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Discurso transverso em piadas de corintiano

RESUMO

O artigo pretende explicitar a relação entre "corintiano" e "pobre" e, em seguida, entre "pobre" e "ladrão", analisando pequeno corpus composto por piadas. Mostra que, do ponto de vista teórico-metodológico, trata-se de discursos transversos e, do ponto de vista histórico, de um discurso de longa duração, eventualmente pouco explicitado como tal, mas que ainda funciona como fonte de discursos preconceituosos.

PALAVRAS-CHAVE:
Humor; Discurso transverso; Corintiano; Pobre-ladrão

ABSTRACT

The article aims at making explicit the relationship between "Corinthians fans" and "poor people" and, subsequently, between "poor people" and "thieves" by analyzing a small corpus of jokes. It shows that, from the theoretical/methodological standpoint, this is a case of transverse discourses and from a historical point of view, a case of a long-term discourse, which is rarely fully expressed as such but which still works as a source of prejudiced discourses.

KEYWORDS:
Humor; Transverse Discourse; Corinthians Fan; Poor People-Thieves

Pobre tem de ter um triste amor à honestidade.

Riobaldo

Introdução

O corintiano é, em termos imaginários, tipicamente pobre. Trata-se de um estereótipo, como se pode comprovar de muitas maneiras. A mais óbvia é verificar o conjunto de profissionais liberais, intelectuais etc. que se declaram corintianos, em circunstâncias diversas. Mas não é mera casualidade que seu estádio esteja situado na zona Leste, em Itaquera. O mesmo fenômeno, invertido, ocorre com o São Paulo, imaginariamente clube dos ricos, que conta com muitos populares entre seus torcedores, como se pode ver nas ruas e nos estádios. Mas também não é apenas casualidade que seu estádio esteja no Morumbi, um bairro rico de S. Paulo.

Uma relação considerada óbvia, sobre as quais certas piadas se constroem, é a implicação "corintiano -> pobre -> ladrão / marginal", como nas piadas:

  1. "- Por que o placar do Pacaembu já não marca mais as horas?

    - Porque os corintianos já roubaram o relógio".

  2. "- Vocês sabem por que corintiano gosta tanto de tocar cavaquinho?

    - Porque é o único instrumento que dá para tocar algemado".

Uma hipótese é que se deva tratar estes dados aproximando estereótipo de pré-construído. Nesta perspectiva, pode-se dizer que "corintiano é pobre" e "pobre é corintiano" são enunciados que já foram ditos, ou que estiveram implícitos, "antes e alhures", durante muito tempo. Trata-se de postular uma equivalência ou um pertencimento (corintiano pertence ao conjunto dos pobres1 1 O verbo "ser" permite esta dupla interpretação: "A = B" ou "A pertence ao conjunto B". etc.).

Outra hipótese é tratar a questão em termos de discurso transverso: em vez de uma equivalência entre os dois elementos ou do pertencimento de um elemento a uma classe, propor que se trata de uma relação entre condição (ou causa) e consequência: "Se pobre, então criminoso / marginal". Estar algemado é outra consequência de ser criminoso / marginal, não outra equivalência2 2 Ver abaixo. .

Não se trata apenas de "inferências" ou de associações feitas por leitores/ ouvintes: há um dispositivo jurídico penal que faz com que estas sequências tenham este sentido. A história aponta para a maior probabilidade da alternativa do discurso transverso.

Uma teoria

Do ponto de vista teórico-filosófico, Pêcheux defende, como se sabe, a tese de que o sujeito é assujeitado a/por uma ideologia por meio de um processo que denomina de interpelação, seguindo Althusser. Tal "filiação" a uma ideologia "fornece a cada sujeito sua 'realidade', enquanto sistema de evidências e de significações percebidas - aceitas - experimentadas" (1975, p.162). Por outro lado, o sujeito não pode reconhecer sua subordinação, já que tal assujeitamento se dá sob a forma da autonomia (1975, p.162-3).

Do ponto de vista de um aspecto da teoria da análise do discurso, a saber, da materialização de uma ideologia na língua, Pêcheux constitui o interdiscurso como o espaço em que ocorrem privilegiadamente duas formas materiais: por um lado, o pré-construído, que constitui, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina (1988, p.163), e que são reinscritos no seu discurso. Por outro, as articulações. "O pré-construído", diz Pêcheux, "corresponde ao sempre já-aí da interpelação ideológica que fornece-impõe a 'realidade' e seu 'sentido' sob a forma da universalidade" (1975, p.164).

Pêcheux (1959) especifica: uma forma de efeito de sentido se dá pela relação de substituição entre elementos (palavras, expressões, proposições) no interior de uma formação discursiva dada3 3 Seu exemplo, em Pêcheux (1969, p.95), é a substituibilidade entre "notável" e "brilhante" em "este matemático é notável / brilhante" (mas não em "a luz brilhante do farol o cegou"). Ou seja, trata-se de uma questão de discurso, eventualmente de Formação Discursiva. , que pode tomar duas formas: a da equivalência, caso em que dois ou mais elementos têm "o mesmo sentido"; e a "da implicação - ou possibilidade de substituição orientada - tal que a relação de substituição A 🡢 B não seja a mesma que a relação de substituição B 🡢 A4 4 As análises correntes raramente levam em conta fatos desta natureza, ou sua análise em termos de discurso transverso, preferindo sempre as equivalências (mesmo quando não é o caso). É como o que ocorre com diagnósticos de "virose"; segundo o folclore, é proferido quando o médico desconhece causa efetiva da afecção. . Como se pode ver, seus exemplos são extraídos dos discursos da geometria e da física, disciplinas que fornecem uma garantia mais sólida de que sejam enunciados de interpretação indiscutivelmente unívoca e de valor universal.

Não é óbvio que se possa falar de assujeitamento, com o mesmo sentido que o conceito tem em outros discursos, em casos como estes, dada a diferença em relação ao processo de assujeitamento quando ele é efeito de uma ideologia e de uma teoria científica. Seria necessário, provavelmente, distinguir os dois tipos de assujeitamento, bem como os dois tipos de verdade. Para tanto, pode ser instrutivo considerar a diferença do papel e do funcionamento das disciplinas (ou ciências) e do das doutrinas. Segundo Foucault (1971, p.42)_______. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1971., uma disciplina "exige apenas o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra"; assim, ela só questiona o enunciado, mas não o sujeito. A doutrina, ao contrário, ele diz, questiona o sujeito através e a partir do enunciado, como o provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de rejeição. "A disciplina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo [...] dos indivíduos que falam" (FOUCAULT, 1971_______. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1971., p.43).

O exemplo de substituição de que Pêcheux trata é "triângulo com um ângulo reto / triângulo retângulo" (1975, p.164). A relação entre as duas expressões é, afirma, uma relação não orientada, uma vez que se trata de uma relação de identidade (p.164). Ou seja: as duas expressões são sinônimas.

Já o outro exemplo de substituição é "passagem de uma corrente elétrica / deflexão do galvanômetro", em uma sequência do tipo "constatamos A / B". A relação entre A e B, neste caso, é de causalidade, de determinação. Ou seja: a passagem de uma corrente elétrica é a CAUSA ou a CONDIÇÃO da deflexão do galvanômetro.

"Tudo se passa como se uma sequência Sy viesse atravessar perpendicularmente a sequência Sx que contém os substituíveis, unindo-os por um encadeamento necessário", continua Pêcheux (p.165). Trata-se de um discurso transverso, que se "analisa" assim:

"A passagem de uma corrente elétrica determina a deflexão do galvanômetro"

ou

"A deflexão do galvanômetro indica a passagem de uma corrente elétrica" (PÊCHEUX, 1975_______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp. 1988. [1975]., p.165).

Exemplos como este podem dar a impressão de que o discurso transverso é sempre óbvio e estável. Neste caso, e em outros equivalentes, o "universal" é pouco discutível.

Mas não é assim que as coisas se passam no caso dos discursos ideológicos, que são aceitos como verdadeiros apenas por parcelas de uma sociedade (classes?), ao contrário desses discursos da geometria e da física, sempre tomados como efetivamente universais, e mesmo dos discursos "culturais", aceitos por uma sociedade mais ou menos integralmente, embora não por outras sociedades.

Pêcheux também propõe análises que não são exatamente como a citada acima, que envolve conhecimentos básicos do discurso da eletricidade. Em Pêcheux (1990)_______. Leitura e memória. In: Análise do discurso; Michel Pêcheux (textos escolhidos por Eni Puccinelli Orlandi). Campinas: Editora Pontes, 2011, p.141-150. [1990], texto que foi originalmente um projeto de pesquisa (não aprovado), o autor re-analisa um "caso" bem característico da semântica argumentativa, teoria basicamente associada a Ducrot.

Sigamos Pêcheux: dada a sequência "Pedro está lá (A), mas João não o verá (B)", diz ele que Ducrot mostra "de forma convincente" que mas não liga diretamente A e B, e que é preciso supor outro enunciado, não-dito, algo como "João verá Pedro" (B'), este sim posto em relação adversativa com a oração que segue mas: Pedro está lá (e por isso João o verá ou deveria vê-lo), mas João não o verá".

Pêcheux observa que o ponto crítico recai sobre o estatuto de B', e afirma que Ducrot se recusa a "fazer intervir no interior da análise linguística desta sequência a referência a qualquer corpus interdiscursivo" (1990, p.148). Para Ducrot, a sequência inclui (apenas) um "conjunto de instruções" necessárias à decodificação da significação desta sequência (e mesmo de outras) em contextos específicos5 5 Estou resumindo Pêcheux. .

Pêcheux propõe outra análise para esta sequência, análise que faz intervir o interdiscurso. Sua tese empenha-se em reconstruir [...] os elementos interdiscursivos que, a partir de "João está lá", permitem introduzir o nome próprio "João" como um pré-construído com relação à presença de Pedro e a ligação transversa entre "estar lá" e "ser visível"6 6 Eu destaco, porque é a tese fundamental. ("com a especificação discursiva do valor ótico-físico ou social da série "ver", "ser visível"...). A questão central, para Pêcheux, é a relação entre "estar lá" e "ser visível", questão não considerada por Ducrot.

A tese de Pêcheux é que, mais do que "inferir" ou "calcular" um implícito, os locutores o "descobrem" a partir de um saber, que poderia ser traduzido assim (levando em conta o que todos sabem sobre duas pessoas estarem no mesmo ambiente e uma poder ser vista pela outra): se Pedro e João estão no mesmo lugar, João deve ver Pedro; mas, por alguma razão, não vai vê-lo. As razões podem ser, por exemplo, as seguintes: ou o ambiente é dividido por paredes, que impedem a visão de quem está do outro lado... (o que é outro saber); ou Pedro e João irão a este lugar em horários diferentes, ou Pedro não está mais presente quando João chega, por exemplo, porque foi chamado por alguém, contra a expectativa de todos, e João, que o veria em outra circunstância, não poderá mais vê-lo (o que é outro saber...).

O que nem Pêcheux nem Ducrot explicitam é a razão exata, ou uma das razões pela qual João não verá Pedro, apesar de ambos estarem lá. O que pode ser irrelevante, por um lado, ou, por outro, poderia explicar determinada progressão do texto, seja com explicações do fato pelo locutor, seja com perguntas do destinatário, que podem ser respondidas ou não. Certos problemas só surgem quando se constroem exemplos artificiais, por mais relevantes que sejam.

Outro exemplo, talvez de sentidos mais evidentes, seria "Foi a Roma, mas7 7 Se fosse "e não viu", a interpretação seria fundamentalmente a mesma. não viu o Papa, porque ele estava visitando Cuba". Este pequeno texto é provavelmente mais "autêntico" do que o seria "foi a Roma, mas não viu o papa", que tem cheiro de exemplo escolar. Expliquemos: se o papa está em Cuba, não pode ser visto em Roma (nem mesmo "de" Roma).

Um apelo ao que se sabe (qualquer um sabe) sobre não poder ver alguém a tamanha distância (um discurso transverso), especialmente se a Terra é redonda (outro fato, que explica o primeiro), permite explicitar o sentido do enunciado.

Outros casos de "memória", tomada como um implícito, como defendem Achard (1999)ACHARD, P. Memória e produção discursiva do sentido In: ACHARD, P. et al. (Org.) Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999, p.11-17. e Pêcheux (1999)_______. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. (Org.) Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999, p.49-57., ocorrem muito frequentemente em narrativas, quando, por exemplo, o narrador salta parte de um episódio, cuja recuperação fica por conta dos leitores / ouvintes.

O conceito de leitor modelo, cunhado por Eco (1979)ECO, U. Lector in fabula. Trad. Attílo Cancian. São Paulo: Perspectiva, 1979., pode aqui ser evocado, embora ele fale de uma perspectiva genericamente pragmática. Um exemplo considerado em Eco (1994)_______. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. é bem instrutivo, embora pareça apenas banal. Está falando de Sylvie, o romance que é mais amplamente citado na sua série de conferências9 9 Supondo que ela desembarque por estar perto de sua residência... . Determinada descrição de uma das viagens nunca menciona o cavalo. "Será que o cavalo não existe em Sylvie, já que não aparece no texto?" (p.89). Em seguida, mostra como seria incoerente, mesmo sem menção anterior aos cavalos, uma passagem como "desci da carruagem e constatei que nenhum cavalo a puxara ao longo de toda a viagem (p.89-90).

O que Eco está dizendo é que, ao narrar uma viagem feita em carruagem, os cavalos são óbvios, mesmo que nunca sejam mencionados. O leitor sabe disso (mesmo o leitor empírico). É uma boa ilustração do que seja um discurso transverso (se se viaja de carruagem, há cavalos que a movem).

Dois excertos do conto O cobrador, de Rubem Fonseca, ilustram a mesma tese:

(a) "Vou ter que arrancar, ele disse. [...] Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na aponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso. São quatrocentos cruzeiros" (p.165-6).

(b) "Paro na rua Visconde de Maranguape. É aqui que você mora? Saio sem dizer nada" (p.177).

A primeira sequência não narra todas as ações que o dentista pratica entre os atos de aplicar uma injeção na gengiva e o de mostrar ao paciente seu dente na ponta do boticão, que são, pelo menos: (a) apanhar o boticão, (b) inseri-lo na boca do paciente, (c) prender o dente, (d) fazer força, (e) arrancá-lo. Já a segunda sequência deixa implícita a resposta de Ana (afirmativa, ou que pode nem ter ocorrido, por óbvia) e o ato de Ana de desembarcar do carro9 9 Supondo que ela desembarque por estar perto de sua residência... .

Duas piadas

Em seguida, analiso duas piadas nas quais o discurso transverso é crucial. O objetivo é mostrar que, para interpretar estes textos, mobiliza-se uma memória específica de cunho histórico, que também pode ser chamada de interdiscurso - outras teorias a chamam de conhecimento de mundo, ou prévio. Paveau (2006)PAVEAU, M.-A. Os pré-discursos: sentido, memória, cognição. Trad. Graciely Costa e Débora Massmann. Campinas: Pontes Editores, 2013. [2006] propõe que o conceito de pré-discurso englobe estas (e outras) diferentes intuições. Sobre memória, vale a pena citar a seguinte passagem de Pêcheux:

A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como um acontecimento a ler, vem restabelecer os "implícitos" (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados ou relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível (1999, p.52)10 10 É certamente a passagem sobre o tema mais citada em trabalhos que seguiriam Pêcheux, mesmo que seus detalhes não sejam de fato considerados. Em geral, não se distinguem os diversos mecanismos sintáticos ou textuais por meio dos quais a memória é aludida - ou pede para ser evocada, ou "faz falta". Não raro, todos os elementos são subsumidos pela expressão "pré-construído", trate-se de um pano de fundo genérico, trate-se de qualquer um dos diversos tipos de implícito. .

Do ponto de vista teórico, tais dados mostram claramente que uma língua não é um código, ou, um corolário desta tese, que um texto não é codificado. Lemos bem mais do que o texto diz em sua superfície.

Parece óbvio que existem textos codificados, ou mais codificados do que outros: um endereço, especificado pela menção da rua e número de uma residência, por exemplo, desde que se saiba em que cidade fica a rua, ou que o nome da cidade também seja explicitado; mas também é verdade que um endereço entregue a alguém pode ser um convite para uma festa ou outro encontro qualquer; textos anteriores podem explicitar isso.

Mas os textos mais interessantes, pelo menos para a Análise do Discurso e para certas teorias do texto, são os outros, os que evocam ou requerem outros textos. Vejamos isso nas seguintes piadas, já citadas acima:

  1. - "Por que o placar do Pacaembu já não marca mais as horas?

    - Porque os corintianos já roubaram o relógio".

  2. - "Vocês sabem por que corintiano gosta tanto de tocar cavaquinho?

    - Porque é o único instrumento que dá para tocar algemado"11 11 Veja-se esta variante, que mostra que o mesmo discurso se repete: - "Sabe por que a ola da Gaviões da Fiel é perfeita? - Porque todo mundo vai pro estádio algemado...". Há uma variante desta piada com "negro" em vez de "Gaviões da Fiel", o que indica a implicação "negro -> ladrão" ("Gaviões da Fiel" é o nome de uma associação de corintianos, que se envolve em diversas atividades: torcida organizada, Escola de Samba, etc.). .

É relevante começar do começo, isto é, retomar o que estes textos supõem conhecido (seu interdiscurso). Breve e esquematicamente:

  1. o Corinthians é o time do povo;

  2. "povo" significa, neste contexto, resumidamente, os pobres, os populares, e não os habitantes de uma nação (como em "povo brasileiro");

  3. o povo é pobre (daí se dizer que corintianos são pobres);

  4. o povo não estuda12 12 Piadas podem dizer isso quase diretamente "- Por que o placar do estádio não funciona em jogos do Corinthians? - Porque ninguém sabe ler mesmo...". Nas redes sociais, circula uma imagem de camisa do Corinthians cheia de impressões digitais. A legenda é CAMISA AUTOGRAFADA DO TIMÃO. Ora, a impressão digital é também a assinatura dos analfabetos... ;

  5. o pobre é ladrão13 13 A afirmação pode estar mais clara numa piada como: "- Se você está dirigindo e uma pessoa com uma camisa do Corinthians está andando de bicicleta, por que você não a atropela? - Porque pode ser a SUA bicicleta". Mesmo assim, não necessariamente se encontra o enunciado "pobre é ladrão" (trata-se de implícitos não necessariamente materializados, como advoga Achard, ou de memória no sentido de Foucault (1969, p.65): enunciados que não são mais admitidos nem discutidos [...], mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica. ;.

Considerando a primeira das duas piadas, descobre-se que uma das "teses" está quase totalmente explícita: "os corintianos roubaram o relógio". Tanto se considerarmos que o implícito é "corintiano = pobre" quanto que é "pobre 🡢 corintiano" ou "corintiano 🡢 pobre", a afirmação implícita mais relevante é "os pobres roubaram o relógio".

Agora, observe-se o núcleo da segunda piada. Ele é constituído por um implícito que é um discurso transverso: o ladrão está condenado, porque estar algemado implica ter sido condenado (é um dos saberes envolvidos) ou, pelo menos, ter sido preso14 14 Há muitos presos sem sentença condenatória no Brasil. . Ora, se está preso, é porque violou a lei. E pobre viola a lei roubando (e não assassinando ou mandando dinheiro para o exterior)15 15 Evidentemente, este tipo de texto não põe em questão a justiça do sistema judiciário. . Em suma, estar preso (dito) é consequência de ter cometido um delito (implícito), o roubo ou furto (outro implícito).

Em resumo: as "informações" centrais destas piadas não estão expressas. Trata-se da conexão, ou da relação causal, entre pobreza e criminalidade, que faz parte de uma memória de longo prazo. Nem mesmo os dados oficiais conseguem mudar este estereótipo. Tornou-se um preconceito, isto é, um conceito prévio não analisado. Nem adiantam, contra ele, por exemplo, as numerosas informações segundo as quais quem menos se endivida são os pobres, quem mais paga empréstimos são os pobres e que os grandes roubos não são perpetrados por pobres.

O avesso do imaginário sobre o corintiano, em São Paulo, pelo menos, é o do são-paulino, como dito acima, que seria tipicamente de classe média ou rico (não pobre). Os dois imaginários estão presentes na frase de um recente presidente do clube (que, aliás, foi escorraçado por corrupção), comemorando a volta de Kaká ao São Paulo, há algum tempo.

Segundo ele, tratava-se de jogador com a cara do clube: "fala bem, é bonito, tem todos os dentes". Quem conhece a rivalidade entre os dois clubes (certamente, hoje, a mais viva em São Paulo), "ouve", nesta declaração, a avaliação positiva de um clube e a negativa de outro, embora implícita: é o clube dos que não falam bem, são feios e não têm dentes - todas são marcas associadas à pobreza. Só faltou dizer que Kaká não roubava ou nunca tinha sido preso.

Esta memória, aliás, é constantemente ativada. Um bom exemplo é o cartaz que foi veiculado pela Polícia Federal na véspera das Olimpíadas, como forma de prevenção contra o terrorismo. Em letras garrafais vermelhas (!) está a legenda PREVENÇÃO CONTRA O TERRORISMO. O texto diz (as fontes são diversas, como se pode ver no link abaixo16 16 http://vejasp.abril.com.br/blog/pop/alerta-de-8220-prevencao-ao-terrorismo-8221-da-agencia-brasileira-de-inteligencia-provoca-polemica-na-internet/ ): "Pessoas suspeitas usam bolsas, mochilas e roupas destoantes das circunstâncias e do clima. Agem de forma estranha e demonstram intenso nervosismo. Comunique o fato ao agente de segurança mais próximo".

O comentário do humorista José Simão foi "Vão acabar prendendo o entregador de pizza. Ou então um corintiano" (Folha Ilustrada, 24/7/2016). O que o explica é a semelhança das vestimentas com a de muitos pobres, especialmente se ligados a certos grupos da periferia. Imaginariamente, corintianos.

Interdiscurso

Paveau (2013)PAVEAU, M.-A. Os pré-discursos: sentido, memória, cognição. Trad. Graciely Costa e Débora Massmann. Campinas: Pontes Editores, 2013. [2006] elenca o discurso científico entre os lugares de possível falta de moralidade discursiva. Analisa a breve história epistêmica do conceito de interdiscurso. Sua tese é que foi originalmente proposto por Pêcheux, conforme se lê em Culioli et al. (1970). A passagem crucial é a que afirma que, em certos eventos retóricos (escolha das palavras e ordem do encadeamento das idéias), trata-se de

interdiscurso (efeito de um discurso sobre outro discurso) como base sobre a qual se organizam os "mecanismos estratégicos" mencionados acima. Isto significa que estamos, assim, no nível do "fala-se" e do "isso fala", ou seja, no nível do não consciente (nível do pré-asseverado: lexis e relação primitiva). (CULIOLI et al., 1970, p.7, nota VII, apudPAVEAU, 2013PAVEAU, M.-A. Os pré-discursos: sentido, memória, cognição. Trad. Graciely Costa e Débora Massmann. Campinas: Pontes Editores, 2013. [2006], p.267).

Paveau explica que a noção de interdiscurso nasce da psicanálise e da hipótese do inconsciente, ou pelo menos de uma reflexão sobre as relações entre psicanálise e linguística (p.267). Portanto, continua, o interdiscurso deve ser considerado algo que está entre "o discurso levado em conta e o discurso outro, que produz efeitos sobre o discurso primeiro, efeitos não sabidos e não reconhecidos17 17 Seria o caso do enunciado "pobre é ladrão", provavelmente considerado nunca dito nem aceito por ninguém; mas, mesmo assim... Ver também a reanálise das adversativas (acima), quando o interdiscurso comparece seguidas vezes. . Este traço é ainda mais claro se o interdiscurso, conforme ela afirma, não possui materialidade linguageira, embora tenha materialidade ideológica (p.268).

Como se vê, esta concepção de interdiscurso explica por que a memória, para Pêcheux, tem a ver mais com discurso transverso e com implícito, em geral, do que com retomada de enunciados anteriores. A questão moral diz respeito ao esquecimento do autor do conceito, a partir do que se cria outra filiação, bem como implica sua transformação, vindo a ser uma quase variante de intertexto.

Em suma, se a relação entre o que as piadas consideradas acima dizem e o lugar de onde elas provêm é uma relação do dito com um discurso transverso, como este trabalho sustenta, então trata-se verdadeiramente de interdiscurso, na acepção proposta por Pêcheux. É que não há nenhuma relação intertextual. O que há é um caso de "isto fala / fala-se", sem que, eventualmente se encontre vestígio deste enunciado (eventualmente se encontraria sua denegação), que só uma análise que faça trabalhar estes conceitos pode trazer à luz.

Conclusão

O que se pretendeu mostrar é que os implícitos podem ter natureza específica, não sendo adequado subsumir todas as suas formas em termos de memória discursiva ou de pré-construído. Este tratamento, que é comum, vai tornando tais conceitos fluidos, com o que perdem seu poder de análise.

Isto vale especialmente para distinguir os casos em que estas formas têm suporte na língua (como os pré-construídos, tipicamente materializados em nominalizações e/ou em sintagmas definidos) daqueles que demandam mais claramente uma interpretação da parte do analista (como parece ser o caso aqui considerado).

Acrescente-se que também vale a pena distinguir melhor a história de tais discursos, especialmente a dos "implícitos". No caso em tela, a "crença" de que pobre é ladrão (alhures, de que o negro é ladrão) pertence à história de longa duração. Tese que precisa ser mais bem comprovada.

  • 1
    O verbo "ser" permite esta dupla interpretação: "A = B" ou "A pertence ao conjunto B".
  • 2
    Ver abaixo.
  • 3
    Seu exemplo, em Pêcheux (1969, p.95)PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: Introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania Mariani et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 1990, p.61-161. [1969], é a substituibilidade entre "notável" e "brilhante" em "este matemático é notável / brilhante" (mas não em "a luz brilhante do farol o cegou"). Ou seja, trata-se de uma questão de discurso, eventualmente de Formação Discursiva.
  • 4
    As análises correntes raramente levam em conta fatos desta natureza, ou sua análise em termos de discurso transverso, preferindo sempre as equivalências (mesmo quando não é o caso). É como o que ocorre com diagnósticos de "virose"; segundo o folclore, é proferido quando o médico desconhece causa efetiva da afecção.
  • 5
    Estou resumindo Pêcheux.
  • 6
    Eu destaco, porque é a tese fundamental.
  • 7
    Se fosse "e não viu", a interpretação seria fundamentalmente a mesma.
  • 8
    Eco (1994)_______. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. reúne suas conferências proferidas no evento Charles Eliot Norton Lectures, promovidas pela Universidade Harvard.
  • 9
    Supondo que ela desembarque por estar perto de sua residência...
  • 10
    É certamente a passagem sobre o tema mais citada em trabalhos que seguiriam Pêcheux, mesmo que seus detalhes não sejam de fato considerados. Em geral, não se distinguem os diversos mecanismos sintáticos ou textuais por meio dos quais a memória é aludida - ou pede para ser evocada, ou "faz falta". Não raro, todos os elementos são subsumidos pela expressão "pré-construído", trate-se de um pano de fundo genérico, trate-se de qualquer um dos diversos tipos de implícito.
  • 11
    Veja-se esta variante, que mostra que o mesmo discurso se repete: - "Sabe por que a ola da Gaviões da Fiel é perfeita? - Porque todo mundo vai pro estádio algemado...". Há uma variante desta piada com "negro" em vez de "Gaviões da Fiel", o que indica a implicação "negro -> ladrão" ("Gaviões da Fiel" é o nome de uma associação de corintianos, que se envolve em diversas atividades: torcida organizada, Escola de Samba, etc.).
  • 12
    Piadas podem dizer isso quase diretamente "- Por que o placar do estádio não funciona em jogos do Corinthians? - Porque ninguém sabe ler mesmo...". Nas redes sociais, circula uma imagem de camisa do Corinthians cheia de impressões digitais. A legenda é CAMISA AUTOGRAFADA DO TIMÃO. Ora, a impressão digital é também a assinatura dos analfabetos...
  • 13
    A afirmação pode estar mais clara numa piada como: "- Se você está dirigindo e uma pessoa com uma camisa do Corinthians está andando de bicicleta, por que você não a atropela? - Porque pode ser a SUA bicicleta". Mesmo assim, não necessariamente se encontra o enunciado "pobre é ladrão" (trata-se de implícitos não necessariamente materializados, como advoga Achard, ou de memória no sentido de Foucault (1969, p.65)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. [1969]: enunciados que não são mais admitidos nem discutidos [...], mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica.
  • 14
    Há muitos presos sem sentença condenatória no Brasil.
  • 15
    Evidentemente, este tipo de texto não põe em questão a justiça do sistema judiciário.
  • 16
  • 17
    Seria o caso do enunciado "pobre é ladrão", provavelmente considerado nunca dito nem aceito por ninguém; mas, mesmo assim... Ver também a reanálise das adversativas (acima), quando o interdiscurso comparece seguidas vezes.

REFERÊNCIAS

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  • _______. Leitura e memória. In: Análise do discurso; Michel Pêcheux (textos escolhidos por Eni Puccinelli Orlandi). Campinas: Editora Pontes, 2011, p.141-150. [1990]
  • _______. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al (Org.) Papel da memória Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999, p.49-57.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2016
  • Aceito
    13 Abr 2017
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