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A hierarquia na vida universitária

PONTO DE VISTA

A hierarquia na vida universitária

Edmar Atik

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP - São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Edmar Atik Rua 13 de Maio, 1954/71 - Bela Vista 01327-002 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: eatik@cardiol.br / conatik@incor.usp.br

Palavras-chave: Hierarquia, universidade, medicina.

Hierarquia refere-se à ordem e à subordinação de poderes, categorias, patentes e dignidade, enfim à ordem de valores estabelecidos ao longo do tempo, em determinada área de atuação humana.

Ela é firmemente obedecida em âmbito eclesiástico e também sob o pensamento militar, estabelecendo-se ordem, obediência, respeito e justiça.

Perde sua importância e efetividade, e certamente não é ela de realce, em determinadas instituições competitivas, nas quais impera principalmente a economia, mas mais recentemente o mesmo tem ocorrido em outras escolas acadêmicas e universitárias.

Devo lembrar que sob essa denominação, além do tempo de atuação em determinada instituição, importam os postos ocupados anteriormente, o currículo científico, a representatividade tanto nacional como internacional adquirida, o reconhecimento de seus pares, e até a participação em entidades sociais e representativas da própria especialidade.

Nas diferentes universidades brasileiras, ao que se permitiu conhecer, por ocasião da ocupação de diversos cargos eletivos, à análise do memorial, acentuava-se antigamente grande importância a esse conjunto hierárquico, representado pela expressão e pela extensão do mesmo.

Assim, o destaque dado pelo currículo científico, por si só, importa muito em vista de que por meio dele qualquer instituição cresce em importância e se torna mais representativa ante os órgãos governamentais, a universidade e a própria sociedade em geral.

A representatividade de cada indivíduo nos cenários nacional e internacional e ainda em sociedades em geral, científicas e sociais, também é de realce, assim como a devida graduação no contexto institucional, dentro dessa análise.

No entanto, mais recentemente, está sendo dada vazão a outros critérios que suplantam essa hierarquia e o próprio currículo, tornando-se a escolha de risco em face de obrigatórias arbitrariedades e até de certo grau de autoritarismo, com nítido predomínio de interesses e de conveniências.

Elimina-se assim o mérito e o exemplo, além das diretrizes gerais que regem uma universidade.

Dessa maneira, pode ser interrompida uma trajetória universitária ética e eficiente, semelhante ao que ocorre com a eliminação de uma carta de baralhos, julgada não desejada, em um determinado período de um jogo passatempo.

Daí exclui-se um aspecto que antigamente movia a admiração de todos, que era o exemplo hierárquico, a expressão do esmero, do trabalho e da figura a ser imitada. Aliás, torna-se oportuno lembrar aqui que essas figuras antigas, omitindo nomes, hoje sim constituem verdadeiros ícones a serem seguidos, e que certamente continuarão sendo ao longo dos tempos.

Essa tradição hoje parece definitivamente interrompida, dadas as indicações indevidas para preenchimento de cargos à base de instâncias políticas e de conveniências, longe das ideologias apregoadas pela própria lógica.

A mudança se torna um risco para o futuro, dado que, além da nítida descaracterização de uma instituição, o esforço que a vida universitária normalmente exige será certamente preterido a favor de outro tipo de vida profissional ou, ainda, do direcionamento às lides políticas na mesma instituição, caminho da obtenção dos objetivos, em detrimento da própria ciência.

Por outro lado, compreende-se que o objetivo principal do corpo diretivo de uma instituição seja o de reger com o respeito devido os interesses de cada um de seus membros, visando à produção científica cada vez mais representativa, o que orientaria à indicação da pessoa que se julga mais adequada para tal escolha. O progresso científico requer essa postura, indiretamente cobrada pela sociedade em geral, esta representando uma cadeia de dependências e de exigências do indivíduo, da família e do próprio governo.

Nesta avaliação, fugindo do contexto hierárquico, chega-se a perguntar se na ocupação atual dos cargos procura-se estabelecer controvérsias por meio da renovação de valores, talvez para que não haja acomodação das pessoas, caso se obedeça à seqüência temporal.

A preferência por pessoas até mais jovens, no entanto, em cargos praticamente vitalícios, além de eliminar maior rotatividade dos membros que poderiam ocupá-los, quando se favorece o mais jovem, elimina dessa maneira a inestimável ajuda da experiência do de maior idade.

Além disso, essa tática polêmica, de imaginação de uma mobilização maior em direção ao progresso, cria incerteza natural entre as pessoas de um grupo de atuação, com dificuldades de reintegração de todos, pelo menos no início da alteração imposta. O convívio é sensivelmente alterado, pois as emoções necessitam de acomodação suficiente entre todas as pessoas para que o equilíbrio volte a imperar.

A tese, se correta, de mobilização em prol do progresso gera assim ambiente misturado de angústia, de revolta e de incertezas, que pode funcionar ao contrário, provocando desunião e estagnação. Tudo isso é gerado por ares de injustiça e de ilegalidade, dado que, em ambiente produtivo de trabalho, a paz e o amor obrigatoriamente se acompanham da justiça. Em suma, essa tese adotada não obedece aos ditames que regem o comportamento ético, humano e institucional.

Nesse contexto, a instituição sofre prejuízos por mudanças de diretrizes até então bem estabelecidas e norteadas, que, alimentando idéias, apesar de novas, interrompem e retrocedem o caminho percorrido e a perspectiva futura.

Assim, mal sabem que o demérito pretendido recai também sobre todos os responsáveis, passando a ser cúmplices da ilegalidade e da arbitrariedade. As conseqüências são inevitáveis e, como em uma cadeia, afetam a todos da comunidade, originando um mal social, grande o suficiente a influir até o âmago da sociedade, a própria família.

Aliás, lembro com pesar de que a sensação da injustiça não é agradável, ela entra no seu eu de maneira intrusa e agressiva e procura mascarar todos os seus feitos e realizações. Passam estas a ser questionadas a um ponto que se inicia a dimensioná-las. O valor delas certamente passa a ser minimizado.

Tudo isso é agravado pelo silêncio da maioria da comunidade, como se não se importasse com o inevitável. No entanto, esse silêncio é regido por outros interesses individuais, escusos e mesquinhos, ao contrário da procura do fortalecimento de uma ideologia universitária calcada na verdade.

No entanto, acaba-se percebendo, por observações alheias, principalmente de pessoas a você ligadas por lides científicas, fora da instituição, que sua trajetória e seu esforço foram válidos dada a representatividade adquirida através do tempo.

O alento adquire respaldo na verdade de seu eu.

Por isso, apesar de ainda hoje a conveniência política prevalecer ao mérito e ao exemplo, mesmo em instituições acadêmicas, o ritmo apaixonante do saber mostra-se sempre célere. Daí a continuidade de ações, apesar do ímpeto inicial se mostrar arrefecido. A vontade da demonstração da superioridade orienta à continuidade.

Enfim, os critérios existem, mas são de realce como argumentos a favor ou contra, caso a conveniência requeira. Esta sim é o fiel da balança.

A universidade assim vai sendo regida na verdade por deturpações sentimentais, tais como inveja e ciúme, que prevalecem em indicações arbitrárias, em detrimento ao exemplo e ao mérito.

Dessa maneira, o prejuízo passa a ser de todos.

Não deixe jamais que os que se proclamam árbitros soberanos do mundo oponham sua potência aos desejos e anseios verdadeiros de cada cidadão.

A repetida desobediência à hierarquia, estopim de outras incorreções, custou grandes prejuízos ao Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, desde o ano de 2000, exteriorizados no todo por uma economia deficitária. Daí houve um abalo profundo da credibilidade da instituição, conquistada aliás com o sacrifício desmedido de tantos e tantos que se dedicaram ao longo do tempo, desde sua criação em 1976, idealizadores, fundadores e seguidores.

Em administrações equivocadas, os atos falhos se sucedem e de maneira progressiva, guiados talvez por um poder exagerado, o qual induz a uma soberba tal, que, por sua vez, chega a ofuscar até a própria competência, indispensável e inerente ao cargo.

Doce é passar a vida em meio a esperanças confiantes, alimentadas pela justiça, e só assim é possível ao coração nutrir-se de alegrias radiosas.

Como a beleza não está ligada à perfeição, mas à verdade, não se teme o que Ésquilo, um dos criadores da tragédia grega, já ensinava 470 anos antes de Cristo, no ensaio Prometeu Acorrentado: "Tu que és tão arguto, não sabes que palavras imprudentes sempre atraem castigos?".

Verdade que para mim é doloroso falar, mas é igualmente doloroso calar.

Artigo recebido em 14/05/07; aceito em 30/05/07.

  • Correspondência:

    Edmar Atik
    Rua 13 de Maio, 1954/71 - Bela Vista
    01327-002 - São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008
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