Introdução
Muito já foi pesquisado sobre a habitação na “era da hegemonia das finanças” (Chesnais, 2005; Harvey, 2013), procurando compreender se e como a habitação está submetida às lógicas financeirizadas (Aalbers, 2008; Rolnik, 2015; Fernandez e Aalbers, 2016; Madden e Marcuse, 2016). Segundo Madden e Marcuse (ibid., p. 32), a financeirização se dá através, genericamente, do crescente poder dos atores que obtém lucros através da circulação de capital no mercado financeiro.
Em sua fase inicial, a pesquisa que serve de base para este artigo tinha como hipótese que a criação de instrumentos financeiros atrelados a soluções habitacionais1 de impacto social no Brasil se tratava de mais uma abertura de títulos de base imobiliário-financeira como aportes alternativos e complementares ao que hoje estaria sendo financiado pelas políticas públicas de habitação. A pergunta era: “Poderiam esses títulos, com recursos e lógicas associadas à esfera financeira, serem complementares ao financiamento público habitacional?”.
Com o andamento da pesquisa, a leitura mostrou que algumas lacunas, não atendidas pelas políticas habitacionais mais usuais, foram consideradas uma oportunidade para a criação de novas fronteiras para a expansão do capital financeirizado. Para atendê-las, foram estruturados títulos financeiros para alavancar recursos no mercado financeiro e financiar a empresa, ao mesmo tempo que foi estruturado um negócio baseado no endividamento das famílias de baixa renda para serem atendidas com as soluções habitacionais. Parece existir espaço no mercado para negócios, idealizados sob a égide do avanço das finanças, que visam impactos sociais.
Essa mudança partiu das descobertas empíricas da pesquisa que identificaram algumas iniciativas que produzem soluções habitacionais para famílias de baixa renda com recursos obtidos através do mercado financeiro: (1) o Programa Vivenda, estudo de caso deste artigo: é uma empresa que estruturou uma debênture para oferecer crédito com juros menores às famílias para reformarem suas casas em áreas precárias; (2) uma empresa em São Paulo que está estruturando uma proposta de emissão de recebíveis imobiliários do aluguel de seus imóveis, para ofertar no mercado locação com preço acessível; e (3) ainda uma imobiliária que viabiliza o acesso e administra locações a preço popular nas regiões metropolitanas do País, cujos recursos advêm de um fundo de investimento de impacto social; entre outros.2
O estudo mais pormenorizado de alguns casos mostrou que os esforços em incorporar esses títulos vieram do mundo dos negócios, e não das políticas públicas, em que a habitação seria uma “oportunidade em face do baixo número de negócios voltados à questão da habitação” (Assad, 2012, p. 14). Derivam da agenda do empreendedorismo social,3 que há décadas tem sido mobilizada a partir de alguns enfoques básicos. Um primeiro, tido como de origem europeia, que busca o associativismo e a ação coletiva, gerando riquezas que seriam reinvestidas no próprio negócio e com ganhos coletivos (Sen, 2000). Um outro, tido como de origem norte-americana, tende a relacionar os negócios de impacto às empresas privadas tradicionais, mas que oferecem produtos e serviços para a base da pirâmide social, criando um campo dentro de uma estratégia empresarial que vê os consumidores de baixa renda como a “riqueza na base da pirâmide”, ao mesmo tempo que gera dividendos aos seus proprietários. E um terceiro, ainda a ser mais bem compreendido, tido como dos países em desenvolvimento, no qual os negócios tendem a buscar a inclusão de pessoas pobres e excluídas da sociedade (Iizuka et al., 2014). Todos procuram usar os conhecimentos e instrumentos do mercado para solucionar problemas sociais.
Nessa articulação entre melhorias habitacionais e negócios de impacto, as experiências em investigação parecem mostrar uma aproximação com as microfinanças e com as finanças compreendidas a partir dos grandes investidores. As microfinanças, desde o final dos anos 1998, foram objeto de manuais do Banco Mundial, procurando compreender quais seriam os passos para atingir a população un-banked (entendida aqui como aquela que tem potencial de desenvolver negócios lucrativos), para ela pudesse entrar no mundo dos negócios, incorporando no mercado milhões de famílias de baixa renda (Ledgerwood e White, 2006), cujos recursos resultam em valores extraordinários, mas que circulavam fora do mercado formal.
No campo dos estudos urbanos, a aproximação entre negócios, finanças e melhorias habitacionais possui algumas experiências, conhecidas pelo termo em inglês bankable slums (que significaria favelas negociáveis ou que podem virar negócios lucrativos e de sucesso), que procuram destravar o potencial das finanças ligadas à habitação para os pobres urbanos. Segundo Jones (2012), com vistas a cumprir as metas do milênio da ONU através de vários programas, o problema das favelas foi considerado uma questão de financiamento: como garantir financiamento para melhorar a condição das favelas e o ambiente de vida de seus moradores, combinando com recursos obtidos na esfera das finanças, dentro do mercado privado. Segundo o autor, “não seria uma questão redistributiva, o papel do Estado seria prover condições para a operação do mercado”, que requer que a urbanização de favela possa se tornar um negócio lucrativo, ou seja, bankable, a partir do endividamento4 das famílias5 (ibid., p. 770).
Para Jones (ibid.), a literatura urbana dedicou-se a compreender a habitação como mercadoria financeirizada com olhar do Norte global, e apenas recentemente se buscou iluminar as transformações do campo habitacional e das finanças em relação a um amplo espectro de políticas que queriam, na realidade, promover uma expansão do financiamento hipotecário no Sul global. Suas colocações se alinham com as de Madden e Marcuse (2016), que afirmam que a commodification da habitação é reforçada pela sua globalização, cada vez mais dominada pelas redes econômicas globais e pelo investimento internacional, tornando os mercados locais mais sensíveis aos sinais dos circuitos da economia global enquanto investimento do que, de fato, às suas necessidades habitacionais locais. O capital financeirizado, assim como o neoliberalismo, mantém sua lógica se adaptando ao local onde "aterrissa" (Gago, 2018).
Essas experiências se aproximaram das estratégias de grandes investidores ao, por exemplo, associarem seus títulos aos impactos sociais, valorizando-os, ou também, ao encontrarem, nos negócios sociais, um espaço para pousarem, ainda que com rentabilidades mais baixas, pois obteriam rentabilidade a partir dos diferentes processos de associação ou certificações de impacto social associadas a seus títulos mais rentáveis.
Em uma outra direção, a literatura urbana no Brasil procurou compreender como a habitação se relaciona com as finanças no Brasil, indicando que parece haver mais uma estruturação da possibilidade de criação de títulos imobiliário-financeiros – como no caso da debênture6 do Programa Vivenda – do que uma real configuração de um mercado, o que demandaria enfrentar muitos desafios. Um desses trabalhos mostrou que, diferentemente do cenário norte-americano ou europeu, no início da década de 2010 ainda havia uma razoável regulação dos ativos imobiliário-financeiros, poucos eram os certificados de recebíveis ou debêntures emitidos que estavam associados a dívidas, e não havia um mercado secundário forte destes títulos (Royer, 2014). Embora haja um mercado crescente dos mesmos, há desafios regulatórios para atrair estrangeiros (Simão et al., 2019) e tampouco há outros mecanismos exóticos típicos de um mercado mais consolidado como o norte-americano (Madden e Marcuse, 2016).
A mobilização de ativos imobiliário-financeiros no Brasil teve início com a criação do Sistema Financeiro Imobiliário em 1997, que permitiu a participação de instituições financeiras nas operações de financiamento de imóveis, oferecendo, ao investidor, a garantia da alienação fiduciária e a possibilidade de captação de investidores institucionais, como fundos de pensão e bancos de investimento, através de instrumentos financeiros “inovadores”, como os já mencionados Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), as Letras de Crédito Imobiliário (LCIs), entre outros (Royer, 2014; Santoro e Rolnik, 2017). Há uma evolução crescente da utilização desses ativos, envolvendo, inclusive, a criação de novos tipos, como a Letra Imobiliária Garantida (LIG).
Posteriormente, outra aproximação da habitação com a esfera financeira deu-se com o desejo de ampliar a escala das companhias imobiliárias, alavancando recursos no mercado financeiro para a produção de habitação com a abertura do capital de incorporadoras brasileiras, entre 2005 e 200,7 em um processo conhecido como Initial Public Offering (IPOs) (Shimbo, 2010; Sanfelici e Halbert, 2016). Alguns autores apontam que essa estratégia não funcionou – as empresas caíram em descrédito quanto à capacidade de governança, forçaram margens não realizadas, não fizeram boas análises de risco, geraram empreendimentos com valores gerais de vendas (VGVs) sem suporte de absorção pelo mercado – e, após 2011, algumas empresas perderam valor, tiveram prejuízo ou fecharam novamente seu capital (Rocha Lima, 2012; Sanfelici e Halbert, 2016 apud Santoro e Rolnik, 2017, p. 412).
A disseminação da ideia de que os ativos imobiliário-financeiros possam ser relevantes para alavancar recursos no mercado financeiro para a produção de soluções habitacionais, inclusive atraindo investimento internacional, apesar dos desafios para estruturação desse mercado, parece ser uma construção lenta, mas importante de ser compreendida, promovida pelo próprio mercado financeiro em busca de novas frentes para expansão de seu capital.
É, nesse cenário, que se insere este trabalho, com objetivo de investigar as estratégias recentes das empresas para a obtenção de recursos no mercado financeiro para o financiamento de soluções habitacionais vinculadas a impacto social – através de títulos chamados, em inglês, de social impact bonds (SIBs), traduzidos aqui como títulos de impacto social, cuja definição será apresentada mais adiante neste texto. Esse movimento estaria acontecendo internamente ao mercado, com retornos obtidos via endividamento dos beneficiários.
Pelo fato de terem “impacto social”, também têm expectativa de obter, de forma complementar, financiamentos via fundo público. Esse modelo de financiamento enevoa a ideia de que “enquanto os investidores privados procuram maximizar seus retornos financeiros a partir de suas ações, o governo tem objetivos políticos a cumprir” (Pargendler Musacchio e Lazzarini, 2013), enquadrando-se em um tipo de política habitacional inclusiva (Santoro, 2019), que corresponderia à tentativa de associação de interesses públicos – impacto social ou ambiental – à lógica de retorno financeiro dos privados.
É comum dizer que os governos buscam os “interesses sociais”, ao passo que as empresas e os investidores buscam “lucros”. Contudo, cresce o número de empreendedores sociais interessados em projetos que proporcionem efetivamente impacto positivo às populações-alvo. Da mesma forma, surge um movimento de investidores conscientes e dispostos a apoiar empreendedores que tragam impacto social comprovado – os “investidores de impacto”, que querem, em vários graus e formas, conciliar retorno e impacto social. (Lazzarini, 2014, p. 14)
Jones (2012) conclui que essas soluções – que no caso estudado envolvem atrair finanças privadas de bancos comerciais ou mercados de capital para investir em melhorias habitacionais – esperam, como retorno aos investidores, os pagamentos estruturados por parte dos moradores de favelas. Afirma que esta é uma forma “essencialmente de caráter neoliberal” (ibid., p. 784), envolvendo não apenas os princípios de recuperação de custos (cost-recovery) pelo mercado, mas uma abordagem baseada na criação de ativos (asset-based approach) para provisão habitacional e social.
Usando a mesma linha de raciocínio, Gago (2018) coloca o endividamento das famílias como uma face importante do neoliberalismo, que chama de “neoliberalismo desde abajo”. Segundo a autora, as finanças tomaram conta de tramas de produção da vida popular, através de diversas formas de endividamento que passaram a explorar as economias domésticas, as formas de autogestão e as redes populares de trabalho, tendo como dispositivo o endividamento massivo, que se veicula através do consumo massivo – que chama de “cidadania por consumo” –, e, inclusive, através dos próprios subsídios sociais que o estado entrega aos “setores vulneráveis”, permitindo “a bancarização compulsiva daqueles que se supõem ‘excluídos’, financeirizando os próprios direitos sociais” (ibid., p. 10). Coloca que, “assim, uma multiplicidade de esforços, poupanças e economias, hoje, ‘põe-se a trabalhar’ para as finanças” (ibid.). Os dois autores, Jones e Gago, portanto, colocam o endividamento dos mais pobres como uma adaptação do neoliberalismo no Sul global, movido pelas finanças, de diferentes formas.
Com essa abordagem, que compreende o endividamento das famílias como de caráter neoliberal desde abajo, em que parece estar inserida a experiência do Programa Vivenda, empresa de pequeno porte especializada em reformas, que criou a primeira debênture de impacto social no Brasil para oferecer crédito com juros menores às famílias mais pobres para reformarem suas casas na periferia de São Paulo e que obtém retornos através de juros baixos obtidos no financiamento dessas melhorias, pagas mensalmente pelas famílias beneficiadas.
Investimentos e negócios de impacto
Os negócios de impacto7 são empreendimentos que têm a intenção clara de endereçar um problema socioambiental por meio da sua atividade principal (seja seu produto/serviço e/ou sua forma de operação), almejando diminuir a vulnerabilidade social da população de baixa renda. Atuam de acordo com a lógica de mercado, com um modelo de negócio que busca retornos financeiros, e comprometem-se a medir o impacto que geram (Barki, Comini e Torres, 2019; Petrini, Scherer e Back, 2016; Barki, 2015, entre outros).
Para Salamon (2014 apud Cruz, Quitério e Scretas, 2019, p. 27), o contexto para o surgimento global dos investimentos8 e negócios de impacto tem como base a "coexistência de características como o déficit contínuo de recursos filantrópicos e governamentais para responder às necessidades sociais existentes e a crescente sofisticação dos empreendedores sociais na proposta de soluções com escala e sustentabilidade financeira".
Há alguns argumentos principais em torno dos que atuam em prol de sua implementação. Um primeiro deles está na possibilidade de que estes sejam uma forma de financiar a implementação da agenda global da Organização das Nações Unidas e de cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS (Comini, Rosolen e Fischer, 2019; Gorini e Torres, 2019; Lab, 2019b; entre outros). No entanto, é difícil encontrar o lugar da habitação nos objetivos globais.9
Um segundo argumento envolve a visão de que se o projeto tiver impacto social ou ambiental, ele poderá atrair recursos públicos, não apenas os financeiros, para seu financiamento, fazendo migrar recursos públicos para o mercado financeiro. Inclusive, segundo Sérgio Lazzarini, um dos pesquisadores que têm estudado o enlace entre os governos e o mercado financeiro, é legítima a busca de mecanismos diferentes para apoiar e estimular novos investimentos, o que se torna “agenda prioritária em um contexto onde a população exige cada vez mais qualidade a um baixo custo, enquanto os governos se encontram cada vez mais restritos na sua capacidade de financiamento e execução” (Lazzarini, 2014, p. 10). O autor, ao observar as vantagens para os governos, aponta que uma vantagem desse modelo (adoção de contratos por desempenho) “é disseminar uma cultura de medição mais efetiva do impacto gerado por projetos urbanos” (ibid., p. 19). Como veremos no item adiante, os social bonds normalmente estabelecem métricas de impacto, e a bonificação aos investidores é feita se e somente se as metas forem atingidas (ibid., pp. 18 e 134), por isso poderiam ser financiados pelos governos.
Um terceiro, específico para o tema da habitação, envolve o argumento de que, para a expansão do crédito imobiliário, seria necessário voltar-se ao mercado financeiro. Aparece em frases como “a expansão do crédito imobiliário nos próximos anos está condicionada à capacidade do setor de atrair recursos do mercado de capitais. As fontes que bancaram os projetos até aqui – poupança e FGTS – não vão se esgotar tão cedo, mas serão insuficientes para atender à demanda” (Moreira, 2019).
Essas experiências parecem decorrer de alterações recentes no mercado financeiro, que cada vez mais procuram criar certificações que associam ativos aos benefícios ambientais e sociais, para que esses negócios não sirvam apenas para dar retorno financeiro. O pano de fundo de todos esses argumentos – que esteve na base da própria construção do termo “sustentabilidade” na agenda ambiental dos anos 1970 – parecia residir no fato de que o mercado financeiro começava a reconhecer os limites do planeta e relativizar o quanto pode produzir de negócios e retornos financeiros sem tomar os necessários cuidados com o meio ambiente ou sociais. Mas as declarações dos casos estudados mostram que esse movimento parece ser muito mais uma diversificação dos negócios em busca de novos mercados (como o dos pobres excluídos do sistema financeiro convencional) ou mesmo de criação de novos produtos financeiros nos moldes do "capitalismo consciente" para grandes investidores poderem adquirir títulos de governança verde e/ou social em seus portfólios – enxergando a habitação como uma "oportunidade" de negócio.
No entanto, já existem várias críticas ao modelo dos investimentos e negócios de impacto, ainda estruturadas na chave dos desafios para os negócios: apontam que há casos em que não há interessados, inviabilizando os projetos;10 que os desafios de implantar esses títulos envolvem os modelos financeiros adotados (quanto mais próximos das lógicas dos mercados de capital privados, mais atraentes); e que as formas de controle e monitoramento (accountability) dos serviços entregues pelos projetos, assim como do papel do terceiro setor quando envolvido nos projetos, merecem um monitoramento cuidadoso (McHugh et al., 2013, pp. 12-13).
Nesse sentido, um dos instrumentos disponíveis aos investidores mais conhecidos são os títulos de dívida corporativa, estruturados segundo alguns princípios da International Capital Market Association (ICMA).11 Existem, ainda, os empréstimos ou financiamentos sustentáveis – crédito bilateral, empréstimo sindicalizado, Project Finance – entre outros, mas que não serão objeto deste artigo. As publicações da ICMA classificam os títulos de impacto, como são usualmente chamados, em três tipos:
a) Títulos Verdes (Green Bonds): financiam projetos com benefícios ambientais, incluindo os relacionados à energia renovável, eficiência energética, tratamento de resíduos, transporte de baixo carbono, entres outros; b) Títulos Sociais (Social Bonds): financiam projetos que endereçam questões sociais e/ou buscam atingir resultados sociais positivos, especialmente para uma população vulnerável, como a população de baixa renda, minorias, desempregados, entre outros; c) Títulos de Sustentabilidade (Sustainability Bonds): financiam uma combinação de projetos com benefícios ambientais e sociais, se possível tendo como parâmetro o atendimento dos ODS. (LAB, 2019a)
Cerca de 34% dos títulos de impacto está atrelada aos ODS, totalizando US$70.238 milhões de dólares em 2018 (Environmental Finance, 2019). A rotulagem verde, social ou de sustentabilidade é uma iniciativa voluntária, uma vez que não há exigência legal de identificação dos instrumentos financeiros (LAB, 2019a).
O lugar da habitação também não fica claro dentre as definições dos títulos de impacto. Apenas em um dos documentos da ICMA12 encontra-se o termo “moradia a preços acessíveis” (em inglês, affordable housing) como uma categoria de projeto social que deve ser promovida e/ou fornecida como um título social. Mas outros títulos ligados ao tema da habitação foram encontrados como “títulos verdes lastreados em hipotecas” (em inglês, green mortgage-backed securities – MBS), semelhantes ao CRIs, totalizando mais de 50 bilhões de dólares em ativos emitidos pela Fannie Mae, instituição que atua no mercado de hipotecas norte-americano (Environmental Finance, 2019, pp. 2 e 24). Também foram encontrados títulos de sustentabilidade direcionados à disponibilização de habitação a preços acessíveis. Ou seja, ambos relacionados diretamente à habitação, mas que não se financiam por títulos sociais. Da mesma forma, a categoria de projeto social “habitação” também deve se atentar aos critérios verdes e suas consequências ambientais, conforme alertam Clapp e Wuennenberg (2019, p. 15).
Há discrepâncias nos valores obtidos pelos que avaliam o volume de recursos e o crescimento da disseminação dos títulos de impacto, mas todos são positivos. A Aliança Global de Investimentos Sustentáveis (GSIA, na sigla em inglês) apontou que havia US$30,7 trilhões aplicados em ativos de investimento sustentáveis nos cinco maiores mercados do mundo em abril de 2019,13 com crescimento de 34% em apenas dois anos (Adachi, 2019). A Global Impact Investing Networking – Giin (2019a) estimou que, ao final de 2018, US$502 bilhões em ativos de investimentos de impacto eram gerenciados em todo o mundo por 1.340 organizações, destas, 58% estavam nos EUA e Canadá, 21% na Europa e somente 4% na América Latina. Outra pesquisa (Giin, 2019b) aponta que 14% do total de US$239 bilhões (US$33 bilhões) de ativos de investimento de impacto estão alocados na América Latina e Caribe e 7% em habitação (US$17 bilhão). Há uma preferência dos investidores pelos títulos verdes, enquanto o volume de emissões de títulos sociais, apesar de muito menos expressivo, vem crescendo, passando de US$2,8 bilhões em 2016 para US$14 bilhões em 2018, um aumento de 71% (Environmental Finance, 2019).
No Brasil ainda não há um mercado de títulos de impacto consolidado, o que é considerado uma “oportunidade”, potencializando, inclusive, meios de captação de recursos do exterior. De acordo com Marco Gorini, sócio da Din4mo, “faltam confiança e estruturas adequadas para usar o mercado de capitais para viabilizar o financiamento de projetos voltados às famílias de baixa renda no Brasil”, pois a necessidade de serviços relacionados a habitação, saúde e educação entre a população de menor renda é conhecida, assim como a falta de financiamento.14 Para criar um ambiente de negócios, há uma mobilização em torno da agenda ambiental, mais disseminada que a social, principalmente preocupada com as mudanças climáticas.15 Destaca-se, no País, o Laboratório de Inovação Financeira (LAB), um fórum multissetorial, lançado em 2017.16 Embora o Brasil tenha maior familiaridade com os títulos verdes, um primeiro título de impacto social foi emitido para financiar o Programa Vivenda, estudo de caso deste artigo.
Títulos de Impacto Social (Social Impacts Bonds – SIBs)
Títulos de impacto social constituem uma tentativa de mercantilizar/financeirizar determinado problema social contemporâneo complexo. (Cooper, Graham e Himick, 2016, p. 1)
Na última década tem-se observado um foco crescente no desenvolvimento de abordagens novas e alternativas de financiamento para potencializar o impacto social. Como parte desse processo, títulos de impacto social (ou SIBs, em inglês) têm emergido como uma inovação amplamente aclamada, como uma “ideia audaciosa para solucionar os problemas mundiais” (Schmid, 2012, p. 64). Visando a atrair investimentos em serviços preventivos que melhorem impactos sociais sobre determinada população e determinada causa (Social Finance, 2011 e 2013), os SIBs combinam abordagens governamentais de “pagamento por resultado”, com os investimentos e a partilha de riscos, do setor privado. Portanto, entende-se que oferecem três benefícios principais: melhor performance e menor custo de serviços públicos e sociais; maior inovação e adoção de novas soluções; maior troca de conhecimento e compartilhamento de “boas práticas” (Liebman, 2011). (Clifford e Jung, 2016, p. 161)
Apesar de os títulos de impacto social (em inglês, social impact bonds – SIBs) serem relativamente novos, alguma literatura sobre o assunto já foi produzida (McHugh et al., 2013; Warner, 2013; Clifford e Jung, 2016; Cooper et al., 2016). De acordo com Clifford e Jung (2016) e Cooper, Graham e Himick (2016), o conceito dos SIBs parece ter se originado em Horesh (1988 e 2000), economista neozelandês que criou a noção de um vínculo baseado no mercado ligado a resultados sociais, sugerindo um mecanismo no qual os governos emitiriam um título no mercado financeiro que somente seria resgatado quando um objetivo social específico fosse alcançado.
A crise financeira do subprime de 2008 criou solo fértil para novos mecanismos como os SIBs. Aproveitando o investimento social do mercado de capitais para atender às necessidades decorrentes de cortes no orçamento dos governos de todo o mundo, surgiram como um instrumento que combinava Pagamento por Resultados e “investimento social”,17 que obteve apoio notadamente entre ex-banqueiros de investimento que buscaram trazer sua experiência em finanças do mercado de capitais para o terceiro setor, representando um desvio nas rotas tradicionais de financiamento para essas organizações (McHugh et al., 2013, pp. 3 e 12) e conformando uma nova abordagem do financiamento destinada a alavancar o impacto social (Clifford e Jung, 2016, p. 161).
Considerados o próximo passo na comercialização da prestação de serviços públicos, os SIBs entraram no cenário do financiamento público com uma rapidez surpreendente e quase simultaneamente nos governos ao redor do mundo. Eles foram iniciados no Reino Unido (2010), Austrália (2012) e Estados Unidos (2012) e estão sendo explorados no Canadá (2013), Nova Zelândia (2012), entre outros países.18 Nas palavras de Warner (2013), os SIBs funcionam da seguinte forma:
Primeiro, é preciso uma intervenção que tenha sido testada e que se prove apresentar uma determinada taxa de sucesso. Pode ser um programa de reinserção de presos que reduza a reincidência em certo grau ou um programa de pré-escola que reduza o encaminhamento para educação especial ao garantir que mais crianças estejam aptas a entrar na educação primária. O elemento-chave é que o sucesso deve ser cuidadosamente mensurado e monetizado, de modo a ser utilizado para estruturar o investimento privado. Além disso, são necessários parceiros interessados: governo, investidores, executores e avaliadores. A maioria dos programas envolve um intermediário que coordena investidores, executores do programa e avaliadores. Enquanto o governo estabelece os termos do acordo, em última análise ele cede a maior parte do controle ao intermediário. Isso torna a configuração do processo especialmente importante e difícil. SIBs também requerem investidores dispostos. Até o momento, investidores têm vindo primordialmente de organizações sem fins lucrativos e fundações – capital paciente, disposto a assumir alto risco e com interesse em gerar retornos sociais. Por fim, são necessários avaliadores, uma vez que as melhoras e os impactos devem ser cuidadosamente monitorados para que se calcule precisamente o retorno a ser pago (ou não) aos investidores. (pp. 304-305)
Os investidores dos títulos fornecem o financiamento antecipado dos serviços na esperança de retornos lucrativos, e os SIBs pagam retornos financeiros quando os resultados sociais especificados forem atingidos,19 agindo mais como um produto do mercado financeiro que não garante uma taxa de retorno fixa num prazo determinado.
Entre os defensores dos SIBS, imperam três argumentos principais. O primeiro é que o instrumento promove inovação (Cavalcanti, Castro e Bonzo, 2014) e traz novos recursos para o financiamento de serviços sociais em uma lógica “ganha-ganha”: proporcionam investimentos em políticas sociais sem custo e risco mínimo para as finanças públicas (assumido pelos investidores e não pelos prestadores de serviços), em um período de orçamentos públicos restritos e incertos (Wintour, 2012 apud McHugh et al., 2013, p. 4). Essa lógica “ganha-ganha” está muito mais no discurso pró-instrumento que na prática, trabalhos recentes têm mostrado a dependência dos recursos públicos para financiar políticas e dar garantias de pagamentos aos serviços realizados por privados (Santoro e Ungaretti, 2019; Raco, 2014). Outro pressuposto é que os governos conseguem, ao menos em teoria, reduzir os custos para o contribuinte, uma vez que diminuem seus gastos quando os prestadores de serviços atingem as metas predeterminadas (Warner, 2013, p. 303). Por fim, argumenta-se a favor dos SIBs a possibilidade de atuação dos governos (uma vez financiados) na prevenção dos problemas sociais, o que é muito menos onerosa que a remediação deles (ibid., p. 308).
Diversas críticas também têm sido empregadas ao instrumento. A primeira delas diz respeito ao fenômeno que Donzelot (2008 apud Cooper, Graham e Himick, 2016) chamou de “transição do estado de bem-estar social para o estado de investimento social” ou a implantação de mecanismos da governança neoliberal de Harvey (2005) para decretar políticas governamentais, fazendo com que o Estado perca parte de sua capacidade de avaliar criticamente suas atividades em perspectiva humana e política.
A racionalidade neoliberal insistiria na erradicação de políticas sociais governamentais e em sua substituição por mecanismos de mercado. O ponto importante em relação aos SIBs é que são uma incursão econômica no não econômico; isso torna tecnologias de contabilidade, que podem atribuir valores monetários a domínios considerados a princípio “não econômicos” ou sociais, essenciais para seu funcionamento. Os mecanismos de mercado em jogo nos SIBs são mecanismo de mercado financeiro. O valor de uma unidade individual de capital humano é seu fluxo de caixa futuro. Quando uma pessoa falha em gerar fluxo de caixa suficiente (um “empreendedor fracassado”) e o Estado provê fundos para essa pessoa, os mecanismos de contabilidade do SIB podem ser utilizados para assegurar que pelo menos parte desses fundos beneficiem investidores. (Cooper, Graham e Himick, 2016, p. 8)
Outra crítica importante é a dificuldade de mensurar os resultados sociais e, portanto, o momento de retorno do investimento aos credores. Avaliar como e até que ponto uma intervenção afeta o bem-estar de um participante não é uma tarefa simples, assim como a própria complexidade das condições e contextos dos problemas sociais que os SIBs pretendem abordar, o que pode tensionar o uso dessas tecnologias financeiras como motor de políticas sociais (McHugh et al., 2013, p. 6).
McHugh et al. (ibid.) também argumentam que “os debates sobre fontes de financiamento inovadoras devem refletir sobre os direitos dos cidadãos e os direitos que os serviços sociais oferecem, e não apenas se eles geram recursos adicionais em tempos difíceis”. Nesse sentido, Warner (2013) alerta para os perigos da financeirização dos serviços sociais:
A financeirização de serviços sociais coloca a questão sobre a seleção da população a mais provavelmente se beneficiar, custos de transação próprios da configuração do programa, risco e responsabilidade orçamentários, e o potencial de suprimir futuras inovações no programa de modo a garantir retornos privados contínuos. (p. 307)
O título de impacto social do Programa Vivenda
O Programa Vivenda20 é um negócio de impacto21 que tem como objetivo melhorar as condições de habitação das pessoas de menor renda, em um modelo que consideramos se aproximar da agenda do empreendedorismo social norte-americano citado anteriormente, cujos dividendos parecem não estar sendo compartidos com os beneficiários, mas ficam na empresa.
O negócio foi desenvolvido a partir da percepção dos sócios de que o Estado, por exemplo através de um programa de urbanização de favelas, interviria da porta para fora das moradias precárias e que, portanto, o problema doméstico das pessoas não seria resolvido.22 Em outras palavras, o Programa Vivenda encontrou um nicho de atuação na chamada Inadequação de Domicílios, conceito utilizado pela Fundação João Pinheiro para designar questões relacionadas às especificidades dos domicílios que prejudicam a qualidade de vida de seus moradores e que não está relacionado ao dimensionamento do estoque de habitações (FJP, 2018, p. 13),23 mas sim a melhorias habitacionais. Os números mapeados pelo déficit habitacional permitem, inclusive, o dimensionamento desse potencial mercado, e seu porta voz frequentemente cita a existência de 12 milhões de moradias impróprias no país e a necessidade de serem feitas melhorias habitacionais como sendo duas vezes maior que a de construção de novas unidades habitacionais,24 dialogando com esses números.
Recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) afirma que o Programa Vivenda contempla os ODS 1, 3, 10 e 11 (PNUD, 2015, p. 110), claramente procurando relacionar investimentos e negócios de impacto com os ODS.
Num primeiro momento, os três sócios do negócio, Fernando Assad, Marcelo Coelho e Igiano Souza, voltaram-se a conhecer em detalhes a realidade do território onde pretendiam atuar. O jardim Ibirapuera, complexo na periferia da zona Sul de São Paulo, formado por pelo menos de três favelas, com aproximadamente nove mil moradias, foi escolhido porque dois dos sócios já haviam trabalhado com a ONG Bloco do Beco, com atuação no local, o que facilitou a mobilização e a comunicação com os moradores (Mena, 2015).
Desse processo, surgiram os serviços ofertados pelo Programa Vivenda: (1) projeto arquitetônico – oferece quatro tipos de soluções de reformas de baixa complexidade que foram desenvolvidas a partir da demanda da comunidade e do que a literatura medicinal chama de "patologias habitacionais" mais comuns, como kit banheiro, kit revestimento, kit ventilação e kit antiumidade – e planejamento financeiro; (2) mão de obra qualificada; (3) fornecimento de matéria-prima; e (4) crédito. Este último merece atenção: como a maioria dos moradores não possuía matrícula de seus imóveis, às vezes nem endereço oficial, e mais raramente ainda eram trabalhadores formais, pouquíssimos tinham acesso aos mecanismos de crédito tradicionais, impactando decisivamente na condição inadequada de suas moradias.
A empresa foi acelerada durante dois anos pela Artemisia, organização sem fins lucrativos que dissemina e fomenta negócios de impacto social no Brasil, e começou a funcionar efetivamente em maio de 2014. Em menos de um ano de operação, o projeto piloto já mostrava potencial de lucratividade, e os custos de operação já se pagavam, embora ainda não houvesse retorno do investimento.25 Num primeiro momento, a empresa oferecia condições de financiamento da obra em até 12 parcelas, com o valor máximo da reforma fixado em R$4.000,00 (Haberli, 2015), e as famílias com renda de até 1,5 salário mínimo tinham até 70% desse valor subsidiado por parceiros,26 como o Instituto Azzi, a Artemisia e o Banco Pérola. No entanto, a maior parte desses recursos advinha de empréstimos na figura da pessoa física dos sócios em bancos convencionais ou a partir de doações dos parceiros, modelo este que inviabilizaria a expansão exponencial do negócio. De acordo com Fernando Assad, “o 'negócio social' costuma ter uma margem muito pequena de lucro para que tenha um preço que a pessoa possa pagar. Ou você opera em escala ou morre, especialmente quando você vende para o cliente final, que é nosso caso” (Mena, 2015). Dessa forma, mesmo a empresa tendo uma taxa de lucro menor do que a praticada no mercado, o negócio pode ser viabilizado quando é escalado, pois, assim, sua estratégia financeira passa a atingir um público muito maior.
Diante da dificuldade de encontrar solução de financiamento para famílias de baixa renda e para o escalonamento da empresa, o Programa Vivenda criou uma forma de captação de recursos inédita no Brasil: a primeira debênture (título de dívida) de impacto social. Ou, nas palavras de Fernando Assad,27 "uma carteira para financiar reforma de casa para população de baixa renda sem respaldo nenhum, no conceito da blended finance”,28 unindo atores que tradicionalmente não atuariam juntos, como: Fundo Zona Leste Sustentável, Maraé Investimentos, EP8 Participações, Itaú Private Bank, Tozzini Freire advogados, GoOn e Família Paulista, entre outros.
A coordenação ficou a cargo do Grupo Gaia, uma das maiores securitizadoras do País, e da gestora Din4amo, consultoria voltada a startups, que se associaram para criar a InvestSocial – Investimentos de Impacto Social, com objetivo de aproximar tomadores de crédito sem acesso ao sistema bancário tradicional a potenciais investidores, dispostos a abrir mão de parte do retorno financeiro em troca de ganho social. A debênture foi escolhida por ser um instrumento mais barato de estruturar do que um CRI e um FIDC (Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, que tem como lastro créditos a receber).
Lançada em março de 2018, a debênture captou R$5 milhões em uma emissão fechada, voltada para investidores profissionais – aqueles que possuíam mais de R$10 milhões aplicados (no caso, clientes do segmento private do Itaú Unibanco). Com os recursos captados, a empresa poderia oferecer o pagamento da reforma parcelado em até 30 meses, com juros de 1,8% a 2,2% ao mês, o que pode ser considerado uma taxa muito baixa diante do ofertado no mercado tradicional quando não há garantias envolvidas.29 E como os investidores só começariam a pagar após o sexto ano, as parcelas pagas pelas famílias seriam destinadas a financiar novas famílias durante os cinco primeiros anos, convertendo R$5 milhões em R$40 milhões para reformas, sendo que, destes, quase R$30 milhões ficariam na própria comunidade, entre renda gerada para pedreiros e compra de materiais de construção, gerando um múltiplo econômico local de enorme impacto social (Setubal e Gorini, 2018).
Do lado do investidor, o título emitido pela Gaia (os próximos serão emitidos em nome da InvestSocial) não é uma aplicação das mais rentáveis. Os papéis emitidos têm prazo de vencimento de dez anos, com amortização a partir do quinto, e pagam uma remuneração prefixada de 7% ao ano, considerada sem risco (a taxa básica de juros está fixada, em dezembro de 2019, em 4,5%, menor juro básico da série histórica, iniciada em junho de 1996).
Paralelamente à solução do financiamento para as famílias, a empresa dedicou-se a encontrar outras frentes para expandir seus negócios de forma combinada com a estratégia financeira. Em fevereiro de 2020, matéria de jornal anuncia a inauguração da primeira loja Vivenda, em parceria com grandes varejistas do setor da construção civil do País, como a Gerdau e a Vedacit, para oferecer materiais de construção de qualidade a preços acessíveis na periferia – a loja está instalada no jardim Ibirapuera (Reis, 2020).
No caso da debênture, a inadimplência dos tomadores de crédito pode, em último caso, comprometer o ganho do investimento. Em tese, o risco foi assumido pelos credores em troca do benefício social praticado por seu capital.
Para além das informações financeiras, os resultados apresentados pela empresa quantificam a realização de mais de 1.600 reformas, com 5.600 pessoas atendidas, e alguns dos resultados são apresentados em vídeos disponíveis do canal de Youtube da empresa,30 visitando os beneficiários satisfeitos com as reformas. Os resultados urbanísticos ainda estão para serem aferidos em futuros trabalhos de campo e entrevistas com a população beneficiada, como parte da pesquisa em andamento que embasa este artigo. No entanto, já é possível notar que os debates sobre fontes de financiamento inovadoras parecem estar mais preocupados com a estruturação dos negócios do que refletir sobre os direitos dos cidadãos, os direitos que os serviços sociais oferecem e os impactos da estrutura de financiamento do benefício nas contas das famílias, que parece somar-se a um conjunto de dívidas familiares que comprometem a qualidade de vida dessa população. Ao se lastrear no endividamento das famílias, está inserido em uma estratégia da expansão do neoliberalismo desde abajo já comentado (Gago, 2018), que termina explorando as economias domésticas em mais um dispositivo de endividamento das famílias cujos impactos devem ser analisados para além dos resultados urbanísticos.
Considerações finais
Em todo o artigo, procurou-se trazer os desafios, de uma forma analítica e crítica, à implantação da agenda de títulos de impacto social. Dissertou sobre a falta de clareza do lugar da habitação nos “investimentos sociais” e o tamanho ainda pequeno do investimento no Brasil, dificultando ganhos de escala. Trouxe como hipótese que há uma expansão das blended finance, utilizando financiamento combinado entre recursos privados obtidos no mercado imobiliário-financeiro e governamentais, vistas como “oportunidades” de negócio; a diversidade dos programas habitacionais que podem ser financiados, envolvendo reformas e não apenas a produção de novas unidades habitacionais. E, também, apontou para os perigos da financeirização dos serviços sociais, sugerindo que os debates sobre fontes de financiamento inovadoras devam refletir sobre os direitos dos cidadãos e os direitos que os serviços sociais oferecem, e não apenas sejam eles geradores de recursos adicionais em tempos difíceis (McHugh et al., 2013), apoiados nas estratégias das microfinanças ou das políticas de bankable slums que apostam na estruturação do negócio de forma que o mercado possa operar, a partir do endividamento das famílias.
Mais que conclusivos, os pontos apontam para uma agenda de pesquisa necessária sobre os investimentos de impacto e melhorias habitacionais no Sul global. Diferentemente das hipóteses iniciais, o caso pesquisado, do Programa Vivenda, mostrou que a motivação foi empresarial (oportunidade e diversificação de negócios), e não a construção de uma política pública habitacional ou o interesse público; com consequências urbanas (melhorias habitacionais) de interesse público; apoiadas no modelo empreendedorismo social norte-americano, cujos dividendos vão para os empresários e a base da pirâmide social é vista como “riqueza”, e suas rendas não seriam compartilhadas entre os envolvidos no empreendimento, como propõe o modelo tido como europeu. Novamente, a habitação entra no rumo dos negócios pelo viés empresarial, não a partir de ações estatais, ainda que o Estado seja visto como possível financiador desses negócios, em face das consequências urbanísticas resultantes e de seu possível escalonamento.