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Tecnologias de cuidado em saúde mental para o atendimento ao usuário de crack

Resumos

Objetivou-se identificar tecnologias de cuidado em saúde mental para o atendimento ao usuário de crack em um Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPSad). Estudo qualitativo, avaliativo, do tipo estudo de caso, desenvolvido em um CAPSad, utilizando-se a Avaliação de Quarta Geração. A coleta de dados ocorreu de janeiro a março de 2013, por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas, aplicadas a 36 sujeitos, sendo eles: profissionais de saúde, usuários, familiares e gestores. A análise identificou a categoria estratégias no trabalho em saúde mental. Os resultados evidenciaram que se devem propiciar espaços de valorização do diálogo, com intuito de elucidar o processo de internação psiquiátrica ao usuário e à família, bem como envolvê-la na terapêutica, implementando práticas educativas e reflexão permanente das ações em saúde mental. Conclui-se que é importante problematizar as tecnologias de cuidado no cotidiano dos serviços, face à complexidade do fenômeno do uso de crack.

Saúde mental; Serviços de saúde; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Enfermagem


The aim of this study was to identify mental health care technologies for treating crack users in a Psychosocial Care Center for Alcohol and other Drugs (CAPsad, as per its acronym in Portuguese). A qualitative, evaluative case study was developed in a CAPSad, using fourth generation evaluation. Data collection occurred from January to March 2013 by means of semi-structured interviews applied to 36 subjects, these being health care professionals, patients, patients' relatives and managers. Data analysis identified the category strategies in mental health work. Results showed that recovery programs should provide spaces for dialogue, aiming to clarify the process of psychiatric internment to the user and family, and involve these in the therapy, implementing educational practices and ongoing consideration of mental health activities. In conclusion, it is important to discuss the technologies used in everyday care services, in light of the complexity of crack use.

Mental health; Health services; Substance-related disorders; Nursing


Se tuvo como objetivo identificar tecnologías de cuidado en salud mental para la atención al usuario de crack, en un Centro de Atención Psicosocial para Alcohol y otras drogas (CAPSad). Estudio cualitativo, evaluativo, tipo estudio de caso, desarrollado desde un CAPSad, utilizándose la Evaluación de Cuarta Generación. La recolección de datos ocurrió de enero a marzo de 2013, aplicándose entrevistas semiestructuradas, grabadas a 36 personas: profesionales, usuarios, familiares y gestores. El análisis identificó la categoría estrategias en el trabajo en salud mental. Los resultados evidenciaron que se debe propiciar espacios de valorización del diálogo con usuarios y familias, hacia el entendimiento de la internación psiquiátrica. Además, es importante involucrar a la familia en el cuidado, sino también implementar prácticas de educación permanente en salud mental. Se concluye que es importante problematizar las tecnologías de cuidado en el cotidiano de los servicios, ante la complejidad del fenómeno del crack.

Salud mental; Servicios de salud; Trastornos relacionados con sustancias; Enfermería


INTRODUÇÃO

O assustador crescimento do uso de drogas no mundo todo está contextualizado pelas características do mundo pós-moderno, que é marcado por diversas mudanças de costumes e valores no cotidiano das pessoas( 1Souza J, Kantorski LP. A rede social de indivíduos sob tratamento em um CAPS ad: o ecomapa como recurso. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2)373-83. ). Constantemente, identificam-se novos casos de indivíduos com problemas de saúde mental, os quais, para se reinserirem na sociedade, necessitam também de apoio social.

Nesse contexto, o crack vem se tornando um relevante problema de saúde pública gerando graves prejuízos físicos, psicológicos e sociais a indivíduos e famílias. Face a complexidade que envolve o fenômeno, o cuidado em saúde mental perpassa o tratamento de sintomas, sugerindo tecnologias de cuidado que propiciem a reintegração dessas pessoas à vida em sociedade. Isto se deve porque o indivíduo integrado à sua comunidade pode ter maiores recursos para lidar com o sofrimento psíquico, físico e social que afetam sua saúde ( 1Souza J, Kantorski LP. A rede social de indivíduos sob tratamento em um CAPS ad: o ecomapa como recurso. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(2)373-83. ).

Tecnologia não se trata apenas de um dispositivo fechado, mas também de certo "saber-fazer", um "ir-fazendo", que dá sentido à prática em saúde a partir de uma razão instrumental de trabalho. A tecnologia, como partícipe de uma determinada realidade social, de um modelo de intervenção, oportuniza a criação-recriação do trabalho a partir do saber operante do sujeito, contemplado nas dimensões técnicas e políticas que se revertem no cotidiano do contexto dos serviços de saúde( 2Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2006, p.71-112. ).

No cenário atual, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) se consigna como serviço inovador que busca superar as práticas em saúde mental do modo asilar, divergindo da psiquiatria tradicional. Nesses espaços, destaca-se o atendimento aos sujeitos em sofrimento psíquico, visando promover o exercício da cidadania, maior grau de autonomia possível e interação social( 3Nasi C, Schneider JF. O Centro de Atenção Psicossocial no cotidiano dos seus usuários. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(5):1157-63. ).

Nesse prisma, no município de Viamão, o Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas (CAPSad) dispõe de espaços em que os profissionais de saúde desenvolvem práticas em saúde mental que podem propiciar a integração social dos usuários de crack. Neste serviço de saúde, o trabalho em saúde mental é constituído por práticas que objetivam diminuir internações prolongadas, uma vez que a internação necessita de uma construção com os demais atores da rede.

Assim, a necessidade de inserção da família no cuidado aos sujeitos em sofrimento psíquico, bem como a dedicação de cuidado para melhor condução de suas vidas, por si só justificam a importância de se discutir a internação do usuário do CAPSad, o envolvimento da família e a educação permanente nas práticas em saúde mental. Nesse sentido, este estudo torna-se relevante por dar voz aos usuários, familiares, profissionais em saúde e gestores, no sentido de avaliarem essas tecnologias de cuidado disponibilizadas pelo serviço.

Diante do exposto, o objetivo desse estudo é identificar tecnologias de cuidado em saúde mental para o atendimento ao usuário de crack em um CAPSad.

METODOLOGIA

Trata-se de um recorte da pesquisa "Avaliação qualitativa da rede de serviços em saúde mental para atendimento a usuários de crack (ViaREDE)", uma pesquisa de natureza avaliativa, do tipo estudo de caso( 4Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Porto Alegre (RS): Bookman; 2001. ), uma vez que procura estudar uma dada realidade estabelecida a priori. Foi desenvolvida no município de Viamão-RS, e utilizada a Avaliação de Quarta Geração como referencial teórico-metodológico do estudo( 5Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas (SP): Unicamp; 2011. ). Nela, o foco central do processo avaliativo foi avaliar qualitativamente a rede de serviços de saúde mental para atendimento a usuários de crack em Viamão/RS.

A Avaliação de Quarta Geração propõe uma avaliação construtivista responsiva. O termo responsivo é utilizado para designar um caminho diferente de focalizar a avaliação, delimitado por meio de um processo interativo e de negociação que envolve grupos de interesse. O termo construtivista, também chamado de interpretativo ou hermenêutico, é um modo responsivo de focar e um modo construtivista de fazer( 5Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas (SP): Unicamp; 2011. ).

Na pesquisa ViaREDE, os dados foram coletados por meio de observação e de entrevistas semi-estruturadas com os grupos de interesse - equipe, usuários, familiares e gestores, no período de janeiro a março de 2013. As observações de campo totalizaram 189 horas, sendo registradas em um diário de campo. Cabe salientar que foram realizadas 36 entrevistas, nas dependências do CAPSad, sendo estas com profissionais da equipe, usuários que recebem atendimento de saúde mental no serviço, familiares que tinham um parente em acompanhamento e com gestores de serviços de saúde mental do município.

Neste estudo, tratou-se dos resultados encontrados sobre as tecnologias de cuidado em saúde mental para o atendimento ao usuário de crack, destacando a internação do usuário, o envolvimento da família e a educação permanente. Os integrantes da equipe foram identificados com a inicial E, os gestores com a inicial G, os usuários com a inicial U e os familiares com a inicial F, seguido da ordem em que apareceram na entrevista. Exemplo: E3, E10.

Para tanto, utilizou-se como critérios de inclusão: a) dos profissionais e dos gestores foi trabalharem no CAPSad e na gestão de saúde mental do município há pelo menos seis meses; b) dos usuários foram: frequentarem o CAPSad ou de já terem frequentado outro serviço da rede de saúde mental em função do uso de crack, estarem com boas condições de comunicação e que não estivessem sob condições clínicas que prejudicassem sua entrevista; c) dos familiares foram: acompanhar ou ter acompanhado algum parente, usuário de crack, em atendimento no CAPSad e em outro ponto da rede de serviços de saúde mental.

As entrevistas foram realizadas com a aplicação do Círculo Hermenêutico Dialético. É hermenêutico porque é interpretativo e dialético porque representa a comparação e o contraste das visões, para a realização de um alto nível de síntese( 5Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas (SP): Unicamp; 2011. ). Para trabalhadores e gestores, foram aplicadas três perguntas norteadoras, que exploravam o atendimento ao usuário de crack no serviço e na rede. Para usuários e famílias, também foram aplicadas três perguntas, que buscavam explorar o atendimento recebido por eles na rede.

Desse modo, o respondente inicial R1 participa de uma entrevista aberta para determinar uma construção inicial em relação ao foco da pesquisa. É questionado e convidado a construir, descrever e comentar. Ao término da entrevista, é solicitado ao respondente que indique outro respondente, chamado R2.

Os temas centrais, concepções, ideias, valores, preocupações e questões propostas por R1 são analisados pelo pesquisador, formulando uma construção designada C1. Entrevista-se o segundo respondente (R2) e, caso alguma construção abordada por R1 não seja contemplada por R2, convida-se R2 a comentá-la. A entrevista de R2 produz informações de R2 e uma crítica da construção de R1. O pesquisador conclui a segunda análise resultando em C2, uma construção mais sofisticada e informada, e assim sucessivamente até finalizar a coleta de dados. Essa forma de condução do processo analítico, paralelo à coleta de dados, é o que designa o Método Comparativo Constante( 6Kolb SM. Grounded theory and the constant comparative method: valid research strategies for educators. JETERAPS. 2012;3(1):83-6. ), no qual a Avaliação de Quarta Geração se baseia.

Após a coleta de dados e a organização das construções de cada grupo, realizou-se a etapa da negociação. Foram reunidos os entrevistados, sendo apresentado o resultado provisório da análise dos dados, para que pudessem ter acesso à totalidade das informações e tivessem a oportunidade de modificá-las ou de afirmar a sua credibilidade( 5Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas (SP): Unicamp; 2011. ).

A partir da negociação, os pesquisadores procederam à etapa final de análise dos dados. Nela, as questões surgidas foram reagrupadas, permitindo a construção de categorias temáticas. Os resultados deste estudo foram organizados a partir da temática "características do trabalho em saúde mental com o usuário de crack", no qual convergiram a internação do usuário do CAPSad, o envolvimento da família e a educação permanente como dispositivos para o cuidado em saúde mental.

O protocolo do projeto foi submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi também avaliado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), recebendo parecer favorável à sua execução (número 337/2012).

Foi, também, garantido o anonimato dos sujeitos do estudo e respeitados todos os preceitos ético-legais que regem a pesquisa com seres humanos, como é preconizado pelo Ministério da Saúde (Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde), assim como foi respeitada a autonomia da decisão de desistência por parte dos pesquisados, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram entrevistados 36 indivíduos e, destes, oito eram profissionais da equipe do CAPSad, dez usuários deste serviço de saúde, onze eram familiares e sete eram gestores de serviços de saúde mental do município de Viamão.

A partir das entrevistas, inicialmente observou-se em um dos discursos a importância da atuação do CAPSad de Viamão no tratamento do usuário de crack. Evidenciaram-se possibilidades de acompanhamento destes indivíduos sem a necessidade de longas internações e, em contrapartida, outros participantes expõem que em situações específicas, a internação se configura como recurso para o tratamento do usuário de crack, de modo que o período de um ano de internação propiciaria o controle da fissura através do constante acompanhamento em saúde mental e administração de medicações:

A gente conseguiu viabilizar o tratamento dessa pessoa [...], sem a necessidade de colocar ele isolado do mundo em uma longa duração, um longo período, [...] por isso, que gente não acaba fazendo tantas internações ao longo prazo, que a idéia da Reforma Psiquiátrica, não é institucionalizar mais as pessoas, mas tentar resolver a situação delas no meio em que elas vivem. (E6)

Ficar 20 dias internado, 30 dias, não recupera ninguém [...]. Tu sais dali fissurado. Sinceramente, necessita-se de um ano, um ano e meio para limpar o organismo. (U7)

20 dias é só para pegar graxinha, para engordar um pouquinho, sair e se perder. O certo mesmo é nove meses, um ano. (U8)

[...] pra ele tem que ser internação, não adianta, não tem condições [...]. É que daí pelo menos lá eles tem toda a medicação, porque ele não está tomando a medicação para o álcool, ele só está tomando medicação para se acalmar. (F6)

A partir dos depoimentos, observou-se que o CAPSad viabiliza o cuidado em saúde mental que busca a diminuição de internações a longo prazo. Além da organização do cuidado ao usuário de crack e o suporte familiar disponibilizados pelo CAPSad, tornam-se essenciais para a redução de internações prolongadas os espaços de auto-ajuda e a promoção de esforços para fortalecer serviços e desenvolver redes e sistemas existentes.

No entanto, deparamo-nos com situações clínicas em que a internação ainda hoje é uma medida prudente. Como exemplo, pode-se apontar quando o agir do usuário se manifestar em sentido inconscientemente prejudicial contra a vida ou a integridade física e moral do próprio ser ou da pessoa do outro( 7Fortes HM. Tratamento compulsório e internações psiquiátricas. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2010;10(2):321-30. ).

Nesta perspectiva, uma das questões mais problematizadas pela psiquiatria diz respeito à internação compulsória, sendo esta entendida como uma internação sem o consentimento do usuário( 8Barros DM, Serafim AP. Parâmetros legais para uma internação involuntária no Brasil. Rev Psiq Clin. 2009;36(4):175-7. ). No CAPSad, notou-se que na dinâmica dos atendimentos o serviço se depara com inúmeras solicitações de internação compulsória, uma vez que um dos desafios é proporcionar e avaliar todas as alternativas de tratamento no espaço do serviço de saúde:

A gente é muito pressionado [...], parece que esta é a resolução do problema e a gente sabe que não é [...]. Em relação à compulsória [...], a gente interna compulsoriamente em último caso, se a pessoa tem algum risco. (E2)

Nós buscamos a internação compulsória em último caso quando é um risco pra pessoa e pros outros. (E6)

Eu acho que varia de caso para caso, e às vezes é necessário sim uma internação [...]. Esse negócio de compulsório involuntário é complicado porque tu não vai estar lidando com o desejo do usuário. (E4)

A partir dos depoimentos, caracteriza-se a proposta de internação compulsória como recurso protetor ao usuário de crack e à família. No entanto, no CAPSad, os trabalhadores têm consciência de que esta medida deve ser utilizada em casos particulares, o que exige uma conversa constante com o Ministério Público.

Ao mesmo tempo, a internação compulsória é caracterizada como um recurso positivo que contribuiria para o usuário de crack iniciar o tratamento. Porém, também se caracteriza como uma opção equivocada, de modo que isola o usuário de seu círculo social. Assim, ações como a formação de vínculo e a negociação com o usuário e sua família tornam-se essenciais no processo de internação psiquiátrica, conforme explicitado a seguir:

Nossa primeira opção sempre é a de formar um vínculo, de convencimento, da pessoa de conseguir expor os movimentos e colocar de forma que ela possa entender e possa se dar conta dos riscos, [...] e aceitar a internação. (E1)

A necessidade de internação dos casos de internação compulsória demandadas pelo Ministério Público é avaliada pela equipe do CAPS. (G2)

Por obrigação para mim não faz diferença nenhuma. O cara vai entrar lá, que fique 1 ano, quando sair para rua vai ser a mesma coisa. (U8)

Ai seria bom isso aí [internação compulsória] mesmo ela não querendo ela tem que se tratar [...]. Isso ai seria bom também porque ela precisa de tratamento. (F8)

A família já vem com a ideia que só a internação resolve, [...] mas eu acho que tem que passar por um profissional e pelo trabalho do CAPS porque daí depois você vê se tem necessidade de internação ou não. (E5)

Os depoimentos permitem visualizar que não há consenso sobre a internação compulsória como saída para o tratamento do usuário de crack. Profissionais apontam que em casos muito particulares, a internação seria uma alternativa; usuários, por sua vez, entendem que a internação também deve levar em conta os seus desejos, para que seja efetiva, enquanto que os familiares, que vivenciam a sobrecarga em função do uso da droga, veem na internação uma maneira de aliviar os encargos e resolver os problemas do usuário.

As internações em centros especializados e de Comunidades Terapêuticas para usuários de drogas, preconizados pelos que se opõem à Reforma Psiquiátrica, vão ao encontro do imaginário popular, o qual sonha com soluções rápidas. Isso leva ao afastamento do convívio social destes usuários, já que muitos possuem comorbidades e estão envolvidos em situações constrangedoras, marginalizadas e, mesmo, ilegais( 9Andrade TM. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(12):4665-74. ).

Desse modo, a parceria entre a equipe e a família é fundamental, no sentido de trabalhar com as visões dicotômicas em relação às possibilidades de tratamento do usuário. Esta parceria requer um contrato em que possa ser negociado o cuidado do usuário e que também contemple estratégias de suporte à sobrecarga do familiar ( 1010 Wetzel C, Schwartz E, Lange C. A inserção da família no cuidado de um centro de atenção psicossocial. Cienc Cuid Saúde. 2009;8(supl.):40-6. ).

A família do usuário de crack, a partir das vivências no cotidiano, pode apresentar-se depressiva, exausta, necessitando ser cuidada. Com a percepção do uso de drogas por seu familiar, a família passa a conviver com esta realidade e sofre por não saber lidar com os problemas ocasionados pela dependência química( 1111 Alvarez SQ, Gomes GC, Oliveira AMN, Xavier DM. Grupo de apoio/suporte como estratégia de cuidado: importância para familiares de usuários de drogas. Rev Gaúcha Enferm. 2012;33(2):102-8. ).

Ainda, o CAPSad necessita utilizar estratégias de inserção da família no cuidado ao usuário de crack, tais como a escuta, grupo de familiares, acolhimento e a garantia de atendimento no serviço:

O envolvimento da família no tratamento ocorre nos encontros dos trabalhadores do CAPS com os familiares de usuários acompanhados neste serviço e que estão internados no hospital do município. (G2)

A família se apresenta exausta e procura o CAPSad na hora do desespero [...], buscando uma solução no serviço. (G5)

O atendimento (CAPSad) é bom, é bem atendido sempre tem alguém para conversar com a gente, desde a recepção tudo ali conversam com a gente, são bem acolhidos. (F2).

[...] a que acolheu ele e ela conversou comigo, e foi aonde ela me conseguiu, porque o médico dele não era pra ser agora. Conseguiu pra bem antes. Foi bem atendido e tudo que eu conversei com elas. Elas sempre me atenderam. (F6)

Os participantes evidenciam o trabalho do CAPSad no atendimento à família, sinalizando a importância das estratégias para efetivar o cuidado à família do usuário de crack. Frente a isso, a equipe do CAPSad pode permanentemente elaborar estratégias de aproximação, uma vez que o apoio da família no tratamento e a parceria com a equipe são sempre necessários para garantir maiores chances de reabilitação( 1212 Zanatta AB, Garghetti FC, Lucca SR. O Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas sob a percepção do usuário. Rev Baiana Saúde Pública. 2012;36(1):223-37. ).

Além disso, no CAPS, a inserção da família também se constitui como uma dinâmica singular, na qual esse relacionamento deve apoiar-se na desconstrução da ideia de estar só no enfrentamento do sofrimento psíquico. Isso ressalta a necessidade de ações que busquem a integração, o acolhimento e a inclusão desses atores nos espaços cotidianos da vida ( 1313 Schrank G, Olschowsky A. O Centro de Atenção Psicossocial e as estratégias para a inserção da família. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(1):127-34. ).

No entanto, este cuidado em saúde mental requer muito investimento na formulação e desenvolvimento do trabalho em equipe capaz de conhecer e responder às necessidades sociais e de cuidado em saúde do conjunto da população sob sua responsabilidade. Mas, especificamente a partir da definição de prioridades, a equipe deve produzir e acompanhar projetos terapêuticos participativos e orientados pelas necessidades dos usuários, de acordo com seus contextos de vida( 1414 Mângia EF. Formação e educação permanente para produzir boas práticas em saúde mental. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2009;20(2):1-2. ).

Nessa perspectiva, urge repensar os saberes e práticas dos profissionais da área de saúde mental, na perspectiva da atual política pública, tendo em vista os pressupostos da Reforma Psiquiátrica e a necessidade de um lugar ativo para a educação permanente nesses espaços( 1515 Vidal FDL, Brito JN. Educação permanente e saúde mental: um estudo bibliográfico. Tema: Rev Eletron Ciênc. 2008;7(10/11):38-48. ).

Na realidade do CAPSad de Viamão, a educação permanente pode propiciar a reflexão das ações em saúde mental, através da sensibilização, do ensino e da abordagem de demandas dos profissionais da saúde, uma vez que há construção constante do trabalho em saúde. Entre elas, pode-se citar a discussão cotidiana dos processos de trabalho das equipes, a partir das reuniões diárias, discussão dos casos, criação de tecnologias de cuidado em saúde mental e abordagem de temas relevantes para o serviço, conforme se observa a seguir:

A mudança da organização do trabalho não é fácil, pois envolve a escuta do usuário e dos trabalhadores, bem como maior investimento na educação. [...] É preciso investir na qualificação profissional continuamente, [...] na busca de novas tecnologias de cuidado. (G1)

A educação permanente é uma estratégia importante para a rede de saúde mental, e essa deve capacitar e sensibilizar os trabalhadores a respeito do crack. (G4)

A educação permanente [...] serve para sensibilizar, ensinar/capacitar, permitir ao trabalhador falar sobre suas dificuldades no trabalho. (G7)

[...] é importante essa questão de educação permanente para nós trabalhadores, [...] é necessário reciclar diariamente, tem que estar sempre naquele movimento se questionando, pensando. (E2)

É importante compreender que a educação permanente não deve ser entendida como um modo de fazer as pessoas mudarem seus hábitos para assimilarem práticas de saúde e recomendações, e sim, uma possibilidade de educar para auxiliar profissionais e usuários a compreenderem a saúde e a doença. Dentro dessa forma de compreensão, a educação permanente se torna o lócus para a reflexão dos saberes, como meio para realização de uma prática em saúde que promova a transformação da realidade social.

O ensino, tomado como ferramenta básica para a mudança transformadora dos processos de trabalho em saúde e educação, implica uma ressignificação de conceitos e práticas. Nesse sentido, a incorporação da educação permanente como uma tecnologia no campo da saúde mental pode produzir uma força de trabalho capaz de compreender as mudanças que a práxis profissional precisa traduzir( 1515 Vidal FDL, Brito JN. Educação permanente e saúde mental: um estudo bibliográfico. Tema: Rev Eletron Ciênc. 2008;7(10/11):38-48. ).

Desse modo, entende-se que, a partir de discussões acerca da internação compulsória do usuário de crack, o envolvimento da família no cuidado e a educação permanente nesse processo, pode-se ajudar na ressignificação da prática em saúde mental, de modo a contribuir para aprimorar o trabalho, as relações e as pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise de ações em saúde mental no CAPSad reflete a importância desse serviço substitutivo na consolidação de estratégias de cuidado no campo da saúde mental. No entanto, neste cuidado torna-se elementar o desenvolvimento do trabalho em equipe comprometido em conhecer e atender às necessidades sociais e de saúde dos usuários de crack e suas famílias, potencializando o estreitamento de vínculos entre todos os atores e a valorização das subjetividades dos sujeitos.

Os resultados evidenciaram que no cotidiano do CAPSad precisa-se propiciar espaços de valorização do diálogo, sendo possível a instituição de interações sociais com intuito de elucidar o processo de internação psiquiátrica ao usuário de crack e família, bem como envolver a família na terapêutica e implementar práticas educativas que visem a reflexão permanente das ações em saúde mental oferecidas pela equipe de saúde.

Outro aspecto a destacar é o potencial do CAPSad, a partir das tecnologias para o cuidado em saúde mental, em possibilitar que os profissionais incorporem novas práticas, refletindo-se sobre estratégias para sua implementação. Nessa perspectiva, a reflexão sobre essas tecnologias de cuidado em saúde pode contribuir para a reinvenção do agir em saúde por parte de profissionais, com vistas à consolidação do modo psicossocial.

Frente a isso, consideramos como uma das lacunas a necessidade de se trabalhar a educação permanente enquanto política de qualificação do trabalhador em saúde mental, tendo em vista a importância de se revisitar o uso de tecnologias para o cuidado em saúde mental ao usuário de crack. Nesse sentido, acredita-se que a realização de estudos dessa natureza podem ser um avanço no processo de construção de ações em saúde mental a partir do sujeito e sua família, permitindo que as pessoas sejam protagonistas dos processos de sua vida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2014
  • Aceito
    05 Dez 2014
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