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REFLEXÕES SOBRE O SOFRIMENTO

SOME REFLECTIONS ON SUFFERING

RESUMO:

Pode-se constatar como, ao longo da história da psicanálise, de modo talvez inadvertido, a ideia de sofrimento foi elevada ao estatuto de um objeto que funciona como razão necessária, se não suficiente, para se empreender uma análise. Argumento que, a despeito dos esforços de Freud por separar a psicanálise da medicina e da religião, os analistas ainda permanecem mais cativos da moral judaico-cristã do que gostariam de admitir. Caberia discutir as incidências sobre a aplicação do método psicanalítico e como afeta a reivindicação de uma ética que seja inerente à psicanálise.

Palavras-chave:
ética psicanalítica; moral; gozo; sofrimento; clínica psicanalítica

Abstract:

It can be seen how, throughout the history of psychoanalysis, perhaps inadvertently, the idea of suffering was elevated to the status of an object that functions as a necessary if not sufficient reason to undertake an analysis. I argue that this is due because, in spite of Freud’s efforts to separate psychoanalysis from medicine and religion, analysts still remain more captive to Judaic-Christian morality than they would like to admit. It would be appropriate to discuss the incidences on the application of the psychoanalytic method and how it affects the claim of an ethics that would be inherent to psychoanalysis.

Keywords:
psychoanalytic ethics; moral; jouissance; suffering; psychoanalytic clinic

Para Radmila Zygouris,

porque a liberdade pode ser transmitida

É bem conhecida a polêmica desencadeada pelo processo sofrido por Theodor Reik em 1925, acusado de curandeirismo por não possuir título de médico e proibido de exercer a psicanálise, que levou Freud não apenas a defendê-lo como a argumentar que esta não podia ser tida como uma especialidade médica, mas como um método para tratar afecções específicas que estão fora do campo de ação próprio da medicina. No ano seguinte, Freud escreveu um opúsculo denominado justamente A questão da análise leiga (FREUD, 1926FREUD, S. Pueden los legos ejercer el análisis? (1926). Buenos Aires: Amorrortu . (Sigmund Freud Obras Completas)/1974). “O neurótico”, lemos, “é decerto uma complicação indesejada, un motivo de perplexidade para a arte de curar não menos que para a administração de justiça e o serviço militar. Mas existe, e incumbe bem de perto à medicina. Ora: nem na sua apreciação nem no seu tratamento contribuíram em nada - o que se diz em nada - os estudos médicos” (FREUD, 1926/1974, p. 215). A isso, cabe acrescentar a confissão de Freud de sempre ter desejado ser um cientista, não um médico.

No currículo da carreira médica, nada consta do que precisa um psicanalista para se formar. Por outro lado, os doentes que tratamos não são bem aqueles que um médico considera como tais; os leigos não são precisamente leigos e os não-leigos, os médicos, neste novo campo, não têm como fundar as suas pretensões de curar. Se isso tudo pudesse ser provado, escreve, a lei que rege o exercício da medicina não poderia ser aplicada a nós. E propõe duas definições: leigo seria um não médico e curandeiro, que empreende um tratamento sem possuir os conhecimentos e capacidades requeridos para tanto. “Baseando-me nesta definição, atrevo-me a asseverar que - não só nos países europeus - são os médicos que entregam à psicanálise o maior contingente de curandeiros” (FREUD, 1926FREUD, S. Pueden los legos ejercer el análisis? (1926). Buenos Aires: Amorrortu . (Sigmund Freud Obras Completas)/1974, p. 216). Amiúde, posam de analistas sem ter aprendido o método e sem entender em absoluto do que se trata.

Em 1927, Freud escreve outro livro-manifesto, desta vez para distinguir de modo mais severo a psicanálise da religião, O futuro de uma ilusão (Freud, 1927/ 1974). “Não sei se o senhor descobriu o vínculo secreto entre a psicanálise leiga e a ilusão”, lê-se numa carta ao pastor Pfister. “No primeiro, quero proteger a análise dos médicos; no segundo, dos padres” (FREUD; PFISTER, 1966FREUD, S.; PFISTER, O. Correspondência 1909-1939. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1966.). O vínculo secreto concerne à noção de cura. Não pretendo me ocupar das relações perigosas da psicanálise com a medicina e a religião, ou dos psicanalistas com os médicos ou os sacerdotes, mas de um traço comum a ambos que passou de modo sorrateiro aos primeiros, solapando a diferença entre o que Lacan chamava o discurso psicanalítico e o método do mesmo nome. Falo da noção de “sofrimento”, a face subjetiva da disfunção ou enfermidade objetivas (para um padre o pecado é uma afecção objetiva da alma).

No latim vulgar, existia a palavra sufferere, derivada do latim clássico sufferre, formada por sub (“sob”, “embaixo”) e ferre (“levar”, “conduzir”, “carregar”). Até nós, chega marcada a ferro, digamos, pela paixão de Cristo. Tal qual o Filho do Pai, cada um está fadado a carregar a própria cruz. E fazê-lo em silêncio atesta para a grandeza moral do sofredor, já que, para o cristianismo, a paixão - vocábulo introduzido no século XIII, que vem de passio-passionis, significando “passividade” e, antes disso, do grego pathos, “sentir”, donde: padecimento - é um dos valores mais altos, se não de direito, com certeza de fato.

Um fato curioso da história da psicanálise é a atração que exerce sobre grande número de pastores de almas, convertidos depois em analistas das mesmas. A valorização do sofrimento como um bem, até mesmo como o bem supremo, não me parece alheia a tais mudanças de vocação. Esta passagem de absolver pecadores confessos a tratar pacientes, isto é, literalmente, sofredores, não é só uma curiosidade marginal da educação religiosa, mas um fenômeno que concerne à nossa formação como psicanalistas.

Assim como o caridoso precisa de ao menos um prejudicado para exercer a caridade - ao ponto de um amigo dizer, a propósito de uma senhora nossa conhecida, carola da velha guarda, que, se não existissem os pobres, ela os teria inventado -, padres (e psicanalistas) justificam o bem fundado das suas nobres ações no sofrimento do próximo, que adquire desta feita a dignidade de um objeto para seus desejos de sacerdote e de psicanalista, respectivamente. Para ambos, este objeto se perfila detrás da ideia de cura, sendo que a diferença entre um e outro é que a missão redentora do primeiro aparece sob as vestes da saúde, no segundo.

Exagero? Preste-se atenção ao fato de que o motivo aceito sem contestação como razão necessária e suficiente para empreender uma análise é “o sofrimento”. Por mais que tenha sido feita a crítica da medicina e de que os psicanalistas tenham tentado, com todo tipo de argumento, distinguir-se dos médicos, ainda assim, não há um que não se refira aos ou que não pense nos que pagam pelos seus serviços como “pacientes”. Mesmo aqueles que, sob influência do lacanismo, os denominam “analisantes”, quando descrevem “um desejo decidido de análise”, mostram em geral o resultado da tarefa de reconduzir a demanda a um determinado sofrimento dito “psíquico”, reconhecido como tal pelo alvo dos seus cuidados terapêuticos. Quem se dirigir ao analista por qualquer outro motivo, permanecerá sob suspeição e só será aceito quando reconfigurar o seu pedido de análise em termos de padecimento, já que, sem pathos, não há patologia nem, portanto, tratamento ou cura.

Faz algum tempo, deixei-me arrastar a debates “metafísicos” a propósito da essência do “ser” segundo a psicanálise, cujo saldo foi o exercício ainda inédito de ler Lacan com Jarry, a propósito da pergunta “o que seria um psicanalista sem pacientes?”. Esta pergunta está perto da que formulava acima: “o que seria um caridoso sem pobres?” e interroga o desejo do psicanalista. “Seus pacientes pensam que é”, foi a perspicaz observação de um colega ao comentário maldoso, típico do nosso meio, “Fulano não é analista”. Diferente do judeu, que basta se dizer tal para sê-lo, o psicanalista é instituído pela demanda do outro. E a famosa fórmula “o psicanalista não se autoriza se não dele mesmo” não desmente isso, já que ninguém pode responder no meu lugar “sim” ao “tu és meu analista” de quem me procura para análise. “Ah!”, dirão, “é instituído pela demanda do candidato porque existe a oferta de psicanálise pela cultura”. Assim, a definição digna de Jarry1 1 Alfred Jarry (1873/1907), muito mais do que Joyce, ressoa no estilo de Lacan. , “a psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista” (LACAN, 1955/1998LACAN, J. Variantes do tratamento padrão (1955). In: LACAN, J. Escritos, Rio: Zahar, 1998., p. 331), faz par com a resposta que daria o Pai Ubu: “Viva a psicanálise! Porque, sem psicanálise, não haveria psicanalistas”.2 2 Paráfrase de uma fala do personagem da peça Ubu Rei: “Viva Polônia! Porque, sem Polônia, não haveria polacos”.

Estou sendo muito alusivo. Digamos que a psicanálise não se garante nem por uma teoria sem método, nem por um método sobre cuja teoria não se tem o menor consenso. Imagino que Lacan gostasse daquela tautologia de a psicanálise ser “o que se espera de um psicanalista”, já que, entre 1955 e 1970, repetiu-a ao menos em três ocasiões. É claro que se trata de uma boutade, mas o que ela diz de fato? Que a psicanálise se sustenta de cada analista em nome próprio, mas, como este resulta da sua formação (não disse “da sua análise” - o que seria confirmá-la como um ritual iniciático), voltamos à pergunta: “O que é a psicanálise?”. Com o tirano da peça de Jarry, faço responsável à teoria psicanalítica pelo ser do analista, e o círculo não é menos vicioso.

Antes que algum professor me diga “É dialético!”, apresso-me a voltar a pisar sobre um terreno mais firme, lembrando que ninguém discorda da advertência freudiana a propósito de o furor sanandi não ser uma virtude, até mesmo um vício. Alguns até lembram-se de Freud ter dito que muito cedo deixou de ser médico para tornar-se um pesquisador, um investigador da alma humana: a sua verdadeira paixão. Ainda assim, não deixarão de atrelar a “ética psicanalítica” ao sofrimento, concebido como o meio de uma análise, nos dois sentidos de “modo para se chegar a seu fim” e “ambiente no qual a tarefa se realiza”. Ouvi um conferencista dizer, sem provocar o menor espanto na sua plateia, que uma análise só funciona quando o paciente chega ao analista rastejando. Esta prova de engajamento é coerente com a conhecida adesão do palestrante à “clínica do ato” (que “incidiria sobre o real”) que sempre me lembra as práticas de iniciação da Noiva pelo seu sensei, no filme Kill Bill (TARANTINO, 2003TARANTINO, Q. Kill Bill. 2007. [Filme].).

Quem não escutou alguma vez o argumento de que os perversos são inanalisáveis porquanto “não sofrem”? Já os psicóticos, que sofrem em demasia, guardam zelosamente seu sofrimento para si, sem transpassá-lo ao terapeuta (não fazem dele o salvador): “Falta transferência, logo são inanalisáveis”. E quando se trata de toxicômanos ou outros compulsivos, não se referem aos objetos da sua paixão (os seus respectivos venenos) como o mal que precisam arrancar de raiz? “Meu bem, meu bem, meu mal” (“my precious”, como Gollum chamava o anel que o possuia no Senhor dos anéis), esquecem, era para todos eles, antes de mais nada, fonte de uma fruição da qual não desejavam ou não conseguiam abrir mão. A propósito disto, um amigo sentenciou: “Tudo que não for meu barato, sai caro”.

Fritz Lang teve uma intuição brilhante desta noção do sofrimento que engrandece, quando filmou seu M (örder), protagonizado pelo inesquecível Peter Lorre, e mostrou o seu personagem justificando com tal argumento, perante um tribunal de delinquentes que o considerava um monstro, os atos decorrentes do seu desejo de pedófilo e de assassino: “Os senhores que me julgam devem compreender [esta é a palavra-chave; voltarei a ela] o meu sofrimento por não poder conter-me quando estou frente a essas doces meninas”. Ele se apresentava assim como a vítima da sua paixão e, como todo pecador, merecia ser perdoado.

O sofrimento é, pois, uma suposição sobre o que o paciente “sente”, para além do que disso ele pode dizer. Esta suposição dá corpo a um objeto imaginário que passa por causa de toda psicanálise. Invocar um padecer basta para confirmar o bem fundado de um tratamento analítico. Por quê? Em tempo, no fato mesmo de denominarmos uma psicanálise de “tratamento”, não se está dando já esta pergunta como respondida de antemão? Até tal ponto parece óbvio que a afirmação de Lacan - de que, em uma psicanálise, a cura acontece por acréscimo - foi rejeitada em nome da terapêutica. Todas as vezes que defendi a distinção crucial entre psicanálise e psicoterapia, tive que ouvir que “menosprezava a dor humana”, como se invocá-la não só bastasse para qualificar uma empreitada de “humanista” como também de “psicanalítica”. Seria útil prestar atenção ao que Todorov denominava “a tentação do bem” (TODOROV, 2002TODOROV, T. Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o século XX. Rio: Record, 2002.). O seriado Ratched3 3 Seriado da Netflix (2020), baseado na personagem do romance de Kesey, Um estranho no ninho, e no filme homônimo de Milos Forman. é uma boa ilustração: as piores coisas, incluindo-se o assassinato, são feitas sempre em nome do bem do outro. Não é por acaso que a personagem do título seja uma enfermeira, aquela precisamente que saberia o que o próximo necessita, independentemente do que este possa querer.

É verdade que o redundante “conhece-te a ti mesmo” socrático jamais será aceito por analista nenhum como um motivo válido para analisar-se, e não sem razão, já que assim enunciado se reduz ao anseio de coincidir com o próprio eu, descartando como alheia qualquer emergência do inconsciente. E sendo o desconhecimento o característico daquele, este voto de conhecer-se esconde antes uma paixão de ignorar que uma resposta ao sapere aude kantiano.4 4 “Tende coragem de saber” ou, ainda, “Atreve-te a pensar”. (4) O conjunto dos nossos preconceitos a respeito de nós mesmos e dos outros é um obstáculo, nunca um motor. Por esta razão, o psicanalista suspende o ditado “quem sabe de mim, sou eu”, apostando suas fichas precisamente naquela alteridade que se deixa ouvir enquanto se associa livremente (o avô falecido, no caso do analisando que comento mais adiante).

Não me parece que dali se deduza que fundamos nossa ética na premissa “o cliente nunca tem razão”, como já se disse. Ao contrário, a eles está permitido ser paranóicos a procurar segundas intenções em tudo, incluindo-se nos seus analistas. Estes fariam melhor em comprar o que seus clientes oferecem pelo valor nominal, sem muita barganha. Como já disse Mestre Lacan: “Ser esperto demais é um erro” (“Les non-dupes errent”). Uma vez me vi levado a lembrar a uma psicanalista que parecia acreditar que quem sabia de mim era ela: “Como alguns celulares, eu preciso de crédito para poder falar”.

A resposta técnica do pressuposto implícito ou explícito de que nos ocupamos do sofrimento dos outros é o analista hierático. Parece um contrasenso, já que seria a atitude oposta à da enfermeira ou da mãe, mas condiz com a ideia de que a dor deve ser abordada “objetivamente”. Nos posicionamos como o médico que deve distanciar-se instrumentalmente do padecimento do doente para melhor operar sobre ele.

No dicionário de Laplanche e Pontalis, consta a neutralidade como a atitude adequada do psicanalista. Neutralidade ideológica, temática, religiosa, política e, sobretudo, a de não pensar no doente como um coitado. “Neutro”, entretanto, porta ressonâncias sinistras para um analista. Neutro não fede nem cheira; é de centrão; não é homem, tampouco mulher. Neutro, no caso de um juiz, deve significar imparcial, e pode querer dizer equitativo, mas também abster-se de tomar partido, permanecendo em cima do muro. E, do lado pejorativo da palavra, neutro é insosso, apagado, sem paixão, enfim, morto.

O termo de Freud era “indiferente”. Ele propunha que o analista fosse impessoal, daí os consultórios severos e sem objetos particulares, impenetrável como oráculos ou funcionários da alfândega. “Neutralidade” foi a tradução de Strachey em 1924 para o Indiferenz freudiano (descrito por ele como “parteilos”, que não toma partido). A expressão que vingou na Inglaterra e foi retomada na França por Sacha Nacht e Daniel Lagache, foi “neutralidade benevolente”, usada por Edmund Bergler pela primeira vez em 1937.

Não sou partidário do analista morto, aquele que avalia qualquer resposta além de “hum” como uma infração deontológica. Nunca fui seduzido pelo silêncio como norma ou considerei as sessões curtas eticamente corajosas só por serem rápidas. Não penso que “não responder à demanda (para dirigir-se ao desejo)” implique em fazer cara de jogador de pôquer ou em replicar “Por quê?”, como a minha avó faria, ao “bom dia” do meu analisando. Strachey inventou o psicanalista mudo porque Freud não lhe dirigia a palavra (Kardiner conta que, no café em que se encontravam, perto de Bergasse 19, depois das sessões, Strachey ficava abismado porque Freud falava com ele).

Fiz anos de análise com um psicanalista cuja voz só escutava quando assistia às suas conferências. Fiz mais alguns com outra que marcava seus horários a cada quarto de hora. Analisante aplicado que sou, adaptei-me a um “deixamos por aqui” sempre no tempo em que se cozinha um ovo (imagino que devia precisar de mais cinco minutos para respirar entre uma sessão e outra). Fizemos aquilo funcionar durante um bom período, com resultados excelentes no que me concerne. A coisa emperrou quando precisei de alguma disponibilidade da sua parte. Não pretendia mudar-lhe o estilo, apenas fazer-me ouvir durante uma época de intensa angústia, mesmo que muitas das coisas ditas provassem ser inúteis em última análise. Como já escrevi em outro lugar (GOLDENBERG, 2007GOLDENBERG, R. Corte e costura. In: COSTA PINTO, M. (org.) O livro de ouro da psicanálise. São Paulo: Ediouro. 2007.), para poder cortar é necessário antes tecer uma trama que faça desse corte um corte. Isso requer um tempo, que pode ser maior ou menor, dependendo do dia e da pessoa. Sendo decisões particulares, os cortes podem estar errados em uma ou outra ocasião; será preciso haver-se com isso em sessões futuras. Interromper depois de um tempo prefixado lembra a piada do relógio parado. Ele é mais exato do que um que atrasa alguns minutos a cada hora: ao menos duas vezes por dia dará a hora certa. Independente do que eu dissesse, ela esperava caçar o significante que devia comparecer, pontual qual fantasma à meia-noite, aos dez minutos. Como a besta brilhava pela sua ausência e a minha angústia pesava pela sua presença, comecei a editar o que queria dizer, de modo a que coubesse no tempo que me era reservado. Quando percebi que conseguia antecipar todos os momentos de corte com uma precisão de oitenta e cinco por cento, decidi que estava na hora de trocar de analista.

Encontrei uma que se servia do setting (não ao contrário). Graças a ela, analisar-me voltou a ser uma aventura. Tinha vindo ao Brasil para dar umas conferências às quais não assisti. Decidi passar para cumprimentá-la no jantar de confraternização que lhe ofereceram depois dos trabalhos. Estava sentada à cabeceira de uma longa mesa cheia de convidados. Falamos sobre generalidades durante cinco minutos, em meio à balbúrdia do restaurante. Quando me dispunha a ir, cumprida a visita de cortesia, eu a ouço me perguntar: “Você está bem?” Espantado, respondi: “Não”. Como voaria para casa em poucas horas, convidou-me a conversar com ela durante o café da manhã seguinte. Só eu falei naquela manhã, em uma longa e inesperada sessão. Não havia pandemia e nenhum analista que se preze aceitava psicanálise virtual. Prometi viajar a Paris para fazer sessões no seu consultório em um par de meses, “enquanto isso,” disse, “precisamos inventar”. Mais tarde, confessou que foi esse comentário que a fisgou: “inventar” era para ela uma oferta irrecusável. Estou contando sobre este início porque, independentemente do que a associação livre me tenha ensinado, o mais precioso que aprendi desta mulher octogenária veio do exercício da sua liberdade. Ela me lembrava a Velha Dama Indigna, de René Allio. Quando lhe disse isso, respondeu: “Não te permito, eu fui indigna em todas as idades da minha vida!”.

Não trabalho como nenhum dos que foram meus analistas. Acredito que isso aumenta um ponto para nós. Para eles, por não terem me empurrado para a identificação. Para mim, por não ter sentido a necessidade de criar-me uma identidade psicanalítica através deles. Não penso que ser acolhedor ou interessar-me por coisas que são importantes para os que se analisam comigo seja uma falta técnica ou ética. Não confundo neutralidade com indiferença. Prefiro ter de lidar com eventuais problemas transferenciais do que proteger-me detrás de um desapego metódico. A única neutralidade que me interessa preservar é a de jamais fazê-los acreditar que conheço o significado oculto daquilo de que falam.

Se a elevação do padecer a objeto específico da ação psicanalítica revela o peso da moral judaico-cristã, não será pelo fato de mudar seu nome para gozo que nos libertaremos dele. Sob este conceito inventado por Lacan foi subsumida a totalidade da experiência humana. O gozo não apenas seria o primeiro motor imóvel do sintoma, como seu estatuto de objeto é reivindicado em altos brados, referindo-se a ele como uma substância. “A única substância da psicanálise”, para sermos mais precisos.

Que os arautos do “ultimíssimo” tenham embolado o meio do campo com a distinção entre sintoma e sinthome não muda nada. Na hora de apresentarem um caso clínico, o fiel da balança, o norte magnético, será sempre o gozo que há o que não há. Aliás, o exigido é que haja no início e deixe de haver no final. Ou seja, primeiro aguarda-se ou provoca-se a culpa do paciente por um “gozo” do qual pode não fazer ideia, e depois impõe-se-lhe a expiação da mesma culpa que ele entregou a pedidos como sendo a sua cura. O gozo assim concebido me parece o último reduto da moral judaico-cristã.

Malgrado tratar-se de uma prática de fala, o “verdadeiro objeto real” (leia-se: físico e material) da psicanálise, pivô da sua ética e da sua clínica, há de ser procurado fora da fala, no corpo pensado como a sede natural daquele gozo suposto; organismo vivo, suporte carnal do senciente. Desta feita, a psicanálise é reconduzida a uma concepção naturalista pré-freudiana, enquanto nos é apresentada como a psicanálise do futuro.

Conto-me entre os poucos que tentam outra leitura dos arcanos de Lacan. Uma que não contradiga, digamos, o “espírito da sua letra” e que não esteja em franca contradição com os princípios que norteiam a sua prática. Diferente de alguns dos meus companheiros de rota, contudo, quanto mais estudo esta noção de gozo, forjada por Lacan e elevada a paradigma pelo pós-lacanismo, menos convicto estou de que valha a pena mantê-la entre nossos conceitos maiores, que dirá como o pivô da psicanálise enquanto tal.

Desde 1960, ano do seminário de Lacan dedicado ao tema, acreditamos que a teoria psicanalítica fundamenta uma ética específica da psicanálise. Antes disso, os colegas se atinham a um código deontológico responsável pelo que se denomina, em inglês, o setting, ou seja, as condições de temperatura e umidade em que os tratamentos acontecem.

O local: consultórios não exatamente padronizados, mas com o menor número possível de marcas pessoais dos praticantes, incluindo-se o terno padrão no vestir e o divã com a poltrona atrás (um retrato de Freud e do representante da escola de preferência passou a fazer parte da cara da franquia). O método inclui a posição deitada do paciente, a duração e a frequência das sessões (padrão IPA, 45 ou 50 minutos à razão de quatro semanais; Orientação Lacaniana, 10 ou 15 minutos, com um número indefinido de sessões), as modalidades das intervenção (aqui a indefinição é a regra e depende da teoria que se segue), e a observação do sigilo profissional (problema nos Estados Unidos, por exemplo, onde o profissional é obrigado por lei a denunciar um paciente, se acredita que este cometeu ou pode cometer um crime). O controle dos tratamentos (tirante a IPA, onde a supervisão de ao menos um caso é mandatória, e a instituição responde por ele, o controle do próprio trabalho é facultativo e as instituições não respondem por ele).

Depois de Lacan pôr sobre a mesa a aposta de uma ética inerente à psicanálise a orientar a prática do psicanalista, era mister explicitar em que consistia e diferenciá-la tanto da moral (regras e costumes pelas quais se rege a sociedade, baseados na religião e no hábito) quanto da legislação (o que é ou não um delito) e da deontologia (as regras de uma prática profissional).

A primeira hipótese proposta embasava a ética na noção de desejo inconsciente: motivo oculto das nossas ações. A empreitada: fazer com que o neurótico se situasse em relação a tal desejo (sustentado pela fantasia que lhe organiza a realidade) e ao sintoma, produto da defesa contra o desejo em questão.

A segunda proposição, de meados da década de 1970, foi a de uma ética relativa às formas do discurso analisante. Foi chamada “ética do bem-dizer” (o sintoma). Esta “correção” discursiva dependia do modo como o analisando fosse escutado, e devia ir pari passu com a reforma do entendimento que Lacan propunha aos analistas como essencial à sua formação (GOLDENBERG, 2018GOLDENBERG, R. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2018.). Já não se diferenciava a análise dos analistas (chamada “análise didática” nos institutos freudianos) daquela dos leigos. Toda análise orientada por tal estética do bem dizer, levada até as suas últimas consequências, deixaria o analisado na mesma “posição subjetiva” de um analista. Era indiferente se ele iria se dedicar ao ofício ou não. Inventou inclusive um procedimento para verificar tal resultado, a que chamou de “passe”.

A terceira versão da ética psicanalítica é uma prolongação da primeira, mas não foi desenvolvida por Lacan e, sim, pelos seus epígonos. Está baseada no gozo. O fim da análise coincide com a possibilidade do paciente reconhecer e responsabilizar-se pelo gozo inconsciente que retira do sintoma. Uma ética do desejo, dizem, privilegiaria o registro simbólico da experiência humana, enquanto centrar a experiência no gozo revelaria um progresso para o real, tido por hierarquicamente superior de um ponto de vista ontológico. Tratar-se-ia de uma ascese psicanalítica, mediante a qual o paciente se vê levado a renunciar - ao menos a responsabilizar-se por - este gozo obscuro identificado com seu sofrimento. É mediante esta torção que retorna do recalcado a velha e boa paixão cristã: o “novo” testamento do amor, acrescido da culpa judaica do velho.

Desatrelar a psicanálise da moral judaico-cristã, começando por reconhecer as formas larvadas nas quais se manifesta na teoria e na clínica; repensar a ideologia espontânea que se infere da nossa prática, seja qual for a nossa filiação teórica ou política, está aí um programa que valeria a pena considerar.

Falei de uma das manifestações ideológicas implícitas: conceber o sofrimento como objeto da ação psicanalítica. Há outras, que já foram prevalentes em outros momentos da nossa breve história, como a degradação educativa ou adaptativa da psicanálise; a promoção superegoica do desejo concebido como missão; o fortalecimento do eu e de sua função defensiva; a castração tomada como norma, com a rejeição da homossexualidade e da perversão como efeito colateral; etc. Todas as formas de uma moralização mais ou menos sutil, mais ou menos agressiva, patrocinada, se não pela psicanálise, pelos analistas.

A consagração do sofrimento como suporte ideal da cura analítica provou ser unanimidade em todas as linhas teóricas, e permanece constante desde a origem freudiana, embora não fosse a posição do próprio Freud. Tal consenso vem precisamente do fato de jamais ter sido tematizada como tal, a não ser pelo conceito de “gozo” e aqui da pior maneira possível. Isto é o próprio da ideologia: ela não se sabe ser ideológica. Impensada, age implícita nos procedimentos, aparecendo como o dado natural, como o modo de ser espontâneo das coisas. A metamorfose do padecimento em gozo reificado é obra em grande parte da escola milleriana afiançada a partir de 1982. Ela, sim, está tematizada e fez tábua rasa da cuidadosa crítica de uma psicanálise centrada nos afetos e nos sentimentos, feita pelo próprio Lacan, que acompanhava pari passu o deslocamento para o novo paradigma que colocou a psicanálise sob a égide da linguagem e da estrutura do significante, retirando-a de uma prática orientada pelo imaginário.

A crítica da psicanálise sentimental teve uma razão de ser, e nunca foi menosprezar o “afetivo”. Quando Lacan aproveita o francês para dizer que “o sentido mente” (le senti-ment), está em primeiro lugar objetando à psicologia compreensiva baseada na fenomenologia de Jaspers. O conselho “antes de mais nada, abstenham-se de compreender” jamais se tratou de um apelo ao “foda-se”, mas de uma chamada de atenção para o que era crucial identificar no discurso de quem se analisa: o significante que se repete mascarado, não só nas queixas, mas também ali.

Tenho algumas hipóteses (as quais não trabalharei aqui) sobre o que teria levado Lacan a pôr o desejo em segundo plano em relação ao gozo, a sua “realização”. Mas, seja o que for, o resultado foi catastrófico. Direi apenas que o problema a ser resolvido estava em uma teoria da subjetividade que concebe o sujeito como o produto dos significantes, correlato de um “objeto” insubstancial, ambos definidos de um modo negativo. Com a finalidade de assentar a psicanálise sobre o solo firme da matéria, foi entronizado o gozo, postulado como uma substância (seja o que for que isso queira dizer). Procurou-se fora do discurso, no corpo, um modo de dar-lhe consistência e estamos às voltas com o gozo substancial que alimentava a Matrix com a energia de que precisava para funcionar.

A função política desta reformulação teórica era responder à pecha de idealistas e, na prática, tratava-se de alicerçar o tratamento sobre bases sólidas, menos especulativas, mais de acordo ao sentido comum. Pode-se encontrar no Youtube, em um canal dedicado a explicar o lacanismo, a seguinte definição de gozo: “É o que Freud chamava de benefício primário do sintoma”. E Freud chamava de benefício primário da doença à satisfação deslocada, transformada pela censura, de um desejo conflitivo. O passo a mais que foi dado, em uma operação sincrética, comporta o esquecimento de que Freud chamava as pulsões de mito teórico, andaime provisório para se poder pensar, e a afirmação do gozo como uma presença material e positiva das pulsões, amarradas aos sintomas erigidos contra elas. A esta fusão pós-moderna da pulsão freudiana com o sintoma lacaniano deu-se o nome de sinthome. E o que se propõe como percurso dos tratamentos e final da análise, razão da sua ética, seria levar o paciente do sintoma (o gozo irresponsável) ao sinthome (o gozo responsável).

Com a promoção hierárquica do real em detrimento do simbólico, atribuída ao velho Lacan, o que se obteve foi um retorno paradoxal às piores miragens da época do “eu sinto / você sente”, só que, agora, o único a sentir o que não deve, e por isso passível de correção, é o paciente. A descrição que se faz do gozo na literatura lacano-milleriana não pode ser mais imaginária, embora seja sempre adjetivado de “real”, adquirindo assim uma aura de respeitabilidade que o eleva a um patamar superior de seriedade e de consistência, mesmo que ninguém saiba muito bem do que se está falando e a que se refere o mencionado gozo.

De nenhum modo atentar para a função resistencial na nossa prática do sofrimento idealizado (apelidado ou não de gozo) significa propor uma psicanálise inumana; apenas relembrar (e dá vergonha ter que fazê-lo) que, assim como não temos acesso aos sonhos sonhados pelos nossos analisantes, mas só aos seus relatos, tampouco temos acesso ao que eles sentem, apenas ao que disso podem dizer. Até aqui, o óbvio ululante da psicanálise. Menos ululante é observar que os doentes mesmos não tem qualquer acesso direto ao seu próprio sentir, que só pode ser chamado de “próprio” devido a uma suposição. Não teria inconveniente em chamar isso de “gozo”, mas não sem antes expurgar a reificação indevida a que foi submetido o conceito após a morte de Lacan.

Trata-se de uma volta a mais, conquanto decisiva, do parafuso de um verso de Pessoa (que os analistas adoram citar), aquele de o poeta ser um fingidor, que “finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente” (PESSOA, 1995PESSOA, F. Autopsicografia (1942). In: PESSOA, F. Poesias. Lisboa: Ática, 1995., p. 235). O parafuso aperta sobre o “deveras” do “deveras sente”, e quem o apertou foi Jorge Luis Borges com seu poema O outro tigre. A dor sentida, nos diz ali, consiste, também ela, em uma aparência (semblant), aparência que só a linguagem suporta. “E persevero em buscar, pelo tempo desta tarde, o outro tigre, o que não está no verso” (BORGES, 1996BORGES, J. L. El otro tigre. Buenos Aires: Emecé, 1996. (Obras completas, 2), p. 202). Muitos psicanalistas acreditam tê-lo encontrado, chaman-no de “gozo”. Chegados a esse ponto, porém, a significação inconsciente do tigre que não está no verso… Mas não seria o verso tudo o que podemos ter do outro tigre, ou, por outra, do que “deveras sentimos”? Não é só inútil procurar aquém do relato o sofrimento real, é uma miragem nefasta à qual sucumbiu o próprio Freud e que responde precisamente a uma metafísica cuja crítica tentei em outro lugar (GOLDENBERG, 2018GOLDENBERG, R. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2018.).

Em todo caso, não há nada a ser encontrado fora do relato que possa valer a título de “real”. E dizer isso tampouco significa que o relato valha como produção do inconsciente per se, mas, antes, pelas lacunas e contradições ou incongruências que se podem localizar através da sua forma. O conteúdo temático é o pre-texto incontornável, mas o único real que nos concerne enquanto analistas durante uma análise são os furos na trama narrativa. Eles não indicam a ausência de algo que deveria estar presente e faltou, mas, antes, valem como faltas produzidas no e pelo relato mesmo.

Dizia que, chegados a este ponto (se chegarmos, o que já estaria de bom tamanho, haja vista que muitos se conformam com a apreensão psicológica das lembranças do trauma como sendo a finalidade última da sua operação), a significação inconsciente desta trama e de seus hiatos ainda está para ser produzida, precisamente em relação ao analista que somos para cada um dos nossos pacientes, isto é, na transferência.

Em suma, do meu lado, não vejo porquê deva pressupor que escutar “me dói” tenha mais peso ontológico do que “ontem minha prima ligou para me cumprimentar pelo meu aniversário”. E a atenção flutuante - correlata, no analista, da associação livre do analisante - consiste em não privilegiar o primeiro sobre o segundo (ou vice-versa). Em primeiro lugar, parece prudente aguardar o que virá, antes de concluir que sabemos quem fala e o que está dizendo aquele que nos declara a sua dor durante a sessão analítica. Em segundo lugar, não está descartado que o desvio através do telefonema da prima seja uma via de acesso mais fecunda para entender a natureza desta dor que concluindo, a priori, “dói, logo se goza”.

A propósito, a denominada regra de abstinência, na qual se sustenta a neutralidade que se deveria observar em psicanálise, não é, a meu ver, “abstenha-se de ir para a cama com seu paciente” ou “não permita que ele faça nada de decisivo na vida enquanto a análise acontece”, mas, precisamente, “não se apresse em compreender rápido demais o que ele diz”, para se permanecer aberto ao enigma do desejo do Outro que o relato carrega. E não faço aqui a menor distinção entre dor física ou dor psíquica. Toda dor é “psíquica”, ou antes - porque já antevejo que ninguém irá considerar as aspas que acabo de botar sobre a palavrinha -, esta distinção é irrelevante para aquele cuja única matéria de trabalho é o discurso.

Já do lado do doído (do doido?) empenhado em contar-nos a sua dor, acontecerá no decorrer do processo tropeços, brancos, mal-entendidos, anfibologias, duplos sentidos, homofonias, digressões, enfim, os hiatos e paradoxos onde a dor que deveras sente pode dizer-se, deixando ouvir no conto que ele nos conta outro discurso. Dando-lhe ouvidos, podemos confiar que a dor mesma, o sentimento em questão, enfim, aquilo que temos o hábito de considerar extra discursivo e instalado no corpo, será afetado. Isto é, aliás, o que entendo por “afeto”: os modos como fomos afetados pelo discurso do Outro (nome lacaniano do inconsciente freudiano, que continua me parecendo apropriado).

A repetição de cólicas renais foi a oportunidade de um homem descobrir a identificação inconsciente com seu avô falecido antes de ele nascer. Isso não o poupou da cirurgia, mas, uma vez os cálculos renais desincumbidos de funcionar como signos desta identificação e a função renal liberada da sua amarração simbólica, este senhor pôde dizer, como Freud a propósito do charuto: “Às vezes, uma pedra no rim é apenas uma pedra no rim”. Não posso concordar com a concepção que divide uma análise em dois tempos, o do discurso e o do real corporal da dor. Isto não significa afirmar uma relação causal entre a produção de cálcio excessiva, ou seja, o que for que cause cálculos renais, e a idealização do pai da mãe. Digo que a interpretação desta desfaz uma falsa conexão e libera uma função fisiológica do peso de uma significação (imagino que ninguém duvida do peso que uma significação possa ter sobre quem a carrega). Não se trata, tampouco, de acrescentar à dor o atributo novo de ser um modo de gozo; ao contrário, trata-se de retirar dela toda significação, de torná-la insignificante.

Fiquei tentado a concluir estas notas com aquela pieguice que o Che Guevara jamais disse: “endurecerse, sin perder la ternura jamás”, mas nunca faria uma coisa dessas. Espero apenas ter sido bem sucedido em mostrar o ponto de deslocamento da moral para a ética e, no sentido contrário, de resistência contra o inconsciente na idealização, mais ou menos inadvertida, do sofrimento como objeto, assim como a falácia do psicanalista de pedra, espelho do paciente sofredor.

REFERÊNCIAS

  • ALLIO, R. La Vielle Dame Indigne, 1965 [Filme].
  • BORGES, J. L. El otro tigre. Buenos Aires: Emecé, 1996. (Obras completas, 2)
  • FORMAN, M. One flew over th cuckoo's nest. 1975 [Filme].
  • FREUD, S. El provenir de una ilusión (1927). Buenos Aires: Amorrortu. (Sigmund Freud Obras Completas)
  • FREUD, S. Pueden los legos ejercer el análisis? (1926). Buenos Aires: Amorrortu . (Sigmund Freud Obras Completas)
  • FREUD, S.; PFISTER, O. Correspondência 1909-1939. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1966.
  • GOLDENBERG, R. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2018.
  • GOLDENBERG, R. Corte e costura. In: COSTA PINTO, M. (org.) O livro de ouro da psicanálise. São Paulo: Ediouro. 2007.
  • JARRY, A. Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien. Paris: Mercure de France, 1898.
  • JARRY, A. Ubu Roi. Paris: Mercure de France, 1896.
  • KARDINER, A. My analysis with Freud: reminiscenses. New York: Norton, 1977.
  • KESEY, K. One Flew Over the Cuckoo’s Nest. New York: Viking Press, 1962.
  • LACAN, J. Variantes do tratamento padrão (1955). In: LACAN, J. Escritos, Rio: Zahar, 1998.
  • LANG, F. M, o vampiro de Düsseldorf. 1931. [Filme].
  • PESSOA, F. Autopsicografia (1942). In: PESSOA, F. Poesias. Lisboa: Ática, 1995.
  • TARANTINO, Q. Kill Bill. 2007. [Filme].
  • TODOROV, T. Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o século XX. Rio: Record, 2002.
  • TOLKIEN, J. R. R. The Lord of the Rings (1949). London: Harper Collins, 1975.
  • WACHOVSKY SISTERS. The Matrix.1999 [Filme].
  • 1
    Alfred Jarry (1873/1907), muito mais do que Joyce, ressoa no estilo de Lacan.
  • 2
    Paráfrase de uma fala do personagem da peça Ubu Rei: “Viva Polônia! Porque, sem Polônia, não haveria polacos”.
  • 3
    Seriado da Netflix (2020), baseado na personagem do romance de Kesey, Um estranho no ninho, e no filme homônimo de Milos Forman.
  • 4
    “Tende coragem de saber” ou, ainda, “Atreve-te a pensar”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2021
  • Aceito
    12 Set 2022
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