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Síndrome da Veia Cava Superior após a Ablação de Fibrilação Atrial por Radiofrequência

Palavras-chave
Síndrome da Veia Cava Superior; Fibrilação Atrial; Ablação por Cateter; Arritmias Cardíacas

Introdução

A fibrilação atrial (FA) é a arritmia cardíaca sustentada mais comum na prática clínica. Sua prevalência aumenta com a idade e frequentemente está associada a doenças estruturais cardíacas, levando a danos hemodinâmicos e complicações tromboembólicas com grandes implicações econômicas e na morbimortalidade da população.11 Fuster V, Rydén LE, Cannom DS, Crijns HJ, Curtis AB, Ellenbogen KA, et al; American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines.; European Society of Cardiology Committee for Practice Guidelines.; European Heart Rhythm Association.; Heart Rhythm Society. ACC/AHA/ESC 2006 Guidelines for the Management of Patients With Atrial Fibrillation: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines and the European Society of Cardiology Committee for Practice Guidelines (Writing Committee to Revise the 2001 Guidelines for the Management of Patients With Atrial Fibrillation). Circulation. 2006;114(7):e257-e354. Erratum in: Circulation. 2007;116(6):e138.,22 Wolf PA, Abbott RD, Kannel WB. Atrial fibrillation as an independent risk factor for stroke: The Framingham Study. Stroke. 1991;22(8):983-8. As técnicas de ablação de FA, quando realizadas por operadores experientes, têm se mostrado seguras e com resultados bastante satisfatórios, porém em alguns pacientes é necessária a abordagem de focos extra-venosos, como apêndice atrial esquerdo, seio coronário e veia cava superior.33 Scanavacca MI, Sosa E. [Catheter ablation of atrial fibrillation: techniques and results]. Arq Bras Cardiol. 2005;85(4):295-301. A ablação de FA é um procedimento complexo, não isento de riscos. Complicações importantes têm sido relatadas, incluindo acidente vascular cerebral, estenose de veias pulmonares e fístula átrio-esofágica.44 Spragg DD, Dalal D, Cheema A, Scherr D, Chilukuri K, Cheng A, et al. Complications of catheter ablation for atrial fibrillation: Incidence and Predictors. J Cardiovasc Electrophysiol. 2008;19(6):627-31.,55 Hindricks G. The Multicentre European Radiofrequency Survey (MERFS): complications of radiofrequency catheter ablation of arrhythmias. The Multicentre European Radiofrequency Survey (MERFS) investigators of the Working Group on Arrhythmias of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 1993;14(12):1644-53. Relatamos aqui um caso de síndrome de veia cava superior após a ablação de FA por radiofrequência.

Relato do caso

Paciente do sexo feminino, 60 anos, portadora de doença pulmonar obstrutiva crônica leve e episódios de pré-síncope, apresentou o primeiro episódio de FA, em julho de 2012 e permaneceu assintomática até janeiro de 2013, quando apresentou novo episódio de FA revertida com amiodarona. Desde então vinha apresentando episódios recorrentes de FA, apesar do uso de amiodarona e betabloqueador. Optou-se por tratamento invasivo da FA (ablação das veias pulmonares), sendo internada para a realização do procedimento. O ecocardiograma transesofágico (ETE), realizado antes da ablação, mostrava dilatação discreta a moderada do átrio esquerdo, valva mitral espessada, com prolapso de ambas as cúspides e refluxo moderado a importante com refluxo tricúspide discreto, e pressão sistólica pulmonar máxima estimada em 46 mmHg; os átrios e respectivos apêndices encontravam-se livres de trombos, com apêndice atrial esquerdo normocontrátil (velocidade do apêndice atrial esquerdo estimada em 0,60m/s); a drenagem venosa pulmonar apresentava topografia normal. O procedimento eletrofisiológico foi realizado de forma habitual, com a paciente sob anestesia geral, e com posicionamento de termômetro esofágico. Após a introdução de 3 cateteres multipolares pela veia femoral, os mesmos foram posicionados no seio coronário e no átrio esquerdo após dupla punção transeptal. A paciente apresentava-se em FA no início do procedimento, sendo submetida a isolamento circunferencial das veias pulmonares utilizando cateter irrigado (Thermocool, Biosense & Webster) e mapeamento com sistema eletroanatômico CARTO®. Durante as aplicações de radiofrequência (RF) nas veias pulmonares direitas, a FA foi revertida para ritmo sinusal. Após o isolamento das veias pulmonares, optou-se pelo isolamento da veia cava superior. As aplicações em veia cava superior foram realizadas utilizando cateter irrigado, com potência de 30w. Essas aplicações foram realizadas de maneira segmentar, guiada por cateter Lasso. O nervo frênico foi mapeado por estimulação com saída elevada e não foram realizadas aplicações nos locais de captura. Após o procedimento, a paciente foi despertada da anestesia e encaminhada para o quarto.

Um dia após o procedimento, a paciente apresentou quadro de edema, rubor de face e edema dos membros superiores. Relatava ainda pressão na cabeça e no pescoço, com exacerbação dos sintomas em posição horizontal e ao abaixar a cabeça, sugerindo clínica de síndrome de veia cava superior (SVCS). Realizado ecocardiograma transtorácico (ETT), que se mostrou semelhante ao pré-procedimento, exceto por apresentar fluxo turbulento na desembocadura da veia cava superior (VCS), com velocidade ao Doppler de 136 cm/s (Figura 1), confirmando a hipótese diagnóstica de SVCS. A paciente foi tratada com hidrocortisona EV seguido de meticorten 60mg ao dia, por 13 dias, com melhora completa dos sintomas, tendo alta hospitalar após 7dias. O ETT realizado ambulatoriamente após 2 semanas não mostrou velocidades aumentadas em VCS (velocidade = 75 cm/s) (Figura 2).

Figura 1
A) Imagem ecocardiográfica em incidência subcostal mostrando fluxo turbulento ao mapeamento de fluxo a cores da VCS, 1 dia após a ablação. B) Traçado da curva de Doppler contínuo mostrando velocidade aumentada na VCS. VCS: veia cava superior.

Figura 2
A) Imagem ecocardiográfica em incidência subcostal mostrando fluxo laminar ao mapeamento de fluxo a cores da VCS, após o tratamento. B) Traçado da curva de Doppler pulsado mostrando velocidade normal na VCS. VCS: veia cava superior.

Um ano depois, a paciente foi submetida a novo procedimento com evidência de reconexão elétrica da veia cava superior e das veias pulmonares, sendo submetida a novo isolamento das veias pulmonares e mapeada taquicardia atrial originada no apêndice atrial esquerdo, sem aplicações na veia cava superior. Não se observou dificuldade na manipulação de cateteres junto à veia cava superior.

Discussão

A SVCS resulta de qualquer condição que leva à obstrução de seu fluxo sanguíneo. A obstrução pode ser causada pela invasão ou compressão externa da VCS por um processo patológico que envolva o lado do pulmão direito, os nódulos linfáticos e outras estruturas do mediastino, ou por trombose no interior da VCS. Em alguns casos, tanto a compressão externa quanto a trombose podem coexistir.66 Gray RJ, Dolmatch BL, Horton KM, Romolo JL, Zarate AR. Migration of Palmaz stents following deployment for venous stenoses related hemodialysis access. J Vasc Interv Radiol. 1994;5(1):117-20.

Mais recentemente, a incidência da SVCS devido à trombose aumentou, principalmente devido ao aumento do uso de dispositivos intravasculares, como cateteres venosos centrais e fios de marca-passo. Atualmente, causas benignas representam 20% a 40% dos casos de SVCS.

A rapidez do início dos sintomas e sinais de obstrução da VCS depende da velocidade com que ocorre a obstrução completa da mesma em relação ao recrutamento de colaterais venosas.

O edema intersticial da cabeça e pescoço é visualmente impressionante, mas geralmente de pouca importância clínica. No entanto, o edema pode limitar o lúmen das vias nasais e da laringe e, potencialmente, comprometer a função da laringe e faringe, causando dispneia, estridor, tosse, rouquidão e disfagia.

As complicações vasculares estão entre os eventos adversos mais comuns relacionados com a ablação de FA, provavelmente devido à necessidade de anticoagulação durante e imediatamente após o procedimento. Essas complicações incluem hematoma nos locais de inserção do cateter, pseudo-aneurisma, fístula arteriovenosa, ou sangramento retroperitoneal.

A oclusão transitória da VCS é rara, sendo relatada após a ablação por cateter de taquicardia sinusal inapropriada,77 Callans DJ, Ren JF, Schwartzman D, Gottlieb CD, Chaudhry FA, Marchlinski FE. Narrowing of the superior vena cava-right atrium junction during radiofrequency catheter ablation for inappropriate sinus tachycardia: analysis with intracardiac echocardiography. J Am Coll Cardiol. 1999;33(6):1667-70. não havendo descrição desta complicacão para ablação de FA até o momento. Presume-se que os mecanismos associados à oclusão venosa induzida por RF estejam relacionados à proliferação intimal, substituição por colágeno do músculo necrótico, contração endovascular e ruptura e espessamento da lâmina elástica interna.88 Fenelon G, Franco M, Arfelli E, Okada M, De Araújo S, De Paola AA. Acute and chronic effects of extensive radiofrequency lesions in the canine caval veins: implications for ablation of atrial arrhythmias. Pacing Clin Electrophysiol. 2006;29(12):1387-94.

Estruturas venosas de menor diâmetro, tais como o seio coronário e as veias pulmonares, podem estar sujeitas a um risco ainda maior de oclusão resultantes de procedimentos de ablação realizados no tecido adjacente.99 Robbins IM, Colvin EV, Doyle TP, Kemp WE, Loyd JE, MacMahon WS. Pulmonary vein stenosis after catheter ablation of atrial fibrillation. Circulation. 1998;98(17):1769-75.

Provavelmente nesta paciente, a aplicação de RF por dentro da veia cava superior, buscando a eliminação desse possível gatilho, fez com que se formasse um edema significativo na junção da VCS com átrio direito. Este edema é mais acentuado na área que recebe a RF, mas também ocorre ao longo de toda a sua circunferência, presumivelmente pela propagação do edema intersticial pelo tecido contíguo. Este edema dos tecidos que resulta no estreitamento da junção VCS e átrio direito pode persistir durante todo o intervalo de tempo do procedimento de ablação, mas parece se resolver dentro de semanas a meses. Estudos em animais demonstraram que o espessamento do tecido atrial direito após a aplicação de RF aumenta com o tempo e persiste por, pelo menos, 150 min.88 Fenelon G, Franco M, Arfelli E, Okada M, De Araújo S, De Paola AA. Acute and chronic effects of extensive radiofrequency lesions in the canine caval veins: implications for ablation of atrial arrhythmias. Pacing Clin Electrophysiol. 2006;29(12):1387-94. Embora não tenha sido observada oclusão completa da VCS nesta paciente, as características do fluxo do Doppler observadas na junção entre a VCS e o átrio direito levam à conclusão de que o tecido edemaciado induzido pela RF seja um mecanismo plausível para esta complicação.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2016
  • Revisado
    28 Jul 2016
  • Aceito
    10 Nov 2016
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