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Saúde e constituinte

Health and constitution

CARTAS AO EDITOR – LETTERS TO THE EDITOR

Saúde e constituinte

Health and constitution

No momento em que se prepara uma nova constituição para o País, diferentes setores da sociedade tem expressado suas reivindicações ou entendimento de direitos que deveriam ser resguardados ou inseridos nessa carta magna. Neste contexto, a discussão do conceito de saúde, emerge como decisiva na medida em que o País do nosso futuro repousará exatamente na maneira do cidadão se apropriar do direito à saúde.

Atualmente dois são os conceitos de saúde, que se prestam como fundamentos a ações políticas. Um deles conceitua a saúde como a ausência de doença e o outro como um estado de bem-estar físico, mental e social.

O primeiro conceito encontra suas raízes no desenvolvimento da fisiologia e na consagração da antiga teoria do contágio específico, ocorrida com a descoberta do micróbio no final do século passado. A partir dessa teoria a doença seria resultante da ação de agentes internos ou externos ao organismo (por exemplo o micróbio), provocando nele um desequilíbrio. Assim, o estado de saúde seria o sucesso do organismo na busca do equilíbrio frente aos agravos do meio ambiente. A conseqüência disso é que se interpreta a saúde como um estado fisiológico que se recupera no tratamento de enfermidades específicas.

Convém, entretanto, algumas ponderações sobre esse conceito que dá primazia à doença, na medida em que não define qualquer elemento que possa compor o objeto saúde.

De fato os estados mórbidos se desencadeiam por causas que se localizam tanto no interior como na realidade externa do corpo. Entretanto, uma ampla gama de doenças, as chamadas doenças carenciais ou sociais originam-se por deficiências - baixa consumo, mal aproveitamento e/ou espoliação orgânica (por exemplo verminoses) - que só podem ser explicadas por meio de uma narrativa causal que contenha uma análise da realidade social. Embora se encontre um elenco de causas de caráter fisiológico e físico-químico na origem de tais doenças, restringir-se a esses aspectos seria fornecer uma análise incompleta do processo mórbido, que encontra sua causa primeira no medo de viver de grupos sociais.

O desgaste físico, decorrente de longas jornadas de trabalho e "stress" aliado, muitas vezes, à espoliação do organismo por verminoses, abundantes em locais precários em saneamento, tem conduzido à doença e à morte prematura grande parcela da nossa população, sem acesso à alimentação, moradia, repouso e lazer adequados - bens fundamentais para garantir a reprodução biológica. Assim, não se pode conceber uma legislação sobre saúde, mesmo quando interpretada como normalidade fisiológica, que contemple apenas o cuidado médico. Há de se considerar os fatores que determinam as doenças e a prevenção das mesmas. Neste sentido as assim chamadas doenças sociais, implicaria na garantia de acesso ao consumo dos bens fundamentais supra citados por parte da população.

Por sua vez o conceito que vincula a saúde ao bem estar físico, mental e social, vem reabilitar algumas idéias que se difundiram na Europa em meados do século passado, sob influência do Iluminismo. R. Virchow, S. Neuman, R. Leubscher, entre outros, apontavam a pobreza e a privação cultural como fatores relevantes na causação da doença. O cuidado à saúde da coletividade era de inequívoca responsabilidade do Estado e envolvia o enobrecimento físico e moral do homem. Assim, elementos tais como a nutrição, moradia, direito ao trabalho, reprodução e vida intelectual e moral eram componentes da saúde.

Hoje em dia a interpretação da saúde como bem-estar físico, mental e social, tem recebido críticas diversas, decorrentes principalmente de uma visão setorizada da sociedade. Ora invoca-se a sua difícil operacionalização, ora alega-se a subjetividade do conceito de bem-estar. Confunde-se bem-estar com sentir-se bem e isto independe da miséria ou da fortuna. Entretanto, este tipo de alegação perde de vista o fato de que a noção de bem-estar é carregada de historicidade. Na realidade, há de se buscar na análise histórica e na realidade atual de sociedades específicas elementos que dêem sentido à abstração bem-estar. Esses elementos, juntamente com parâmetros de normalidade biológica, comporiam o objeto saúde em sua dimensão biológica e social. Se se refletir sobre a noção de bem-estar, já presente no pensamento dos ideólogos da saúde pública no século passado, pode-se notar que ela traz no seu bojo uma visão do ser humano e da vida como totalidade e não como fragmentos que se acomodam em estado de equilíbrio. De acordo com essa visão há de pensar o bem-estar como normalidade biológica, aliada à uma igualdade humana básica que permita a participação integral do indivíduo em uma civilização. Essa participação implicaria necessariamente no consumo mínimo dos referidos bens fundamentais que permita não só a reprodução e a manutenção biológica do homem, mas também, o usufruto dos elementos essenciais da cultura. A idéia de uma igualdade humana básica e do direito de participação em uma herança cultural é o que se consagrou como cidadania. Assim, a questão da saúde envolve uma política que contemple a direito inalienável de apropriação pela população de bens fundamentais necessários à manutenção da higidez e uma prática que integre de forma harmônica diferentes profissionais e instituições numa relação de reciprocidade com a sociedade, tendo em vista um amplo processo educativo.

Portanto, uma carta constitucional que tenha, também, como meta a saúde como bem-estar há de ter como premissa que a vida é totalidade e garantir direitos políticos, civis e sociais que criem condições para a apropriação pelo povo de bens fundamentais e da cultura, ambos expressões da cidadania.

Ignez Salas Martins

Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 1986
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