Acessibilidade / Reportar erro

Mobilização total do seio urogenital para tratamento da genitália ambígua em crianças com hiperplasia adrenal congênita

Total urogenital sinus mobilization in the repair of ambiguous genitalia in children with congenital adrenal hyperplasia

Resumos

A abordagem cirúrgica das pacientes com hiperplasia adrenal congênita (HAC) é um desafio e envolve controvérsias. O objetivo deste estudo é avaliar os resultados da correção da genitália em 10 crianças 46 XX com HAC, pela técnica de mobilização total do seio urogenital (MUT), em tempo único. A idade, por ocasião do tratamento cirúrgico, variou de 11 a 78 meses (média= 32 meses) e o seguimento pós-operatório de 15 a 36 meses (média= 26 meses). O aspecto estético foi considerado bom em 7, com uretra e vagina bem exteriorizados no vestíbulo, e satisfatório em 3. Após o acompanhamento médio de 26 meses, a técnica de MUT, por via perineal, sem divisão do reto, se mostrou eficaz para o tratamento da genitália ambígua em crianças com HAC.

Criança; Genitália ambígua; Hiperplasia adrenal congênita; Seio urogenital; Vaginoplastia


The surgical approach to patients with congenital adrenal hyperplasia (CAH) has been a challenge and it is still controversial. The aim of this study was to review 10 children with 46,XX CAH who underwent one-stage total urogenital sinus mobilization (TUM). Age at operation ranged from 11 to 78 months (mean= 32) and the follow-up from 15 to 36 months (mean= 26). Cosmetic results were good in 7 patients and satisfactory in 3. After a mean follow-up of 26 months, our results showed that TUM was a good option to repair ambiguous genitalia in children with CAH.

Children; Ambiguous genitalia; Congenital adrenal hyperplasia; Urogenital sinus; Vaginoplasty


ARTIGO ORIGINAL

Mobilização total do seio urogenital para tratamento da genitália ambígua em crianças com hiperplasia adrenal congênita

Total urogenital sinus mobilization in the repair of ambiguous genitalia in children with congenital adrenal hyperplasia

Luís Henrique P. BragaI; Ivani Novato SilvaII; Edson Samesima TatsuoI

IServiço de Cirurgia Pediátrica, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG

IIDivisão de Endocrinologia Pediátrica, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Luís Henrique Perocco Braga Av. Pasteur 40 / 406 30150-290 Belo Horizonte, MG E-mail: wrbraga.bhz@terra.com.br

RESUMO

A abordagem cirúrgica das pacientes com hiperplasia adrenal congênita (HAC) é um desafio e envolve controvérsias. O objetivo deste estudo é avaliar os resultados da correção da genitália em 10 crianças 46 XX com HAC, pela técnica de mobilização total do seio urogenital (MUT), em tempo único. A idade, por ocasião do tratamento cirúrgico, variou de 11 a 78 meses (média= 32 meses) e o seguimento pós-operatório de 15 a 36 meses (média= 26 meses). O aspecto estético foi considerado bom em 7, com uretra e vagina bem exteriorizados no vestíbulo, e satisfatório em 3. Após o acompanhamento médio de 26 meses, a técnica de MUT, por via perineal, sem divisão do reto, se mostrou eficaz para o tratamento da genitália ambígua em crianças com HAC.

Descritores: Criança; Genitália ambígua; Hiperplasia adrenal congênita; Seio urogenital; Vaginoplastia

ABSTRACT

The surgical approach to patients with congenital adrenal hyperplasia (CAH) has been a challenge and it is still controversial. The aim of this study was to review 10 children with 46,XX CAH who underwent one-stage total urogenital sinus mobilization (TUM). Age at operation ranged from 11 to 78 months (mean= 32) and the follow-up from 15 to 36 months (mean= 26). Cosmetic results were good in 7 patients and satisfactory in 3. After a mean follow-up of 26 months, our results showed that TUM was a good option to repair ambiguous genitalia in children with CAH.

Keywords: Children; Ambiguous genitalia; Congenital adrenal hyperplasia; Urogenital sinus; Vaginoplasty

A HIPERPLASIA ADRENAL CONGÊNITA (HAC) é a causa mais freqüente de genitália ambígua. O diagnóstico deve ser precoce para possibilitar a adequada reposição de corticóides, a definição do sexo e a correção cirúrgica da genitália. O tratamento cirúrgico das crianças 46 XX com HAC e genitália ambígua visa tornar a aparência da genitália feminina, manter o esvaziamento vesical adequado, sem incontinência e infecção, e promover condições para atividade sexual e reprodutiva na vida adulta (1,2). A reconstrução da genitália na criança com HAC é difícil, especialmente quando a confluência uretrovaginal é alta. A intervenção cirúrgica em dois tempos ou tardia vem sendo usada há anos e é defendida por diversos autores (3-8). No entanto, depois que Peña (9) descreveu o abaixamento da uretra e da vagina, em bloco, para o tratamento da cloaca, o que denominou de mobilização total do seio urogenital ou mobilização urogenital total (MUT), Rink e cols. (10,11) e Rink (12) utilizaram este procedimento para correção da genitália, em tempo único, precoce, em crianças com HAC. Modificando a técnica original, eles conseguiram reduzir o tempo cirúrgico e melhorar os resultados da genitoplastia. Como é uma operação relativamente recente, as séries publicadas são pequenas e o tempo de seguimento, curto. O presente estudo se refere ao tratamento cirúrgico da genitália ambígua em 10 crianças com HAC, pela técnica de MUT, e à avaliação dos resultados, do ponto de vista estético e da continência urinária.

PACIENTES E MÉTODOS

Esse estudo incluiu 10 pacientes com HAC, por deficiência de 21-hidroxilase, acompanhadas na Divisão de Endocrinologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG, submetidos à correção cirúrgica do seio urogenital (SUG) através da técnica de MUT, no período de novembro de 2001 a março de 2003 (figura 1). As crianças foram distribuídas em grupos de acordo com o grau de virilização da genitália externa, segundo a classificação de Prader (13):


Assim, 2 crianças eram do tipo III (figura 2), 6 do IV (figura 3) e 2 do V (figura 4).




A cistoscopia foi feita em todas as pacientes, no pré-operatório imediato. O comprimento do SUG foi menor que 3cm em 5 crianças e maior ou igual a 3cm nas demais, sendo que, numa destas, a vagina estava situada acima do esfíncter urinário. Nas meninas com SUG > 3cm, foi utilizado o cateter de Fogarty intravaginal. A posição de litotomia foi adotada em 9 casos e a laparotomia foi necessária numa criança com vagina hipoplásica. As características gerais das crianças estão resumidas na tabela 1.

O procedimento foi iniciado com uma incisão circular em torno do orifício do SUG, que se prolongou longitudinalmente em direção ao ânus. Esta incisão terminava no vértice de outra incisão semicircular, isto é, ela se fundia com o retalho em U invertido que havia sido confeccionado. A mobilização do SUG iniciou-se com a colocação de vários pontos de reparo de vicryl 5-0 na borda do seio. A dissecção avançou em profundidade, primeiramente, no plano posterior, anteriormente ao reto. Algumas vezes foi necessária a colocação de vela de Hegar na sua luz para melhor identificá-lo e evitar lesão de sua parede. No plano anterior, a dissecção estendeu-se até o espaço retropúbico. Nesse momento, o SUG estava amplamente mobilizado e o complexo esfincteriano foi identificado. Em torno de 2,5cm a 3,5cm de mobilização do SUG foram necessários para se atingir a confluência uretrovaginal em 9 dos 10 casos. Em 3 crianças com HAC tipo IV e em uma com tipo V, a dissecção prosseguiu até que o balonete do cateter de Fogarty fosse palpado posteriormente. A parede vaginal posterior foi, então, aberta, permitindo a entrada de um afastador maleável como na técnica de Rink (12).

Nas 5 meninas com comprimento do SUG até 3cm (2 tipo III e 3 tipo IV), conseguiu-se trazer a confluência uretrovaginal até a superfície do vestíbulo, sem dificuldade. Não houve necessidade de separar a vagina da uretra. Os dois orifícios ficaram exteriorizados no períneo. A extremidade do SUG, em excesso, pôde ser aberta posteriormente, permitindo que sua parte anterior fosse usada na formação de um vestíbulo recoberto de mucosa.

Em 4 pacientes com SUG > 3cm (3 tipo IV e 1 tipo V), o SUG foi dividido anteriormente e sua porção posterior foi usada para construir a parede anterior da vagina (Passerini-Glazel) (14).

Em 9 dos 10 casos, a parede vaginal posterior foi incisada e o retalho em U invertido foi suturado, proporcionando ampla abertura do canal vaginal.

Em uma criança com Prader tipo V, foi necessária laparotomia para confecção de vaginoplastia com cólon sigmóide, pois encontrou-se uma vagina hipoplásica desembocando no colo vesical.

A clitoroplastia foi feita em todos os casos, de acordo com a técnica de Kogan e cols. (15), isto é, corporoplastia redutora, preservando-se o feixe vasculonervoso, seguida de anastomose da glande ao corpo cavernoso, próximo da sua bifurcação. A pele prepucial do falo foi incisada dorsalmente e puxada inferiormente, para formar os pequenos lábios e a parede lateral da vagina. A placa uretral não permaneceu ligada à glande porque foi seccionada durante a mobilização do SUG. Os grandes lábios foram formados a partir das incisões iniciais em V-Y, seguindo-se a pele do escroto. A sonda de Foley foi deixada por uma semana e não se utilizou molde vaginal. Todos as crianças foram submetidas a exame, sob sedação, entre 1 e 2 meses de pós-operatório.

O aspecto estético da genitália, no pós-operatório, foi avaliado de acordo com critérios adaptados de Creighton e cols. (3):

  1. simetria e proporção genital – pequenos lábios simétricos e encobertos pelos grandes lábios;

  2. a proeminência e forma da glande do clitóris – glande pequena, escondida pelos grandes lábios, só aparecendo após o afastamento dos mesmos;

  3. proeminência e forma do corpo do clitóris – o tamanho do clitóris não ultrapassa a superfície dos pequenos lábios, mesmo quando em ereção;

  4. posição e aparência do intróito vaginal – abertura vaginal situada na superfície do vestíbulo, com parede comum ou separada da uretra; o orifício vaginal é visível durante a inspecção da vulva;

  5. qualidade da pele genital – ausência de rugosidade, pigmentação ou fibrose.

Com base nesses critérios, o aspecto da genitália operada foi classificado em:

1)

bom: genitália sem anormalidades;

2) satisfatório: presença de até 2 alterações nos critérios referidos; 3) ruim: presença de 3 ou mais alterações.

A avaliação da continência urinária foi feita, ao final do acompanhamento, através da observação da micção, durante o exame clínico, e da informação dos pais sobre o uso de fraldas ou de perda de urina pela criança. As 3 crianças mais novas, operadas com 11, 14 e 18 meses estavam com 43, 40 e 40 meses, respectivamente, ao término do seguimento. Portanto, elas já haviam ultrapassado a idade em que se obtém o controle do esfíncter urinário e também puderam ser avaliadas quanto à continência urinária.

RESULTADOS

O diagnóstico pré-natal foi feito em apenas uma paciente. A idade, à época da correção cirúrgica, variou de 11 a 78 meses (média= 32). O seguimento pós-operatório foi de 15 a 36 meses (média= 26). O aspecto estético ficou bom em 7 casos (figura 5) e satisfatório em 3. Dos 7 casos de boa aparência, 2 foram submetidos à retirada do excesso de pele nos pequenos e grandes lábios. Todas as crianças operadas, após 26 meses de acompanhamento, em média, apresentaram continência urinária clinicamente, uma vez que já haviam ultrapassado a idade de controle esfincteriano. O exame da genitália, sob sedação, com 1 a 2 meses de pós-operatório, mostrou orifício vaginal estreito e afundado no vestíbulo, em 3 pacientes. Nos outros 7, a vagina estava bem exteriorizada, permitindo passagem de vela de Hegar nº 10 ou 11. Não houve fístula uretrovaginal. Três crianças tiveram deiscência mínima de sutura, nos pequenos lábios, que foi resolvida com tratamento conservador. Houve um caso de recidiva da clitoromegalia, por não aderência ao tratamento clínico. Os resultados estão demonstrados na tabela 2.


DISCUSSÃO

As crianças 46,XX com HAC podem apresentar fenótipo variável, dependendo do grau de virilização da genitália, segundo a classificação de Prader (13). O procedimento cirúrgico apropriado para tornar a genitália feminina deve ser escolhido para cada caso, mas, geralmente, consiste em clitoroplastia, vaginoplastia, uretroplastia e labioplastia. Para a vaginoplastia, freqüentemente empregam-se duas técnicas. A mais usada é aquela com retalho perineal posterior. Ela é utilizada tanto nos casos de fusão labial quanto naqueles com confluência baixa ou distal. Nos casos de confluência alta, deve-se fazer o abaixamento ou pull-through vaginal. A escolha entre esses dois procedimentos é muito importante e tem implicações técnicas que irão refletir no resultado estético final. A vaginoplastia com retalho posterior não deve ser usada nos casos de SUG alto porque apenas aumentaria o comprimento do seio urogenital, deixando a confluência uretrovaginal no mesmo local. Isso faria com que os dois orifícios (uretra e vagina) ficassem afundados no vestíbulo, aumentando o risco de acúmulo de urina na vagina e, conseqüentemente, de infecção urinária. A cistoscopia é fundamental para se decidir entre a vaginoplastia com retalho perineal e o verdadeiro abaixamento vaginal (pull-through). A clitoroplastia foi realizada com a preservação do feixe vasculonervoso, segundo Kogan e cols. (15).

Várias técnicas foram descritas para o tratamento cirúrgico do SUG, visando-se conseguir um abaixamento vaginal satisfatório (9,16,17). Quando empregadas em anomalias com confluência vaginal média ou alta, isto é, maior que 2,5cm, a separação uretrovaginal era dificultada pela localização profunda da vagina, pelo campo operatório limitado e pela estreita relação com o esfíncter urinário. Havia o risco de incontinência urinária, por lesão do esfíncter durante a abertura longitudinal do SUG, tentando-se encontrar o orifício vaginal. Os resultados estéticos também deixavam a desejar porque a vagina não ficava bem exteriorizada no vestíbulo.

A descrição da mobilização urogenital total (MUT), por via sagital posterior, realizada por Peña (9), em 1997, surgiu na tentativa de facilitar este procedimento cirúrgico tão complexo, melhorar os resultados a longo prazo e evitar as complicações mencionadas acima. Posteriormente, Rink e cols. (10,11) e Rink (12) aplicaram a MUT para o tratamento do seio urogenital em crianças com HAC, porém utilizando a via perineal. Isso proporcionou diminuição do tempo operatório, maior facilidade na reconstrução da uretra e vagina, e bom resultado estético. Através dessa técnica, consegue-se mobilizar a confluência uretrovaginal, em bloco, trazendo-a para a superfície do períneo. O risco de lesão do esfíncter urinário diminui através de dissecção no plano mediano, somente com afastamento dos tecidos. Contribui, ainda, para a preservação da continência urinária, a manutenção da distância entre o colo vesical e a abertura da vagina. Dessa forma, conserva-se a integridade do colo vesical, um dos principais mecanismos de controle urinário.

Utilizamos essa técnica em 10 meninas com HAC e genitália tipos III (2), IV (6) e V (2), segundo Prader (13). Uma das crianças tipo V apresentava hipoplasia vaginal, com desembocadura da mesma no colo vesical. A cistoscopia foi feita em todos as pacientes, no pré-operatório imediato, sendo importante para a definição da técnica cirúrgica a ser empregada. A colocação do cateter de Fogarty na vagina, durante a cistoscopia, facilitou muito a identificação da parede vaginal posterior, no momento da mobilização do seio urogenital. Em 2 crianças com tipo III e 3 com tipo IV, a MUT associada ao retalho cutaneoperineal foi suficiente para exteriorizar a uretra e a vagina no vestíbulo. Em 3 casos do tipo IV e 1 do tipo V (hipoplasia vaginal), foi necessário, além da MUT, usar o retalho de Passerini-Glazel (14) para se conseguir uma boa exteriorização do orifício uretral e vaginal no períneo. Com essa técnica, a anatomia da região foi respeitada e as estruturas esfincterianas preservadas. A exposição foi adequada e o tempo cirúrgico durou, em média, 3,5 horas, transformando um procedimento cirúrgico grande e complexo em ato plenamente exeqüível. Segundo Ganesan (18), que mediu o comprimento uretral em 9 crianças com HAC, a distância do colo vesical até a confluência uretrovaginal não se altera com a virilização. Ele verificou que a abertura da vagina nunca se situava acima do esfíncter urinário. Porém, os comprimentos do seio urogenital e do canal vaginal se modificavam. O primeiro crescia e o segundo diminuía na medida em que a virilização aumentava. Ainda, de acordo com esses achados, a vaginoplastia poderia ser feita em todos as pacientes com HAC e genitália ambígua através da MUT, sem a necessidade de separação da vagina e da uretra. Procedimentos mais complexos e de maior risco para o abaixamento vaginal (4,8,16,17) não seriam mais necessários. Em todas as crianças, a MUT foi associada à corporoplastia redutora com preservação do feixe vasculonervoso e à reconstrução dos pequenos e grandes lábios, em tempo único.

As pacientes foram examinadas, sob sedação, entre 1 e 2 meses de pós-operatório, para se avaliar a posição da uretra e da vagina no vestíbulo. Nos 3 primeiros casos, a dilatação vaginal foi feita, de rotina, com 1, 2 e 4 meses de pós-operatório. Nas outras pacientes, não se realizou dilatação em virtude dos resultados satisfatórios com o calibre vaginal e de possíveis traumas psicológicos para as pacientes, no futuro.

Ainda existe, na literatura, controvérsia quanto à melhor época para a realização da correção cirúrgica da genitália. Além dos aspectos cirúrgicos, sociais e psicológicos, têm surgido questionamentos de grupos ou associações de suporte sobre as implicações da operação e a sexualidade das pacientes (2,5-7,19).

Especialmente nas situações com SUG maiores que 2,5cm, alguns autores sugerem retardar a reconstrução vaginal até a puberdade, quando as estruturas do SUG estariam sob ação hormonal, o que facilitaria a operação e reduziria a incidência de estenose vaginal (7). Por outro lado, numa operação em dois tempos, com clitoroplastia na infância e vaginoplastia na adolescência, não se disporia da pele do falo para a confecção de retalhos e a reconstrução vaginal (10,14,16,20, 21). No procedimento cirúrgico em tempo único, precoce, mesmo que ocorra estenose vaginal, a reoperação, na puberdade, seria mais simples do que fazer toda a operação de abaixamento vaginal (pull-through) na adolescência, uma vez que a distância do SUG até o períneo aumenta com o crescimento da criança (21,22). Na nossa casuística, a paciente mais nova foi operada com 11 meses de idade. A exposição foi ótima e o procedimento fácil de se executar. Donahoe e cols. (16) relataram suas experiências com reconstrução do seio urogenital alto, em lactentes de 8 a 12 meses. DeJong e cols. (23) realizaram genitoplastia, em tempo único, em 4 crianças, com idades de 1 a 3 semanas. Eles atribuíram aos estrógenos maternos a presença de melhor plano de clivagem e aumento do calibre da vagina, facilitando, assim, o procedimento.

A redução do clitóris ou clitoroplastia foi realizada segundo a técnica de Kogan e cols. (15), para preservar a sensibilidade e a capacidade de ereção mas, ainda assim, é ponto de controvérsia sobre eventual e futura inadequação sexual (3,5-7,21).

Embora a casuística seja pequena, a nossa observação é favorável à correção precoce da genitália, em tempo único. Notou-se que, quanto mais nova a criança, menor é a distância entre o períneo e o colo vesical (pelve rasa), favorecendo a exposição e a dissecção. Outros facilitadores, nas crianças de baixa idade, são a maior mobilidade e a disponibilidade dos tecidos para a vaginoplastia. A tabela 3 mostra estudos em que foi utilizada a técnica de MUT precoce, em tempo único (10,20,24).

Alguns autores (25,26), baseados na ação dos andrógenos sobre o cérebro, no período neonatal, e a sua possível influência no comportamento sexual, sugerem que a decisão sobre o sexo social seja tomada mais tarde, com a participação da paciente. Creighton e cols. (3,5), Creighton (6) e Minto e cols. (7), avaliando adolescentes e adultas submetidas, na infância, a técnicas cirúrgicas antigas de genitoplastia feminizante, encontraram resultados estéticos insatisfatórios e inadequação sexual. Estes dados reforçam grupos ou associações de suporte que defendem o direito de as pacientes opinarem sobre a definição do seu sexo (5,19) e, portanto, o adiamento da correção cirúrgica da genitália. No entanto, Berembaun e cols. (27), avaliando a aparência da genitália e a identidade sexual de 48 pacientes com HAC, de 3 a 18 anos, submetidas à genitoplastia feminizante na infância, mostraram que 88% expressaram dados de identidade sexual semelhantes ao grupo controle, constituído de 29 irmãs, normais. Recentemente, Wisniewski e cols. (28), estudando pacientes com HAC, relatou que se elas pudessem ter escolhido, optariam pela operação precoce, na infância. O adiamento da correção da genitália ambígua pode provocar constrangimento, tanto para os pais como para a própria criança, em diversas situações do dia-a-dia (2,19,22,29,30).

Segundo um consenso internacional recente, a correção cirúrgica da genitália nas crianças com HAC deve ser realizada, de preferência, antes dos 6 meses de idade, em centro de referência, com experiência, após cuidadosa avaliação multidisciplinar e o consentimento esclarecido dos pais (2). A adequação precoce da genitália ao sexo genético diminui a ansiedade dos pais e permite que a criança cresça mais segura de sua feminilidade (2,21-23,29,30,32,33). A despeito das controvérsias, considera-se que os benefícios da intervenção precoce superam os eventuais riscos (34).

CONCLUSÃO

Após o acompanhamento médio de 26 meses, a técnica de MUT, por via perineal, sem divisão do reto, se mostrou eficaz para a correção cirúrgica da genitália ambígua de crianças com HAC. Nos casos em que o SUG era maior ou igual a 3 cm, a MUT foi associada à técnica de Passerini-Glazel (14). O resultado estético foi bom e a função vesical preservada. Entretanto, são necessários estudos de longo prazo, com número maior de pacientes, para a avaliação dos resultados estéticos, funcionais e psicológicos da correção cirúrgica da genitália, nas pacientes com HAC submetidas à técnica de MUT, precoce, em tempo único.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a todos os membros da Divisão de Endocrinologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG pelo acompanhamento e controle médico das pacientes.

Recebido em 29/12/04

Revisado em 18/05/05

Aceito em 12/08/05

  • 1. Farkas A, Chertin B. Feminizing genitoplasty in patients with 46XX congenital adrenal hyperplasia. J Pediatr Endocrinol Metab 2001;14:713-22.
  • 2. Clayton PE, Miller WL, Oberfield SE, Ritzén EM, Sippell WG, Speiser PW. Consensus statement on 21-hydroxylase deficiency from the Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society and the European Society for Pediatric Endocrinology. J Clin Endocrinol Metab 2002;87:4048-53.
  • 3. Creighton SM, Minto CL, Steele SJ. Objective cosmetic and anatomical outcomes at adolescence of feminizing surgery for ambiguous genitalia done in childhood [letter]. Lancet 2001;358:124-5.
  • 4. Krege S, Walz KH, Hauffa BP, Körner I, Rübben H. Long-term follow-up of female patients with congenital adrenal hyperplasia from 21-hydroxylase deficiency, with special emphasis on the results of vaginoplasty. Brit J Urol Int 2000;86:253-9.
  • 5. Creighton SM, Ransley P, Duffy P, Wilcox D, Mushtaq I, Cuckow P, et al. Regarding the consensus statement on 21-hydroxylase deficiency from the Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society and the European Society for Pediatric Endocrinology [letter]. J Clin Endocrinol Metab 2003;88:3455.
  • 6. Creighton SM. Long-term outcome of feminization surgery: the London experience. BJU Intl 2004;93(suppl. 3):44-6.
  • 7. Minto CL, Liao LM, Woodhouse CRJ, Ransley PG, Creighton SM. The effect of clitoral surgery on sexual outcome in individuals who have intersex conditions with ambiguous genitalia: a cross-sectional study. Lancet 2003;361:1252-7.
  • 8. Woodhouse CRJ. Intersex surgery in the adult. BJU Intl 2004;93(suppl. 3):57-65.
  • 9. Peña A. Total urogenital mobilization - an easier way to repair cloacae. J Pediatr Surg 1997;32:263-7.
  • 10. Rink RC, Pope JC, Kropp BP, Smith Jr. ER, Keating MA, Adams MC. Reconstruction of the high urogenital sinus: early perineal prone approach without division of the rectum. J Urol 1997;158:1293-7.
  • 11. Rink RC, Casale AJ, Cin MP. Total urogenital mobilization: use of the mobilized sinus. Proceedings of the Annual Meeting of the American Academy of Pediatrics, 2000; Oct Chicago, USA.
  • 12. Rink RC. Total urogenital mobilization (TUM). Dial Pediatr Urol 2000;23:2-4.
  • 13. Prader A. Der genitalbefund bein pseudohermaphroditismus feminus des kongenitalen adrenogenitalen syndromes: morphologie, hausfigkeit, entwicklung und verebung der verscheidenen genitalformen. Helv Pediatr Acta 1954;9:231-48.
  • 14. Passerini-Glazel G. A new 1-stage procedure for clitorovaginoplasty in severely masculinized female pseudohermaphrodites. J Urol 1989;142:565-8.
  • 15. Kogan SJ, Smey P, Levitt SB. Subtunical total reduction clitoroplasty: a safe modification of existing techniques. J Urol 1983;130:746-8.
  • 16. Donahoe PK, Gustafson ML. Early one-stage surgical reconstruction of the extremely high vagina in patients with congenital adrenal hyperplasia. J Ped Surg 1994;29:352-4.
  • 17. Hendren WH, Donahoe PK. Correction of congenital abnormalities of the vagina and perineum. J Pediatr Surg 1980;15:751-63.
  • 18. Ganesan A, Smith GHH, Broome K, Steinberg A. Congenital Adrenal Hyperplasia: Preliminary observations of the urethra in 9 cases. J Urol 2002;167:275-9.
  • 19. Glassberg KI. Gender assignment and the pediatric urologist [editorial]. J Urol 1999;161:1308-10.
  • 20. Jenak R, Ludwikowski B, González R. Total urogenital sinus mobilization: a modified perineal approach for feminizing genitoplasty and urogenital sinus repair. J Urol 2001;165:2347-9.
  • 21. Schnitzer JJ, Donahoe PK. Surgical treatment of congenital adrenal hyperplasia. Endocrinol Metab Clin 2001;30:121-35.
  • 22. Nihoul-Fékété C. Surgical management of the intersex patient: an overview in 2003 [lecture]. J Pediatr Surg 2004;39:144-5.
  • 23. De Jong TPVM, Boemers TML. Neonatal management of female intersex by clitorovaginoplasty. J Urol 1995; 154:830-2.
  • 24. Hamza AF, Soliman HA, Hay SAA, Kabesh AA, Elbehery MM. Total urogenital sinus mobilization in the repair of cloacal anomalies and congenital adrenal hyperplasia. J Pediatr Surg 2001;36:1656-8.
  • 25. Diamond M, Sigmundson HK. Management of intersexuality; guidelines for dealing with persons with ambiguous genitalia. Arch Pediatr Adolesc Med 1997;151:1046-50.
  • 26. Reiner WG. Sex assignment in the neonate with intersex or inadequate genitalia [commentary]. Arch Pediatr Adolesc Med 1997;151:1044-5.
  • 27. Berenbaum AS, Bailey JM. Effects on gender identity of prenatal androgens and genital appearance: evidence from girls with congenital adrenal hyperplasia. J Clin Endocrinol Metab 2003;88:1102-6.
  • 28. Wisniewski AB, Migeon CJ, Malouf MA, Gearhart JP. Psycosexual outcome in woman affected by congenital adrenal hyperplasia due to 21-hydroxylase deficiency. J Urol 2004;171:2497-501.
  • 29. Miller W, Oberfield SE, Speiser PW, Baskin LS, Donahoe PK, Nihoul-Fékété, et al. Regarding the consensus statement on 21-hydroxylase deficiency from the Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society and the European Society for Pediatric Endocrinology [letter]. J Clin Endocrinol Metab 2003;88:3456.
  • 30. Gearhart JP. [editorial comment]. BJU Intl 2000;86:258-9.
  • 31. Dayner EJ, Lee PA, Houk CP. Medical treatment of intersex: parenteral perspectives. J Urol 2004;172:1762-5.
  • 32. Warne GL, Zajac JD. Disorders of sexual differentiation. Endocrinol Metab Clin N Am 1998;4:945-66.
  • 33. Rangecroft L. Surgical management of ambiguous genitalia. Arch Dis Child 2003;88:799-801.
  • 34. Graziano K, Teitelbaun DH, Hirschl RB, Coran AG. Vaginal reconstruction for ambiguous genitalia and congenital absence of the vagina: a 27-year experience. J Pediatr Surg 2002;37:955-60.
  • Endereço para correspondência:
    Luís Henrique Perocco Braga
    Av. Pasteur 40 / 406
    30150-290 Belo Horizonte, MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Revisado
      18 Maio 2005
    • Recebido
      29 Dez 2004
    • Aceito
      12 Ago 2005
    Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Rua Botucatu, 572 - conjunto 83, 04023-062 São Paulo, SP, Tel./Fax: (011) 5575-0311 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: abem-editoria@endocrino.org.br