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“Não dá mais só para cantar”

Entrevista com Djuena Tikuna

Esta conversa com Djuena Tikuna aconteceu poucos dias antes do Indígenas. BR - Festival de Músicas Indígenas, organizado pela etnomusicóloga Magda Pucci. Djuena e eu participaríamos de um bate-papo sobre música ticuna tradicional e contemporânea no dia 7 de setembro de 2021.1 1 A gravação do evento pode ser assistida no YouTube, neste link https://youtu.be/bxdHyAn_378 . A data é bastante significativa, dia da Independência do Brasil, e naquele momento também bastante turbulenta em virtude de acontecimentos políticos importantes para o movimento indígena. Manifestações, tanto da direita quanto da esquerda, estavam marcadas para acontecerem em todo o Brasil. Naquele mês, cerca de seis mil pessoas, de 170 povos indígenas de todo o país, acamparam na Esplanada dos Ministérios à espera de um julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da chamada tese do “marco temporal”. De acordo com esta tese, os indígenas que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição, não teriam mais direito sobre elas. A organização do movimento indígena para se opor ao “marco temporal” foi exemplar, adiando a votação e dando visibilidade ao absurdo da tese.

Evidentemente, a conversa teve um teor político bem marcado, como é a própria atuação artística de Djuena. “Não dá mais só para cantar”, afirma Djuena. Seu canto é também um veículo de denúncias e traz consigo as artes de diversos povos originários. Mas os temas abordados na conversa foram bastante variados, passando por sua infância e seu início como cantora profissional, até suas influências musicais, a influência da tradição musical ticuna, seu protagonismo no famoso show do Teatro Amazonas, em 2017, a música como instrumento de luta por direitos e visibilidade, o Hino Nacional cantado em língua ticuna, sucesso nas redes sociais, atuações profissionais e parcerias.

Meu primeiro contato com a cantora aconteceu em 2019, quando estava finalizando um filme documentário sobre a associação de mulheres ticuna, Mapana.2 2 Este documentário pode ser visto neste link: https://youtu.be/BJXrt8DfTzM. Outros filmes documentários que realizei em parceria com os Ticuna estão neste link: https://vimeo.com/showcase/6575494 Na ocasião, Djuena muito gentilmente me cedeu acanção “Lamentação” [Ngetchautumau], composta por Claudia Tikuna, para compor a trilha sonora do documentário.3 3 A canção está disponível neste link https://youtu.be/5-XyWia1cGc No entanto, eu já a conhecia de ouvir suas canções e por sua fama. Desde 2011 pesquiso a Festa da Moça Nova dos Ticuna, ritual de iniciação feminina, que é o principal ritual tradicional dos Ticuna e, e que foi objeto do meu doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo.4 4 A tese de doutorado (Matarezio Filho, 2019a) está disponível para download gratuito em minha página do site Academia, juntamente com outros artigos que publiquei sobre os Ticuna (Matarezio Filho, 2021a, 2021b, 2020, 2019b, 2019c, 2017, 2015a, 2015b, 2014a, 2014b). https://usp-br.academia.edu/EdsonMatarezioFilho A partir de então, fui descobrindo que, além das músicas rituais, esse povo indígena tem muitos grupos musicais e cantores dos mais variados gêneros.

A relevância da artista e ativista Djuena para o cenário atual do movimento indígena é inegável. Sua atuação tem impacto desde um cenário nacional, com sua interpretação do Hino Nacional em língua ticuna, que viralizou nas redes sociais, até em nível local, sua recepção é sempre calorosa nas comunidades indígenas por onde passa. Proveniente da mais numerosa etnia no Brasil - os Ticuna são cerca de 55 mil pessoas, só no Brasil, ainda estão presentes na Colômbia e no Peru -, todos conhecem sua música, desde os ticuna que vivem nas cidades até os que estão nos igarapés mais distantes. Djuena cresceu em Umariaçu, comunidade ticuna que é praticamente um bairro da cidade de Tabatinga (AM), e no início da adolescência mudou-se para Manaus. Lá sua família fundou a comunidade Wotchimaücü, localizada no bairro Cidade de Deus, na zona leste da cidade. Além de levar o nome de sua etnia para fora das fronteiras das comunidades, arriscaria dizer que Djuena é a cantora indígena de maior destaque na atualidade. A cantora comenta sobre essa visibilidade e como ela pode ser um potente instrumento de luta indígena.

Muito legal esse festival que a Magda está organizando, não é?

DT: Muito bom, foi muito importante a gente também ter a oportunidade de conhecer os povos aqui do Maranhão. Envolver as cantorias, as falas. Foi uma experiência nova para mim também enquanto indígena ticuna, conhecendo outros povos e suas culturas. Cada povo tem a sua cultura, tem suas particularidades e esse é o diverso, que a gente precisa descobrir mais e mais.

Sim, é muita diversidade e a gente mal conhece, principalmente a música. Existe uma diversidade de povos, uma diversidade de línguas, mas a gente liga o rádio e não ouve música indígena.

DT: A gente vai fazendo a nossa parte para mostrar a nossa diversidade. Eu acho que eu, enquanto indígena, cantora, desde que eu me conheço, no sentido de quando comecei a entrar no movimento indígena em Manaus tenho usado a música realmente até o termo da palavra que eu uso, como uma ferramenta de luta mesmo, de resistência, através da arte. Porque isso vai ocupando espaço. Acaba que a gente realmente vai encontrando as palavras. Me tornei ativista. Isso que eu tenho feito, durante esses longos anos da minha trajetória, quando eu entendi o movimento indígena, a sua importância. E a música, foi ela que me acolheu para entrar nessa luta também, para falar da cultura, da música indígena. Eu já ouvi no telefone que a música que eu faço, não é música. Quando eu me inscrevia em um projeto, eu perguntava, “por que o meu projeto não passa?”, e eu ouvia, “porque o que você faz não é música!”. “Como assim não é música?”.

O que você acabou de falar, “você não vai ouvir música indígena nas rádios”. Eu sou uma jornalista indígena, mas você não vai me ver nesses veículos de comunicação, como uma repórter, por exemplo - talvez por uma escolha que eu fiz de não procurar nesse momento. A música indígena, a gente que faz ela ser conhecida, a gente tem que lutar por ela assim como a gente está lutando pelo nosso território. Porque território é cultura.

Quando eu falo nas comunidades ticuna que eu conheço a Djuena Tikuna, todo mundo fica empolgado, principalmente as jovens. Eu arrisco dizer que você é a maior referência na música indígena do Brasil atualmente. O que você acha disso?

DT: Eu acho que acabei me tornando uma referência no sentido de levantar essa bandeira, mas principalmente quando se fala da língua, acho que a importância da língua, da valorização, de afirmação. Porque eu só falava minha língua materna antes, só pude aprender português depois. Eu falo que eu continuo aprendendo a falar português. Não foi fácil, eu cheguei na cidade nova, eu tinha 8 anos. Eu não falava português de jeito nenhum, eu não sabia de nada em português, nem minha mãe, nem meus irmãos que já estavam ali com a gente, e foi muito difícil. Depois a gente teve que aprender a falar português, com o tempo. Minha mãe continuou falando e a gente criou uma comunidade em Manaus, que se chama Wotchimaücü.

Ali a gente continuou mantendo as tradições, os cantos, a dança, os costumes tradicionais do dia a dia. Todo mundo falava a língua, nunca deixou. E os mais velhos sempre cantavam, o povo Ticuna é um povo muito cantante, gostam muito de música, da arte, da cultura, é um povo que valoriza muito isso. Minha infância foi na aldeia, eu ouvi muito a minha avó, desde criança, ouvi muitas cantorias da minha vó. A minha avó é minha referência na musicalidade ticuna, e outras anciãs. Minha mãe também é minha referência porque ela é cantora. Depois, na cidade, eu ouvi uma outra cantora, a Cláudia Tikuna. Eu ouvi a cantoria da Cláudia, então me interessou as cantorias tradicionais do meu povo. Eu fui perguntando para minha mãe, fui ouvindo as histórias com a minha vó. No momento que eu entrei para o movimento [indígena], eu quis seguir esse caminho. Porque eu também sofri muito preconceito na escola, na faculdade, isso me fez seguir esse outro caminho para me fortalecer. Por isso que, hoje, eu digo que a música me acalentou muitas vezes para seguir na luta na cidade. Eu comecei a cantar na língua [ticuna] ao invés de cantar em português, para mostrar a minha identidade, dizer que a gente está aqui, que a gente vai continuar resistindo. Enquanto a gente existir, a gente vai continuar resistindo.

Eu tinha que procurar como eu me defenderia da sociedade não indígena, e foi através da música. A música me fortaleceu muito na minha luta. Em Manaus eu fiz muito movimento cultural, ocupando certos espaços pela música, cantando na língua. Eu fiz aquilo para me defender do preconceito que eu sofria na faculdade e nas escolas onde eu estudava em Manaus. Só que se tornou muito mais do que aquilo que eu pensava, a música levantou muita gente, porque não foi só a Djuena. Nunca pensei em mim como individualista, sempre foi pensando no coletivo, de que aquilo que eu estava fazendo era para levantar outras pessoas. Para mostrar para as crianças que saíram das suas comunidades, que vão estudar na escola, as crianças que nasceram já na comunidade, que sofrem preconceito, que se a gente continuar cantando na nossa língua, a gente vai mostrar quem nós somos. A gente por nós mesmos, quem vai lutar por nós se não formos nós mesmos? Esse foi meu pensamento, quando eu não entendia de nada ainda.

Era isso que eu colocava na minha cabeça, “eu vou cantar, porque cantando as pessoas vão me ouvir”. Cantando, de alguma forma, vai alertar as pessoas, então isso entrou na minha vida e no meu pensamento quando eu tinha 18 anos. No momento que eu já estava entrando na faculdade, porque antes eu sofri muito preconceito. Na escola, eu sofri muito preconceito por não falar português direito, por ter um sotaque bem forte na época, e foi bem desafiadora essa trajetória da minha ida da aldeia para a cidade. Claro que qualquer criança que sai da aldeia e vai para a cidade é um choque cultural, é uma outra realidade, eu tive esse processo, essa adaptação que eu tinha que aceitar porque eu estava me mudando para lá com a minha família, com meu pai, com a minha mãe, com meus irmãos. Foi muito difícil no começo, mas a cultura me fortaleceu depois quando eu fui me entender. Acho que acabou que tudo que eu fiz como artista foi se tornando exemplo hoje, como você acabou de citar, sendo uma referência, mas desse jeito, não a Djuena que quer trazer a música para o lado comercial. Não, mas a música como uma ferramenta de resistência mesmo.

Essa ganância de virar uma celebridade, não é isso. Posso virar uma conhecida nesse sentido, porque eu sempre quis ser, de ser uma referência para a luta, para a cultura que nos fortalece, essa referência, falar da nossa luta. Esse foi o meu pensamento. Quando eu fiz a produção no Teatro Amazonas, por exemplo, que foi em 2017, o primeiro CD que eu lancei, foi justamente para mostrar que nós indígenas somos capazes, que a gente pode ocupar qualquer espaço, qualquer um desses lugares que foram feitos com sangue indígena. Esse foi meu pensamento. Porque não posso cantar aqui no Teatro Amazonas, porque eu não posso produzir, porque eu não posso, eu mesma, como indígena, como mulher, porque eu não posso produzir o meu espetáculo, e trazendo outros artistas indígenas para dentro desse teatro que é um patrimônio cultural do Estado do Amazonas? Por que não? Quando eu fui tendo espaço, as pessoas foram me respeitando. Porque não é só para ter visibilidade, a gente usa essa visibilidade para ocupar esses espaços, sempre foi esse pensamento. Eu acho que meu trabalho foi esse caminho, continuo querendo ajudar outros parentes artistas e conectando a música hoje, a tradicional, por exemplo.

Eu acabei de lançar um trabalho junto com DJ Eric Terena, que é um parente Terena. Ele é DJ e está gostando de descobrir essa música eletrônica. Claro que tem toda uma permissão da musicalidade ticuna, porque para mim música ancestral, música espiritual, é sagrada, tem toda uma permissão. Não vou usar canto da minha vó para mim, eu vou cantar ela no meu momento particular. Mas uma composição minha, que fala da luta, ou de uma música que eu ouvi, que eu já vou interpretando, escrevendo do meu jeito, essa canção, sim, eu posso transformar ela na língua ticuna, cantando. Porque não trazer ela para música eletrônica, por que não pode? A música pode ser o que ela quiser, a gente vai ocupando também esse estilo de música. Foi esse pensamento que eu tive, durante esse processo da minha trajetória como artista, ocupando esse espaço para falar da nossa luta. Se a pessoa não respeitar, problema de quem não quer respeitar, mas a gente vai continuar ocupando, a gente vai continuar cantando na língua. Eu vou continuar cantando na língua materna. Continuo compondo as minhas canções do meu jeito, e eu acho que é isso. Por isso que vão vir outros trabalhos e eu sou muito grata por ter outros parceiros também, as pessoas que estão gostando disso.

Você mencionou essas três pessoas, sua vó, sua mãe e a Cláudia Tikuna. Eu queria saber sobre essa relação com as mulheres mais velhas e com os “conselhos” (ucuẽ). Como isso tem a ver com a sua formação, como você vê isso, essa formação das mulheres com relação às mulheres mais velhas, as anciãs? Você tem uma canção que é um agradecimento às vovós (noe). A palavra noe, como você sabe, não é simplesmente avó, como no português, que é a mãe do meu pai ou a mãe da minha mãe, é muito mais do que isso, é um termo complexo. Às vezes é usado como uma referência respeitosa às mulheres mais velhas, mais sábias, eu queria saber um pouquinho do seu pensamento sobre isso.

DT: Da minha vó, principalmente, porque foi ela que me criou na minha infância na aldeia. Eu sempre cito ela, ela é minha referência de mulher Ticuna. Eu aprendi muita coisa com a minha vó, acho que a valorização de tudo mesmo. Todo o ensinamento da valorização da cultura, da terra, principalmente da terra. Eu acho que território, para nós, povos indígenas, é muito sagrado.

Eu lembro muito bem, minha infância foi na roça, eu acho que você já deve ter visto muitos curumins, as crianças na roça com avó, você que passou uma temporada fazendo suas pesquisas com os Ticuna. Você deve ter visto muitas crianças ali, eu era uma dessas crianças. E as cantorias, eu lembro muito das cantorias que a minha vó cantava meio-dia, de agradecer a Deus. O povo Ticuna é muito religioso, tem muito essa questão da religião. Eu lembro que a minha vó agradecia por tudo mesmo de manhã cedo. Ela não sabia ler, mas sabia pelo tempo do dia, olhava pra cima e dizia que era hora de descansar e o momento que se ajoelhava por causa da [igreja da] Santa Cruz. Sempre tinha um momento de agradecimento e tinha que ser desse jeito. Era esse rumo que eu tinha que seguir também, então sempre fazia. A importância do território, das plantas, das plantações que ela fazia, do alimento. Por isso que hoje eu trago muito isso dentro de mim, de que aquilo ali é sagrado, porque eu via muito isso. Eu falo mais dela porque eu passei minha fase de infância e pré-adolescência com ela.

Eu só pude ir pra Manaus a partir de 9 anos, mas logo depois eu voltei para a aldeia porque eu sentia muita falta da minha vó e eu tive que voltar. Eu só pude ir para Manaus mesmo a partir dos 14 para 15 anos. Fui morar definitivamente com os meus pais. Durante essa temporada que eu passei, eu não participei do ritual da moça nova porque eu já fui para Manaus, então não participei. Até porque lá [na comunidade de] Umariaçu, a minha família não fazia mais esse ritual. A tia da minha mãe, irmã da minha vó, ela faz. Eles fazem, eles já são do Umariaçu 1, até hoje eles fazem as cantorias.

Os conselhos que recebi foram sobre a importância do nosso território. Ouvi muito da minha vó sobre o sagrado. Claro que eu ouvi sobre nossa criação, da nossa humanidade, criação do povo Ticuna, isso elas me contavam. Mas sempre ouvi através das cantorias, do Yoi, do Ipi, Ngutapa, Mapana, Aicüna, Tetchi’arü’ngui.5 5 Personagens dos mitos Ticuna (Matarezio Filho, 2019a, 2019b) Tanto que a canção da Tetchi’arü’ngui eu fiz porque eu ouvi a história dela, que é esposa do Yoi, [irmão gêmeo de Ipi]. Eles brigavam por causa da Tetchi’arü’ngui, porque ela era mulher do Yoi e ele foi traído. Tem toda uma história, eu ouvi muito essa história, sobre a visão cosmológica do meu povo. Ouvi muito essas histórias da criação e também do ritual da moça nova, do rio que era o rio de sangue. Ela me contava, eu era criança ainda e eu lembro. Algumas coisas, quando me perguntam, eu lembro. O conselho mesmo que eu ouvi foi de preservar o território, de plantar ali. “Olha, aqui você tem que cuidar, quando você tiver marido, você tem que cuidar do seu território, tem que fazer uma roça”. A minha mãe continua fazendo isso até os dias de hoje. Meu pai faleceu, ela retornou para lá e está fazendo a roça dela. Assim como minha mãe recebeu os conselhos da minha vó, é o mesmo conselho que ela dava pra mim, sobre a importância de preservar a floresta, de preservar o rio, que é dali que a gente vai tirar nosso alimento. A gente tem que cuidar desse território, como você cuida da sua casa, porque ali é sua casa, e hoje a minha mãe faz isso. Minha mãe, ela estava aqui e ela estava pensando, “preciso voltar porque o mato já cresceu, tenho que voltar porque eu preciso regar minhas plantas”.

Tem uma preocupação de cuidar daquilo ali, era esse conselho que eu recebia da minha mãe, de proteger aquele lugar. Todo esse ensinamento eu falo na minha música, porque é assim que é as cantorias, de improviso. Quando tem ritual da moça nova, por exemplo, vai uma anciã cantando com a moça nova, ensinando o que ela vai se tornar. Como ela vai se comportar depois do ritual. Eu não passei por esse ritual de arrancar os cabelos, [a Festa da Moça Nova], mas eu passei por esse ritual de ensinamento. Muitas vezes eu ouvi minha mãe cantando, eu ouvi minha vó cantando, as mesmas canções, de improviso. Eu estava até comentando com meu marido, Diego: “se você não grava aquela música, já foi, ela não vai cantar do mesmo jeito nunca mais, ela vai cantar de outro jeito”. É um momento que você pega ali, grava, hoje em dia, porque é aquele momento que ela vai te falar. Então o que eu tenho na memória é só o que a minha vó me falava, e que eu hoje canto na música, a mesma noẽ [avó] que me aconselhou na comunidade Wotchimaücu, que é dona Rosa, é a mesma noẽ que me aconselhou quando eu era criança, que é minha vó já de sangue mesmo.

Esses são os caminhos que eu estou seguindo e que os outros seguirão também. Depois ouvi a [minha prima] Cláudia, já em Manaus, já falando da música, cantando e mostrando a música. A Cláudia me mostrou que a gente não tem que ter vergonha de quem nós somos. Me mostrou esse caminho e me deu força, no sentido de “você tem que ter coragem de dizer quem você é”, talvez ela tenha me inspirado nesse sentido. Não precisa ter vergonha. Eu era nova quando eu vi a minha prima cantando, ela era mais velha. Ela foi o exemplo e eu me tornei referência de outras meninas hoje pela música. Mas ela só se tornou isso porque eu recebi esse conselho lá quando eu tinha 9 anos, lá no território, na roça, para entrar na cidade, para mostrar quem nós somos. Em Manaus, na minha casa, no bairro Cidade de Deus, onde tem a associação, lá tem uma anciã, é a vovó Rosa que eu falei, ela também sempre cantou. A minha mãe, minhas tias que moram lá, todas cantam. Tem um grupo chamado Wotchimaücu, sempre via elas cantando. Eu cresci nesse círculo musical das cantorias.

Realmente não tinha outro jeito. Tanto que todo mundo que cresce ali gosta de cantar. Eu tenho uma irmã que canta, tem outra irmã que canta, tenho prima que canta, tem muitas cantoras Ticuna. Mas esse canto saindo um pouco desse lado político, ao mesmo tempo engajada no movimento. Porque é desse jeito que eu via que é para a gente estar ocupando espaço, fazendo manifestações, dando a voz, tem que fazer. Se você quer defender aquilo que você aprendeu lá na roça, de preservar aquele lugar, você tem que lutar.

Eu tinha 9 anos quando atravessava o rio em Umariaçu, e hoje eu não posso atravessar, porque você tem horário para atravessar. Imagine você atravessar e você de repente não volta mais. Porque tem os piratas que estão ali, rodeando você. Imagina isso 20 anos atrás, eu só tenho 37, não acontecia essas coisas. Eu me lembro, minha vó, meu avô, eu sentava no meio [da canoa], a gente ia remando de canoa normalmente. A gente podia sair umas 4 horas da tarde, numa boa, atravessar para chegar na ponta da [comunidade de] Umariaçu. Hoje você não pode mais fazer isso, porque tem os piratas rodeando, olhando, ou eles vão te assaltar, ou eles vão te matar. Tem muitos Ticuna morrendo ali que não sai nem no jornal. Você se pergunta, “será que eu vou ficar só cantando?” Não dá mais só para cantar. Você tem que usar sua voz como uma ferramenta de luta mesmo. Sabe, eu fico muito emocionada de falar isso porque a gente viu muito isso. Não tem mais a infância das crianças Ticuna, a fase que eu tive com a minha vó, porque está em perigo. É muito doloroso falar disso.

Sim, a pirataria está crescendo lá e está sendo uma ameaça principalmente para as pessoas que já são mais vulneráveis.

DT: Com esse governo que apoia mais ainda que acabe com os direitos dos indígenas, para quem a gente vai recorrer? A gente tem que lutar por nós mesmos e é dessa forma, a música atravessa isso. Ela vai atravessando esses caminhos, eu acho que é a isso que a gente tem que se agarrar. Eu acho que isso nos fortalece, esse meio de você usar essa força para poder reagir, a música fez isso. E a música me fez isso, a música me fez ser assim. Vou continuar lutando com a música até onde Deus permitir.

Eu ouço você falar e percebo que é difícil fazer uma separação entre música e política. E a política indígena é muito musical. Muitas vezes, a gente não vê nenhum deputado cantando no parlamento, mas se existisse um parlamento indígena, com certeza a gente ia ouvir cantoria lá. Quando você vai para Brasília para defender os seus direitos da Constituição, os direitos territoriais, você vai cantando. Me lembro também da sua atuação nos ATL [Acampamento Terra Livre], você foi muito engajada e com um engajamento musical político muito forte.

DT: Essa é a força dos povos originários, é a cultura, é a gente. A gente fala de território, precisa demarcar mesmo. A primeira coisa que os parentes fazem quando vão para assembleia e qualquer outro encontro também, até encontro particular das comunidades, se faz primeiramente uma reza para proteger. Para se proteger, para pedir permissão dos ancestrais. Quando se fala da espiritualidade, é pedir permissão, isso é cultura. E aí vem depois outras demandas. Hoje talvez esteja tendo esse reconhecimento também. Porque por muito tempo o próprio movimento não falava muito da cultura. O próprio movimento indígena não dá muita atenção para cultura. Se dá muita atenção para falar sobre terra, que, claro, terra é muito importante. Porque dali que tira nosso sustento, a gente vive. Mas a cultura era invisível, não se pauta a cultura indígena dentro do movimento. Na verdade, por si só ela vai se descobrindo, ela vai se mostrando. Eu acho que como você é um pesquisador, teve essa visão. Eu me formei na área de comunicação, [jornalismo], eu quero levantar a cultura, quero que as pessoas nos vejam, façam nossa política cultural.

A gente precisa fazer nossa política cultural. Você está ali na frente do Congresso e precisa fazer um ritual, fazer as cantorias. A gente precisa ocupar fazendo a nossa política cultural mesmo. Mas a gente nunca tinha espaço, a gente fez, teve ideias, a gente iniciou isso, a gente tem que fazer, alguém tem que fazer. Porque senão não vai ter visibilidade, vai cantar só por cantar, vai ser só naquele momento. A gente precisa dar continuidade àquilo que a gente iniciou, fazer um ato político cultural, falar da música, falar da reza, qual é a sua importância. Mostrando que é desse jeito que a gente tem que fazer a nossa manifestação, fazendo esse ato político cultural. As lideranças que estão na linha de frente estão percebendo isso aos poucos. Eu vejo que agora a própria APIB [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil] está reconhecendo isso.

A cultura indígena sofre ataque há 500 anos. Ela já vem sendo atacada desde sempre aqui, desde que o Brasil foi inventado, desde que ele foi invadido. Mas o momento atual eu acho que nunca foi tão bem articulado isso, principalmente com as missões fundamentalistas. Porque são muitas missões, muitas igrejas, algumas missões católicas até colaboram com os Ticuna. Mas tem missões que são muito nocivas, você percebe isso em Umariaçu?

DT: Algumas igrejas fazem lavagem cerebral no povo Ticuna. Tem ticuna que comenta, “acho que não tem que ter ritual”. Eu falo, “não, acho que não é por aí, não foi isso que eu aprendi, é a igreja que tá fazendo isso”. Não pode, você tem que respeitar a sua cultura, essa é nossa cultura. Eu falo assim, “se eu tivesse uma filha mulher, ela ia passar pelo ritual, porque eu não passei, eu queria passar”. Alguns acham que arrancar os cabelos [na Festa da Moça Nova] não é mais permitido, mas antes eles não tinham esse pensamento. Porque agora têm esse pensamento? É a igreja fazendo isso, dizendo que é coisa do demônio. Eu falo, “eu viajei para outros lugares, eu conheci outros povos, cada povo tem a sua cultura. Nós temos que respeitar nossa cultura, a nossa diversidade, a gente tem que dar continuidade a isso». Em Umariaçu mesmo queimaram a casa de ritual. É difícil lidar com isso. Então a gente tem que continuar lutando por isso. Eu cantora ticuna, tenho que continuar cantando, porque senão vai acabar mesmo.

Você é bastante ouvida quando começa a colocar essas suas posições políticas. Isso certamente vai influenciar a visão dos jovens. Você é uma alternativa a tudo isso, sua posição defendendo a cultura, o saber desses anciãos e a cultura tradicional do povo Ticuna.

DT: A música indígena não é uma música comercial. Não é uma música que você vai ligar seu rádio e vai ouvir. Não, você vai ouvir sertanejo, MPB, forró. Então ela precisa ser discutida sim, precisa falar dela. Claro que hoje tem facilidade de você ouvir no Spotify, porque eu coloquei minhas músicas, outros parentes colocaram. Antigamente não se tinha esse acesso que a gente tem hoje. Com a internet facilitou para muita gente.

Os indígenas podem falar da sua luta, tanto na música quanto na própria comunicação. Eu acho que hoje tem muitos comunicadores indígenas falando da luta e muitos indígenas falando da musicalidade também. Hoje tem essa facilidade, mas antigamente, não. Na minha época, no início de toda a trajetória do meu trabalho, não tinha. Se tivesse, talvez hoje já tivesse se expandido mesmo. A gente tem que lutar para que a gente possa ser ouvido, que os cantos indígenas possam ser ouvidos.

O trabalho que eu produzi foi muito fundamental para as crianças da associação. Tinha as crianças que estudam na comunidade, mantendo a língua Ticuna. Mas depois elas vão para escola da prefeitura de Manaus. Lá é outro estudo, é outra visão, é outro conhecimento. Como é que a gente segura isso? Principalmente no contexto urbano, é difícil. Mas eu acabei que, como artista, eu mostrei esse caminho, mostrei identidade para essas crianças. A música é identidade. Eu cantei o hino nacional na língua Ticuna, muita gente me criticou por cantar o hino nacional.

Eu queria saber um pouco mais sobre o hino nacional na língua Ticuna.

DT: Não foi uma idealização que partiu de mim. Me convidaram para cantar, eu era nova ainda. Comecei a cantar na UFAM [Universidade Federal do Amazonas], o pessoal me convidou para cantar. Em 2008 eu comecei a estudar o hino. O professor [ticuna] Sansão Flores foi o tradutor do hino nacional, ele que fez a tradução e depois me chamou. “Djuena, eu tenho uma missão para você, você vai ter que cantar o hino na nossa língua e divulgar”.

Eu cantei o hino nacional em 2009 em uma conferência organizada pela SEIND [Secretaria de Estado para Povos Indígenas], na UEA [Universidade do Estado do Amazonas]. Mas em 2008 que eu comecei a estudar a música, que é muito difícil. Já é difícil cantado em português, imagine em Ticuna. Naquele tempo, que eu conhecia, ninguém cantava o hino nacional na língua materna [indígena]. Eu comecei a cantar, comecei a divulgar, as pessoas começaram a ouvir. A partir daí recebi muitos convites para cantar. Fazer sempre eventos que aconteciam em Manaus, conferências de fora, conferência internacional, conferência do juiz desembargador... Nossa, eu cantei muito, no Teatro Amazonas fazendo abertura de eventos importantes, de encontros, cantando na língua Ticuna. Nas Olimpíadas [2016], eu cantei, nos 1º Jogos Mundiais Indígenas [2015]. Eu cantei em vários lugares o hino nacional. O hino nacional viralizou mesmo, o pessoal começou a conhecer o hino cantado na língua indígena.

Os professores começaram a cantar o hino nacional e ensinar as crianças. Comecei a passar esse hino para minha comunidade e as crianças começaram a cantar o hino nacional. O hino nacional cantado na língua incentivou a língua Ticuna, as crianças cantando na língua Ticuna. Essas crianças que estavam na escola pública, escola municipal, a professora e diretora ouviram. Chegou 7 de setembro, lá estavam as crianças Ticuna cantando o hino nacional na língua Ticuna. Como resultado, as crianças começaram a se afirmar por meio da musicalidade. Não somente do hino, importância de ver a Djuena cantando o hino e tantas outras canções, de se identificar, de pintar o rosto, de dizer quem ela é. As crianças pensavam, “nossa, porque eu não, eu também quero fazer isso”, fiquei muito feliz. Eu fico até muito emocionada de falar disso porque eu sempre quis que as crianças tivessem esse espelho, de dizer, “não, quero fazer isso, eu tenho que cantar, eu quero ser assim”. Esse foi meu caminho de fazer, de mostrar, para dar continuidade nesse trabalho. Daqui a pouco eu vou ser mais uma anciã mesmo, daqui a pouco eu vou virar noẽ [vovó], tem que ter alguém para dar continuidade nesse trabalho.

A partir daí eu percebi que outros povos se interessaram em estudar o hino nacional. Eu vi outros parentes fazendo a letra do hino nacional nas suas próprias línguas, povo Cocama, povo Saterê, o pessoal lá do Rio Negro começou a escrever o hino nacional em [língua] nheengatu e estão cantando. E hoje tem as crianças cantando, eu fico muito feliz de ter esse resultado, desse trabalho.

Você esteve ao lado da Sonia Guajajara em vários momentos. Eu queria saber também um pouquinho dessa sua relação com ela, com o movimento político, com a APIB.

DT: A Sonia é mais uma referência de muitas mulheres que estão nessa luta. De lutar pelos nossos direitos, de falar da nossa política, da nossa maneira de fazer política, de tantas outras mulheres que eu tenho como referência. Porque a Sonia saiu como candidata a vice-presidente do Brasil [2018]. Ela teve essa repercussão porque pela primeira vez na história do Brasil teve uma indígena que se propôs a se colocar como candidata. Mesmo enfrentando todos os desafios que a gente sabia que ela ia enfrentar. A gente sabe, tudo que a gente, indígenas, sofre. Essa opressão das pessoas que acham que o indígena tem que ficar só na aldeia, ficar só no mato, essa visão. A Sônia entrou nesse caminho para mostrar que nós temos nossos objetivos, que a gente é capaz de entrar nos lugares onde a gente quiser. Ela pra mim é uma mulher de inspiração, que bota mesmo pé no chão e vai embora. E tantas outras, como a Nara Baré, que é a primeira mulher indígena que assumiu a coordenação da COIAB [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira], que representa nove estados da região amazônica. Essas mulheres me inspiram muito no sentido político. A gente tem que colocar nossa voz para falar mesmo. Porque antigamente, quem diria que eu falaria assim com você, assim nesse tom, nessa conversa, nesse bate-papo, nunca, eu era muito tímida. Mas eu pude aprender com essas mulheres a importância de você falar, o que eu também sempre incentivei, a não ter vergonha, mesmo que você fale errado. Isso é para quem é falante da língua materna indígena: não tenha medo de falar, fale errando, as pessoas vão te ouvir, as pessoas vão te entender. Minha mãe não fala corretamente o português, mas você vai entender, alguma coisa você vai entender. Incentivo muito isso, não tenha vergonha de falar quem você é. Mas eu sempre participei do movimento [indígena] também, comecei lá em Manaus e depois comecei a participar do movimento da juventude de Manaus.

A Sônia é mais uma referência de luta no sentido político. Por muito tempo elas foram silenciadas. A gente sabe que nosso país é muito machista, não é diferente nos territórios indígenas. Muitas vezes as mulheres não tinham voz de falar, e hoje as mulheres estão tendo essa voz de falar. As Ticuna que eu vejo muito falando, as mulheres fazendo seu movimento, enfim, isso é a força mesmo. É o que eu faço.

Principalmente no Acampamento Terra Livre [ATL, em Brasília], eu sempre levantei, sempre cantei lá. Nas noites culturais, fazia grupo lá com os outros parentes de outros povos. Tanto que ela, [Sonia], me indicou para participar também do clipe Demarcação Já, que é escrito por Carlos Rennó junto com Chico César e tantos outros artistas. Acho que foi o primeiro trabalho que eu fui convidada através do Acampamento Terra Livre, que foi indicação da Sonia Guajajara. Como reconhecimento, inclusive, de estar participando, cantando na noite cultural no Acampamento Terra Livre. Entre outros que ela já me indicou também. Ela acredita nessa força também, claro que como a gente já citou lá no começo, precisa mais de atenção a nossa cultura para ser falada no sentido de valorização. Acho que o próprio movimento precisa valorizar mais.

Eu estou participando de uma campanha que vai ser lançada amanhã, dia 5 [de setembro de 2021], no estilo Demarcação Já, que é Canção Para a Amazônia, também do letrista e jornalista Carlos Rennó, junto com Nando Reis. Primeiro ele fez com Chico Cesar, que viralizou esse clipe, agora vai ser com Nando Reis. Eu tenho uma participação, enquanto indígena cantora. Tem a participação de uma outra cantora indígena e muitos artistas também, que vai ser lançado inclusive no Fantástico.

A Globo te chamou também pra participar do documentário Falas da Terra, não foi?

DT: Fui convidada também para o Falas da Terra, justamente por essa história que a gente está conversando, de a gente falar sobre a política cultural, de ocupação no Teatro Amazonas, que deu visibilidade para fazer a primeira mostra de música indígena, que nunca tinha acontecido dentro de um teatro em Manaus. O Teatro Amazonas é patrimônio cultural, ali é só ópera, artistas de fora, nunca que iria ter um espetáculo voltado só para indígena e sendo produzido por uma indígena, nunca.

Eu queria saber quando você percebeu a importância e que era possível você tocar no Teatro Amazonas, em Manaus. Como apareceu a ideia e você viu que poderia funcionar?

DT: Tem toda uma história desses desafios que eu enfrentei. No começo do trabalho, [diziam], “vamos convidar a indiazinha ali pra cantar e tal”. Em 2007 eu cantei num lugar, e na minha cabeça, para eu cantar, eu tinha que me vestir com roupa tradicional do Ticuna, de roupa de [fibra de] tururi, de cocar, enfim, isso que eu coloquei porque tinha que ser assim. Porque a gente é indígena e a gente tem que mostrar isso. Eu comecei cantar, um músico famoso do Amazonas me viu cantando e me fez um convite. “Gostei tanto da sua voz, cabocla, você quer cantar? Eu vou ter o lançamento do CD, eu queria muito te fazer um convite”, eu falei, “tá bom”. Eu aceitei, iniciando meu trabalho, empolgada. Foi em 2008, no Teatro Amazonas. Ele me disse, “Djuena, a gente queria te convidar para você cantar uma música sua, de sua autoria, e aí entra no nosso CD”. Eu fui lá, participei de um trabalho dele, mas, antes disso, eu já tinha cantado. Iniciei meu trabalho na Praça da Saudade, onde aconteciam eventos culturais voltados para os indígenas, foi até a primeira participação que eu tinha num CD chamado Cantos Indígenas. Isso começou em 2006 e eu já estava participando, em 2007 eu fui para o palco, muito tímida, com vergonha de cantar. Em 2008 me chamaram e me disseram, “você tem que se vestir assim, você tem que usar sua roupa de indígena”. Isso me colocou como exótica no Teatro Amazonas, a ideia era mostrar que tinha uma índia exótica, e aquilo lá mexeu muito comigo. Não, como assim, já estava sofrendo lá na escola e tudo mais, na faculdade, e ainda entrar nos palcos, ter que enfrentar isso lá também. Isso mexia cada vez mais comigo. Não tem que ser assim, acho que não é por aí. Isso só comigo mesmo, sem conversar com ninguém. Acho que a gente precisa procurar uma maneira de mostrar que nós somos mais do que isso, não é esse pensamento exótico, romantizado.

Na época eu não sabia falar, mas hoje eu diria que eles queriam me mostrar como a índia exótica do livro. Eu cantei, e foi a primeira vez que eu pisei no palco do Teatro Amazonas para cantar junto com esse grupo da região. Depois eu comecei a participar de outros trabalhos e fui embora, mas aquilo lá martelava sempre. Eu acho que não é só na praça, não é só ali, não é só quando você recebe convites, não é só na Semana do Índio que vai ser assim. Acho que a gente tem que ter mais espaço, a gente tem que ter mais evento, acho que a gente tem que ser mais convidado. Não é só no Dia do Índio que a gente vai cantar nas universidades, ou você vai receber uma cesta básica vencida porque é Dia do Índio. Aquilo lá cada vez mais mexia comigo e cada vez mais. Não tem que ser assim, eu não posso parar só aqui, eu preciso ecoar esse trabalho e essa voz. Mas não tem que ser só a Djuena. Meu nome é Djuena, em Ticuna, porque eu sou do clã de onça, e em português meu nome é Denise. Na época, o pessoal me conhecia como a Denise Tikuna. O Celdo Braga, [do grupo Raízes Caboclas], falava, “como é teu nome em Ticuna”, eu falei, “Djuena”. “Por que você não usa Djuena?”, eu era nova, eu falei, “é, boa, vou usar Djuena”. Aí eu comecei, sei lá, acho que os meus ancestrais mesmo foram me dando muita força na cantoria. Eu acho que toda vez que eu canto e fecho meus olhos para cantar, saio de mim, é uma conexão mesmo e é muito forte isso em mim. Comecei a ter parceiros, as pessoas, amigos do movimento, comecei a fazer engajamento do movimento indígena, comecei a cantar para o movimento.

Em 2010 eu conheci o Diego [Janatã], inclusive ele me conheceu cantando. Eu falei para ele que eu tinha um sonho de gravar um CD solo, que eu já tinha algumas músicas de minha autoria e outras da autoria da minha prima, Cláudia Tikuna. Ela já tinha me permitido cantar, porque tem que ter permissão com Ticuna. Você não pode cantar uma música quando não é permitido, eles brigam com você. E eu sempre com esse receio de pedir permissão. Eu gravei esse CD, Tchautchiüãne, que significa “Minha aldeia”, através de um edital oferecido pela Secretaria de Cultura do Estado, escrevi o meu projeto e a gente foi aprovado. Começamos a pensar, podemos lançar esse CD numa comunidade indígena, para gente fazer um trabalho juntos e tal. A gente pensou, “porque não no Teatro Amazonas?”, eu pensei, “será que eles vão aceitar a gente lançar lá? Não, é meio difícil”. O Diego sempre, “não, Djuena, mas você já tem um nome, as pessoas já conhecem seu trabalho, eu tenho certeza que se você for conversar com o secretário, ele vai ouvir e vai permitir, vai aceitar de primeira”. A gente se articulou com outros amigos ativistas do teatro e eu fui pedir apoio. Eu falei, “eu queria lançar lá no Teatro Amazonas meu CD, meu primeiro CD”. Fui na Secretaria de Cultura com uma amiga, conversei com o secretário que era Robério Braga na época, ele inclusive estava saindo da gestão, conversei e ele aceitou de primeira. “Vai lá, Djuena”, ele já gostava do meu trabalho. Ele era um dos secretários bem criticados em Manaus, mas ele respeitou o meu trabalho, então eu fiquei muito feliz. Ele foi lá ver toda a manifestação.

Fizemos um ato político ali. A aceitação foi boa no lançamento desse CD, foi Mídia Ninja, Catraca Livre, Greenpeace apoiou. A Marlui Miranda foi, outros artistas quiseram participar desse evento. Esse era histórico mesmo para o estado do Amazonas. Porque nunca havia acontecido um espetáculo indígena, um lançamento, que poderia ser só o lançamento da Djuena Tikuna. Mas era mais do que o lançamento, a gente fez um ato político, eu convidei vários outros parentes para cantar comigo dentro do Teatro Amazonas, convidei vários outros povos tanto do Alto Rio Solimões quanto do Alto Rio Negro, vários parentes cantando comigo. Mas a idealização de tudo isso, desse sentimento, foi quando me colocaram como uma índia exótica dentro do Teatro Amazonas pela primeira vez. Eu refleti muito sobre isso, até chegar nesse ponto.

Até minha roupa, a forma de me vestir, eu troquei, comecei a produzir vestidos. Antigamente ninguém usava vestido longo pintado com grafismos indígenas, nem na minha região, ninguém usava roupas assim. Então comecei a fazer, e hoje muita gente usa, até outros povos estão usando. E hoje muitos parentes pintam roupa, muita gente se espelhou nesses vestidos que eu tive a idealização de fazer e de pintar. Eu consegui um parceiro, Seu Gumercindo, que fazia a pintura. Eu levei a pintura junto com Diego, ele sempre me dando ideia, “porque tu não faz a pintura do teu povo no teu vestido?”. Sou estilista também, professor. Comecei a me vestir, comecei a cantar com meus vestidos longos. Claro que logo no começo eu fui criticada também por isso. Mas eu comecei: “não, vamos tirar esse pensamento colonizador”, essa seria a palavra certa. Porque o pensamento do caboclo lá é o pensamento colonizador, “vamos botar a índia exótica aqui para cantar e pronto, para fazer a abertura do nosso evento, porque aqui é Amazonas que tem índio, é isso”. Logo depois viu que eu fiz um ato político lá através de um lançamento de um simples CD.

No outro ano, em 2018, já com esse projeto na mão junto com o Diego, a gente apresentou para Fundação Estadual do Índio [AM]. A gente queria fazer um mega festival, com muitos parentes indígenas, ocupar aquele Teatro Amazonas novamente. Dessa vez era outro secretário, foi um desafio porque esse secretário é um músico, artista da região, mas não entendeu a ideia. Ele falou, “não, porque vai ter ópera”, começou a botar dificuldade para fazer o festival lá no Teatro Amazonas. Ele disse bem assim, “porque vocês não fazem na Praça São Sebastião, é melhor vocês fazerem”. Eu falei, “porque a gente tem que fazer na praça, porque nós somos indígenas? É índio, acha que pode cantar só na praça?”. Até chorei de raiva nesse dia, ele não queria liberar. Eu disse que a gente ia conseguir sim, a gente foi lá de novo, fomos várias vezes. A gente conseguiu e foram dois dias de espetáculo no Teatro Amazonas, dessa vez foi com vários indígenas da região do Alto Solimões, do Rio Negro.

Foi uma segunda vez, o Festival Wiyae?

DT: Isso, foi o Wiyae, Primeira Mostra de Música Indígena Wiyae, em 2018. Realizamos esses dois dias de espetáculo com vários grupos indígenas, conseguimos ainda cachê para cada grupo. É ato político cultural, porque só desse jeito que a gente consegue, fazendo a política. E acaba que a música atravessa para isso também. Não é só cantar, é mais do que cantar, a gente precisa fazer isso senão ninguém vai nos ouvir. A gente realiza esse projeto, fez o livro, em 2019 a gente dá continuidade na Segunda Mostra [de Música Indígena Wiyae], só que eu tive a turnê. Eu fui convidada pra participar do Sonora Brasil, que é um projeto de maior circulação nacional, do SESC. A gente se mudou para São Luiz [MA]. Depois a gente recebeu convite para fazer turnê na Europa, eu fui para Paris, Bruxelas, Amsterdã, Viena. Voltando de lá, participei de outros festivais, e acabou que 2019 foi um ano de muito trabalho, viajando mesmo, e em 2020 entramos na pandemia. Não tinha como realizar, eu não conseguia realizar nem on-line porque precisa de recurso. Mas em paralelo a isso podia ajudar também a comunidade Wotchimaücü, com vários apoios. A pandemia chegou e muita gente passou necessidade, eu pude fazer live cantando, ajudando de alguma forma a comunidade para receber cestas básicas, para a comunidade se alimentar. Estamos esperando que acalme essa pandemia para dar continuidade à segunda mostra do [festival] Wiyae.

E vocês conseguiram levar vários grupos de outras etnias também, para o lançamento do seu CD, que foi o lançamento de uma artista indígena.

DT: Primeiro foi o lançamento desse CD Tchautchiüãne” [“Minha Aldeia” em português], eu pude convidar os artistas que já estão no contexto urbano, para a mostra de música indígena. Pude trazer do Alto Solimões, inclusive meu próprio tio Genário, que é bem conhecido, o filho dele. Trouxe grupo do Rio Negro e outros grupos do Baixo Amazonas, que a gente pôde levar para o Teatro Amazonas. Convidamos artista de fora, a Marlui Miranda, de novo. Porque ela é uma referência para mim, como uma pioneira da musicalidade indígena, no sentido da pesquisa. Foi uma pessoa que cantou no Teatro Amazonas e foi vaiada. Depois de 42 anos [1979], uma indígena cantora que estava produzindo o espetáculo, e foi muito emocionante. E é toda essa resistência mesmo, a gente tem que ir demarcando, falando. A música é política também, a gente tem que fazer, porque não tem como separar as duas, não dá só para cantar.

Eu te considero uma artista indígena contemporânea, chamaria assim, claro que tem influência da sua cultura, da tradição. Eu queria saber dessa produção mais recente, essa parceria com o DJ Eric Terena. No Youtube 6 6 O clipe da música pode ser visto neste link https://youtu.be/4XLNG5-Zqvo tem a letra em português da Tetchi’arü’ngui [Moça do Umari], que é uma das primeiras histórias que as crianças conhecem, dos gêmeos Yoi e Ipi e dessa relação que eles têm com a “moça do umari”, do Ipi que rouba a mulher do Yoi. Isso está muito conectado com a forma como tradicionalmente os Ticuna compõem. Muitas vezes vocês se inspiram em trechos, em pedaços de histórias, de mitos, e falam daquilo cantando.

DT: Na verdade, eu nunca nem pensei que eu faria a música Tetchi’arü’ngui, a ideia sempre foi do primeiro CD que eu cantei, que tem as minhas composições e tem outras canções, eu pensei em tocar ela usando violão, violino. A partir do momento que você coloca numa música, até mesmo música ritual, um instrumento que não faz parte da nossa cultura, ela já se torna música contemporânea. Eu pensei, “porque não ouvir as cantorias de ritual e fazer adaptações na minha versão?” Todas as canções da minha interpretação, por exemplo, são das histórias que eu ouvi, da mamãe contando, da vovó cantando, da minha outra vó cantando. A história de Tetchi’arü’ngui eu ouvi, eu ouvi a canção. Na verdade, a música Tetchi’arü’ngui me deu uma ideia de que a mulher indígena é guerreira, ela tem uma força. Quando eu fui para a aldeia, eu fui procurar ouvir a história da Tetchi’arü’ngui através da minha vó contando. Eu falei, “não estou errada, eu fiz certinho a música do Yoi e do Ipi, que brigaram por causa da Tetchi’arü’ngui. Porque Ipi queria descobrir quem era a mulher que foi escondida [pelos seu irmão Yoi] dentro da flauta. O Ipi perguntava, “com quem você tá conversando Yoi?”, ele respondia, “eu to só conversando com a vassoura aqui». Ele tentava esconder ela de todo jeito, mas no final não deu mais para esconder. A música encaixou do jeito que eu fui entender. Eu botei a música, a outra parte a minha vó canta a música, encaixou certinho.

A gente fez ano passado [2020] com o DJ Eric [Terena], ele ouviu as minhas canções e se interessou, “Djuena, tem uma música assim que eu gostei muito”. Era uma outra música, eu falei, “não, essa não, eu vou te apresentar uma tradicional, mas que é interpretada por mim, uma composição que eu escrevi, de uma história que a minha vó me contou, e logo em seguida ela canta, só que na versão original dela. A minha é minha composição, é minha interpretação da história contada do Yoi, que é o herói mítico do povo Ticuna”, e eu fui contando a história. Tem toda uma ancestralidade nessa música. A música pode ser o que ela quiser ser. Sempre tive esse pensamento também, mas a música é sagrada e ela tem permissão de ser usada. Como ela vai ser usada? Tive toda uma história com a minha vó, tia avó, conversei com ela. Eric gostou tanto dessa canção e colocou lá, e está tendo muita visibilidade. Ele veio aqui no Maranhão, a gente gravou um clipe em Carolina, um lugar lindíssimo aqui no Maranhão. A música indígena tem essa ancestralidade, mesmo ela tocando com esse estilo, eletrônica, dançante, mas ela nunca vai deixar de ser música indígena.

Você gostou do resultado, acha que você vai seguir nesse caminho?

DT: Eu gosto do meu jeito de cantar, do meu jeito de ser eu mesma, esse jeito mais lamentado, só estou experimentando. Depois dessa música eu recebi convite de uma DJ internacional. Tem dois DJs que já me chamaram para fazer música eletrônica. Ainda estou pensando qual música, eu não queria usar a música de ritual para esses trabalhos, mas uma composição minha. Eu falei para esse DJ internacional que poderia usar uma música minha que fala sobre o desmatamento, que fala sobre a importância da preservação da floresta, “A Floresta Cura”, a floresta é o nosso manto. Não a música que é ritual, do meu povo, como essa com o DJ Eric. Ela é muito ancestral, essa canção.

Você tem algumas músicas que tiveram mais repercussão. Maraka’anandê, por exemplo, foi um grande hit seu.

DT: Maraka’anandê, na verdade, é uma música de autoria do povo Guajajara, ela não é uma música Ticuna. É uma música que ouvi através da Marlui Miranda, por isso que ela também tem essa referência, essa inspiração de todo meu trabalho. Quando eu participei do teatro, com os outros artistas de teatro, assim que me mudei para Manaus, eu conheci Nonato Tavares que era um grande ator, que faz direção de espetáculo em Manaus. Ele convidou muitos indígenas para participar de peças teatrais e convidou a gente para participar.

Nessas danças, tinham essas canções da Marlui [Miranda], que eu nunca esqueci, depois ouvi Maraka’anandê. Quando eu comecei a cantar mesmo para valer, ouvi uma prima minha cantando em Ticuna. “Que música é essa? Não é na língua Tikuna que você tá cantando”, eu perguntei. Ela disse, “não, é uma música que eu aprendi com Fidelis Baniwa”. Ele já era do teatro, começou a fazer a versão na língua dele, por isso que começa assim [canto]. Essa é a linguagem nheengatu dos indígenas do Rio Negro. “Nossa, que música bonita”, eu falei. Depois descobri que eles ouviram através da Marlui Miranda. Perguntei para ela, quem era o autor dessa música, ela falou que era do povo Ka’apor. Eu falei, não vou cantar minha versão assim, vou fazer em Ticuna. Eu chamei ela [Marlui]. Eu queria saber o que significa a letra da música. Porque para você cantar, você tem que saber o que significa a música. Ela falou “é como uma missa essa música, é de agradecimento a Deus”. Eu gostei, cantei na versão do Fidelis. Mas a segunda versão quero fazer em Tikuna e comecei a escrever. Acabei virando pesquisadora de música indígena. Eu fui entrevistar o grande autor da música. Eu gravei ele falando da música. Ele é do povo Guajajara, mas ele cresceu junto com os parentes do povo Tembé. Falou que tinha ligação com o povo Ka’apor, é uma mistura. Como é na língua tupi, com certeza o povo Tembé deve cantar, o povo Ka’apor deve cantar e o povo Guajajara, mas ele falou que maracá significa um pássaro. Maracanandi, a gente fala Maracanandê, é um pássaro que chama realmente a turma. Tem realmente uma ligação de quando eu falo [Djuena canta um trecho de sua versão em ticuna da canção]. Criei uma versão dela como se eu já conhecesse. Só que antes de ela chegar nesse ponto, ela já tinha viralizado porque comecei cantar ela muito no Acampamento Terra Livre. Cantei ela muito nos eventos, ela viralizou, ela virou hit do movimento indígena.

Depois tem a Lamentação, que foi uma composição da Cláudia Tikuna, que ela fala da terra, que os brancos estão tomando nosso território e se a gente não lutar por ela, o que a gente vai deixar para os nossos filhos, para os nossos netos? Se a gente morrer, quem vai cuidar disso, se a gente não lutar por essa terra, que Deus, Tupã, nos deu? O Eware, essa canção que também já é hit do povo Ticuna, que gosta de cantar essa canção, uma versão da Cláudia também, mas é uma música tradicional. É muito de ritual e ela pegou uma partezinha só e fez essa parte que eu cantei, dei continuidade de cantar e transformei. Cantei ela com violino, aí já virou contemporânea.

Tem outras músicas, cantores, grupos indígenas que te influenciam, que você acompanha, que você gosta?

DT: Nesse meu estilo de cantar, não. Acho que não vejo ninguém assim, indígenas cantando nesse estilo que eu criei. No momento em que eu comecei a cantar foi uma coisa de Deus mesmo. Não sei, não tem explicação isso, esse jeito de cantar. Esse jeito de fazer melodia, por exemplo, [a canção] A Floresta Cura.

Eu te ouvindo aqui, Djuena, percebi como nascem as canções. Você cantando no modo mais tradicional, que eu presenciei em tantos rituais e como você adapta para a maneira como você quer cantar, nesse modo contemporâneo, sua maneira de interpretar.

DT: Eu tenho facilidade de ouvir, tenho facilidade de pegar melodia e tenho minhas composições também. Além dessas cantorias tradicionais, que eu ouço, eu faço minha interpretação, tem as minhas cantorias. “A Floresta Cura” é uma música eu gosto muito de cantar ela e tantas outras que eu já escrevi. “A Floresta Cura” é muito poética. Talvez meus parentes Ticuna não entendam. [Na canção] “Nós somos a floresta” [Yiemagü rü nainecüti’igü], eu falo. [Djueno recita a canção em português].

Nhumarü Naῖnecü rü nangetchaü Hoje a floresta está triste nhumarü natügü rü nitche’e Hoje os rios estão secando Werigü tama marü nawiye’egü Os pássaros não cantam mais, Nhumarü na au’e Só sabem chorar Daῦna’ane rü napu iduüma O céu sangra berugü rü yawa nae’gü E as borboletas voam para longe Tchautchiüãnewa buãta rü tia’ünegü Na minha aldeia, as crianças ardem em febre Yuücü arü Cue’ rü tiaãẽgü E queimam, até mesmo o sopro do pajé name imaẽü somos sobreviventes, precisamos viver yiemagüni i ã›ügagü i naῖnecüwa Somos o grito da floresta yiemagüni i tchoni iῖgü de’a iyaeüwa i’ῖgü Somos os peixes, subindo a correnteza yiemagüni i ngo’ügü i totchimaüῦ ü›acü i derenecü Somos a revoada das araras, no por do sol yiemagüni i maῖyugü i du’ügü i poraügü Somos os filhos dessa terra nha’ã i naῖnecü i torü ni’ῖ A floresta é nossa, nós somos a floresta.

Eu escrevo ela em português, eu escrevo ela em Ticuna, eu vou cantar ela em Ticuna, essa letra todinha do meu jeito em Ticuna e o Ticuna vai ter dificuldade de entender o que a Djuena tá cantando. Até eu explicar, é uma aula que você vai dar da poesia. Ela é muito poética, mas ao mesmo tempo um ato de chamada, por exemplo. “A Floresta Cura”, [Djuena recita a letra da canção em português]

Toda semente que há, há de um dia germinar uma flor pra reflorestar nossos corações. Do ventre da terra vai brotar a paz pra essa guerra se acabar um amor pra acalentar todas as nações. De tempos em tempos sobrevivo Mas não aprendi a contar os mortos O que vive em mim é a memória dos antigos eleva ao grande espírito e reza nossos corpos. A NOSSA ALDEIA É UM MUNDO, ESSE MUNDO É NOSSA ALDEIA, TRAGO A CURA PARA TODO MUNDO, SOMOS TODOS DA MESMA ALDEIA.

Essa canção, por exemplo, é uma composição minha, poética, eu vou fazer em Ticuna, aí eu começo a musicá-la. São coisas assim que eu vou fazendo musicalmente e é desse jeito que eu faço meu trabalho.

Claro que tem as minhas cantorias que falam sobre o Yoi, que falam sobre worecü [Moça Nova], tem até as canções de ninar que eu interpreto. E nesse CD, o segundo, tem as crianças cantando, porque eu quis a presença das crianças nesse CD. As cantorias das anciãs, a voz do meu tio Santo Cruz, ele cantando Wiwiruya, a música de autoria dele. Eu vou chamando meus parentes para fazer parte do meu trabalho, eu acho que não é só a Djuena. É um trabalho coletivo, esse é o meu pensamento. Não é Djuena, é pra todos, e mesma coisa na comunicação. Eu trabalho como jornalista independente, eu faço a minha comunicação, escrevo. Os Ticuna têm muita dificuldade na escrita. Por mais que tenham muitos indígenas que já têm formação, o português é o que pega.

REFERÊNCIAS

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  • MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2021. Perigosos festeiros: as máscaras Ticuna 60 anos após Harald Schultz. In: Ana Carolina Delgado Vieira; Marília Xavier Cury. (Org.). Culturas indígenas no Brasil e a Coleção Harald Schultz. 1ed.São Paulo: Edições Sesc, v. 1, p. 151-172.
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    A gravação do evento pode ser assistida no YouTube, neste link https://youtu.be/bxdHyAn_378
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    Este documentário pode ser visto neste link: https://youtu.be/BJXrt8DfTzM. Outros filmes documentários que realizei em parceria com os Ticuna estão neste link: https://vimeo.com/showcase/6575494
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    A canção está disponível neste link https://youtu.be/5-XyWia1cGc
  • 4
    A tese de doutorado (Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A festa da moça nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. 1. ed. São Paulo: Humanitas/FAPESP, v. 1. 462p.) está disponível para download gratuito em minha página do site Academia, juntamente com outros artigos que publiquei sobre os Ticuna (Matarezio Filho, 2021a, 2021bMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2021. Perigosos festeiros: as máscaras Ticuna 60 anos após Harald Schultz. In: Ana Carolina Delgado Vieira; Marília Xavier Cury. (Org.). Culturas indígenas no Brasil e a Coleção Harald Schultz. 1ed.São Paulo: Edições Sesc, v. 1, p. 151-172., 2020MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2020. Do ponto de vista das moças. A circulação de afetos na Festa da Moça Nova dos Ticuna. BOLETIM DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. CIÊNCIAS HUMANAS, v. 15(1), p. 1-21. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0065
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    , 2019bMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019b. Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna. Sociedade e Cultura, v. 22, p. 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691
    https://doi.org/https://doi.org/10.5216/...
    , 2019c MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019c. Uma passagem entre as duas Américas: mito e ritual ticuna. ETNOGRÁFICA (LISBOA, v. 23 (3), p. 579-604. https://doi.org/10.4000/etnografica.7214
    https://doi.org/https://doi.org/10.4000/...
    , 2017MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2017. O amadurecimento dos corpos e do cosmos - mito, ritual e pessoa ticuna. Revista de Antropologia, v. 60, p. 193-215. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2017.132073
    https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
    , 2015aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2015a. A Canção dos Imortais dos índios Ticuna. In: Aquino, Z. G. O.; Gonçalves Segundo, P. R.; Marega, L. M. P.; Cavalcante Fº, U.; Santos, T. J. F.; Dioguardi, G. (Org.). A multidisciplinaridade nos estudos discursivos. 1ed.São Paulo: Editora Paulistana, v. 1, p. 178-202., 2015bMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2015b. Trompetas ticuna de la Fiesta de la Moça Nova. In: Bernd Brabec de Mori; Matthias Lewy; Miguel A. García. (Org.). Sudamérica y sus mundos audibles Cosmologías y prácticas sonoras de los pueblos indígenas. 1ed. Berlin: Ibero-Amerikanisches Institut. Preußischer Kulturbesitz, v. 1, p. 121-135., 2014aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2014a. Do corpo ao cosmos - condensações rituais dos Ticuna. PERIFERIA (BELLATERRA), v. 19, p. 28-54. http://dx.doi.org/10.5565/rev/periferia.426
    https://doi.org/http://dx.doi.org/10.556...
    , 2014bMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2014b. Desafios de tradução em uma língua indígena - Ticuna. In: Álvaro Faleiros; Mário Ramos Francisco; Gisele Marion Rosa; Vanice Ribeiro Dias Latorre. (Org.). II Jornada TRADUSP: tradução e poética. 1ed.Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, v. 1, p. 73-86.). https://usp-br.academia.edu/EdsonMatarezioFilho
  • 5
    Personagens dos mitos Ticuna (Matarezio Filho, 2019aMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019a. A festa da moça nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. 1. ed. São Paulo: Humanitas/FAPESP, v. 1. 462p., 2019bMATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019b. Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna. Sociedade e Cultura, v. 22, p. 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691
    https://doi.org/https://doi.org/10.5216/...
    )
  • 6
    O clipe da música pode ser visto neste link https://youtu.be/4XLNG5-Zqvo
  • Errata

    Na entrevista “Não dá mais só para cantar”, com número de DOI: https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.202283 , publicada no periódico Revista de Antropologia, 65(2):e202283, na página 1:
    Onde se lia:
    "Edson Tosta Matarezio Filho
    Universidade de São Paulo | São Paulo, SP, Brasil
    sociais@hotmail.com
    https://orcid.org/0000-0002-4225-9091"
    Leia-se:
    "Edson Tosta Matarezio Filho
    Universidade Estadual de Feira de Santana | Feira de Santana,
    BA, Brasil sociais@hotmail.com
    https://orcid.org/0000-0002-4225-9091"

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2022
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