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Influência comportamental da predição de risco no processo de decisão do cardiologista: o paradoxo do Escore GRACE

Resumo

Fundamento:

Cientistas behavioristas ressaltam consistentemente que conhecimento não influencia decisão como esperado. O escore GRACE é um modelo de risco bem validado para prever morte de pacientes com síndromes coronarianas agudas (SCA). Todavia, não se sabe se a avaliação prognóstica pelo GRACE modula decisão médica.

Objetivo:

Testar a hipótese de que a utilização de escore de risco validado racionaliza a escolha de estratégias invasivas para pacientes de alto risco com SCA sem supradesnivelamento do segmento ST.

Métodos:

Pacientes com SCA foram consecutivamente incluídos neste registro prospectivo. O escore GRACE foi rotineiramente utilizado pelos cardiologistas como modelo de risco prognóstico. Estratégia invasiva foi definida como decisão imediata de cinecoronariografia, que na conservadora só era indicada se teste não invasivo positivo ou curso instável. Primeiro, avaliamos a associação entre GRACE e invasividade; segundo, a fim de descobrir atuais determinantes da estratégia invasiva, construímos um modelo de propensão para ela. Foi considerado significante um valor de p < 0,05 para esta análise.

Resultados:

Em amostra de 570 pacientes, estratégia invasiva foi adotada para 394 (69%). O escore GRACE foi de 118 ± 38 para o grupo invasivo, semelhante a 116 ± 38 do conservador (p = 0,64). O escore de propensão para estratégia invasiva foi derivado da regressão logística: troponina positiva e desvio de ST (associações positivas) e hemoglobina (associação negativa). Esse escore predisse estratégia invasiva com estatística-c de 0,68 (IC95%: 0,63-0,73), contrariando o Escore GRACE (AUC 0,51; IC95%: 0,47-0,57).

Conclusão:

A dissociação observada entre o valor do Escore GRACE e decisão invasiva em SCA sugere que o pensamento probabilístico pode não ser um importante determinante da decisão médica.

Palavras-chave:
Síndrome Coronariana Aguda; Prognóstico; Infarto do Miocárdio Sem Supradesnivelamento do Segmento ST

Abstract

Background:

Behavioral scientists consistently point out that knowledge does not influence decisions as expected. GRACE Score is a well validated risk model for predicting death of patients with acute coronary syndromes (ACS). However, whether prognostic assessment by this Score modulates medical decision is not known.

Objective:

To test the hypothesis that the use of a validated risk score rationalizes the choice of invasive strategies for higher risk patients with non-ST-elevation ACS.

Methods:

ACS patients were consecutively included in this prospective registry. GRACE Score was routinely used by cardiologists as the prognostic risk model. An invasive strategy was defined as an immediate decision of the coronary angiography, which in the selective strategy was only indicated in case of positive non-invasive test or unstable course. Firstly, we evaluated the association between GRACE and invasiviness; secondly, in order to find out the actual determinants of the invasive strategy, we built a propensity model for invasive decision. For this analysis, a p-value < 0.05 was considered as significant.

Results:

In a sample of 570 patients, an invasive strategy was adopted for 394 (69%). GRACE Score was 118 ± 38 for the invasive group, similar to 116 ± 38 for the selective group (p = 0.64). A propensity score for the invasive strategy was derived from logistic regression: positive troponin and ST-deviation (positive associations) and hemoglobin (negative association). This score predicted an invasive strategy with c-statistics of 0.68 (95%CI: 0.63-0.73), opposed to GRACE Score (AUC 0.51; 95%CI: 0.47-0.57).

Conclusion:

The dissociation between GRACE Score and invasive decision in ACS suggests that the knowledge of prognostic probabilities might not determine medical decision.

Keywords:
Acute Coronary Syndrome; Prognosis; Non-ST Elevation Myocardial Infarction

Introdução

O paradoxo risco-tratamento é um fenômeno comum em que, ao contrário do que se espera, pacientes com maior risco recebem tratamento menos agressivo quando comparados com indivíduos de menor risco.11 McAlister FA. The end of the risk-treatment paradox? a rising tide lifts all boats. J Am Coll Cardiol. 2011;58(17):1766-7. Uma das causas desse paradoxo é uma avaliação equivocada do risco baseada na impressão intuitiva do médico. Os modelos de risco probabilístico mostraram-se mais precisos que o julgamento intuitivo, sugerindo que o uso desses modelos teoricamente facilita a escolha do tratamento baseado no prognóstico.22 Yan AT, Yan RT, Tan M, Casanova A, Labinaz M, Sridhar K, et al. Risk scores for risk stratification in acute coronary syndromes: Useful but simpler is not necessarily better. Eur Heart J. 2007;28(9):1072-8.

3 Yan AT, Yan RT, Huynh T, Casanova A, Raimondo FE, Fitchett DH, et al. Understanding physicians' risk stratification of acute coronary syndromes: insights from the Canadian ACS 2 Registry. Arch Intern Med. 2011;169(4):372-8.
-44 Weintraub WS. Prediction scores after myocardial infarction: value, limitations, and future directions. Circulation. 2002;106(18):2292-3.

No entanto, cientistas comportamentais demonstraram que o conhecimento não modula as decisões como esperado.55 De Bondt WFM, Thaler R. Does the stock market overreact? J Finance. 1985;40(3):793-805. Em economia, as pessoas tendem a tomar decisões irracionais, o que não é diferente em questões relacionadas com a saúde. Por exemplo, sabe-se bem que o tabagismo ou a obesidade são fatores de risco para doenças graves, mas hábitos de fumar ou comer de maneira inadequada são comuns. Portanto, não se sabe se o uso de um escore de risco realmente modula a decisão do médico.

As síndromes coronarianas agudas (SCA) sem supradesnivelamento do segmento ST apresentam um amplo espectro de riscos, e os pacientes podem ser tratados de maneira conservadora ou agressiva.66 Task Force for Diagnosis and Treatment of Non-ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndromes of European Society of Cardiology, Bassand JP, Hamm CW, Ardissino D, Boersma E, Budaj A, et al. Guidelines for the diagnosis and treatment of non-ST-segment elevation acute coronary syndromes. Eur Heart J. 2007;28(13):1598-660.,77 Amsterdam EA, Wenger NK, Brindis RG, Casey DE Jr, Ganiats TG, Holmes DR Jr, et al. 2014 AHA/ACC Guideline for the Management of Patients with Non-ST-Elevation Acute Coronary Syndromes: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guideline. J Am Coll Cardiol. 2014;64(24):e139-228. Esse é um dos principais cenários clínicos em que o paradoxo risco-tratamento foi descrito.88 Roe MT, Peterson ED, Newby LK, Chen AY, Pollack CV Jr, Brindis RG, et al. The influence of risk status on guideline adherence for patients with non-ST-segment elevation acute coronary syndromes. Am Heart J. 2006;151(6):1205-13. Embora o Escore GRACE seja um modelo de risco bem validado para pacientes com SCA, seu impacto real em fornecer uma abordagem mais razoável de acordo com o risco, e em sua relação com o julgamento médico, ainda não foi demonstrado.99 Granger CB, Goldberg RJ, Dabbous O, Pieper KS, Eagle KA, Cannon CP, et al. Predictors of hospital mortality in the global registry of acute coronary events.. Arch Intern Med. 2003;163(19):2345-53.,1010 GRACE Investigators. Rationale and design of the GRACE (Global Registry Of Acute Coronary Events) Project: a multinational registry of patients hospitalized with acute coronary syndromes. Am Heart J. 2001;141(2):190-9. Nosso objetivo foi testar a hipótese de que a utilização de um escore de risco racionaliza a escolha de estratégias invasivas para pacientes de alto risco com síndrome coronariana aguda sem supradesnivelamento do segmento ST.

Métodos

Seleção de amostra

Pacientes internados consecutivamente na unidade coronariana (UCC) de um hospital terciário devido a síndromes coronárias agudas sem supradesnivelamento do segmento ST foram incluídos no estudo entre agosto de 2007 e outubro de 2014. Os critérios de inclusão foram desconforto torácico típico associado a pelo menos 1 dos 3 critérios objetivos: alterações eletrocardiográficas que consistiam em depressão transitória do segmento ST (0,05 mV) ou inversão da onda T (0,1 mV); alteração da troponina para um nível acima do limite do percentil 99 de uma população de referência saudável, com coeficiente de variabilidade de 10%;1111 Apple FS, Quist HE, Doyle PJ, Otto AP, Murakami MM. Plasma 99th percentile reference limits for cardiac troponin and creatine kinase MB mass for use with European Society of Cardiology/American College of Cardiology consensus recommendations. Clin Chem. 2003;49(8):1331-6. ou documentação prévia de doença arterial coronariana, definida como história definitiva de infarto do miocárdio ou obstrução coronariana ≥ 50% na angiografia. A escolha do paciente por não participar do Registro foi o único critério de exclusão. Todos os participantes forneceram consentimento informado por escrito.

Protocolo de estudo

Os pacientes incluídos foram classificados como estratégias invasivas ou seletivas de acordo com a decisão médica. A estratégia de manejo foi decidida pela equipe de cardiologia na UCC e não foi influenciada pelo protocolo do estudo. A estratégia invasiva foi definida prospectivamente pela decisão de realizar cinecoronariografia invasiva, seguida de procedimento de revascularização, se anatomicamente indicado. A estratégia seletiva foi definida como uma indicação de angiografia condicionada a um teste não invasivo positivo ou instabilidade clínica.

O Escore GRACE foi utilizado para avaliação do risco basal, definido pelos tercis do estudo original (baixo risco: 1-108; risco intermediário: 109-140; alto risco: 141-372). Morte durante a hospitalização foi o desfecho de interesse.

Análise estatística

A fim de avaliar se o risco em momento basal influenciou a decisão do médico em relação à estratégia de manejo, o Escore GRACE foi comparado entre os grupos submetidos à estratégia invasiva versus estratégia seletiva pela estatística de Mann-Whitney. Em segundo lugar, a fim de compreender os determinantes da decisão médica, a regressão logística foi utilizada para avaliar os preditores independentes da estratégia invasiva. A seleção das variáveis para essa análise baseou-se na associação univariada com a estratégia invasiva (p < 0,10). Um escore de propensão para a estratégia invasiva foi derivado da regressão logística. Em terceiro lugar, para avaliar se a decisão médica foi corretamente impulsionada pelo prognóstico, o valor do escore de propensão para predizer morte durante a hospitalização foi testado pela estatística-C (área sob a curva ROC). A estatística-C do escore de propensão foi comparada com a estatística-c do Escore GRACE pelo teste de Hanley-Mcneil.

A análise da normalidade foi realizada por meio da combinação de histograma e visualização de gráficos Q-Q, descrição de assimetria e curtose com intervalos de confiança e testes de normalidade (Shapiro-Wilk e Kolmogorov-Smirnov). As variáveis numéricas foram expressas por médias (desvio padrão) ou medianas (intervalo interquartílico) e comparadas pelo teste t de Student não pareado ou teste de Mann-Whitney. As variáveis categóricas foram descritas por frequência e comparadas pelo teste do qui-quadrado de Pearson, ou teste exato de Fisher. A significância estatística final foi definida por um p < 0,05. O SPSS Statistical Software (Version 21, SPSS Inc., Chicago, Illinois, USA) foi utilizado para a análise de dados.

Resultados

Foi estudada uma amostra de 570 pacientes consecutivos internados com SCA sem supradesnivelamento do segmento ST, com idade de 69 ± 14 anos, sendo 50% do sexo masculino. O Escore GRACE apresentou distribuição normal, com média de 118 ± 38. De acordo com a definição do GRACE, 46% dos pacientes foram definidos como de baixo risco, 30% como risco intermediário e 24% como de alto risco. O manejo por meio de uma estratégia invasiva ocorreu em 69% dos pacientes.

O escore GRACE de pacientes submetidos à estratégia invasiva foi de 118 ± 38, semelhante aos pacientes tratados de maneira conservadora (116 ± 38; p = 0,64). Aparentemente, a área sob a curva ROC para o escore GRACE que prevê uma estratégia invasiva não foi significativa (0,51; IC95% = 0,47 - 0,57; p = 0,51) - Figura 1A. Não houve diferença na frequência da estratégia invasiva entre os pacientes com risco baixo, intermediário e alto de acordo com o GRACE (68%, 77%, 73%, respectivamente; p = 0,48).

Figura 1
De acordo com a área sob a curva, o Escore GRACE não prevê uma estratégia invasiva, ao contrário do escore de propensão (Painel A, p < 0,001 para comparação de curvas). Por outro lado, o escore GRACE é melhor do que o Escore de propensão para a predição de mortalidade (Painel B, p < 0,001).

A Tabela 1 mostra a associação univariada entre as características dos pacientes e as estratégias de manejo. Entre as variáveis do GRACE, a classe de Killip, a pressão arterial sistólica, a frequência cardíaca e a creatinina não apresentaram associação com a estratégia escolhida. Ao contrário, troponina positiva (OR = 2,7; IC 95% = 1,8 - 3,8; p < 0,001), desvio de ST (OR = 2,0; IC 95% = 1,2 - 3,2; p = 0,006), e o valor numérico de hemoglobina na admissão (OR = 1,2; IC95% = 1,1 - 1,4; p < 0,001) predisseram uma estratégia invasiva. Por outro lado, a idade como variável numérica teve relação inversa com a estratégia invasiva (OR = 0,98; IC95% = 0,97-0,99; p < 0,013). Finalmente, o risco de sangramento de acordo com o Escore CRUSADE foi protetor contra estratégia invasiva (OR = 0,98; IC95% = 0,97-0,99; p < 0,018).

Tabela 1
Análise exploratória de variáveis associadas à estratégia

Um modelo de regressão logística foi usado para construir um escore de propensão para a estratégia invasiva. As 5 variáveis associadas à estratégia invasiva em uma análise univariada foram incluídas. Troponina positiva (OR = 2,5; IC95% = 1,7 - 3,7; p < 0,001), desvio do ST (OR = 1,8; IC 95% = 1,1 - 3,1; p = 0,026) e hemoglobina na admissão permaneceram positivamente associados (OR = 1,2; IC de 95% = 1,1 - 1,4; p < 0,001). Idade e Escore CRUSADE perderam significância estatística (p = 0,09 e 0,29, respectivamente) - Tabela 2. Este modelo de propensão foi estatisticamente significativo (qui-quadrado = 48; p < 0,001; R2 = 0,2), calibrado (H-L c2 = 12; p = 0,17), e teve uma área sob a curva ROC (AUC) de 0,68 (IC 95% = 0,63 - 0,73; p < 0,001) para predizer uma estratégia invasiva. Esta AUC foi significativamente melhor que a área do Escore GRACE para a previsão da estratégia (p < 0,001) - Figura 1A.

Tabela 2
Regressão logística: associações univariadas e multivariadas entre as variáveis preditivas do candidato e a estratégia invasiva

Um modelo secundário foi construído apenas com variáveis comumente utilizadas como parte de um perfil de risco em pacientes com SCA. Neste modelo, hemoglobina e CRUSADE não foram incluídos, tornando a idade um preditor independente associado de estratégia invasiva e troponina positiva e desvio de ST positivamente associados à estratégia invasiva - Tabela 2.

A incidência de morte durante a internação foi de 5,1% (29 indivíduos). O Escore GRACE previu mortalidade com precisão, com uma AUC de 0,87 (IC 95% = 0,80 - 0,94; p < 0,001). O escore de propensão para estratégia invasiva também predisse mortalidade (AUC = 0,64; IC95% = 0,56 - 0,72), mas teve uma acurácia menor em comparação com o escore GRACE (p < 0,001) - Figura 1B.

Discussão

O presente estudo encontrou uma dissociação entre o risco previsto por um modelo probabilístico e a escolha do médico em relação à estratégia invasiva em pacientes com SCA sem supradesnivelamento do segmento ST. O Escore GRACE foi o modelo probabilístico utilizado nesta análise, uma ferramenta bem validada e acurada para a predição de morte em SCA.99 Granger CB, Goldberg RJ, Dabbous O, Pieper KS, Eagle KA, Cannon CP, et al. Predictors of hospital mortality in the global registry of acute coronary events.. Arch Intern Med. 2003;163(19):2345-53.,1010 GRACE Investigators. Rationale and design of the GRACE (Global Registry Of Acute Coronary Events) Project: a multinational registry of patients hospitalized with acute coronary syndromes. Am Heart J. 2001;141(2):190-9. O estudo ocorreu em um ambiente cuja equipe de médicos tem o dever de calcular o Escore GRACE para estratificação de risco e tomada de decisão. Apesar disso, o Escore GRACE não foi maior em indivíduos submetidos a uma estratégia invasiva, em comparação com pacientes de estratégia seletiva. Nossas descobertas reproduzem experimentos científicos comportamentais em que as decisões não são bem orientadas pelo conhecimento.55 De Bondt WFM, Thaler R. Does the stock market overreact? J Finance. 1985;40(3):793-805.

Ao contrário do Escore GRACE, algumas características dos pacientes foram independentemente associadas à decisão e foram utilizadas para construir um escore de propensão para a estratégia invasiva. Este escore teve valor prognóstico menor que o Escore GRACE. Portanto, encontramos um paradoxo em que as variáveis que determinaram uma abordagem invasiva tiveram uma associação mais fraca com o prognóstico em comparação com um modelo prognóstico real que não estava relacionado com essa decisão.

Nossos achados estão de acordo com evidências anteriores de dissociação entre risco e intensidade de tratamento, o chamado paradoxo risco-tratamento.1212 Birkemeyer R, Schneider H, Rillig A, Ebeling J, Akin I, Kische S, et al. Do gender differences in primary PCI mortality represent a different adherence to guideline recommended therapy? a multicenter observation. BMC Cardiovasc Disord. 2014 Jun 2;14:71.

13 Mehilli J, King L. Risk-treatment paradox in women with symptomatic coronary artery disease. Clin Res Cardiol Suppl. 2013;8(suppl 1):20-4.
-1414 Wimmer NJ, Resnic FS, Mauri L, Matheny ME, Piemonte TC, Pomerantsev E, et al. Risk-treatment paradox in the selection of transradial access for percutaneous coronary intervention. J Am Heart Assoc. 2013;2(3):e000174. Esse fenômeno ocorre quando o manejo tem uma relação risco/benefício, e o tamanho do efeito benéfico correlaciona-se com o risco de consequências não intencionais. Nesse caso, os indivíduos que mais necessitam do tratamento são aqueles que mais desencorajam a decisão do médico.1515 Pierson DJ. Translating evidence into practice Respir Care. 2009;54(10):1386-401. Por exemplo, idades mais avançadas foram associadas a uma estratégia mais conservadora, apesar de serem os preditores de risco mais importantes no Escore GRACE.1616 Ko DT, Mamdani M, Alter DA. Lipid-lowering therapy with statins in high-risk elderly patients: the treatment-risk paradox. Jama. 2004;291(15):1864-70.,1717 Alexander KP, Newby LK, Armstrong PW, Cannon CP, Gibler WB, Rich MW, et al. Acute coronary care in the elderly, part II: ST-segment-elevation myocardial infarction: a scientific statement for healthcare professionals from the American Heart Association Council on Clinical Cardiology: in collaboration with the Society of Geriatric Cardiology. Circulation. 2007;115(19):2570-89.

Tradicionalmente, o julgamento médico baseia-se na intuição e na experiência, a chamada gestalt. Esse método não estruturado de decisão é vulnerável ao viés cognitivo.1818 Croskerry P. From mindless to mindful practice -- cognitive bias and clinical decision making. N Engl J Med. 2013;368(26):2445-8.,1919 Hall KH. Reviewing intuitive decision-making and uncertainty: the implications for medical education. Med Educ. 2002;36(3):216-24. Possivelmente, em pacientes idosos, um tipo de visão niilista faz com que o sentido de risco ultrapasse o sentido do efeito benéfico, ao mesmo tempo em que há mais entusiasmo em relação aos jovens, o que faz com que o sentido de benefício supere o sentido de risco. A utilização de um modelo probabilístico tende a evitar sub ou superestimativa de probabilidades devido ao viés cognitivo. Em vez disso, possibilita quantificar e equilibrar a relação risco/benefício. Em segundo lugar, está comprovado em diferentes cenários que a estimativa de probabilidades sob incerteza é mais precisa quando se utiliza um modelo probabilístico em vez de gestalt.1919 Hall KH. Reviewing intuitive decision-making and uncertainty: the implications for medical education. Med Educ. 2002;36(3):216-24. Na verdade, nas SCA, o Escore GRACE mostrou ter maior precisão do que a opinião do médico.2020 Grove WM, Zald DH, Lebow BS, Snitz BE, Nelson C. Clinical versus mechanical prediction: a meta-analysis. Psychol Assess. 2000;12(1):19-30.,2121 Pieper KS, Gore JM, FitzGerald G, Granger CB, Goldberg RJ, Steg G, et al. Validity of a risk-prediction tool for hospital mortality: the Global Registry of Acute Coronary Events. Am Heart J. 2009;157(6):1097-105. Nossos dados validam esse conceito, uma vez que o Escore GRACE foi mais preciso em relação ao escore de propensão para invasividade.

No entanto, uma relutância mental de especialistas em utilizar um modelo matemático, em detrimento do julgamento não estruturado, foi relatada.2222 Manfrini O, Bugiardini R. Barriers to clinical risk scores adoption. Eur Heart J. 2007;28(9):1045-6. Nossa observação é peculiar porque surge de um ambiente no qual o Escore GRACE é sistematicamente calculado e registrado no prontuário. Apesar disso, os médicos não parecem ser influenciados pelo modelo preditivo, um fenômeno ilustrado pelo Escore GRACE, sendo praticamente idêntico em grupos invasivos e não invasivos. Pode-se achar natural que os médicos, por vezes, rejeitem o Escore GRACE com base nas individualidades e preferências dos pacientes. Entretanto, isso não deve ser frequente o suficiente para atenuar totalmente o contraste de risco entre os grupos seletivo e invasivo.

Em nossas observações, troponina positiva e desvio de ST foram preditores independentes de estratégia invasiva. Ambos fazem parte das 8 variáveis do Escore GRACE, que não foram associadas à decisão. Isso pode ser uma indicação de que a decisão médica tende a ser mais univariada do que multivariada, mais determinista do que probabilística.1414 Wimmer NJ, Resnic FS, Mauri L, Matheny ME, Piemonte TC, Pomerantsev E, et al. Risk-treatment paradox in the selection of transradial access for percutaneous coronary intervention. J Am Heart Assoc. 2013;2(3):e000174. Provavelmente, uma troponina positiva ou um desvio de ST os levaria a optar pela estratégia invasiva, ao contrário de uma abordagem probabilística multivariada. Além disso, em nosso primeiro modelo, a baixa hemoglobina foi independentemente associada a uma estratégia mais conservadora. Considerando que a hemoglobina não é um marcador prognóstico tradicional, ela pode estar atuando como um representante para um paciente mais frágil ou com mais comorbidades.

A limitação do nosso estudo é a generalização de uma única UCC. Na verdade, utilizamos nossa Unidade como modelo para testar a hipótese de que o uso do Escore GRACE influencia a decisão em direção a uma abordagem mais agressiva. Embora nosso estudo não deva ser generalizado como uma demonstração de que a tomada de decisão não foi adequadamente baseada em risco, ele é uma evidência de que a utilização de um modelo de risco não garante uma decisão baseada em risco. Além disso, nossa observação está de acordo com evidências anteriores de paradoxo risco-tratamento.1414 Wimmer NJ, Resnic FS, Mauri L, Matheny ME, Piemonte TC, Pomerantsev E, et al. Risk-treatment paradox in the selection of transradial access for percutaneous coronary intervention. J Am Heart Assoc. 2013;2(3):e000174.,2323 Motivala AA, Cannon CP, Srinivas VS, Dai D, Hernandez AF, Peterson ED, et al. Changes in myocardial infarction guideline adherence as a function of patient risk: an end to paradoxical care? J Am Coll Cardiol. 2011;58(17):1760-5. Finalmente, nossos achados apenas geram hipóteses a serem mais validadas por um ensaio clínico, no qual os indivíduos seriam alocados para a utilização ou não utilização do Escore GRACE e a frequência da estratégia invasiva seria comparada entre os grupos.

Conclusão

A dissociação observada entre o valor do Escore GRACE e decisão invasiva em SCA sugere que o pensamento probabilístico pode não ser um importante determinante da decisão médica.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital São Rafael sob o número de protocolo 35/11. Todos os procedimentos envolvidos nesse estudo estão de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013. O consentimento informado foi obtido de todos os participantes incluídos no estudo".

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2018
  • Revisado
    28 Ago 2018
  • Aceito
    19 Set 2018
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