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Por uma teoria e prática transfeminista interseccional

NASCIMENTO, Letícia. . 2021. Transfeminismo. Coleção Feminismos Plurais.São Paulo, Jandaíra.

Com uma proposta de acessibilidade e didatismo, a coleção “Feminismos Plurais” tem impactado consideravelmente as discussões que interconectam eixos de desigualdade - tais como gênero, sexualidade, classe, religião, nacionalidade e, principalmente, raça -, atravessando e excedendo debates acadêmicos. Protagonizada, em todos os seus volumes, por intelectuais negras e negros, a coleção se mostra um caso de sucesso nos entrecruzamentos entre ativismos e seus saberes, a pesquisa acadêmica e a entrada dessas discussões no espaço público mais amplo, de modo prolífico, em um cenário de disputa política muitas vezes denso.

Excelente contribuição para esse ambicioso projeto, “Transfeminismo”, de autoria de Letícia Carolina Pereira do Nascimento, pedagoga e professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), se debruça na difícil tarefa de traçar, de modo direto, mas não redutor, certa genealogia desse complexo movimento teórico-político, em suas linhagens, potências, limites e desafios.

Vale destacar o fato de Nascimento ser ainda uma das poucas docentes universitárias trans*1 1 Opto pelo termo “trans*”, com asterisco, seguindo a terminologia proposta pela autora ao longo de seu livro. Embora ela não trabalhe substantivamente a utilização do termo, outras autorias trans*, tal como o argentino Blas Radi (2019), o fazem de modo mais aprofundado. no Brasil, enquanto cursa o doutorado em educação, também na UFPI. Esse fato perpassa, primeiro, os diversos processos de exclusão e marginalização que uma população trans* sofre no país, principalmente uma população trans* negra, indígena e de baixa renda. Tais processos, que comumente acompanham essas trajetórias desde o ensino básico, também extrapolam os espaços de educação formal, conforme a própria autora destaca ao longo do livro.

Em segundo lugar, embora presentes nesse espaço institucional como novas “sujeitas de conhecimento”, para utilizar um dos termos mobilizados pela autora, a inserção de seus saberes e suas experiências como produção legítima de conhecimento ainda é objeto de tensas negociações. Tidas por vezes como “excessivamente políticas” e “enviesadas”, ou inclusive vendo sua produção restrita ao enquadramento como “relatos” ou algo pertencente ao espaço do “êmico” (utilizando aqui alguns termos caros à disciplina antropológica), a efetiva inserção de conceitos como “cisgeneridade” e “identidade de gênero”, assim como de epistemologias protagonizadas por intelectuais trans* nas universidades e na produção acadêmica ainda enfrenta obstáculos em determinados circuitos. Nas palavras da própria Nascimento, “é importante reconhecer, valorizar e divulgar que nós, mulheres transexuais e travestis, somos produtoras de epistemologias” (Nascimento, 2021: 70).

Ao mesmo tempo, “transfeminismo” permanece também um termo de disputa, inclusive no interior da produção acadêmica protagonizada por intelectuais trans*. Esforços retraçam suas genealogias - muitas delas, citadas pelo livro - e a inserção (seja ela menos ou mais crítica) em determinadas linhagens. Fazer isso é, ao invés de simplesmente lidar com uma história já finalizada, daquilo que “já foi”, observar um projeto do que “está” e do que “pode estar”, ou seja, o que está por vir a partir dessas definições e delimitações conceituais. Afundo, portanto, tais esforços trazem as potências, assim como os possíveis limites de um pensamento transfeminista - ou, melhor dizendo, de pensamentos transfeministas, em seus des/encontros e in/coerências 2 2 Utilizo essa terminologia, a partir de minha própria produção, para enfatizar tanto os “encontros” quanto os “desencontros”, as “coerências” e as “incoerências”. .

Auto-intitulada “mulher travesti, negra e gorda”, Nascimento inicia o livro a partir de sua experiência vivida - não por acaso, o princípio de autodeterminação é central em sua obra, assim como, inspirada em feministas negras, a centralização da experiência como fundante na produção de conhecimento. Logo de entrada, a autora traça um paralelo com o discurso de Sojourner Truth -“e não posso ser eu uma mulher?”. De princípio, portanto, o livro se mostra crítico a um conceito universalizante (principalmente biologizante) da categoria “mulher” e, mais amplamente, da categoria “feminilidade”, e de uma compreensão do sexo como pré-determinado e essencializado.

Estrategicamente, Nascimento segue em sua narrativa a densidade histórica do conceito de gênero. Tanto se aproximando quanto dialogando criticamente com uma série de leituras clássicas feministas, a autora traz desdobramentos do que denomina de uma “mulher original do feminismo”, uma leitura das mulheridades e das feminilidades restrita àquela da “experiência da mulher cis, heterossexual, branca, de classe média, magra, sem deficiências”(: 26). Assim, para além da inserção de mulheres trans, travestis e pessoas não-binárias femininas no campo feminista, Nascimento reivindica uma compreensão plural das próprias noções de mulheridade e feminilidade, que surge de uma leitura complexa das opressões de gênero, em suas interconexões com outros eixos de desigualdade. “Ser radical é recusar universalidades rasas que limitam nossas trajetórias de opressão” (: 41). Nesse sentido, os transfeminismos permitem a criação de conexões e alianças para além da cis-heteronormatividade, assim como parte do pressuposto teórico-político de dessencialização do gênero (: 43).

No segundo capítulo, “Mulher transexuais e travestis”, Nascimento desenvolve essas considerações, reivindicando a inserção dos transfeminismos no que denomina de “construções identitárias coletivas feministas”, e da leitura dos feminismos. Conectando as experiências transfeministas à outras “outreridades”, tais como as experiências vividas por mulheres negras, a autora destaca os modos como uma ideia universal de mulher se baseia, em grande medida, na pressuposição de um sexo anatômico, pré-determinado, que seria tido como a base da constituição dessas opressões (ou, em outras palavras, do “patriarcado”), em certo pensamento e prática feminista transexcludente.

Trazendo como tais “sujeitas” são excluídas não apenas do feminismo como campo e movimento, mas da própria noção de “humanidade” ao romperem com certo binarismo de gênero, Nascimento pontua que os princípios do transfeminismo estão no reconhecimento dessas mulheridades e feminilidades como tais, no respeito às suas produções intelectuais e no apoio mútuo de suas reivindicações políticas (: 57). A todo momento a autora destaca que não se trata de uma fragmentação de lutas, mas de um espaço de possibilidades e de pluralização - não por acaso, surgem termos como “estratégia”, “articulação”, “comunidade”, “sororidade”, “diálogo”, “aprendizado” e “coalizão”. A diferença não é vista como um impeditivo, pelo contrário, é entendida como princípio e potencial criativo.

Ao desenvolver uma possível definição de transfeminismo, Nascimento destaca a exclusão de mulheres trans e travestis também em espaços LGBTQIA+. O transfeminismo surge em resposta a essa e outras exclusões, inclusive no interior do movimento feminista, em uma produção pensada “com, para e por” mulheres trans e travestis. Aparece, novamente, a importância do “falar em primeira pessoa” - nas palavras de Nascimento, “como transfeministas (...) devemos nos apropriar da fala, da escrita, da linguagem, rachar o mundo com nossas palavras, construindo pontes de sororidade e redes de denúncia” (: 78).

Em um cuidadoso percurso histórico, em seu terceiro capítulo,“Transfeminismo”, Nascimento fomenta tais argumentos trazendo a concretude das lutas protagonizadas por essas “sujeitas”, principalmente no contexto brasileiro. Pontua, com isso, que um dos pilares do transfeminismo está no reconhecimento dessa história (: 89). Nesse percurso, a autora traz a importância da recuperação de figuras históricas apagadas em “nossos” registros (tal como Xica Manicongo), do olhar atento sobre as pioneiras dos ativismos trans* no país (tal como Jovanna Baby e Keila Simpson) e, por fim, a necessidade de observar essas e outras sujeitas em seus distintos espaços de produção epistemológica. Algo em certa medida implícito, mas de suma importância para a construção argumentativa de Nascimento, está na proposta de pluralizar esses espaços. No capítulo, junto das referências acadêmicas em livros e artigos, vemos o espaço da internet assumir uma posição central no desenvolvimento e na expansão de certo pensamento transfeminista no Brasil, aliado aos saberes das mulheres trans e travestis que lutaram ao longo da história em redes ativistas e movimentos sociais.

O conceito de “cisgeneridade” é explorado em maior profundidade no quarto capítulo, chamado de “Autodeterminação”. Retomando o termo “outreridades”, Nascimento pontua como as transgeneridades atravessam uma noção imposta de construção falseável ou artificial, contraposta a uma cisgeneridade tida como “natural”. Nomear a cisgeneridade indica seu aspecto localizado e historicamente contingente, assim como politicamente, abre espaço para indicar privilégios e desfazer normatizações - “o conceito de cisgeneridade convida as pessoas cis a se colocarem diante de um espelho para que mirem a si mesmas” (: 97). A não-nomeação da cisgeneridade se conecta, com isso, à subalternização, criminalização e patologização de identidades e corporalidades trans*.

Em diálogo com outras autoras transfeministas brasileiras, Nascimento traz a “cisgeneridade” como categoria analítica e “máquina de guerra discursiva”, em sua dimensão teórico-política, portanto. O “CIStema” colonial moderno de gênero perpassa não apenas os sistemas médicos e legais, mas também os espaços institucionalizados de produção de conhecimento, incluindo a universidade 3 3 Embora citada brevemente, podemos traçar Vergueiro (2015) como um nome central no desenvolvimento do conceito de “cistema” e suas conexões por entre cistemas médicos, legais e acadêmicos. . A saída, propõe Nascimento, está na descolonização das identidades trans*, o que leva a autora a trabalhar com mais atenção o princípio de “autodeterminação” - destacando, novamente, a necessidade das vozes trans* serem ouvidas. Isso implica na criação de espaços que possibilitem que essas vozes se expressem e sejam ouvidas. O transfeminismo, propõe Nascimento, é um desses possíveis espaços. Em suas palavras (: 104):

Espaço coletivo de afirmação e validação de nossas experiências, de compreensão mútua, conflitos e disputas; um espaço político e epistemológico de entendimento de nossas experiências trans* de um modo não essencialista, patologizante, criminalizante nem subalterno. Um espaço também para entendermos o modo como as pessoas trans* são nomeadas, e, principalmente, o modo como a norma se constitui como categoria universal.

Com isso, emerge um campo de possibilidades de compreensão das subjetividades trans* para além de antagonismos binários vindos de determinadas perspectivas biomédicas (mas não apenas). Surge, ao mesmo tempo, a potência e as tensões da diferença. Escapar de laudos e diagnósticos rígidos, ampliando a própria noção do que seriam (e podem ser) corporalidades trans*, não implica na inexistência de processos de reconhecimento mútuo, entre disputas, negociações, definições e validações (: 107). Tal leitura crítica parte de uma recuperação histórica de noções como “transexualismo”, “transexualidade” e “disforia de gênero” no interior dos saberes médicos e dos saberes psi, assim como narrativas contra-hegemônicas em espaços como os ativismos feministas e LGBTQIA+, tanto quanto em certa produção acadêmica (incluindo aqui alianças possíveis no interior desses saberes, em sua multiplicidade). Com isso, entende-se que a demanda histórica pela despatologização de identidades trans* ainda é “um desafio que precisa ser energeticamente enfrentado” (: 117), perpassando também o conceito de “cisgeneridade” e o reconhecimento de violências estruturais. A autora segue em algumas pautas concretas envolvendo uma população trans* - inicialmente, centradas no âmbito da saúde, na “garantia de acesso a terapias hormonais e cirurgias sem a necessidade de diagnóstico” (: 118).

Caminhando, com isso, para o quinto capítulo, “Corporalidades transgêneras”, Nascimento retoma o lugar da cisgeneridade como normatividade - ou seja, um regime de diferenciação e hierarquização de corpos e desejos. A autora destaca, ainda, o aspecto performativo da construção de tais corpos e desejos, sempre em negociação com essa e outras normas.A partir de casos concretos,traz os modos como aconstrução de corporalidades trans* tende a ser publicizada, moralizada e patologizada- quando não marginalizada e fetichizada, principalmente no caso das travestis.

Assim, temos o princípio de autodeterminação em questão, associado, tanto para adultos quanto crianças e adolescentes trans*, ao direito à livre expressão de gênero, uso de hormônios e acesso a intervenções cirúrgicas sem a necessidade de diagnósticos compulsórios. Nascimento retoma brevemente o histórico do “processo transexualizador” (vale pontuar, termo ao qual se opõe) no sistema público de saúde brasileiro, destacando a ainda escassa existência de hospitais especializados pelo país, assim como o excesso de burocracia e as violências contínuas por parte de determinadas equipes médicas e equipes psi nesses espaços frente a pacientes trans*.

Por vezes ainda atrelados a diagnósticos de “transsexualidade verdadeira”, de base genitalista, e tendo grupos de profissionais que, na prática, acabam por definir quem pode ou não acessar determinados procedimentos (e quem “de fato” é ou não trans*), a autora reitera o princípio de autodeterminação em um sentido prático. A autodeterminação envolve não apenas liberdades individuais, mas uma agenda política coletiva - e, portanto, exige no interior dos próprios movimentos trans*, o compartilhamento de experiências e processos de reconhecimento mútuo. Em suas palavras, “é o compartilhamento de vivências que nos traz um senso de comunidade e irmandade - nessas trocas, nossas identidades são forjadas” (: 154).

Por fim, temos o sexto e último capítulo do livro, “Vidas trans* importam”, onde Nascimento ressalta a necessidade de uma perspectiva interseccional, inicialmente pautando violências que atravessam diferentes experiências de mulheridades e feminilidades, e dialogando com os conceitos de “colonialidade de gênero” e“necropolítica”. É pela leitura crítica dessas diferenças que é possível produzir alianças (160). Para a autora, o conceitoo de “cisgeneridade” é crucial para essas aproximações e distanciamentos. Nascimento traz a pauta do transfeminicídio como outra reivindicação central: “Travestis, mulheres cisgêneras e transexuais compartilham uma vulnerabilidade social por performarem identidades de gênero femininas em suas realidades sociais diárias” (: 167). A autora visa o alargamento da noção de feminicídio tanto na produção teórica quanto no âmbito de políticas públicas no Brasil, onde ainda vigora uma concepção limitada de sexo anatômico. Reforça, mais uma vez, a necessidade de compreendermos gênero de modo não-essencializado, o que surge aqui frente a demandas concretas, inclusive nas possibilidades de encontros de brechas no sistema legal brasileiro, assim como a necessidade de uma leitura interseccional, dado o caráter racializado do transfemicídio e sua concentração em contextos de prostituição. “O alargamento da compreensão do gênero é fundamental para o combate das inúmeras violências vividas por nós todas de modo interseccional” (: 180).

Dado esse panorama geral, cabem algumas considerações finais. Uma das grandes potências do trabalho de Nascimento, em minha leitura, é a conexão cuidadosa da autora com os feminismos negros e interseccionais. Há um projeto político em jogo nessa aproximação que não se reduz ao âmbito teórico, algo ressaltado nos exemplos dados por ela ao longo do texto, alinhando teoria e prática feminista. Embora, como um todo, uma leitura dos transfeminismos a partir de certa genealogia estritamente branca e “gringa” seja limitante, ela me parece particularmente restritiva e rasa quando consideramos um percurso histórico e um contexto profundamente marcado pela colonização e pela escravidão, tal como no Brasil.

Assim, a leitura de Nascimento a partir dos feminismos negros e interseccionais me parece uma saída potente tanto em uma análise cuidadosa da realidade social das mulheridades e feminilidades, quanto da formação de um projeto político que tem como fundamento o fim de opressões interconectadas. Tais leituras não são únicas - “o transfeminismo não constitui uma única possibilidade de pensamento” (: 91) - e o transfeminismo permanece, internamente, um espaço de disputa sobre suas origens e caminhos possíveis, assim como de diálogos e alianças. Isso faz com que a perspectiva de Nascimento - embora, de modo algum, isolada, sendo acompanhada de outras leituras, conforme a própria destaca - seja hoje uma das mais interessantes na literatura transfeminista, tanto nacional quanto internacionalmente.

Nascimento realiza essas conexões de modo extremamente cuidadoso. Dialogando com alguns cânones dos estudos de gênero e dos feminismos, de Foucault a Butler, passando por Beauvoir e Wittig, mas também aliada a pensadoras como Jaqueline Gomes de Jesus, sua definição de transfeminismo nos oferece aparatos para tecer críticas e compreender essas e outras produções em seus limites, frente à “nossa” própria realidade e aos “nossos” próprios projetos, sem abandonar as possibilidades de comparações e aproximações.

Com isso, a narrativa de Nascimento atravessa também as especificidades do pensamento transfeminista brasileiro, nos meandros e adensamentos que partem das identidades travestis nacionalmente e na atenção ao conceito de “cisgeneridade” e seus desdobramentos nessa produção. Embora otermo “transfeminismo” (assim como “cisgeneridade”) tenha sido de algum modo importado e traduzido de uma produção estrangeira, sua linhagem se entrelaça com as especificidades de uma história brasileira (e, como um todo, latino-americana) e, com isso, de um contexto sociopolítico particular que deve ser observado com atenção, de modo a possibilitar diálogos e alianças mais cuidadosas, inclusive no âmbito de transformações coletivas. Nesse sentido, considero que futuros trabalhos possam contribuir ainda mais no adensamento das relações entre transfeminismo e a identidade travesti, assim como as conexões entre transfeminismo e putafeminismo (pauta urgente, pensando na história e na realidade de muitas mulheres trans e travestis). Fico também curiosa pelo desenvolvimento, em trabalhos futuros, de conexões latino-americanas, pensando nas aproximações e distanciamentos a partir desse recorte.

Outro cuidado analítico tomado por Nascimento está na atenção às tensões e negociações, inclusive no interior dos próprios espaços protagonizados por pessoas trans*. Enfatizando tanto aspectos de “poder” quanto de “resistência”, algo a todo momento relembrado na obra, Nascimento escapa a um possível achatamento dessa segunda categoria: “qualquer tentativa de universalização de nossas produções subjetivas dissidentes é um limite que precisa ser superado” (: 113). Isso corresponde a atentar para o aspecto relacional da identidade; em outras palavras, ao fato de que autodeterminação também “demanda uma performance pública de reconhecimento social” (: 173).

Esse é um debate espinhoso, mas que no futuro próximo exigirá atenção de nossa parte como autoras transfeministas, e pessoas trans* que se propõem a estarem em determinados espaços de produção de conhecimento (me incluo aqui). Refiro-me ao cuidado em relação às disputas e negociações no interior dos próprios movimentos e ativismos trans*, que perpassam, por exemplo, às possibilidades e dinâmicas de acesso a determinadas políticas públicas, tal como políticas afirmativas em universidades federais e estaduais e seus princípios de autoafirmação e/ou de heteroidentificação (Izazetti, 2021IAZZETTI, Brume Dezembro. 2021. Existe “universidade” em pajubá?: Transições e interseccionalidades no acesso e permanência de pessoas trans*. Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.). Sigo também com Favero, ao destacar nossa própria capacidade de discordância e contradição - inclusive, essa sendo uma das pautas de reivindicação de nossa humanidade: “pessoas trans e travestis são capazes de discordar entre si (...) [elas] podem agir contra os interesses da própria comunidade - se é que é possível assegurar a existência de tal comunidade em primeiro lugar” (Favero, 2020FAVERO, Sofia. 2020. “Por uma ética pajubariana: a potência epistemológica das travestis intelectuais”. Equatorial - Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, vol. 7, n. 12: 1-22. DOI https://www.doi.org/10.21680/2446-5674.2020v7n12ID18520
https://doi.org/https://www.doi.org/10.2...
: 11).

Ao mesmo tempo, compreendo a realidade concreta que vivemos na produção acadêmica brasileira. Nela, permanecemos em um espaço de disputa para termos o mínimo de nossas demandas reconhecidas, para sermos, quando muito, convocadas a falar em um lugar que, na prática, restringe e limita nossa fala (e, principalmente, a escuta sobre tais falas). É necessário pontuar que conceitos como “lugar de fala” e “representatividade”, ou mesmo o princípio de “falar em primeira pessoa”, a partir de nossas experiências vividas - embora extremamente potentes em suas origens e usos no interior de pensamentos feministas negros - tem sido dis/torcidos por uma parcela de pessoas brancas e cisgêneras (em grande medida), que o utilizam de modo a isentar sua própria responsabilidade no interior desses “CIStemas” de opressão e reforçar a hierarquização entre “êmico”/”analítico”, “universal”/”específico”, “objetivo”/”subjetivo”, “mente”/”corpo”, “neutro”/“enviesado”, e assim em diante.

Dito isso, nas negociações “do que”, “para quem” e “onde” falamos, permanecemos nos trânsitos entre múltiplos espaços de produção de conhecimento, sempre na corda bamba entre a criação de espaços outros - onde nos reconhecemos e nos vemos, de algum modo, mais livres - com a reivindicação de espaços tal como a universidade e a academia, comumente ainda hostis à nossa presença, mas onde se concentram capitais econômicos, culturais e simbólicos, além do evidente impacto social. Transitamos também por entre termos econceitos, em suas densas historicidades, tal como Patricia Hill Collins destaca, em entrevista, sobre o próprio termo “feminismo”:

Se a palavra atrapalha ao ponto de você não conseguir chegar nas questões que ela deveria invocar (...) é hora de usar outra palavra que descreva aquilo sobre o que você quer conversar (...) Há muitas discussões que acontecem a partir da palavra feminismo, mas colocar tudo ao redor dela e ficar discutindo essa coisa de ‘bom, eu não sou feminista, você é feminista?” é inútil (...) O que realmente precisa ser discutido é o que está no âmago do feminismo, se essa palavra facilita essa discussão e os possíveis benefícios de as mulheres largarem o termo. O que funciona em seu melhor interesse?

Outro debate fundamental que é aberto a partir do livro de Nascimento, possibilitando outras produções e desdobramentos futuros, em diálogo com seus principais argumentos, está na atenção direcionada a estudos de caso relacionados a alianças específicas, tal como aproximações entre a realidade concreta e as demandas de uma população trans* em relação a pessoas com deficiência, por exemplo, assim como populações indígenas, quilombolas e refugiados. Cada um desses casos traz potências e limites para essas conexões, e nos permitem refinar, em termos teórico-políticos, uma perspectiva transfeminista interseccional. “Cada segmento possui contextos específicos para a compreensão dessas opressões” (: 160), que são dados de modos também distintos em diferentes espaços sociais, tal como o campo legal, a educação formal e a saúde pública.

Além disso, uma questão relevante para tal produção está contemporaneamente em uma aproximação mais cuidadosa entre transfeminilidades, transmasculinidades e não-binaridades. Vale destacar que os dados sobre uma população transmasculina e não-binária no Brasil são ainda mais escassos do que os dados relativos a uma população transfeminina, inclusive no âmbito histórico - mesmo que esforços recentes estejam sendo feitos nesse sentido, na retomada dos pioneiros nos movimentos e ativismos transmasculinos. Embora Nascimento não desenvolva a fundo essas aproximações, considero que muitas das discussões levantadas pela autora - tal como o peso social imposto da categoria “mulher” e mesmo as breves discussões sobre o lugar da genitalização nas opressões de gênero, tecida no último capítulo - nos trazem questões pertinentes ao debate sobre a presença ativa de homens trans e pessoas transmasculinas como um todo (incluindo aqui pessoas não-binárias) em espaços transfeministas.

Novamente espinhoso em razão da nossa realidade concreta em grande parte da produção acadêmica e dos próprios espaços feministas, considero que esse possa ser um debate frutífero no futuro próximo, principalmente tendo em vista a expansão de espaços “transcentrados”4 4 Para um esboço desse conceito, ver Iazzetti (2021). e de circuitos de afetos, saberes e trocas econômicas por entre diversas identidades e corporalidades trans* nos últimos anos tanto no Brasil, quanto no exterior.5 5 A revista acadêmica de estudos trans* “Transgender Studies Quarterly” publicará, em breve, uma edição sobre relações “T4T” [Trans 4 Trans].

Dito isso, Nascimento nos oferece não apenas um aparato teórico complexo, apresentado de modo didático e instrumentalizado, e um conjunto de pautas sociais urgentes a partir dos feminismos: a autora ainda nos abre caminhos potentes em ambos os sentidos, para pensarmos sobre transfeminismos (e além) em seu âmago, conforme nos propõe Collins, tanto provocando questões para nossas pesquisas e produções, quanto expandindo possibilidades de diálogos e alianças em um sentido de construção e transformação coletiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • COLLINS, Patricia Hill. 2019. Entrevista: ‘Se o termo feminismo barra a discussão, é hora de trocá-lo’, diz Patricia Hill Collins. The Intercept Brasil. 21 de Outubro de 2019. Disponível em: Disponível em: https://theintercept.com/2019/10/21/entrevista-feminismo-patricia-hill-collins/ Acesso em 15/05/2022
    » https://theintercept.com/2019/10/21/entrevista-feminismo-patricia-hill-collins/
  • FAVERO, Sofia. 2020. “Por uma ética pajubariana: a potência epistemológica das travestis intelectuais”. Equatorial - Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, vol. 7, n. 12: 1-22. DOI https://www.doi.org/10.21680/2446-5674.2020v7n12ID18520
    » https://doi.org/https://www.doi.org/10.21680/2446-5674.2020v7n12ID18520
  • IAZZETTI, Brume Dezembro. 2021. Existe “universidade” em pajubá?: Transições e interseccionalidades no acesso e permanência de pessoas trans*. Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
  • RADI, Blas. 2019. “Políticas del conocimiento hacia uma epistemología trans*”. Im: SEOANE, Mariano López (ed.). Los mil pequeños sexos: Intervenciones críticas sobre políticas de género y sexualidades. Buenos Aires, Universidad Nacional de Tres de Febrero, pp. 27-42.
  • VERGUEIRO, Viviane. 2015. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Salvador, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia.
  • 1
    Opto pelo termo “trans*”, com asterisco, seguindo a terminologia proposta pela autora ao longo de seu livro. Embora ela não trabalhe substantivamente a utilização do termo, outras autorias trans*, tal como o argentino Blas Radi (2019)RADI, Blas. 2019. “Políticas del conocimiento hacia uma epistemología trans*”. Im: SEOANE, Mariano López (ed.). Los mil pequeños sexos: Intervenciones críticas sobre políticas de género y sexualidades. Buenos Aires, Universidad Nacional de Tres de Febrero, pp. 27-42., o fazem de modo mais aprofundado.
  • 2
    Utilizo essa terminologia, a partir de minha própria produção, para enfatizar tanto os “encontros” quanto os “desencontros”, as “coerências” e as “incoerências”.
  • 3
    Embora citada brevemente, podemos traçar Vergueiro (2015)VERGUEIRO, Viviane. 2015. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Salvador, Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia. como um nome central no desenvolvimento do conceito de “cistema” e suas conexões por entre cistemas médicos, legais e acadêmicos.
  • 4
    Para um esboço desse conceito, ver Iazzetti (2021)IAZZETTI, Brume Dezembro. 2021. Existe “universidade” em pajubá?: Transições e interseccionalidades no acesso e permanência de pessoas trans*. Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas..
  • 5
    A revista acadêmica de estudos trans* “Transgender Studies Quarterly” publicará, em breve, uma edição sobre relações “T4T” [Trans 4 Trans].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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