Acessibilidade / Reportar erro

Robespierre, uma biografia da Revolução Francesa

Robespierre, a biography of the French Revolution

Robespierre, una biografía de la Revolución Francesa

Gauchet, Marcel. . Robespierre. L’homme qui nous divise le plus . Paris: Gallimard, 2018.

Na galeria dos personagens que “fizeram a França”, Robespierre ocupa espaço privilegiado entre os mais controvertidos. Marcel Gauchet, filósofo e historiador francês pouco lido no Brasil, em Robespierre: l’homme qui nous divise le plus (2018), propõe um ensaio que foge da biografia, bem como dos rótulos atribuídos a Robespierre pela historiografia de diversas orientações ideológicas, para entender no revolucionário, em seus impasses, suas escolhas, suas ações políticas entre 1789 e 1794, os desafios fundamentais e as “divisões duráveis” legados pela Revolução Francesa à história do pensamento político.

Gauchet já havia se consagrado como um dos intérpretes contemporâneos da Revolução Francesa mais relevantes em obras como La Révolution des droits de l’homme (1989) e La Révolution des pouvoirs (1995) - livros cujo tema central é a dificuldade da Revolução em conferir um regime político viável à nova legitimidade baseada na noção de direitos do homem. Em Robespierre, o autor se propõe uma tarefa ousada: concentrar essa análise do problema político da Revolução Francesa na trajetória particular de Robespierre (mais especificamente ainda, em seus discursos), entendido como um personagem que encarna em si todo o desafio da Revolução. Segundo Gauchet, Robespierre é “o homem que mais nos divide” porque “nele se resume a formidável ambivalência da herança desse momento fundador”1 1 Todas as traduções foram realizadas por nós. (2018GAUCHET, Marcel. Robespierre. L’homme qui nous divise le plus. Paris: Gallimard, 2018., p. 9). Ao passo que uns destacam no revolucionário a imagem do “incorruptível”, daquele que, durante a Revolução, defendeu de modo mais coerente os princípios democráticos e os direitos do homem, outros enfatizam nele a imagem do “tirano”, do artífice do Terror. Para o autor, o momento atual de consolidação das democracias, passada a luta entre revolução e contrarrevolução, permite uma nova abordagem de Robespierre que confira às duas imagens, à do incorruptível e à do tirano, seu justo lugar. Assim, nos seis capítulos que constituem o denso ensaio, o objetivo é tentar compreender como Robespierre passou do “incorruptível” ao “tirano”, ressaltando nessa passagem tanto a incondicionalidade dos princípios democráticos que o revolucionário encarnou quanto seu fracasso em traduzir esses princípios em um regime político viável. Recusa-se, desse modo, tanto a condenação da Revolução por causa do Terror como a absolvição do Terror em nome dos princípios revolucionários - o modo tradicional como a Revolução e Robespierre teriam sido tratados pela direita e pela esquerda, respectivamente.

No capítulo 1, Gauchet apresenta os ainda tímidos, embora determinantes, passos do jovem advogado na Assembleia Nacional Constituinte (1789-1791). Longe do radicalismo a que está comumente associado, o autor mostra como Robespierre carrega nessa época “uma radicalidade que se ignora” (p. 25), a qual não coloca explicitamente em questão a monarquia e as instituições estabelecidas. Tal moderação aparente Gauchet não atribui somente a Robespierre, mas aos movimentos iniciais da própria Revolução, cuja tarefa consistia na “regeneração” da monarquia e na organização dos poderes. Contudo, sustenta o autor, essa “regeneração” passa a se apoiar em princípios (os direitos do homem) que contêm em germe a destruição do antigo poder e da antiga sociedade. Robespierre se destaca na Constituinte como o defensor mais apaixonado e o intérprete mais coerente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Desse modo, nota-se um entrelaçamento tal entre a trajetória de Robespierre com o curso dos eventos revolucionários, perpassando explicitamente toda a narrativa do livro, sustentando a tese do autor, segundo a qual haveria uma identidade entre Robespierre e a própria causa da Revolução, sem deixar espaço às motivações psicológicas ou aos traços biográficos que poderiam servir como o mote explicativo de uma biografia política. Seu discurso é central para a construção da legitimidade da Assembleia Constituinte em concorrência com a do Rei, a refutação do Poder Executivo e a associação do Legislativo à própria ideia de soberania se revelando como os expedientes mais férteis para minar a antiga autoridade política. Por um lado, Gauchet destaca o modo como Robespierre constrói sua popularidade por meio de uma retórica implacável que faz dele o homem à frente da Revolução, especialmente na oposição ao sufrágio censitário e à lei marcial. Por outro lado, o autor sublinha as liberdades individuais como o principal mote do deputado na Constituinte, formando um sistema de pensamento de tal modo coerente que, se ele tivesse morrido em 1791, “deveria o inscrever na galeria de retratos dos grandes ancestrais liberais” (p. 46).

“Opinião pública” é o elemento central do capítulo 2, o qual cobre o período que vai do fim da Constituinte, em setembro de 1791, à queda da monarquia, em agosto de 1792. Nele, é discutido o meio pelo qual se constitui o selamento da identidade entre Robespierre e o povo, a qual se torna tão mais estreita quanto mais o revolucionário projeta sombras e desconfianças sobre o Poder Executivo. Com efeito, Gauchet mostra neste capítulo o modo pelo qual atitudes até então latentes e dispersas se tornam definitivas no comportamento de um Robespierre agora decididamente porta-voz dos princípios que levaram à Revolução, levando a uma fusão total, mediante seus discursos, com o povo: “vê-se afirmar, no decorrer de seus discursos, uma imagem do povo do qual ele se quer órgão e uma imagem de si mesmo, ao mesmo tempo e correlativamente a uma imagem do combate político, que são tecidas em um sistema e que acabarão por confiná-lo em uma cegueira, que é, cabe dizer, mortal” (p. 71). Um povo, de certo, idealizado, que tenderia espontaneamente a preferir o interesse geral aos privados, tal como ele mesmo, o Catão contemporâneo, virtuosamente sacrificará sua vida em nome da causa revolucionária. Não são poucas as narrativas, as biografias e as histórias que, baseadas no idílio da virtude, inscreveram o Robespierre defensor da virtude nas páginas da tirania. Gauchet refuta tais explicações lançando mão da complexa imagem de um jogo de espelhos na qual um suposto ditador, vendo-se de fora do regime que ajudou a instituir, pode ele mesmo advertir sobre os perigos do curso da revolução. Robespierre, a creditarmos ao autor a boa interpretação, se faz guia da revolução por uma autoridade que lhe fora conferida por um processo não intencional, pela encarnação de uma ideia, isto é, da própria Revolução. A dramaticidade da situação, manifesta na prosa de ­Gauchet, oferece o quadro geral do impasse, da política dos princípios que não é comportada pela dinâmica política ordinária.

No capítulo 3, Gauchet trata do processo que, a partir da queda da monarquia em 10 de agosto de 1792, levou Robespierre ao poder. O 10 de agosto é tratado como o evento decisivo que precipita a metamorfose do personagem, de orador e homem de princípios a chefe de partido e homem de poder. Contudo, o autor insiste na constância liberal do pensamento de Robespierre, sua preocupação central na República a ser projetada sendo a garantia dos direitos individuais e da soberania do povo contra o arbítrio governamental. Essa insistência no liberalismo de Robespierre permite a Gauchet rever o significado da oposição entre girondinos e montanheses desde o início da Convenção. O autor rejeita o quadro historiográfico tradicional da luta de classes para a compreensão dessa batalha política, mas também a interpretação baseada na disputa entre duas filosofias políticas inconciliáveis. Girondinos e montanheses compartilhariam as mesmas premissas filosóficas liberais baseadas na noção de direitos individuais, mas leriam de modo diferente a situação política revolucionária e as respostas demandadas para essa situação: os girondinos buscariam restabelecer a ordem em um quadro constitucional estabilizado, e os montanheses, o apoio na vanguarda insurrecional parisiense para radicalizar a luta contra os inimigos da República igualitária. Gauchet sugere que a resposta dos montanheses estava mais à altura da radicalidade da situação, o debate sobre os massacres de setembro e o julgamento de Luís XVI servindo de catapulta para os jacobinos, inicialmente minoritários na Convenção, derrotarem os girondinos e alcançarem o poder.

Os capítulos 4 e 5 tratam da última etapa da carreira de Robespierre: aquela em que o oposicionista se torna de fato governante, completando a metamorfose que deslocará sua imagem de “incorruptível” para a de “tirano”. O capítulo 4 cobre o período que vai da entrada de Robespierre no Comitê de Salvação Pública, em 27 de julho de 1793, à execução de Danton, em 5 de abril de 1794. Gauchet vê a entrada de Robespierre no governo marcada pela descoberta da necessidade prática daquilo que ele havia tanto negado em seus discursos: um Poder Executivo forte e eficaz. Como as circunstâncias eram extraordinárias (guerra externa e interna, crise de subsistências etc.), o revolucionário teria conseguido erigir esse governo forte e eficaz sem pôr em questão seus princípios. “A prática opera, em uma palavra, como o recalcado da teoria” (p. 136). Contra a lenda que, após o 9 Termidor, fez de Robespierre o gênio monstruoso por trás do Terror, o autor não vê o jacobino como o homem que causou o Terror, mas antes como aquele que o teorizou e justificou de modo mais cristalino. Como no restante do livro, Gauchet caracteriza Robespierre como a pessoa encarregada “de explicar aos atores da Revolução o que eles fazem” (p. 139), erigindo a teoria do governo revolucionário e do Terror como face da virtude em ação contra os inimigos do povo.

No capítulo 5, Gauchet caracteriza o período que vai da execução de Danton ao 9 Termidor como marcado pelo problema de como fundar enfim a República da virtude. O decreto sobre o culto do Ser Supremo é entendido como um apelo de Robespierre ao ideal antigo da unidade religiosa em face das adversidades que se apresentam para a fundação da República de cidadãos virtuosos, mas o autor sublinha que tanto ele quanto Saint-Just queriam a liberdade dos modernos, recorrendo ao exemplo das repúblicas da Antiguidade apenas como uma resposta às dificuldades de sua realização. Mesmo após levar a Convenção a adotar esse culto, Robespierre se sentiria diante de uma “adversidade inapreensível” (p. 196) para fundar a República idealizada por ele, anunciando então uma nova campanha de denúncias e depurações que terminaria por isolá-lo do resto da Convenção, a qual não veria mais no jacobino outra perspectiva para a fundação da República além de contínuos expurgos. Seria então preparado o cenário para a derrubada de Robespierre e de seus aliados no 9 Termidor, o homem da Revolução dos direitos do homem morrendo por não poder “emprestar uma face crível ao regime que ela reclamava” (p. 258).

A retórica da conspiração e o sistema de terror de Robespierre voltados contra ele mesmo derrubaram o revolucionário do poder, mas não tiraram sua potência nas diversas histórias (lendárias ou historiográficas) que tentaram compreender sua atuação política nesse período. O conclusivo capítulo 6 parte justamente do Robespierre construído pela historiografia da Revolução Francesa, da “lenda negra” (p. 238) formada após o 9 Termidor ao precursor do totalitarismo vislumbrado por teóricos do século XX - passando pela historiografia contrarrevolucionária e pelas grandes narrativas do século XIX, como as de Lamartine, Louis Blanc e Michelet. Segundo Gauchet, o avanço da historiografia revolucionária permitiu um estabelecimento mais preciso dos fatos, mas sua interpretação permaneceu refém de um investimento ideológico e de um quadro de leitura dogmático que impediram a problematização da Revolução Francesa em sua “dimensão de pensamento em ação” (p. 242). O autor interpreta a Revolução como “uma experiência de encarnação de uma ideia política” (p. 242), de modo que o Robespierre que lhe interessa não é o mártir heroico nem o monstro sanguinário, tampouco o personagem que teria ocupado uma posição objetiva em uma luta entre classes sociais ou partidos políticos, mas o homem que assumiu de modo mais rigoroso a nova legitimidade trazida à tona pela Revolução, os direitos do homem, de modo a aparecer como “o oráculo da Revolução” (p. 244). Seu destino trágico é entendido como a encarnação pessoal mais perfeita da tragédia da própria Revolução Francesa, da qual Gauchet extrai a lição política já explorada em outros livros seus: “Contrariamente ao que prometem, os direitos do homem não fornecem a fórmula do poder capaz de expressá-los. Política e direito pertencem a séries heterogêneas, que devem ser acordadas, mas cuja correspondência apenas pode se estabelecer uma vez admitida a consistência independente delas” (p. 260).

Apesar de instigante, essa interpretação levanta a seguinte questão: poderia um único homem personalizar a Revolução? É verdade que Gauchet não quis reduzir a complexidade do evento histórico - lançado à categoria universal muito antes de se discutir certa “excepcionalidade” de tal modelo - à história particular de Robespierre, mas tomá-lo como o autor que melhor identificou e corporificou a ousadia e os impasses que marcaram o curso da própria Revolução. Seria preciso indagar, no entanto, se não seria diminuída a complexidade da política do período - um quadro amplo no qual figuram sociedades religiosas e comitês políticos diversos, associações femininas, jornalistas e escritores de segunda ordem tomando as ruas com suas brochuras -, ao se projetar o discurso de Robespierre como o primeiro plano do quadro da Revolução. Há quem possa ver nisso mera crítica da história cultural, atenta a outro modo de contar o processo revolucionário, mais a partir das ruas e da circulação de fontes de contestação do poder e menos dos quadros políticos ou lugares específicos do poder. O livro ganharia ao marcar os seus interlocutores, adversários ou não, na historiografia de matriz não francesa da Revolução, pois, sabemos, a história da Revolução é também uma história política. Gauchet parece tentar, na linha de François Furet, “pacificar” toda essa disputa política e ideológica que teria se projetado sobre a historiografia da Revolução Francesa, com a interpretação de que essa projeção ideológica teria prejudicado a compreensão do problema político da Revolução. Para isso, faz Robespierre deixar de ser um dos lados ou partidos da Revolução, ao qual uns aderem e outros combatem, para fazer dele a encarnação da própria Revolução. O procedimento tem a vantagem de desmistificar o sentido de oposições como aquela entre jacobinos e girondinos, propondo uma linha de interpretação original sobre o que de fato dividia grupos ancorados em premissas filosóficas e posicionamentos de classe próximos. Contudo, a pluralidade de opções políticas formuladas durante o período revolucionário fica reduzida, Robespierre aparecendo como a síntese última (não apenas uma das versões) da ideia revolucionária.

Por fim, cabe tecer algumas considerações sobre o modo como Gauchet apresenta o momento atual da democracia, o qual faz parte de sua tese sobre Robespierre, já que o presente permitiria superar a divisão estabelecida sobre o revolucionário, reconhecendo a justiça que há em cada lado. O autor adere à tese de Furet (de 1978) segundo a qual a Revolução Francesa terminou, entendendo por isso que “os ideais que ela introduzira no mundo de modo explosivo terminaram de encontrar sua via de concretização” (p. 271). Robespierre seria a encarnação por excelência desses ideais desprovidos de vias de concretização. Se recorrermos a outros escritos de Gauchet, percebemos que ele também via uma encarnação no polo oposto, o dos meios de realização de um governo eficaz, sem a preocupação com princípios democráticos: esses “meios de governo” seriam encarnados, no período revolucionário, por Jacques Necker, então em conflito com a deriva democrática da Revolução (GAUCHET, 1989GAUCHET, Marcel. Necker. In: FURET, François; OZOUF, Mona (org.). Dicionário crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989., p. 301-311). Na interpretação de Gauchet, a democracia contemporânea é fruto de uma longa transação histórica entre Robespierre e Necker, entre os princípios democráticos e os meios de um governo eficaz que muitas vezes negam as ilusões iniciais dos princípios. O questionamento que pode ser feito, a esse respeito, é se essa transação histórica entre Robespierre e Necker de fato legou para os contemporâneos uma compreensão consensual sobre a democracia e suas formas de realização. O autor termina o livro sugerindo que, se a Revolução Francesa terminou do ponto de vista do regime político, ela é por definição interminável em sua dimensão de expansão dos direitos do homem - o que confere uma nova atualidade ao Robespierre da Constituinte. Cabe questionar se a política contemporânea se resume de fato a um processo de eterna expansão e aprimoramento dos direitos humanos, ou se a democracia não está sendo objeto de antagonismos profundos que podem até colocá-la em risco. Nesse sentido, retornar à Revolução Francesa como um momento inaugural de diversas visões conflituosas sobre a democracia e a República, não como uma ideia que teria sido encarnada por Robespierre, pode lançar mais luz sobre as divergências políticas profundas que dilaceram nossas democracias.

Se é verdadeira ou não a sentença “a Revolução terminou”, na expressão célebre de Furet, o livro não responde. O que Gauchet demonstra lançando seu Robespierre, obra densa da tradição filosófica e historiográfica francesa contemporânea, ciosa do passado e atenta aos desdobramentos da democracia, é que, enquanto a obra da Revolução (a instituição dos direitos do homem) ainda estiver aberta, sua escrita será também interminável.

Referências

  • GAUCHET, Marcel. Necker. In: FURET, François; OZOUF, Mona (org.). Dicionário crítico da Revolução Francesa Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
  • GAUCHET, Marcel. Robespierre. L’homme qui nous divise le plus Paris: Gallimard, 2018.
  • 1
    Todas as traduções foram realizadas por nós.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2019
  • Aceito
    30 Ago 2019
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org