G. H.", de Clarice Lispector, publicada em 1988 na coleção Archives, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); na organização de seu arquivo pessoal, tarefa realizada de 1988 a 1998, relembrada em outro lugar (Sanjad, 2011); e na revisão dos 11 volumes dos "Diálogos", de Platão, traduzidos do grego por Carlos Alberto Nunes, tio de Benedito, e originalmente publicados entre 1973 e 1980 pela UFPA, com muitos problemas editoriais e gráficos. Esse último trabalho, executado ao longo do ano de 1995, foi particularmente enriquecedor: como havia o interesse da Reitoria em uma nova edição, todos os livros foram cotejados com os manuscritos do tradutor, com o texto original em grego consolidado por Burnett, F. Hermann e R. B. Hirschig, e com uma boa tradução francesa publicada na Bibliothèque de la Pléiade, da Editora Gallimard. Líamos os três juntos, corrigindo erros tipográficos, acrescentando notas e trechos omitidos na impressão, revisando ortografia, acentuação e pontuação, e, por vezes, quando os manuscritos revelavam dúvidas ou indefinições do tradutor, discutindo a melhor interpretação para palavras e expressões gregas, baseando-nos na tradição filológica de uma língua neolatina bem desenvolvida. Os livros revisados, um a um, foram entregues na Vice-Reitoria da UFPA. Jamais soubemos sobre a consecução desse projeto de reedição nem sobre o destino dos exemplares que continham a revisão - fato lamentável pelo imenso trabalho dedicado pelos revisores durante um ano, e também pelos recursos aplicados pela própria universidade. A nova edição do corpus platonicum, a única existente em língua portuguesa, devidamente revista, infelizmente não foi publicada. Restou-nos, como consolo, o aprendizado que ganhamos na convivência com Benedito.

Para este dossiê, que pretendemos uma homenagem ao professor, convidamos cinco pesquisadores capazes de contar outras experiências, inspirados pela pessoa ou pelo texto, com a intenção de apresentar um breve panorama das possibilidades abertas de pesquisa sobre a obra e o pensamento deste homem invulgar. Os cinco ensaios aqui reunidos convidam a desdobramentos: Lilia Silvestre Chaves (UFPA) promove um novo encontro dos amigos Benedito Nunes e Mário Faustino, ab aeterno; Márcio Benchimol Barros (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília) recorda os momentos de contato com um colega de profissão mais velho e as impressões que lhe causaram o pensamento e a escrita de Benedito, tocando em um traço que a muitos instiga, o ser particular e universal, simultaneamente; Jeanne-Marie Gagnebin (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas) também explora o tema da identidade que se abre para o mundo, mas que mantém os pés em solo bem conhecido; Maria Stella Guimarães e Edna Ramos de Castro (Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA) perguntam-se como o lugar de nascença é lido e interpretado pelo filósofo, como as sociedades e culturas amazônicas aparecem em seus textos; e Willi Bolle (Universidade de São Paulo) parte da leitura de Benedito sobre Dalcídio Jurandir para explorar as possibilidades interpretativas da obra do maior romancista da região. A esse grupo, somamos uma resenha de Fábio Lucas (Universidade Federal de Minas Gerais) sobre o livro "Crivo de Papel" (1998), publicada na Revista da Academia Paulista de Letras em 2003 - na qual o crítico literário faz breve, mas apurada análise do 'pensamento mundificado' de Benedito, chave para a compreensão de sua obra.

Somam-se, ainda, anexos a este prólogo, a reprodução do discurso que Benedito Nunes fez na ocasião em que recebeu o título de doctor honoris causa da Universidade da Amazônia, em 2009, publicado originalmente no informativo "Comunicado", fala da maior relevância para os que almejam conhecer este pequeno 'pai do tempo' - epíteto dado ao filósofo pelo poeta Ruy Barata, inspirado em personagem criado por Thomas Hardy, apresentado no livro "Judas, o obscuro": um menino de baixa estatura, magro, pensativo e ensimesmado. Como contraponto, segue a imagem registrada por outro humanista, Antonio Candido, cujo olhar nos põe diante de um homem generoso, humilde, honesto. Pois que nossos leitores vejam, com seus próprios olhos, o brilho e a luz da inteligência de Benedito, imortalizados por vários fotógrafos que vivem em Belém. Eles expõem aqui, tal qual uma narrativa visual ou uma exposição com curadoria compartilhada, seus melhores retratos tirados de nosso personagem: Patrick Pardini (Fotografias I e II ), Luiz Braga (Fotografias III e IV ), Elza Lima (Fotografias V e VI ), Paula Sampaio (Fotografias VII e VIII ) e Octávio Cardoso (Fotografias IX e X ). Esses artistas captaram o sorriso, o olhar, a pose em que gostava de sentar, o gesto, o corpo (e como gostava de vestí-lo), a casa, o animal de estimação (saudosa Martinha), as tias (e a casa das tias), o gabinete de trabalho e o pleno exercício da oratória.

A todos, escritores, editores e fotógrafos, nossos melhores agradecimentos por terem se juntado a esta deferência que fazemos a um mortal tocado pela Musa e levado pelo Anjo Branco de Marc Chagall. Ou, para retornar à epígrafe deste texto, àquele que soube duvidar e interrogar, adequadamente - e com conhecimento de causa.

DISCURSO PROFERIDO POR BENEDITO NUNES NA OCASIÃO EM QUE RECEBEU DA UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA O TÍTULO DE DOCTOR HONORIS CAUSA, EM 23 DE OUTUBRO DE 20092 2 Publicado originalmente em "Comunicado", semanário editado pela Universidade da Amazônia (UNAMA), n. 1.533, p. 4, em 2 de novembro de 2009, Belém, Pará. Os Editores agradecem a autorização para a reprodução do texto.

Muito me sensibiliza a decisão dos órgãos colegiados e dos dirigentes dessa Universidade de me conferir o título de Doctor honoris causa. Um ato generoso de vossa parte, como público reconhecimento do meu trabalho como professor e de minha faina como escritor. O resultado desse esforço não é senão muito papel impresso: treze livros publicados, quase todos tratando, grosso modo, de filosofia e de poesia. Mas isso não é irrelevante para quem fez do escrever um modo de viver.

Não obstante, fui e sou, antes de tudo, professor. E no ensino, a melhor parte é falada e não escrita. O discurso do professor é dialógico. Não apenas exige a presença de outrem, mas a correspondência ou a consonância com ele. A palavra é sua pedra de toque sob a abóbada do silêncio, onde outra palavra, a do ouvinte, pode ressoar em diálogo. Ambos estão honrando o conhecimento que lhes é transmitido, e que, por sua vez, transmitem a outrem. Não só o conhecimento, que culmina na filosofia, mas também a trama de ideias e sensações por nós denominada de poesia ou arte poética. Entre as duas existe um nexo de complementação. Convém repetirmos o comentário de Albert Camus em "Le Mythe de Sisyphe": "Nunca se insistirá o suficiente na arbitrariedade da antiga oposição entre arte e filosofia. Se pretendermos entendê-la num sentido bem preciso, certamente ela é falsa (...). O artista, tanto quanto o pensador, compromete-se com a sua obra e se transforma dentro dela".

Essa transformação do artista na obra alcança o espectador ou o leitor. Também esses podem experimentar, sob o influxo da arte, mudanças de ordem ética, nas quais perpassam exigências sociais e políticas. Já o estudo das ciências, sejam naturais, sejam humanas, quando bem aprofundado, atinge um limiar estético que lhe permite ampliar e diversificar a experiência humana.

É certo que o conhecimento é limitado. Mas o que o impulsiona, reabrindo-o, a cada passo, é a criação poética, que antecede e prepara o campo das ciências.

Tenho sempre associado poesia e filosofia em meus escritos. A primeira está sempre na origem da segunda. Sem a poesia, inexiste, como efeito da arte e do pensamento, a possibilidade da metamorfose moral e social do homem.

Não há separação estrita desses campos. O pensamento fecundo é o começo do artístico e a arte, quando grande, é pensamento em ação. Resta saber se ainda temos, hoje, a chamada grande arte, se ela já não é, como assegurava Hegel, coisa do passado. O problema focal de nossa época, que envolve essa questão, talvez esteja na polarização do pensamento atual pela técnica ou, mais propriamente, pela tecnologia. A filosofia tem-se interessado por esse tema. Segundo o elucidativo livro de Ortega y Gasset, "Meditação sobre a Técnica" (1963), a técnica é o dom dos inadaptados, como o homem, capaz de modificar as circunstâncias em que vive. É por isso que ele é Homo faber, o ente que se inventa a si mesmo. "Man makes himself", resume Gordon Childe. A princípio, ele não sabe quem inventa. Depois, os artesãos ou artífices tendem a conservar a experiência adquirida, organizando um sistema de artes e ofícios. Sobrevém, em seguida, a técnica do técnico, quando se fabrica o instrumento que pode fabricar tudo, a máquina. Ortega já se refere então à técnica avançada, à tecnologia, como ilimitada possibilidade de fazer.

Com essa ilimitada possibilidade de fazer, a mãe natureza parece desaparecer em proveito das coisas produzidas, tornadas mercadorias. Tudo é fabricável, tudo recai sob o ilimitado domínio da técnica. O estado errante, a aparente superfluidade da arte, nos dias de hoje, talvez resulte dessa tecnização do saber.

A arte não teria mais condições, já dissera Hegel em seus escritos de Estética, de satisfazer as necessidades de nosso espírito. Colocada sob esse ângulo, a questão que se nos depara não é eventual, passageira. Por uma ironia da História, ela resultaria do estado conflitivo e problemático da cultura ocidental nos dias de hoje, na época do pleno fastígio da ciência moderna, quando já se cumpriu o princípio da instauratio magna de Francis Bacon, de que "ciência e poder humano coincidem". Essa coincidência alerta-nos para o perigo de arrebatamento da ciência pelo poder. Contra essa ameaça, sempre iminente em nossa época, convém invocar e reatualizar o ensinamento de Rabelais, segundo o qual ciência sem consciência é um corrosivo da humanidade do homem.

Não só a arte, como a vivência da religião autêntica, difícil e rara, contrapõe-se a esse arrebatamento da ciência pelo poder. Sob esse ângulo, o verdadeiro poder da ciência pode emparelhar-se com o da filosofia e da poesia - um poder expansivo, feito de saber e de não saber, de conhecimento da realidade presente e de intuição das possibilidades futuras.

Belém, 19 de outubro de 2009.

Benedito Nunes

HARMONIA DE SABER E DISCRIÇÃO

Lamento muito não ter podido conviver com Benedito Nunes, que sempre admirei pelas grandes qualidades morais e intelectuais, e cuja obra é um padrão de valor como escrita e como pensamento. Pelo fato de circular com rara maestria pelos domínios da filosofia e da literatura, pôde elaborar textos de teor pouco frequente, nos quais a sensibilidade e a reflexão, ligadas de maneira harmoniosa, lhe permitiram contribuir - realmente contribuir - para iluminar obras e problemas.

Em tudo o que li dele parece haver uma espécie de serenidade expositiva, que afasta qualquer pretensão e faz o leitor se sentir mais lúcido por reflexo. É que o leitor foi sendo guiado pela atitude mental rigorosa e lúcida, embora singularmente discreta, de um autor que não ostentava saber e, sendo tão sábio, foi tão despretensioso.

O seu trato era encantador pela gentileza das maneiras e o interesse de tudo o que dizia. Lembro de certo almoço com alguns colegas no Clube dos Professores da Universidade de São Paulo em que ele falou com originalidade e argúcia, como se estivesse conversando ocasionalmente, sobre a obra de Renan, que localizara entre livros que haviam sido de seu pai. Renan é autor relativamente esquecido, mas de grande prestígio na geração de nossos pais e avós. Eu me senti não apenas esclarecido pelos seus comentários, mas possuído por uma espécie de afinidade solidária, pois meu próprio pai (decisivo em minha formação mental) fora leitor de Renan, do qual li por isso alguns livros na mocidade.

Estivemos juntos outras vezes, antes e depois. Ali pelo meio dos anos de 1960, por exemplo, almoçamos na casa de Decio de Almeida Prado e eu lhe pedi que desse algum texto para a Coleção Buriti, de cujo conselho editorial Decio e eu fazíamos parte. Era uma série de muito boa qualidade, que infelizmente durou pouco, produzida por um editor inteligente, o saudoso Tomás Aquino de Queirós. Benedito refletiu um tempo e prometeu dois livros, que vieram a ser os números 7 e 17 da coleção: "Introdução à filosofia da arte" e "A filosofia contemporânea".

Em 1976 ou 77, não lembro bem, sendo diretor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, eu o convidei a dar nele um curso, que de fato deu, para grande proveito e admiração dos estudantes que formavam a primeira turma do Instituto. Seja dito que eles eram de nível excelente e souberam aproveitar bem a rara oportunidade que lhes era oferecida. Mais tarde, no decênio seguinte, foi a vez de Benedito me convidar para escrever um artigo destinado à edição que estava preparando das obras de Clarice Lispector, na coleção "Archives", ideada e dirigida, de Paris, por Amos Segala. Em encontros relativos à parte brasileira desta, estivemos juntos mais uma vez no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e no Memorial da América Latina.

Foram, portanto, diversos encontros, mas, para mim, bem poucos, levando em conta o quanto perdi por não ter maiores oportunidades de desfrutar a companhia desse espírito gentil, desse eminente pensador e crítico, um dos intelectuais brasileiros mais justamente queridos, admirados e respeitados.

São Paulo, 06 de agosto de 2011.

Antonio Candido

Patrick Pardini (patpardini@uol.com.br) Nasceu em Niterói/RJ (1953) e reside em Belém/PA desde 1981. Na década de 1980, realizou uma série de documentários amazônicos na forma de audiovisuais ("Roda Peão", 1983) e a exposição "O ritual das máscaras" (Centro Cultural São Paulo, 1989), sobre ritos sociais urbanos. Na década seguinte, trabalhou como membro da Agência Kamara-Kó em um projeto - financiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) - que investigava a situação de crianças e adolescentes na Amazônia, e realizou uma exposição, em Paris e São Paulo, sobre a Copa do Mundo de 1998: "Mondial Hors Champ/Interferências". Desde 1999, realiza a pesquisa fotográfica "Arborescência - fisionomia do vegetal na paisagem amazônica", contemplada com as bolsas Vitae e do Instituto de Artes do Pará (IAP), selecionada pelo Ano do Brasil na França e pelo Projeto Portfólio do Itaú Cultural, e objeto de várias exposições em Belém, na França e em São Paulo. Desde 2003, trabalha no Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde coordena o Núcleo de Fotografia.

Luiz Braga (bragafoto@uol.com.br) Nasceu (1957) e vive em Belém/PA. Formado em Arquitetura, fotografa desde os 11 anos de idade. No cenário da arte brasileira, afirmou-se por sua cor refinada e pela abordagem sem precedentes da visualidade amazônica. Atuando como profissional desde 1975, retratou a cena cultural paraense e seus artistas, assim como se transformou em uma das principais referências da fotografia brasileira contemporânea. Suas obras integram acervos como o do Museu de Arte Moderna, de São Paulo; do Centro Português de Fotografia; do Musée Quai de Brainly, em Paris; e do Miami Art Museum. Entre seus prêmios, estão "The Leopold Godowsky Jr. Color Photography Awards", Prêmio Porto Seguro Brasil 2003 e Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, da Fundação Nacional de Artes, em 2010. Em 2009, representou o Brasil na 53a Bienal de Veneza.

Elza Lima (elzamlima@gmail.com) Fotógrafa desde 1984. Expôs nos Estados Unidos, na Espanha, França, Suíça, Alemanha e em Portugal. Suas obras podem ser encontradas em várias coleções, como a do Museu de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Entre 1996 e 1999, em projeto da Fundação Nacional do Índio, visitou oito tribos indígenas do Pará e Maranhão, documentando seu modo de vida. Em 1997, participou da publicação "Brasil Bom de Bola", que documentou as 'peladas' em várias regiões brasileiras por meio de onze fotógrafos e escritores. Em 1999, documentou as fronteiras do Brasil, trabalho que resultou em publicação homônima. Ganhou, em 1999, a bolsa Vitae, com o projeto "Viagem ao Cuminá", refazendo, cem anos depois, o trajeto da expedição de Otille Coudreau, uma das primeiras mulheres a fotografar a Amazônia. Em 2003, ganhou bolsa de pesquisa do Instituto de Artes do Pará, realizando viagem ao rio Nhamundá. Atualmente, é fotógrafa da Secretaria de Cultura do Estado do Pará e desenvolve trabalho de documentação das manifestações culturais do Baixo Amazonas.

Paula Sampaio (imagempaula@gmail.com) Nasceu em Belo Horizonte/MG (1965) e vive em Belém/PA. Graduada em Comunicação Social (UFPA) e especialista em Semiótica (PUC-MG). Desenvolve documentários fotográficos sobre migrações e colonização na Amazônia, a partir do cotidiano de comunidades que vivem às margens de grandes estradas, principalmente das rodovias Transamazônica e Belém-Brasília. Também trabalha com memórias orais e patrimônio imaterial. Tem projetos premiados e recebeu bolsas de pesquisa/criação da FUNARTE/MinC, The Mother Jones International Fund for Documentary Photography (EUA), UNICEF/FENAJ, Fundação Vitae/ISA (SP), Fundação Ipiranga (PA), Fundação Rômulo Maiorana (PA), Prêmio Porto Seguro Brasil, entre outros. Possui obras nos seguintes acervos e coleções: MAM (SP), MASP/Pirelli (SP), Itaú Cultural (SP), Itamaraty (DF), Fundação Biblioteca Nacional (RJ), Coleção Joaquim Paiva, Asociación ProDocumentales e Fundacion Comillas (Espanha), Fifty Cross (EUA) e TAFOS-PUC (Peru). É repórter fotográfica do jornal "O Liberal" desde 1988.

Octavio Cardoso (ocfotografias@gmail.com) Graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Começou a fotografar em 1984 na Fotoativa. De 1985 a 1986, trabalhou no jornal "O Liberal". Em 1987, trabalhou no estúdio de Luiz Braga. Em 1990, fundou, juntamente com Miguel Chikaoka, Patrick Pardini e Ana Catarina Brito, a Kamara-Kó Fotografias, onde ficou até 1994. De 1990 a 1995, trabalhou como cinegrafista e diretor de fotografia na DCampos Produções e no projeto Academia Amazônia, da UFPA. Em 1995, criou a WO Fotografia juntamente com Walda Marques. Atualmente, tem seu próprio estúdio e desenvolve trabalhos de documentação, arquitetura e publicidade. Desde 2009 é editor de fotografia do jornal "Diário do Pará". Foi presidente da Associação Fotoativa de 2000 a 2007. Ganhou o Prêmio Arte Pará em 1987 e, em 2010, o Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia - Categoria Brasil Brasis. Tem obras nos acervos do Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro; do Museu Histórico do Estado do Pará; do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, Pará; e do Museu de Arte de São Paulo (Coleção Pirelli).

  • NUNES, Benedito. Quase um plano de aula Belém: Universidade Federal do Pará, 2009.
  • SANJAD, Nelson. Benedito, papeis e palavras. In: CHAVES, Lilia Silvestre (Org.). Meu amigo Bené, fazedor de rumos Belém: SECULT, 2011. No prelo.
  • Autor para correspondência:

    Nelson Sanjad
    Museu Paraense Emílio Goeldi
    Av. Magalhães Barata, 376 - São Braz. Belém, PA, Brasil. CEP 66040-170
    (
  • 1
    Vale a pena consultar a entrevista que Benedito Nunes deu a Lúcio Flávio Pinto, publicada como "Um roteiro dos livros de um sábio paraense", no jornal "A Província do Pará", em 26 de maio de 1991.
  • 2
    Publicado originalmente em "Comunicado", semanário editado pela Universidade da Amazônia (UNAMA), n. 1.533, p. 4, em 2 de novembro de 2009, Belém, Pará. Os Editores agradecem a autorização para a reprodução do texto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
    MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
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