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Terapêutica da forma crônica da doença de Chagas. Tratamento específico da infecção pelo Trypanosoma cruzi

Ponto de Vista

Terapêutica da Forma Crônica da Doença de Chagas. Tratamento Específico da Infecção pelo Trypanosoma cruzi

Vicente Amato Neto

São Paulo, SP

Para o tratamento de doença infecciosa ou parasitária é muito importante poder contar com medicamento eficiente, no sentido de opor-se ao agente causador. Quanto à infecção devida ao Trypanosoma cruzi, determinante da doença de Chagas, isso não é diferente. Contudo, desde que esta parasitose passou a ser conhecida, há quase 100 anos, tal desiderato não ficou amplamente atingido, a despeito das pesquisas efetuadas, que ocorreram com intensidade razoável, mas poderiam, sem dúvida, ter sido bem mais expressivas.

No que concerne à protozoose em questão, é lícito reconhecer que diversos aspectos mereceram exaustivas atenções, delas tendo resultado conhecimentos valiosos. Refiro-me à etiologia, à epidemiologia incluindo os mecanismos alternativos de transmissão, ao diagnóstico laboratorial, ao delineamento da configuração clínica e à prevenção. Vale, também, deixar claro que contingências imunológicas e patogenéticas, abordadas intensamente por vários pesquisadores, ainda não conduziram a deduções acatáveis sem ressalvas, impedindo, assim, aplicações aptas a evitar os danos que o T.cruzi pode gerar. Por seu turno, o tratamento específico, hoje cooperativo em algumas circunstâncias, requer inegavelmente avanços destacáveis.

Contamos no momento com três remédios: o benznidazol, o nifurtimox e o alopurinol. O segundo não está sendo comercializado no Brasil e o terceiro pode eletivamente arrefecer reativação parasitária em imunodeprimidos.

O benznidazol e o nifurtimox devem ser prescritos para tratar pacientes que se encontram na fase aguda da doença, qualquer que tenha sido a forma de transmissão. Curas, até mesmo parasitológicas, podem ocorrer conforme porcentagens desiguais registradas em diferentes regiões, admitindo-se que cepas ou resistência do parasita têm nexo com isso. Outra indicação incontestável corresponde ao atendimento de vítimas de acidentes laboratoriais, exigindo início bastante precoce da administração.

Transplante de órgãos colocaram ainda mais em cena a conveniência de termos eficazes drogas anti-T.cruzi. Doadores infectados podem veicular o protozoário a receptores, como ficou documentado com rins, e os dois compostos referidos são, por vezes, capazes de abrandar a intensidade da parasitose. Se o receptor tem doença de Chagas em transplantes de rim ou de coração, como em imunodepressões de outras naturezas, é esperável reativação parasitária. Benznidazol, nifurtimox e alopurinol em tais eventualidades demonstraram capacidade para esfriar a exacerbação, configurando outra indicação válida, concernente ao uso das drogas em apreço.

A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) dela conseqüente geraram, nos últimos anos, mais uma importante preocupação. O binômio HIV-T.cruzi aparentemente, é comum e tudo indica que se tornará, paulatinamente, mais crescente, advindo então grande número de imunodeprimidos, com estabelecimento de situação propícia para reativação da infecção parasitária, condicionadora de gravidade, na maioria dos eventos, como conseqüência de miocardite intensa e de acometimento do sistema nervoso central. O benznidazol mais vezes, mas também outros fármacos, eventual e especulativamente, foram usados para auxiliar esses doentes sem a obtenção de êxitos tranquilizadores e dignos de destaque.

Em 1996, duas reuniões aconteceram tendo como objetivos a coleta de experiências e demarcação das reais capacidades dos remédios conhecidos, a propósito do tratamento etiológico, específico, da doença de Chagas. Estiveram presentes vários profissionais interessados nesse tipo de terapêutica e os encontros foram promovidos pelo Ministério da Saúde e pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Além das recomendações, já citadas, dois novos conhecimentos foram acrescidos: curas de crianças com até 12 anos de idade por meio do benznidazol, estando elas na fase crônica da parasitose; a importância de tratar indivíduos cronicamente acometidos, porque a atividade antiparasitária pode impedir evolução clínica do processo parasitário, convindo sempre valorizar a participação do agente etiológico e interpretações de dados de ordem clínica, nunca excluíveis diante dos controles parasitológicos.

Tratar durante a gravidez com o intuito de evitar a doença congênita, medicar doador de órgão e administrar antiparasitário preventivamente a receptor em transplante são cogitações que dependem da obtenção de outros remédios ou de pesquisas que dêem devido respaldo, somando-se a isso tudo propostas, suscitadoras de investigações, para emprego prolongado ou periódico das drogas.

O controle pós-tratamento não é simples e nisto difere do que acontece com outras enfermidades. Enfrenta particularidades e a persistência de anticorpos na etapa crônica representa uma das mais intrigantes. Sem dúvida, requer aprimoramento e estudos encontram-se em curso no que diz respeito a isso.

Eficácias desiguais, notadas em avaliações laboratoriais e em pessoas infectadas, sugeriram que cepas variadas provavelmente expliquem essas diferenças, valendo a pena, a respeito, estimular verificações em modelos experimentais, através de parasitograma.

Com certeza não estamos satisfeitos. Contamos com poucos recursos terapêuticos, valiosos em limitadas circunstâncias. É imperioso buscar novos medicamentos eficientes. Não obstante, não se percebe disposição categórica para tanto. Universidades, indústrias farmacêuticas e outras instituições quase nada efetuam neste campo, lamentavelmente tido, erroneamente, como pouco prioritário ou lucrativo. Ilustra esta pouca preocupação, a peripécia referente ao nitroimidazólico identificado como MK-436, interpretado como eficiente experimentalmente e que, mesmo colocado gentilmente à disposição de interessados, nunca encontrou órgão disposto a produzi-lo.

Embates são desnecessários. O que foi exposto retrata, de forma resumida e singela, o panorama atual concernente ao tratamento etiológico da infecção promovida pelo T.cruzi. Só nos resta ficarmos situados nisto, esperando progressos, certamente atrasados. Como consolo, friso que para algumas outras afecções, até bastante prevalentes, meios terapêuticos afiguram-se mais escassos.

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Correspondência: Vicente Amato Neto - Instituto de Medicina Tropical - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 500 - S/9 - 1º - 05403-000 - São Paulo, SP

Recebido para publicação em 10/10/97

Aceito em 19/11/97

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 1998

Histórico

  • Aceito
    19 Nov 1997
  • Recebido
    10 Out 1997
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