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Caso 5/2019 - Homem de 55 Anos de Idade, Diabético e com Insuficiência Cardíaca após Infarto do Miocárdio Sem Supradesnivelamento do Segmento ST

Palavras-chave
Diabetes Mellitus/complicações; Infarto Agudo do Miocárdio; Insuficiência Cardíaca; Choque Cardiogênico

Paciente do sexo masculino, 55 anos, portador de diabetes mellitus (DM) insulino-dependente e com complicações visuais e doença renal crônica (DRC), foi internado há um mês (fevereiro de 2017) após episódio de dispneia noturna. Foi então feito diagnóstico de infarto do miocárdio (IAM) sem supradesnivelamento do segmento ST. Os exames da internação revelaram marcadores de lesão miocárdica elevados - CKMB de 70 ng/mL e troponina de 2 ng/mL. O eletrocardiograma (ECG) apresentava infradesnivelamento de segmento ST de V2 a V6. A cineangiografia revelou lesão de 30% em coronária direita e coronária esquerda sem lesões (Figura 1). O ecocardiograma revelou hipocinesia difusa de ventrículo esquerdo e fração de ejeção de 36%. A creatinina era de 1,8 mg/dL.

Figura 1
Coronária direita em oblíqua anterior direita. A) Coranária esquerda em oblíqua direita (B). Figura

Após a alta evoluiu com ortopneia e edema de membros inferiores e procurou atendimento de emergência sendo transferido para o InCor duas semanas após a alta hospitalar com diagnóstico de insuficiência cardíaca descompensada (22 de março de 2017).

No exame físico de entrada o paciente estava dispneico, hidratado, afebril, com boa perfusão periférica, pressão arterial 100x70 mmHg, frequência cardíaca de 90 bpm, saturação de oxigênio 92%. Havia turgência jugular, murmúrio vesicular presente bilateral e simétrico, presença de estertores em ambas as bases pulmonares, bulhas rítmicas normofonéticas em dois tempos, sem sopros. Não havia hepatomegalia ou refluxo hepatojugular. O abdome era flácido, indolor, com ruídos hidroaéreos presentes. Os membros inferiores apresentavam edema ++/4+, as panturrilhas estavam livres e os pulsos pediosos simétricos.

O paciente estava em uso de ácido-acetil-salicílico 100 mg, enalapril 20 mg e insulina humana NPH.

O ECG (22 de março de 2017) revelou ritmo sinusal, baixa voltagem do complexo QRS em plano frontal e infradesnivelamento de segmento ST, 1 mm, horizontal de V2 a V5, e diminuição de potenciais de ventrículo esquerdo (Figura 2)

Figura 2
Eletrocardiograma com baixa voltagem do complexo QRS em plano frontal e infradesnivelamento de segmento ST de V2 a V5.

A radiografia de tórax (23 de março de 2017) revelou volumoso derrame pleural bilateral e cardiomegalia (Figura 3), achados persistentes na radiografia de 31 de março de 2017.

Figura 3
Radiografia de tórax: volumoso derrame pleural bilateral e cardiomegalia.

Os exames laboratoriais revelaram anemia e elevação de creatinina (Tabela 1)

Tabela 1
Exames laboratoriais

O ecocardiograma (23 de março de 2017) revelou diâmetro da aorta igual a 30 mm, de átrio esquerdo 39 mm, ventrículo direito na porção basal 44 mm e na porção média 29 mm. As espessuras de septo e parede posterior eram de 7 mm, os diâmetros de ventrículo esquerdo de 56 mm na diástole e 51 mm na sístole, a fração de ejeção pelo método de área (Simpson) de 22%. Havia insuficiência mitral discreta para moderada e pressão sistólica de artéria pulmonar era de 36 mmHg.

As sorologias para doença de Chagas e citomegalovírus foram negativas.

Com esse histórico e achados de exames foram levantadas as hipóteses de infarto tipo 2 ou miocardite.

A ressonância nuclear magnética evidenciou disfunção sistólica biventricular acentuada - fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) de 11% e discreta dilatação (volume diastólico final indexado de 106 mL/m2 e sistólico final de 100 mL/m2), com acentuada dilatação do ventrículo direito (volume diastólico final indexado 137 mL/m² e sistólico final de 122 mL/m², fração de ejeção de 6%). O átrio direito tinha volume normal enquanto o átrio esquerdo estava muito aumentado (volume indexado de 65mL/m²). Os diâmetros cardíacos foram: aorta 2,5 mm, ventrículo direito no maior eixo 71 mm e menor eixo 40 mm; ventrículo esquerdo diástole 57 mm, sístole 56 mm; espessura de septo 6 mm e parede lateral 5 mm. Havia realce tardio multifocal transmural, circunferencial, poupando os segmentos apicais, além do ápice e comprometendo os músculos papilares, todos com acometimento do sub-endocárdio (Figura 4). Não havia derrame pericárdio e havia derrame pleural bilateral volumoso.

Figura 4
Ressonância magnética 4 câmaras – realce tardio circunferencial.

Durante a internação apresentou febre e leucocitose (Tabela 1), e foi feito o diagnóstico de broncopneumonia tratada com vancomicina e tazobactan com queda de Proteína C Reativa e diminuição da leucocitose.

Houve piora da função renal (Tabela 1) com oligúria e foi passado cateter Shilley em veia femoral, porém devido à instabilidade hemodinâmica não foi possível a realização de hemodiálise.

Desde a admissão apresentava dispneia acentuada com necessidade de ventilação não invasiva durante longos períodos e drenagens de hemitórax direito devido a desconforto respiratório com saída de secreção sero-hemática em cerca de 3 litros durante dois dias. A radiografia de 31 de março revelava derrame pleural bilateral volumoso antes da drenagem. Na madrugada do dia 31 de março de 2017 apresentou parada cardiorrespiratória em atividade elétrica sem pulso, sendo prontamente reanimado durante 15 minutos com retorno à circulação espontânea. O paciente recebeu intubação orotraqueal e necessitou do uso de doses máximas de noradrenalina e dobutamina para manter a pressão arterial média de 65 mmHg. Evoluiu com choque refratário, com dificuldade de ventilação mecânica e faleceu às 12h 5 (31 de março de 2017).

Aspectos clínicos

Trata-se de um paciente do sexo masculino com 55 anos sabidamente portador de DM insulino dependente e DRC que em fevereiro de 2017 apresentou episódio noturno de dispneia. Devido ao episódio procurou atendimento médico na urgência, onde foi identificada alteração de marcadores de necrose miocárdica - aumento de CKMB e troponina, além de infradesnivelamento do segmento ST de V2 a V6 no ECG. Foi realizada cineangiocoronariografia na ocasião que evidenciou apenas lesão de 30% em coronária direita.

Após alta, evoluiu com ortopneia e edema de MMII com necessidade de nova internação sete dias após alta. À admissão em nosso serviço apresentava sinais de congestão pulmonar e sistêmica, o ECG mantinha parâmetros prévios, a radiografia do tórax evidenciava cardiomegalia e volumoso derrame pleural bilateral e os exames laboratoriais demonstravam piora da função renal e anemia. O ecocardiograma transtorácico apresentava FEVE, pelo método de Simpson, de 22% com hipocinesia difusa e ausência de alterações segmentares. Após esta avaliação inicial foram levantadas as seguintes hipóteses para este paciente - IAM tipo 2 e miocardite. Para melhor investigação do quadro foi realizada complementação propedêutica. As sorologias para doença de Chagas e citomegalovírus foram negativas. A ressonância cardíaca demonstrou disfunção sistólica acentuada de ambos ventrículos com FEVE de 11%, com discreta dilatação do ventrículo esquerdo, acentuada dilatação de ventrículo direito, aumento importante de átrio esquerdo e ausência de alterações em átrio direito. Em relação ao realce, o paciente apresentava realce tardio multifocal transmural, circunferencial, com acometimento subendocárdico poupando o ápice. Não havia derrame pericárdico, mas apresentava derrame pleural bilateral volumoso.

Durante internação evoluiu com quadro de sepse de foco pulmonar, com melhora inicial após introdução de esquema antimicrobiano. Devido à necessidade de tratamento infeccioso, foi optado por postergar biópsia endomiocárdica. Apesar da melhora dos parâmetros infecciosos, evoluiu com piora de função renal e instabilidade hemodinâmica. Manteve durante toda internação padrão respiratório limítrofe com necessidade de ventilação não invasiva e necessidade de drenagem de hemitórax direito para controle dos sintomas respiratórios apresentando drenagem de secreção sero-hemática. Evoluiu com atividade elétrica sem pulso, revertida após reanimação por 15 minutos. Contudo, evoluiu com choque refratário, que levou o paciente ao óbito 12 horas após parada cardiorrespiratória.

Frente às dúvidas diagnósticas do caso e ausência de melhora após terapêutica implementada para controle do quadro, o paciente foi encaminhado para autópsia com intenção de elucidação do caso.

Em relação à avaliação clínica do caso as principais hipóteses diagnósticas levantadas foram infarto do miocárdio e miocardite, devido ao quadro clínico de insuficiência cardíaca de início agudo com disfunção ventricular esquerda. As alterações encontradas à ressonância magnética, apesar de não serem típicas, reforçaram a manutenção das hipóteses iniciais. Descrevemos abaixo informações sobre as duas entidades clínicas avaliadas neste caso clínico.

Segundo a quarta definição universal de IAM esta entidade consiste em aumento da troponina acima do percentil 99 associada a pelo menos um dos outros fatores (sintomas isquêmicos típicos e/ou nova alteração do ECG e/ou exame de imagem que mostre perda miocárdica com padrão de isquemia e/ou trombose de coronária evidenciada no cateterismo ou autópsia).11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64. A injúria miocárdica não contempla as alterações descritas acima e pode ocorrer em entidades muito comuns na prática tais como: insuficiência cardíaca descompensada, insuficiência renal crônica, choque, anemia, acidente vascular cerebral, miocardite, cardiomiopatia tipo Takotsubo, dentre outros.11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64. Dentre os cinco tipos de IAM, o tipo 2 consiste naquele que ocorre na presença de desequilíbrio entre oferta e necessidade de oxigênio, na ausência de complicações da placa aterosclerótica. O limite para esse desequilíbrio ocorrer varia entre os indivíduos e é influenciado pelo fator estressor em curso, comorbidades (incluindo as cardíacas e as não cardíacas) e doença coronariana pré existente.11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64. Os mecanismos influenciadores do desequilíbrio citado são diversos e podem ocorrer de forma concomitante além de se relacionarem com aterosclerose com redução da perfusão do miocárdio e sem ruptura de placa, com espasmo coronariano, disfunção microvascular, embolia coronariana, dissecção coronariana, taquiarritmias, bradiarritmias, hipoxemia, anemia significativa, choque.11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64.

A prevalência do IAM tipo 2 é variável nos estudos e depende do tipo de critério utilizado.11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64. Em um estudo de vida real realizado na Suécia com 20.138 pacientes, 7,1% das hospitalizações por IAM eram do tipo 2. Os pacientes desse grupo tinham maior média de idade, predominantemente mulheres e tinham maior número de comorbidades, especialmente insuficiência cardíaca e fibrilação atrial.22 Baron T, Hambraeus K, Sundström J, Erlinge D, Jernberg T, Lindahl B, et al. Type 2 myocardial infarction in clinical practice Heart. 2015;101(2):101-6. Em um estudo de 2016, as principais causas do IAM tipo 2 foram - taquiarritmias em 36,7%; estenose aórtica em 14,5% e insuficiência cardíaca em 13,7%.33 López-Cuenca A, Gomez-Molina M, Flores-Blanco PJ, Sánchez-Martínez M, García-Narbon A, De Las Heras-Gómez, et al. Comparison between type-2 and type-1 myocardial infarction: clinical features, treatment strategies and outcomes. J Geriatr Cardiol. 2016;13(1):15-22. Outro estudo observou que aproximadamente 50% dos pacientes com IAM tipo 2 não tinham doença coronariana significativa.44 Saaby L, Poulsen TS, Hosbond S, Larsen TB, Diederichsen ACP, Hallas J, et al. Classification of myocardial infarction: frequency and features of type 2 myocardial infarction. Am J Med. 2013;126(9): 789-97.

Em relação à avaliação inicial destes pacientes demonstrou-se que o sintoma mais comum de apresentação foi a dispneia.33 López-Cuenca A, Gomez-Molina M, Flores-Blanco PJ, Sánchez-Martínez M, García-Narbon A, De Las Heras-Gómez, et al. Comparison between type-2 and type-1 myocardial infarction: clinical features, treatment strategies and outcomes. J Geriatr Cardiol. 2016;13(1):15-22. Além disso, sabe-se que a presença de elevação do segmento ST ocorre em 3-24% dos casos. Aterosclerose coronariana é um achado angiográfico comum nestes pacientes e estes, em geram, apresentam pior prognóstico.11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64. Salienta-se que a angiografia não é necessária para se estabelecer o diagnóstico de infarto tipo 2.11 Thygesen K, Alpert JS, Jaffe AS, Chaitman BR, Bax JJ, Morrow DA, et al. Fourth Universal Definition of Myocardial Infarction (2018).J Am Coll Cardiol. 2018,72(18)2231-64.

As consequências em longo prazo do IAM tipo 2 são pouco conhecidas. Estudo publicado em 2018 avaliou e comparou desfechos de pacientes com diagnóstico de IAM tipo 1, tipo 2 e injúria miocárdica e demonstrou que o risco de morte era maior naqueles com história de IAM tipo 2 quando comparados aos com história de IAM tipo 1, mesmo após ajuste de variáveis. A maior parte das mortes nos primeiros 2 grupos se deu por causas não cardíacas. Em relação a eventos cardiovasculares maiores não houve diferença entre os grupos. A doença coronariana foi preditor independente de eventos cardiovasculares maiores em paciente com IAM tipo 2 ou injúria miocárdica com razão de chance de 1,71 e índice de confiança de 1,31-2,24.55 Chapman AR , Shah ASV, Lee KK, Anand A, Francis O, Adamson P, et al. Long term outcomes in patients with type 2 myocardial infarction and myocardial injury. Circulation. 2018;137(12):1236-45.

O manejo do IAM tipo 2 permanece incerto e não há estratégias de manejo clínico bem definidas. O manejo inicial deve ser realizado com controle do fator precipitante que leva ao desequilíbrio de demanda e suprimento.66 Hawatmeh A, Thawabi M, Aggarwal R, Abirami C, Vavilin I, Wasty N, et al. Implications of misclassification of type 2 myocardial infarction on clinical outcomes. Cardiovasc Revasc Med. 2019 Apr 12;Pii:S1553-8389(19)30235-0.

Outro estudo publicado em 2019 mostrou que quase 30% dos pacientes da amostra receberam diagnóstico de IAM tipo 1 quando na verdade apresentavam diagnóstico de IAM tipo 2.66 Hawatmeh A, Thawabi M, Aggarwal R, Abirami C, Vavilin I, Wasty N, et al. Implications of misclassification of type 2 myocardial infarction on clinical outcomes. Cardiovasc Revasc Med. 2019 Apr 12;Pii:S1553-8389(19)30235-0.

Em relação à miocardite, sabe-se que esta entidade consiste em um processo inflamatório do miocárdio com múltiplas facetas de apresentação, desde quadro assintomático até morte súbita, incluindo nesse espectro a insuficiência cardíaca e a apresentação fulminante. Os agentes etiológicos são diversos, incluindo as infecções virais ou bacterianas, fúngicas ou por protozoários, reação de hipersensibilidade, doenças auto imunes e por toxinas.77 Elamm C, Fairweather D, Cooper LT. Pathogenesis and diagnosis of myocarditis. Heart.2012;98(11):835-40. Em relação à avaliação epidemiológica, sabe-se que é uma doença sub-diagnosticada, com pico bimodal (em torno das faixas de 1 ano e 20 anos) e corresponde a importante causa de perda celular por necrose por ação direta do vírus, efeitos citotóxicos dos mediadores inflamatórios e produtos de estresse oxidativo.88 Vos T, Flaxman AD, Naghavi M, Lozano R, Michaud C, Ezzati M, et al.Years lived with disability (YLDs) for 1160 sequelae of 289 diseases and injuries 1990-2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2163-96. Após processo inicial de atuação do sistema imune pode haver melhora do quadro com combate do organismo agressor do miócito e redução da resposta imune ou ocorrer persistência da injúria devido a mecanismo agressor persistente ou resposta imune exacerbada.99 Mann D, Zipes D, Libby P, Bonow R. Braunwald's Heart Disease: a textbook of cardiovascular medicine, 10th ed, Saunders: Philadelphia; 2017.

Em relação aos exames complementares, há em geral um aumento dos marcadores inflamatórios e pode haver aumento de marcadores de necrose miocárdica. Quanto ao ECG, podem não existir alterações ou haver alterações inespecíficas, e ao ecocardiograma os achados também são variáveis podendo incluir hipocinesia difusa, derrame pericárdico ou alterações segmentares. A ressonância magnética é um exame fundamental, já que apresenta alta sensibilidade e especificidade para processo inflamatório do miocárdio, podendo evidenciar alteração segmentar, hipertrofia regional, dilatação de câmaras cardíacas. Na avaliação à biópsia endomiocárdica, o exame apresenta alta especificidade, com moderada sensibilidade. As indicações classe I pela Diretriz Brasileira de Miocardites, para realização de biópsia incluem nível IC para casos com duração de até 2 semanas sem causa estabelecida com piora hemodinâmica progressiva, e IC para casos com início há menos de 3 meses e mais de 15 dias, sem causa definida e apresentando arritmias ventriculares ou bloqueios atrioventriculares de segundo e terceiros graus.1010 Montera MW, Mesquita ET, Colafranceschi AS, Oliveira Junior AM, Rabischoffsky A, Ianni BM, et al. I Diretriz Brasileira de Miocardites e Pericardites. Arq Bras Cardiol. 2013;100(4 Suppl 1):1-36.

Quanto ao tratamento, os casos não complicados não necessitam de condutas específicas, apenas sintomáticos e orientação de repouso. Deve-se atentar aos quadros de insuficiência cardíaca que apresentam fração de ejeção diminuída e apresentam indicação de receber medicações que sabidamente reduzem mortalidade. É necessário avaliar casos que necessitam de tratamento antiviral e terapia imunossupressora.1010 Montera MW, Mesquita ET, Colafranceschi AS, Oliveira Junior AM, Rabischoffsky A, Ianni BM, et al. I Diretriz Brasileira de Miocardites e Pericardites. Arq Bras Cardiol. 2013;100(4 Suppl 1):1-36. O prognóstico da miocardite é favorável na maioria dos casos. Um estudo publicado em 2019 evidenciou que 13% dos pacientes avaliados apresentou evolução ruim.1111 Tschöpe C, Cooper LT, Toree-Amione G, Van Linthout S. Management of myocarditis-related cardiomyopathy in adults. Circ Res. 2019;124(11):1568-83. Sumarizando, apesar de levantadas outras hipóteses para o quadro de IC de início recente, a hipótese de doença coronariana ainda é a principal para este paciente devido aos fatores de risco, contexto epidemiológico e alteração dos exames complementares. (Dra. Ana Vitória Vitoreti Martins e Dr. José Roberto de Oliveira da Silva Filho)

Hipótese diagnóstica: Infarto tipo 2 com insuficiência cardíaca; morte por choque cardiogênico. (Dra. Ana Vitória Vitoreti Martins e Dr. José Roberto de Oliveira da Silva Filho)

Necrópsia

A necrópsia mostrou a presença de infarto do miocárdio em fase final de cicatrização em todas as paredes do ventrículo esquerdo (Figuras 5 e 6).

Figura 5
Secção transversal do coração na porção média dos ventrículos, mostrando áreas branco-acinzentadas que correspondem a infartos em fase final de evolução em todas as paredes do ventrículo esquerdo.

Figura 6
Corte histológico do miocárdio do ventrículo esquerdo mostrando limite entre miocárdio preservado (mais róseo, à esquerda) e área de necrose em cicatrização. Coloração pela hematoxilina e eosina; aumento da objetiva: 10x.

As artérias coronárias tinham aterosclerose, moderada nos ramos interventricular anterior (descendente anterior) e circunflexo da artéria coronária esquerda (obstruções máximas de 66%, no primeiro centímetro, e de 59%, no terceiro centímetro, respectivamente) e grave apenas focalmente, na artéria coronária direita (77% de obstrução no quarto centímetro). Não havia trombose ou outras lesões oclusivas (Figura 7).

Figura 7
Cortes histológicos de segmentos de artérias coronárias mostrando aterosclerose moderada e focalmente grave (4º centímetro da artéria coronária direita, 77% de obstrução). CD: artéria coronária direita; Cx: ramo circunflexo; IVA: ramo interventricular anterior (descendente anterior); IVP: ramo interventricular posterior (descendente posterior). Coloração pelo método de Verhoeff para fibras elásticas (segmento da artéria coronária direita) ou hematoxilina e eosina (demais segmentos); aumento da objetiva: 2,5x.

Como o paciente apresentou choque cardiogênico, havia pequeno infarto cerebral occipital com poucos dias de evolução.

Não foi evidenciada nenhuma lesão cavitária ou trombo que ocluísse o ápice ventricular esquerdo.

Os cortes de pulmão não mostraram broncopneumonia recente.

Achado importante foi lipomatose pancreática, com substituição quase integral do tecido pancreático exócrino por gordura, restando apenas as ilhotas (Figura 8). (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Figura 8
Pâncreas vendo-se tanto macroscopicamente (A) quanto em corte histológico (B), coloração pela hematoxilina e eosina, aumento da objetiva 2,5x com lipomatose, substituição das glândulas exócrinas por tecido gorduroso, restando apenas poucas ilhotas de Langerhans (pâncreas endócrino).

Diagnósticos anatomopatológicos: Doença isquêmica do coração, com infarto do miocárdio em fase final de cicatrização em todas as paredes do ventrículo esquerdo Lipomatose pancreática. (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

“Causa mortis”: Choque cardiogênico (Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Comentário

Este é um caso bastante incomum, no qual alguns pontos não ficaram esclarecidos mesmo com a necrópsia. O principal ponto diz respeito ao fato de que o paciente teve lesão com aspecto microscópico de infarto do miocárdio com evolução de 4 a 6 semanas, ou seja, compatível com a história clínica de insuficiência cardíaca de início súbito, com diagnóstico de infarto e marcadores de necrose elevados. Porém, o padrão da lesão não era usual, acometendo irregularmente todas as paredes do ventrículo esquerdo. Por isso, chegou-se a pensar em miocardite e não se encontrou explicação adequada para a ocorrência dessa necrose isquêmica; a aterosclerose era apenas moderada, com um único segmento com lesão grave na artéria coronária direita, e não havia trombos recentes ou em organização. Pacientes diabéticos por vezes têm lesões na microcirculação cardíaca, mas no presente caso estas não eram significativas.

Outra questão é a de que o pâncreas tinha sua porção exócrina quase completamente substituída por gordura, em meio à qual sobram as ilhotas de Langerhans. Há três diagnósticos a serem pensados: fibrose cística, síndrome de Schwachman-Diamond e mutações da éster carboxil lipase. O primeiro fica afastado pela ausência de cistos, seja no pâncreas, seja nos pulmões ou em outros órgãos. A síndrome de Schwachman-Diamond atinge principalmente crianças pequenas. Por isso, o mais provável é que o paciente fosse portador de mutação da éster carboxil lipase, a qual pode inclusive ser responsável por diabetes tipo juvenil com início retardado, como era o caso deste paciente, e influenciar o desenvolvimento de aterosclerose.1212 Johansson BB, Torsvik J, Bjørkhaug L, Vesterhus M, Ragvin A, Tjora E, et al. Diabetes and pancreatic exocrine dysfunction due to mutations in the carboxyl ester lipase gene-maturity onset diabetes of the young (CEL-MODY): a protein misfolding disease. J Biol Chem. 2011;286(40):34593-605.

13 Vesterhus M, Raeder H, Johansson S, Molven A, Njølstad PR. Pancreatic exocrine dysfunction in maturity-onset diabetes of the young type 3. Diabetes Care. 2008;31(2):306-10.

14 Kodvawala A, Ghering AB, Davidson WS, Hui DY. Carboxyl ester lipase expression in macrophages increases cholesteryl ester accumulation and promotes atherosclerosis. J Biol Chem. 2005;280(46):38592-8.
-1515 Hui DY, Howles PN. Carboxyl ester lipase: structure-function relationship and physiological role in lipoprotein metabolism and atherosclerosis. J Lipid Res. 2002;43(12):2017-30.(Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Out 2019
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