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Células da medula óssea e reparo cardíaco

EDITORIAL

Células da medula óssea e reparo cardíaco

Annarosa Leri; Jan Kajstura; Piero Anversa

Cardiovascular Research Institute, Department of Medicine, New York Medical College, Valhalla, NY

Correspondência Correspondência: Piero Anversa, M.D. Vosburgh Pavilion, Room 302 New York Medical College, Valhalla, NY 10595 E-mail: piero_anversa@nymc.edu

A compreensão dos mecanismos pelos quais as células-tronco somáticas do adulto são capazes de melhorar a função cardíaca de pacientes com cardiopatia isquêmica tem importância biológica e clínica fundamentais1. Células progenitoras endoteliais (CPE) e células mononucleares derivadas de medula óssea (CMMO) foram administradas a pacientes com cardiopatia isquêmica aguda e crônica2. Essas intervenções produziram resultados positivos, documentando não apenas a viabilidade e segurança dessa abordagem terapêutica, mas também seus efeitos benéficos sobre o desempenho ventricular. O estudo publicado neste número da revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia documenta surpreendentemente que a injeção intracoronariana de células mononucleares de medula óssea em portadores de miocardiopatia chagásica é segura e pode exercer um impacto favorável sobre a evolução tardia da cardiopatia3. O estudo incluiu 28 pacientes com insuficiência cardíaca congestiva causada por infecção pelo Trypanosoma cruzi. A terapia celular produziu melhoras na fração de ejeção, na classe funcional (NYHA) e na qualidade de vida dos pacientes, além de aumentar a distância percorrida no teste de caminhada em seis minutos.

A patologia da miocardiopatia chagásica difere significativamente da miocardiopatia pós-infarto4, caracterizando-se por fibrose miocárdica difusa e infiltrados celulares crônicos, compostos por linfócitos, plasmócitos e macrófagos, indicando a existência de um processo ativo em andamento com perda contínua de miócitos, ativação de células do tecido conjuntivo e deposição de colágeno. Essas anomalias estruturais do miocárdio dificultam ainda mais a interpretação da possível eficácia terapêutica das células de medula óssea (CMMO) na doença de Chagas.

Estudos experimentais realizados com modelo animal de miocardiopatia isquêmica levantaram uma série de questões relacionadas a diversas variáveis envolvidas no reparo cardíaco após transplante de CMMOs5,6. E esses fatores aplicam-se também ao tratamento da doença de Chagas. Eles incluem (a) o número de células terapeuticamente eficazes que são administradas, (b) a magnitude da morte celular e a sobrevivência das CMMOs no meio hostil da região lesada do coração, (c) a extensão da pega do enxerto de CMMO e, por fim, (d) o grau de crescimento e diferenciação das CMMOs que realizaram migração para o local a ser reparado (homing).

Outra variável importantíssima das CMMOs é o seu nível de plasticidade, que é ditado por sua capacidade de adquirir características de outras linhagens celulares, como miócitos, células da musculatura lisa vascular e células endoteliais7.

Um aspecto importante é que as CMMOs injetadas podem contribuir indiretamente para a regeneração cardíaca ao liberar diversos peptídeos que exercem uma ação parácrina sobre o miocárdio8 e as células progenitoras cardíacas (CPCs)9. Esses mecanismos não são mutuamente excludentes e as células progenitoras da medula óssea podem participar direta e indiretamente do processo de reparo. Em todos os casos, entretanto, as células progenitoras têm de efetuar a migração até o miocárdio para realizar funções específicas. Esses processos biológicos dependem de uma boa interação entre as classes de célula progenitora e o microambiente tecidual10.

Embora o estudo clínico realizado por Vilas-Boas e cols. projete uma implicação sem precedentes da terapia de células-tronco no coração lesado3, as questões levantadas acima também terão de ser abordadas na doença de Chagas para que possamos compreender as bases biológicas da função das CMMOs na miocardiopatia.

Os mecanismos que norteiam a migração da célula-tronco no miocárdio ainda não foram totalmente elucidados. Pode ser necessária a existência de uma lesão cardíaca para que ocorra a migração e a pega do enxerto de células-tronco a longo prazo no miocárdio. Se o tecido não estiver lesado, o crescimento das células-tronco implantadas ficará em desvantagem em relação ao das células-tronco endógenas11. Tanto o processo de migração quanto a pega do enxerto dependem de uma boa interação entre as células progenitoras e o microambiente tecidual12,13. Classes celulares distintas podem estar diferentemente equipadas para efetuar a migração até o coração lesado. A eficiência da migração de CMMOs não-selecionadas e CMMOs enriquecidas com CD34 administradas na vasculatura coronariana dos pacientes difere em infartos ocorridos entre 5 e 10 dias14. Entre 50 e 75 minutos após a administração, apenas 1,3% a 2,6% de CMMOs não-selecionadas são encontradas no miocárdio, enquanto 14% a 39% da radiatividade total das CMMOs CD34 positivas é detectada no coração infartado. É importante observar que a biodistribuição dos dois tipos de células progenitoras também difere, sendo que as células enriquecidas com CD34 localizam-se preferencialmente na região da borda e as CMMOs não-selecionadas apresentam uma distribuição mais difusa na região da borda e na região infartada14. Assim, a utilização de um subconjunto mais específico de CMMO contendo o grupo de células primitivas resulta em pega mais eficaz, formação de cardiomiócitos e substituição do tecido cicatricial por miocárdio mais competente nos vasos coronários.

O estudo de Vilas-Boas e cols. é extremamente encorajador e assentou as bases para um estudo clínico duplo-cego multicêntrico que terá de ser realizado no futuro para comprovar definitivamente a eficácia terapêutica das CMMOs na doença de Chagas3. O mesmo se aplica à doença arterial coronariana aguda e crônica15. Entretanto, embora pacientes estejam sendo inscritos em grandes estudos clínicos na Europa, a documentação das CPCs criou grandes expectativas em relação à utilização dessa nova célula no tratamento de doenças do ser humano9. Teoricamente, a célula CPC seria a mais eficaz para ser empregada no reparo cardíaco. É óbvio que, se o coração adulto possui um grupo de células primitivas indiferenciadas pluripotentes, essas células devem ser testadas primeiro, antes que sejam exploradas células desconhecidas e mais complexas. A regeneração cardíaca ocorreria por meio de um aumento da renovação normal das células miocárdicas. Entretanto, existem dificuldades em relação à obtenção de amostras miocárdicas em seres humanos, bem ao isolamento e expansão de CPCs em quantidade terapêutica. Em contrapartida, as CMMOs constituem uma forma atraente de intervenção celular; essas células podem ser facilmente coletadas de aspirados de medula óssea ou sangue periférico mediante a sua mobilização da medula óssea com citocinas. Ainda não se sabe se as CPCs e CMMOs são igualmente eficazes na reconstituição do miocárdio morto ou se existem limitações relacionadas ao crescimento das CPC e transdiferenciação das CMMOs, resultando em restauração insuficiente do tecido perdido. Além disso, as CMMOs podem constituir uma forma inicial necessária de intervenção para o coração com insuficiência aguda, ao passo que as CPCs podem ser empregadas mais tarde durante a evolução crônica da miocardiopatia.

A doença de Chagas é um caso especial. As incertezas relacionadas à presença crônica de Trypanosoma cruzi no coração doente levantam questões quanto à utilização de CPCs, em razão da possível localização do parasita nessa população celular. Essa possibilidade torna o estudo de Vilas-Boas e cols.3 e a utilização de CMMOs extremamente relevantes para a implementação futura de terapia celular em pacientes chagásicos.

REFERÊNCIAS

1. Leri A, Kajstura J, Anversa P. Cardiac stem cells and mechanisms of myocardial regeneration. Physiol Rev. 2005;85:1373-1416.

2. Wollert KC, Drexler H. Clinical applications of stem cells for the heart. Circ Res. 2005;96:151-63.

3. Vilas-Boas F, Feitosa GS, Soares MBP, Pinho-Filho JA, Mota A, Gonçalves Almeida AJ, et al. Early results of bone marrow cell transplantation to the myocardium of patients with heart failure due to Chagas disease. Arq Bras Cardiol. 2006; 87:159-66.

4. Urbanek K, Torella D, Sheikh F, De Angelis A, Nurzynska D, Silvestri F, et al. Myocardial regeneration by activation of multipotent cardiac stem cells in ischemic heart failure. Proc Natl Acad Sci USA. 2005;102:8692-7.

5. Losordo DW, Dimmeler S. Therapeutic angiogenesis and vasculogenesis for ischemic disease. Part II: cell-based therapies. Circulation. 2004;109:2692-7.

6. Anversa P, Leri A, Kajstura J. Cardiac regeneration. J Am Coll Cardiol. 2006;47:1769-76.

7. Leri A, Kajstura J, Anversa P. Identity deception: not a crime for a stem cell. Physiology. 2005;20:162-8.

8. Yoon YS, Wecker A, Heyd L, Park JS, Tkebuchava T, Kusano K, et al. Clonally expanded novel multipotent stem cells from human bone marrow regenerate myocardium after myocardial infarction. J Clin Invest. 2005;115:326-38.

9. Anversa P, Kajstura J, Leri A, Bolli R. Life and death of cardiac stem cells: a paradigm shift in cardiac biology. Circulation. 2006;113:1451-63.

10. Urbanek K, Cesselli D, Rota M, Nascimbene A, De Angelis A, Hosoda T, et al. Stem cell niches in the adult mouse heart. Proc Natl Acad Sci USA. 2006;103:9226-31.

11. Bhattacharya D, Rossi DJ, Bryder D, Weissman IL. Purified hematopoietic stem cell engraftment of rare niches corrects severe lymphoid deficiencies without host conditioning. J Exp Med. 2006;203:73-85.

12. Peti I, Szyper-Kravitz M, Nagler A, Lahav A, Peled A, Habler L, et al. G-CSF induces stem cell mobilization by decreasing bone marrow SDF-1 and up-regulating CXCR4. Nat Immunol. 2002;3:687-93.

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14. Hofmann M, Wollert KC, Meyer GP, Menke A, Arseniev L, Hertenstein B, et al. Monitoring of bone marrow cell homing into the infarcted human myocardium. Circulation. 2005;111:2198-202.

15. Assmus B, Schachinger V, Teupe C, Britten M, Lehmann R, Dobert M, et al. Transplantation of progenitor cells and regeneration enhancement in acute myocardial infarction (TOPCARE-AMI). Circulation. 2002;106:3009-17.

  • Correspondência:
    Piero Anversa, M.D.
    Vosburgh Pavilion, Room 302
    New York Medical College, Valhalla, NY 10595
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006
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