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Considerações sobre o medo na História e na Psicanálise

The history of fear between Psychoanalysis and History

Resumo

Este artigo propõe uma leitura psicanalítica de parte da obra do historiador francês Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente, sobre o sentimento de medo do demônio no Ocidente. O principal objetivo deste trabalho é realizar uma discussão interdisciplinar entre a Psicanálise e a História a respeito do sentimento de medo e como as duas disciplinas o compreendem. Iniciaremos apresentando a teoria do medo a partir, principalmente, das considerações de Sigmund Freud em Inibições, Sintomas e Ansiedade, tomando o medo como fundado principalmente na angústia da castração. Em seguida, apresentaremos as contribuições da Nova História Cultural para a discussão do tema, a qual toma o medo como uma construção histórica e, por conta disso, deve ser compreendida dentro de seu contexto específico. Por fim, apresentaremos pontos em que ambas as teorias convergem e divergem, não buscando propriamente uma síntese das duas áreas, mas sim abordá-las como formas distintas de produção do conhecimento.

Palavras-chave:
História; Psicanálise; medo

Abstract

This paper proposes a psychoanalytic reading of the work of the French historian Jean Delumeau, History of Fear in the West, about the feeling of fear of the devil in the West. The main goal of this work is to perform an interdisciplinary discussion between Psychoanalysis and History about the feeling of fear and how the two disciplines understand it. We begin presenting the theory of fear mainly from considerations of Sigmund Freud in Inhibitions, Symptoms and Anxiety, taking the fear as based primarily in the anguish of castration. Then we present the contributions of the New Cultural History for discussion of the topic, which takes fear as a historical construction and, because of that, must be understood within their specific context. Finally, we present points where both theories converge and diverge, not properly looking for a synthesis of the two areas, but as different forms of knowledge production.

Keywords:
History; Psychoanalysis; Fear

Primeiros passos para um debate

Este ensaio possui uma carga conceitual bastante significativa. Nele, propomos fazer uma leitura da pesquisa de Jean Delumeau sobre o sentimento de medo no Ocidente, mais especificamente do medo que homens e mulheres da Europa na Idade Média e na Idade Moderna tinham de Satã.

Essa grandeza conceitual se deve à utilização de duas teorias. A primeira é a Psicanálise freudiana sobre a formação do medo. A segunda é a Nova História Cultural, corrente historiográfica que defende, dentre outras coisas, a igual valência da cultura, economia e política para a construção dos processos sociais. Nosso objetivo é, a partir da história do medo do demônio, propor um debate sobre a possibilidade de produção de conhecimento utilizando a História e a Psicanálise, sem reducionismos.

1. O medo para a História e para a Psicanálise

O medo não é uma particularidade humana. Podem-se verificar ações amedrontadas em diversas espécies de animais. De fato, o medo é fundamental para a sobrevivência, seja qual for o grau de complexidade da forma de vida animal. É uma reação a uma situação de perigo (real ou imaginário). Dessa forma, não pode ser visto como necessariamente patológico. Conforme o psiquiatra Paulo Dalgalarrondo (2008DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre, RS: Artmed, 2008.), o medo patológico é denominado fobia, que é definida da seguinte forma:

São medos determinados psicopatologiamente, desproporcionais e incompatíveis com as possibilidades de perigo real oferecidas pelos desencadeantes, chamados de objetos ou situações fobígenas. Assim, o indivíduo tem um medo terrível e desproporcional de entrar em elevador, de gatos ou de contato com pessoas desconhecidas (DALGALARRONDO, 2008DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre, RS: Artmed, 2008., p. 171).

Cabe, nesse momento, perguntar: o que é um medo desproporcional? Ou ainda: em quais condições é aceitável ter medo e em que intensidade? De todo modo, estamos levantando questões que não são próprias à psiquiatria, pois são causas externas ao próprio medo ou, em outras palavras, são construções culturais. Dessa forma, as ciências humanas possuem mais competência para dar respostas a essas questões.

Por outro lado, responder a essas questões não é a proposta deste artigo, mas sim debatê-las. Assim, comecemos pela obra de Jean Delumeau A História do Medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada (2009). Essa leitura é norteada pela psicologia de orientação psicanalítica. Outra pergunta se forma nesse momento: como ler uma obra científica a partir de outra perspectiva epistêmica? É certo que esse caminho não é livre de contradições. A produção de conhecimento histórico possui diversas características comuns com a Psicanálise, mas possui pontos divergentes. O primeiro passo, de grande importância, precisa ser a demarcação de nossas posições. Comecemos agora pela teoria psicanalítica para, em seguida, debatermos posicionamentos teóricos da História sobre a Psicanálise.

1.1 Teoria psicanalítica do medo

Freud, em Inibições, sintomas e ansiedade (1926a/1996FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926a). In: SALOMÃO, Jayme. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 81-167. Edição Standard Brasileira.), apresenta uma explicação para a constituição da fobia de um dos mais famosos casos por ele, indiretamente, analisado: o pequeno Hans. O garoto era assolado por um intenso medo de cavalos ou, mais especificamente, medo de sair de casa porque um cavalo iria mordê-lo (FREUD, 1926a/1996FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926a). In: SALOMÃO, Jayme. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 81-167. Edição Standard Brasileira., p. 104). Nesse caso, Freud interpreta que o cavalo é um substituto para o pai, frente ao qual o menino tinha sentimentos ambivalentes de amor e ódio. De fato, para Hans, o medo é um sintoma.

Se ‘Little Hans’, estando apaixonado pela mãe, mostrara medo do pai, não devemos ter direito algum de dizer que ele tinha uma neurose ou fobia. Sua reação emocional teria sido inteiramente compreensível. O que a transformou em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado de sintoma, e que, incidentalmente, constitui o mecanismo alternativo que permite um conflito devido à ambivalência ser solucionado sem o auxílio da formação reativa (FREUD, 1926a/1996FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926a). In: SALOMÃO, Jayme. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 81-167. Edição Standard Brasileira., p. 105-106).

A figura paterna na Psicanálise representa justamente a castração. É a partir do caso de Hans que Freud identifica a origem da fobia no medo que a criança tem de ser castrada pelo pai e nos sentimentos hostis a ele. Em síntese, O medo de Hans é um substituto para a figura paterna.

O caso de Hans é paradigmático. Freud o toma, no livro citado, como uma explicação fundamental da origem do sintoma neurótico. Como dissemos anteriormente, nem todo medo é psicopatológico. Por outro lado, se partimos da conjectura de que todo medo é um sintoma, ele precisa ter origem na angústia original da castração.

A angústia da castração é anterior a toda inibição sintomática (FREUD, 1926a/1996FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926a). In: SALOMÃO, Jayme. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 81-167. Edição Standard Brasileira., p. 111), pois é ela própria anterior à formação do eu. Para argumentar a favor disso, pensemos no momento inicial da vida humana. Recorremos ao texto “Psicanálise” (1926b/1996FREUD, Sigmund. Psicanálise (1926b). In: SALOMÃO, Jayme (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 249-259. Edição Standard Brasileira., p. 256), também de Freud:

De acordo com os pontos de vista psicanalíticos mais recentes, o aparelho mental compõe-se de um ‘id’, que é o repositório dos impulsos instintuais, de um ‘ego’, que é a parte mais superficial do id e aquela que foi modificada pela influência do mundo externo, e de um ‘superego’, que se desenvolve do id, domina-o e representa as inibições do instinto que são características do homem. A qualidade da consciência, também, conta com uma referência topográfica, pois os processos no id são inteiramente inconscientes, ao passo que a consciência é a função da camada mais externa do ego, que se interessa pela percepção do mundo externo.

O eu e o super-eu são topos psíquicos que só podem se estruturar a partir da inserção do indivíduo no meio social, ou seja, no mundo da linguagem. São deformações do próprio id pelo princípio da realidade. De fato, essa instância só é capaz de reconhecer o princípio de prazer. A eloquência de Freud o leva a afirmar que a sede real da angústia é o “eu” (FREUD, 1926a/1996FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926a). In: SALOMÃO, Jayme. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 81-167. Edição Standard Brasileira., p. 97), assim como a angústia precisa ser anterior ao “super-eu” (FREUD, 1926a/1996FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926a). In: SALOMÃO, Jayme. (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 81-167. Edição Standard Brasileira., p. 98). Assim, com exceção do id, toda a formação do psiquismo depende da angústia, sendo ela, como diz J. D. Nasio, o cerne do “eu” (NASIO, 1999NASIO, Juan-David. Como trabalha um psicanalista? Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999., p. 17).

Desta forma, chegamos ao ponto de afirmar que o medo não é apenas uma necessidade para a sobrevivência, mas também uma forma de constituição da própria personalidade. O medo (da castração) é um dos fatores que constituem o sujeito. As relações que a criança terá com o mundo externo serão traços no psiquismo e modelam, assim, o eu e o super-eu. Essa deformação provoca angústia, da qual o medo é uma consequência e um sintoma. Apenas em níveis inaceitáveis pela sociedade ele se torna uma fobia, ou seja, uma psicopatologia.

De forma panorâmica, expomos uma visão de homem a partir de um aspecto da teoria psicanalítica. Passemos agora a debater os posicionamentos da ciência histórica.

1.2 O lugar do historiador

Falar de posicionamento da História não é algo tão simples. Diversas escolas se desenvolveram na história da História. Até o começo do século XX, os historiadores foram fortemente influenciados pelo pensamento positivista. Em síntese, o historiador profissional deveria ocupar-se da história política, deixando as demais modalidades históricas de fora do conhecimento considerado científico (BURKE, 1997BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: UNESP, 1997., p. 18). A história da arte, da cultura, da religião tomou o estatuto de curiosidade de pouca importância.

Uma alternativa, porém, era a história de orientação marxista, implicada em analisar a economia como atividade essencial da sociedade. Porém, a partir dos pressupostos economicistas, as relações históricas estavam reduzidas apenas à luta de classes (BURKE, 1997BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: UNESP, 1997.. p. 19). Assim, mais uma vez, diversos fatores da sociedade estavam excluídos da História. Podemos apontar, também, a teleologia marxista, que anuncia a queda do Capitalismo e a Revolução do Proletariado.

Dessa forma, os historiadores do começo do século XX estariam encurralados entre a história política e a história econômica, sob pena de comprometer seu profissionalismo. Essa situação encontrou um desfecho quando, na França, dois historiadores criaram uma revista chamada Annales d’histoire économique et sociale, em 1929. O periódico “pretendia exercer uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica. Seria o porta-voz, melhor dizendo, o alto-falante de difusão dos apelos dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história” (BURKE, 1997BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: UNESP, 1997., p. 33).

Segundo Burke (1997BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: UNESP, 1997.), Lucien Febvre, um dos dois historiadores fundantes da revista, defendia que o movimento surgiu como uma “seita herética”, ou seja, desafiava o domínio da política e da economia. Novos objetos puderam, a partir de sua ação, ser estudados profissionalmente. Por exemplo, Marc Bloch (o outro fundador da revista) estudou a mentalidade medieval a partir do suposto poder de cura que teriam os reis desse período (BURKE, 1997BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: UNESP, 1997.). Aos poucos, angariaram vários seguidores, e o modo de historiografia criado por esse movimento permanece até hoje com o nome de Escola dos Annales.

A eleição de novos objetos e novos modos de estudá-los levou os historiadores a buscarem apoio em outras disciplinas. Buscou-se derrubar as barreiras que separavam, por exemplo, a História da Sociologia de Durkhein e promover diálogos entre esses campos. O mesmo se operou com o marxismo, promovendo transformações em ambas as teorias. Peter Burke (2005BURKE, Peter. O que e historia cultural? Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005., p. 37), por exemplo, escreve: “ser um historiador marxista da cultura1 1 Cultura é um conceito polissêmico nas teorias da História. Originalmente, os Annales não o utilizavam, substituindo por mentalidade, civilização e imaginário. Na década de 1960, surge uma nova divisão da História, chamada Nova História Cultural. Sobre essa modalidade de historiografia, ver os textos de Roger Chartier nas referências desse artigo. é viver um paradoxo”.

A partir de agora, podemos introduzir a discussão a partir das contribuições do historiador francês Michel de Certeau, o qual também se aproximou da Psicanálise e é herdeiro da tradição da Escola dos Annales.

A primeira questão levantada por Certeau é a das distintas visões do tempo, que, em ambas as ciências, não operam de forma idêntica. A essas duas maneiras de conceber o tempo, Certeau (2011, p. 71) chama de “estratégias do tempo”. O autor coloca nos seguintes termos:

A psicanálise e a historiografia têm, portanto, duas maneiras diferentes de distribuir o espaço da memória; elas pensam, de modo diferente, a relação do passado com o presente. A primeira reconhece um no outro; enquanto a segunda coloca um ao lado do outro. A psicanálise trata essa relação segundo o modelo da imbricação (um no lugar do outro), da repetição (um reproduz o outro sobre uma forma diferente), do equívoco e do quiproquó (o que está “no lugar” de quê? Há, por toda parte, jogos de máscaras, de reviravoltas e de ambiguidade). Por sua vez, a historiografia considera essa relação segundo o modelo da sucessividade (um depois do outro), da correlação (maior ou menor grau de proximidade), do efeito (um segue o outro) e da disjunção (um ou o outro, mas não os dois ao mesmo tempo) (CERTEAU, 2011CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre a ciência e ficção. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 73, grifos do autor).

Detenhamos-nos nessas divisões por um momento. As afirmações do historiador sobre a psicanálise e sua relação com o tempo apontam para uma característica própria do “inconsciente” de Freud: ele é atemporal. Isso significa que todo conteúdo recalcado (ou seja, experiências reais ou fantásticas as quais são tornadas inconscientes pelos processos psíquicos) tende a retornar à consciência, mesmo que seja de forma distorcida. Nesse sentido é que pode ser afirmado que o passado está no presente, pois o conteúdo afetivo não desaparece simplesmente do psiquismo. O passado é tão operante (ou mais) no indivíduo que o presente.

O mesmo não pode ser dito da análise histórica. Mesmo que o historiador reconheça a importância de estudar o processo histórico que construiu seu objeto, há uma clara distinção entre aquilo que é no momento de estudo daquilo que foi um dia. Ainda assim, o historiador deve estar alerta ao perigo do anacronismo, que seria interpretar as fontes históricas a partir da mentalidade na qual o próprio historiador está imerso. Isso, em si, justifica a pesquisa histórica, mas também é um dos seus maiores problemas. Deixemos essa questão do anacronismo por um momento e voltemos à questão do tempo. Na historiografia, podemos dizer que o tempo é “hierárquico” (CERTEAU, 2011CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre a ciência e ficção. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 72).

Enunciamos, assim, o primeiro ponto em que divergem a História e a Psicanálise como métodos de produção do conhecimento. Mas, adiante, essa não será a principal crítica de Certeau às teorias de Freud.

O principal ponto que o historiador toca é a historicidade da própria Psicanálise. Escreve: “(...) a psicanálise ‘esquece’ sua própria historicidade” (CERTEAU, 2011CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre a ciência e ficção. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 81). Isso significa que a produção do conhecimento psicanalítico não considera: (1) a relação dos primeiros autores com a pessoa de Freud; (2) a relação da Associação Psicanalítica Internacional com as leis da sociedade; (3) a lógica das situações sociopolíticas na qual está imerso o analista. Isso significa que as diferenças contextuais de cada um dos primeiros autores influenciaram a produção da teoria, ou seja, Certeau atenta para que se observe qual é o contexto histórico em que cada um daqueles que desenvolveram a psicanálise estavam inseridos e, portanto, sujeitos. Lembra-nos, portanto, que a Psicanálise é um constructo histórico.

Podemos avançar nessa discussão dos tópicos apresentados (as estratégias do tempo e a historiografia da Psicanálise) e retomar uma pergunta lançada por Costa (2012COSTA, Raul Max Lucas da. Michel de Certeau: entre a história e psicanálise. História da historiografia, Ouro Preto, n. 10, p. 294-299, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/viewFile/459/327 . Acesso em: 15 nov. 2015.
https://www.historiadahistoriografia.com...
, p, 296), resenhista da obra na qual nos fundamentamos: “Desde já, uma questão apresentada por De Certeau vem à tona: ao romper com a cisão entre passado e presente não estaria a psicanálise realizando uma interpretação anacrônica do social ao considerar o inconsciente uma categoria atemporal?”

Estamos longe de dissolver essa questão. Quando lançamos uma questão referente ao “tempo”, inexoravelmente, estamos pensando sobre a concepção de homem na qual trabalhamos. Isso significa que há uma bifurcação: se pendemos para o lado da História, mais especificamente a Nova História Cultural, tomamos a psicanálise como uma representação de homem cunhada no começo do século XX. Assim, não seria prudente utilizar o psiquismo de Freud como uma lei universal. Estamos alinhados ao que escreve Roger Chartier (1991CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, abr. 1991. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141991000100010
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
, p. 177):

Daí as tentativas para decifrar de outro modo as sociedades, penetrando nas meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.

Não entrando nas questões relativas às práticas e às representações, mas sim aos processos de construção de sentidos que são próprios de cada sociedade, o historiador só pode penetrar nas relações sociais pela via das lógicas da própria sociedade em estudo. Em síntese, afirmaríamos que o uso da Psicanálise seria anacrônico e nos conduziria ao equívoco.

Porém, tomemos a perspectiva estudada justamente como aquilo que condiciona a interação humana, ou seja, aquilo que está entre o biológico e o sujeito social. Estaríamos falando, portanto, de uma “estrutura”. Atentemos para o fato de que o Estruturalismo só pôde se desenvolver como corrente científica após a Psicanálise. Quando tratamos da constituição do psiquismo, estamos diante de uma dupla relação: a primeira é a do indivíduo com o real, ou seja, todas as condições inexatas, materiais, metafísicas e sociais nas quais a pessoa está imersa. A segunda é a de um indivíduo com o outro.

De fato, é uma encruzilhada. São dois caminhos que, se optássemos por uma via conciliatória, talvez produzíssemos mais problemas do que soluções.

Até esse momento, elaboramos nosso enunciado teórico sobre as relações possíveis entre as duas áreas de conhecimento em questão. Adiante, nosso objetivo será colocá-las em prática. Estaremos debatendo um enxerto do livro de Jean Delumeau, exatamente o capítulo que aponta o desenvolvimento histórico da representação de Satã.

2. A história do medo do demônio

Analisar toda a obra de Jean Delumeau é uma atividade exaustiva, que excederia os limites deste texto. Para a resolução de nossa proposta, apenas uma parte do livro é suficiente. Por isso, elegemos um objeto específico no qual o historiador se detém por alguns capítulos no livro: Satã.

Satã, Satanás, o Demônio são denominações para uma mesma figura da mitologia cristã: o anjo que se rebelou contra Deus e foi expulso do Paraíso, condenado ao Inferno. Sua grande tarefa na Criação, desde então, é enganar e perverter as almas dos seres humanos, removendo-os do caminho da Salvação. Essa imagem é unânime nos livros bíblicos, tanto no Velho Testamento (como, por exemplo, no Livro de Jó) quanto no Novo. Porém, isso não ultrapassa a superfície da representação demoníaca.

Assim como a própria ideia de Deus varia em ambos os Testamentos, a figura satânica também não é a mesma. O demônio judaico é mais abstrato, mais uma função do mundo e mesmo uma parte do próprio espírito humano. Para o cristianismo, o demônio é um ser “concreto”. Essa concretude do demônio precisa ser explicada: diferente da visão judaica, Satanás é um ser existente, autônomo e extremamente potente. Os relatos bíblicos colocam o próprio Cristo em diálogo com o anjo caído. Jesus reconhece nele o poder sobre o mundo material e o identifica como o grande inimigo a ser vencido pelos homens. Profetiza o final dos tempos trancando o demônio e todos os seus seguidores, diabos e homens, para sempre no Inferno. Segundo o Padre Paulo Ricardo de Azevedo Jr. (2013, online)AZEVEDO JR., Paulo Ricardo. A existência do demônio [online]. [2017?]. Disponível em: Disponível em: http://padrepauloricardo.org/aulas/a-existencia-do-demonio . Acesso em: 6 nov. 2013.
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Para os católicos, a existência do Diabo e seus demônios é uma verdade de fé. Isso significa que, para aqueles que aderem à Igreja Católica Apostólica Romana, crer na existência dos demônios não é uma opção. Trata-se de condição sine qua non, ou seja, não há um meio de se dizer católico sem se crer naquilo que a Igreja crê e ensina: que Satanás e seus anjos existem e atuam no mundo de modo a perder as almas.

Porém, apesar da sólida manutenção doutrinal da Igreja Católica - pilar de sua sustentabilidade2 2 A Igreja Católica é vista, normalmente, como uma instituição altamente resistente a mudanças. Essa ideia é errônea, pois é relativamente simples perceber as formas pelas quais a Igreja se adapta à sua contemporaneidade. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, é um meio de demonstrar isso. O que de fato é imutável na Igreja são seus dogmas, que são, afinal, o princípio de identidade da instituição. A destruição dos dogmas acarretaria, necessariamente, a destruição da própria Igreja. em toda a história ocidental -, a ideia do demônio não permaneceu idêntica desde a escrita do Novo Testamento até os dias atuais. Esclarecendo, permanece enquanto essência da ideia, mas o que varia de fato são as formas de representá-la.

Escreve Delumeau (2009DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 354):

Satã pouco aparecia na arte cristã primitiva, e os afrescos das catacumbas tinham-no ignorado. Uma das mais antigas figurações, nas paredes da igreja de Bauoït no Egito (século VI), o representa sob os traços de um anjo, decaído, sem dúvida, e com unhas recurvas, mas sem feiúra e com um sorriso um pouco irônico.

Segundo o autor (2009, p. 354), o demônio se tornará um monstro apenas nos séculos XI e XII: “Assimilado pelo código feudal a um vassalo desleal, Satã faz então sua grande entrada em nossa civilização. Anteriormente abstrato e teológico, ei-lo que se concretiza e reveste nas paredes e nos capitéis das igrejas toda espécie de formas humanas e animais”.

Dessas citações podemos inferir, em caráter hipotético, que levou um milênio até que os cristãos tivessem de fato uma ideia amedrontadora do demônio. Como psicanalistas, diríamos que o totem ainda não havia se constituído.

Ecoam nesse momento as Sagradas Escrituras. O medo, de forma geral, é abordado nos textos nas falas de Cristo. Neles, Jesus afirma: “Não tenhais medo!”. Pode ser lido em diversas passagens dos Evangelhos (Mateus 14, 17; Marcos 16, 6; João 16, 33; entre outras). O foco dos primeiros cristãos era a pessoa de Jesus e, por conta disso, seria desnecessário ressaltar a potência demoníaca.

Mas voltemos ao século XIII. É nesse momento histórico que as penas do inferno são sistematizadas nas paredes das catedrais (DELUMEAU, 2009DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 355). Apesar de Satã ser agora uma figura assustadora, os diabos são ridículos ou mesmo divertidos e nada têm de ameaçadores.

O autor reconhece como marco da construção da imagem do demônio a famosa obra de Dante Alighieri, A divina comédia. Datando do século XIV, ela é um centro irradiador de uma verdadeira obsessão demoníaca que irá durar até o século XVII (DELUMEAU, 2009DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 355). Então, como explicar essa permanência renitente do demônio na cultura ocidental por mais de trezentos anos? Dentro da história da religião cristã, estamos próximos de um evento de grande importância: a Reforma Protestante. Conforme Delumeau (2009DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 362):

A polêmica confessional desencadeada por Lutero e seus discípulos sobre tais bases só fez aumentar o medo do diabo na Alemanha protestante, onde teólogos e pregadores convenceram-se de que, aproximando-se o fim do mundo, Satã lançava contra os evangélicos sua última ofensiva.

Que polêmica confessional era essa? Em síntese, que o Papa seria o próprio Anticristo e toda a Igreja Católica a máquina de operação demoníaca sobre o mundo. Espalhava-se assim na Europa uma nova forma de ver o diabo: antropomórfica, encarnada num ser humano concreto, o Papa. Torna-se uma arma poderosa de combate teológico, da qual a própria Igreja lançará mão na caça às bruxas da Inquisição (tomemos o Martelo das feiticeiras como exemplo). Percebe-se, então, que não é o pensamento medieval que dá origem ao medo obsessivo do demônio, mas: “[...] foi no começo da Idade Moderna e não na Idade Média que o inferno, seus habitantes e seus sequazes mais monopolizaram a imaginação dos homens do Ocidente” (DELUMEAU, 2009DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 367).

Neste momento, podemos propor uma síntese do que escreve o historiador. O demônio cristão surge, historicamente, no Novo Testamento. Os afrescos desse final da Antiguidade o ignoram por cerca de 500 anos. Temos as primeiras representações iconográficas apenas no século VI, mas não um monstro aterrador, e sim um anjo deformado.

É preciso mais meio milênio para que o próprio Satã assuma uma característica monstruosa, mas seus asseclas ainda são criaturas patéticas. É preciso um corte, um marco, que é o século XIV, quando os demônios tomam sua forma monstruosa, mas ainda mística, como um espírito, portanto incorpóreo. Muito distante daquele ser que se apresentou a Jesus no deserto, a Reforma Protestante encarna o demônio na Igreja Católica e elege o Papa como o anticristo. A Igreja responde numa variação: os demônios possuem o coração dos homens e mulheres e este demônio precisa ser combatido a todo custo, não para salvar o corpo, mas a alma. Estabelece-se a violência concreta e objetivada no outro.

Como explicá-la historicamente? Mais sintéticos que no parágrafo anterior, podemos dizer: o poder de Satanás cresceu na mente dos homens no curso do tempo, e seria preciso mais meio milênio para dissolvê-lo na negação crescente à religião cristã, à qual assistimos nos dias atuais.

3. Discussão: pontos divergentes e convergentes

No tópico anterior, montamos um quadro histórico a partir da pesquisa de Delumeau. Cabe agora considerar o que significa, em termos psicanalíticos, o que o historiador aponta. Dissemos anteriormente que todo medo é, na verdade, uma reação contra a ameaça de castração. É uma proteção contra o pai que nos separou da mãe, nosso primeiro objeto de prazer.

O demônio então seria uma representação para o pai psicanalítico? Retomemos a função do demônio no pensamento ocidental: a ele é atribuída a própria perdição humana, ou seja, a separação permanente do estado paradisíaco e a condenação eterna no Inferno. Há, aqui, certamente, analogias possíveis. O cristão está convicto da existência da vida após a morte. Algo que, de certo modo, já tenha experimentado anteriormente. Ao menos na fantasia, o cristão já experimentou o Paraíso, pois nele crê e dessa verdade compartilha. Para o cristão convicto, a salvação é tão real como qualquer coisa terrena.

Freud, em O mal-estar na cultura (1930/2011FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (1930). Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 42), afirma que a existência do sentimento religioso decorre de uma sensação de “eternidade”, ou seja, de perceber que existe “algo mais”, um sentido para o mundo.

Dito com mais exatidão: originalmente o eu contém tudo, mais tarde ele segrega de si um mundo exterior. O nosso atual sentimento de eu, portanto, é apenas um resíduo minguado de um sentimento de grande abrangência - na verdade, um sentimento que abrangia tudo e correspondia a uma íntima ligação do eu com o ambiente. Se nos for permitido supor que esse sentimento primário do eu tenha ficado conservado - em maior ou menor medida - na vida psíquica de muitas pessoas, então ele seria uma espécie de contraparte do sentimento do eu, delimitado de modo mais restrito e mais claro, próprio da maturidade, e os conteúdos ideativos correspondentes a esse sentimento primário seriam justamente os de uma ausência de limites e de uma ligação com o universo, os mesmos que meu amigo usou para explicar o sentimento ‘oceânico’ (FREUD, 2011FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (1930). Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 48).

Dentre muitas coisas que essa citação pode significar, podemos apontar duas: a primeira, com menor grau de importância para essa discussão, é que o sentimento da existência do transcendente seria, segundo Freud, uma fixação numa fase muito primitiva da infância, quando não distinguíamos nós mesmos dos outros e do mundo, pois esses conceitos (eu, outro, pessoa, mundo, etc.) não estavam desenvolvidos. Esse apontamento guarda, portanto, uma redução: a crença em Deus é, em última instância, uma obsessão infantil, que permanece inconscientemente na vida adulta, posição que, como historiadores, precisaríamos olhar com muita prudência.

A segunda, menos óbvia aos leigos em psicanálise, é o papel desse sentimento na constituição não apenas do eu, mas de toda a realidade psíquica do sujeito. Com isso, retomamos o que escrevemos anteriormente: Deus - enquanto objeto - é uma figura real dentro do psiquismo, tanto quanto o outro, e deriva de experiências muito primitivas da pessoa.

Assim, explicamos a importância psíquica da religião em uma sociedade que exalta seu valor, como na Idade Média e na Idade Moderna em questão por Delumeau. Nesse sentido, faz-se necessário - para o cristianismo e para o homem medieval - encontrar nesse sistema religioso um lugar para o mal. Um dos principais motivos é que o Deus cristão não se revela como um Deus punitivo ou vingativo,3 3 Podemos dizer que essas características de Deus chegam até nós como resquícios do judaísmo e do paganismo, que também são pensamentos fundantes da cultura ocidental. mas sim misericordioso.

Assim, a castração não pode vir de Deus, mas de outra entidade, inferior, certamente, mas potente o suficiente para constituir uma figura de medo, portanto de autoridade. Onde está o demônio, então, na topologia psicanalítica? Se seguirmos o que apontamos neste texto, o demônio está no super-eu rigoroso, pois é ele quem carrega a possibilidade do castigo. Em outras palavras, não há espaço para Satanás no id, que apenas obedece ao princípio do prazer.

Nesse momento, não podemos confundir id com inconsciente. O id e o super-eu são, de fato, totalmente inconscientes, enquanto o eu possui partes que estão inconscientes e partes que não estão. Chegamos, então, a um impasse: como o historiador pode se apropriar dessa teoria para produzir o conhecimento histórico? Se o historiador aceitá-la de uma forma imediata, ou seja, simplesmente reduzirmos o medo do demônio ao medo do pai, a explicação da evolução histórica desse sentimento torna-se desnecessária e superficial. E, além disso, estaríamos compreendendo as fontes históricas a partir de um sentido que não é da sociedade que estudamos. Retomando Chartier (1991CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, abr. 1991. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141991000100010
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), é preciso compreender os processos históricos a partir de uma lógica que é própria a eles.

Devemos lembrar que, sobretudo no período medieval, a religião não é simplesmente a repetição de um estágio infantil. Nessa época, é uma força cultural, filosófica e política. Sua influência abarcava desde a produção erudita, como o senso comum, até às relações econômicas. Em suma, o homem medieval é um ser profundamente imerso numa vida espiritual, de forma que, ao desprezar isso, estaríamos arriscando não compreendê-lo ainda mais. Assim, é prudente reduzir o menos possível as categorias de pensamento e não desprezar os processos que as constroem.

Dessa forma, a Psicanálise não pode ser uma categoria útil à análise histórica? Até esse momento, estivemos trabalhando nas contradições entre ambas as formas de produção de conhecimento. Até o momento, não colocamos as formas pelas quais elas podem convergir. Façamo-lo, portanto.

Dentre as diversas formas de intervenção da Psicanálise na História (Michel de Certeau as chama de “cirúrgicas”), é preciso destacar a posição epistêmica de ambas. Certeau alinha a História ao gênero da ficção. Mais especificamente, História é uma ciência-ficção. Certeau (2011CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre a ciência e ficção. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 48) aponta:

1. O “real” produzido pela historiografia constitui, também, o legendário da instituição dos historiadores; 2. o aparato científico [...] possui aspectos de ficção no trabalho do historiador; 3. ao vislumbrar a relação do discurso com quem o produz - ou seja, alternadamente, com uma instituição profissional e com uma metodologia científica -, é possível considerar a historiografia como uma mistura de ciência e ficção, ou como um lugar que se reintroduz o tempo.

Se tomarmos justamente o aspecto de “reintrodução do tempo”, estamos trabalhando com o que há de mais ficcional na História: a relação do historiador com o cronológico. Nesse sentido, podemos dizer que o trabalho historiográfico não tem capacidade de se livrar por completo do anacronismo, pois sempre é leitura e análise de um vestígio do passado.

Em outras palavras, o historiador não está numa posição de produzir uma verdade sobre o passado, mas sim de lançar mão de métodos e técnicas próprios à História para produzir um conhecimento sobre o passado. A relação de hierarquia entre os tempos históricos, como escrevemos anteriormente, necessariamente deforma irreparavelmente os sentidos produzidos anteriormente. Por esse motivo, a História é um conhecimento ficcional.

Na primeira parte do binômio (ciência-ficção), a ciência surge como vontade, ou seja, uma vontade de produzir um conhecimento verídico. A leitura da fonte histórica por meios precisos garante essa potencial verdade, pois é, até certo ponto, externa ao próprio historiador, no sentido de que não é ele quem produz a fonte histórica. Assim, a História é um conhecimento, no máximo, verossímil.

E como isso se relaciona com a Psicanálise? O discurso psicanalítico também assume um caráter de ficção se considerar um dos objetivos da Psicanálise: sua capacidade de interpretar o paciente (num caso clínico). Em suma, a Psicanálise é um conhecimento metafórico. Pai não quer dizer o progenitor do sexo masculino; sexualidade não quer dizer genitalidade, e mesmo id, eu e super-eu são divisões didáticas do psiquismo.

A Psicanálise cria categorias de inteligibilidade daquilo que entende como visão de homem. Dessa forma, a Psicanálise produz uma ferramenta de interpretação do que é humano e seu funcionamento psíquico.

Podemos intercalar História e Psicanálise, por fim, alterando a própria concepção de ciência e as compreendendo dentro da perspectiva epistemológica de ambas as ciências. Ou seja, ao trabalhar com materiais tão inexatos como as fontes históricas e as manifestações do inconsciente, nos afastamos da proposta científica da modernidade. Estamos trabalhando com ciências interpretativas, e sua eficácia está justamente em sua inexatidão.

Portanto, só é possível uma interpretação psicanalítica da História se o historiador estiver implicado com a visão de mundo própria à metáfora psicanalítica. Entretanto, para isso, o historiador deve estar ciente da própria historicidade de si mesmo. Noção, aliás, que não é estranha à produção do conhecimento histórico desde os Annales, nas primeiras décadas do século XX.

Considerações finais

A representação do demônio foi utilizada nesse texto como um disparador da discussão. O objetivo foi demonstrar como ela pode ser pensada a partir de duas formas distintas de produção científica.

A discussão não se apresenta de forma clara, pois é preciso mostrar os lugares em que estão o psicanalista e o historiador. É preciso lembrar que essa posição é polissêmica e que ambas as ciências, Psicanálise e História, têm definições distintas entre seus praticantes.

Por conta disso, foi eleito um objeto que seria comum tanto ao historiador quando ao psicanalista: o medo, que se manifesta na esfera psíquica (da pessoa e da sociedade). Por isso, produz um espaço de diálogo mais frutífero. Ou seja, é um terreno comum onde se pode produzir um debate.

Esse debate só pode ser entendido ao relacionar as formas de produção de conhecimento de ambas, igualmente inexatas e interpretativas. Distanciadas de um objetivo de produzir verdades, estão em uma posição de igualdade, na qual o diálogo será, necessariamente, contraditório, mas, ao mesmo tempo, enriquecedor.

Referências

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  • DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre, RS: Artmed, 2008.
  • DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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  • FREUD, Sigmund. Psicanálise (1926b). In: SALOMÃO, Jayme (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 249-259. Edição Standard Brasileira.
  • FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura (1930). Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011.
  • NASIO, Juan-David. Como trabalha um psicanalista? Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.
  • 1
    Cultura é um conceito polissêmico nas teorias da História. Originalmente, os Annales não o utilizavam, substituindo por mentalidade, civilização e imaginário. Na década de 1960, surge uma nova divisão da História, chamada Nova História Cultural. Sobre essa modalidade de historiografia, ver os textos de Roger Chartier nas referências desse artigo.
  • 2
    A Igreja Católica é vista, normalmente, como uma instituição altamente resistente a mudanças. Essa ideia é errônea, pois é relativamente simples perceber as formas pelas quais a Igreja se adapta à sua contemporaneidade. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, é um meio de demonstrar isso. O que de fato é imutável na Igreja são seus dogmas, que são, afinal, o princípio de identidade da instituição. A destruição dos dogmas acarretaria, necessariamente, a destruição da própria Igreja.
  • 3
    Podemos dizer que essas características de Deus chegam até nós como resquícios do judaísmo e do paganismo, que também são pensamentos fundantes da cultura ocidental.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2015
  • Revisado
    13 Dez 2018
  • Aceito
    07 Fev 2019
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