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O lugar do perito e o lugar do analista na abordagem do louco infrator

The expertise's and analyst's place in the approach of insane offender

Resumos

Busca-se identificar e discutir o lugar da perícia e o do analista no acompanhamento de loucos infratores, a partir das contribuições da psicanálise de orientação lacaniana. Enquanto a perícia se orienta pelo saber disciplinar que visa o controle baseado em modelo standard de tratamento, resultando na segregação das singularidades, a psicanálise propõe que se ocupe um lugar esvaziado de saber e que o analista se guie pelas invenções do sujeito capazes de conectá-lo ao laço social, sem perder de vista os modos de satisfação singulares ligados às amarrações de cada um.

Perícia; lugar do analista; louco infrator; sujeito; invenção


The expertise's and analyst's place in the approach of insane offender. The article discusses the place of expert and the place of analyst in attending insane offenders, from the contributions of Lacanian psychoanalysis. While the expertise is guided by the disciplinary knowledge that seeks to control based in a standard model of treatment that segregates the singularities, psychoanalysis proposes that analyst occupies a place emptied of knowledge and is guided by the inventions of subject able to connect him to social bond, without losing sight the singular modes of satisfaction of the each one knot.

Expertise; analyst's place; insane offender; subject; invention


ARTIGOS

O lugar do perito e o lugar do analista na abordagem do louco infrator* * Agradecimentos à Fernanda Otoni de Barros-Brisset, pela grande generosidade na transmissão de seu saber-fazer com a clínica.

Romina Moreira de Magalhães Gomes

Psicanalista, doutoranda em Psicologia na área de Concentração em Estudos Psicanalíticos, pela UFMG, psicóloga judicial do Núcleo Supervisor do PAI-PJ, TJMG. rominagomes@hotmail.com

RESUMO

Busca-se identificar e discutir o lugar da perícia e o do analista no acompanhamento de loucos infratores, a partir das contribuições da psicanálise de orientação lacaniana. Enquanto a perícia se orienta pelo saber disciplinar que visa o controle baseado em modelo standard de tratamento, resultando na segregação das singularidades, a psicanálise propõe que se ocupe um lugar esvaziado de saber e que o analista se guie pelas invenções do sujeito capazes de conectá-lo ao laço social, sem perder de vista os modos de satisfação singulares ligados às amarrações de cada um.

Palavras-chave: Perícia, lugar do analista, louco infrator, sujeito, invenção.

ABSTRACT

The expertise's and analyst's place in the approach of insane offender. The article discusses the place of expert and the place of analyst in attending insane offenders, from the contributions of Lacanian psychoanalysis. While the expertise is guided by the disciplinary knowledge that seeks to control based in a standard model of treatment that segregates the singularities, psychoanalysis proposes that analyst occupies a place emptied of knowledge and is guided by the inventions of subject able to connect him to social bond, without losing sight the singular modes of satisfaction of the each one knot.

Keywords: Expertise, analyst's place, insane offender, subject, invention.

Crimes bárbaros noticiados pela mídia têm mobilizado a procura por

experts, como tentativa de aplacar a angústia diante da falta de saber. Falas de peritos invadem noticiários, matérias em revistas e jornais, atestando um suposto saber sobre o crime e sobre aqueles que o cometeram. Perfis de criminosos são traçados e tomados como verdades científicas que orientam as ações frente à violência nas cidades: o mal existe e se encarna no criminoso!

Crime e doença, como lembra Jean-Claude Milner (2007), são hoje os grandes desafios aos órgãos de poder, mobilizando estratégias de controle e ações preventivas. Entretanto, as estratégias e ações são frutos de um saber normativo que prescinde da dimensão do sujeito em sua singularidade. Trata-se, assim, de perguntar se seriam possíveis outras respostas à questão da violência que possam incluir a subjetividade. É o que se busca pensar neste artigo, recorrendo às contribuições da teoria psicanalítica. O recurso à psicanálise permite, ainda, fazer uma leitura sobre o lugar do perito e o lugar do analista na atenção ao louco infrator, considerando as dimensões do sujeito e do saber.

O SABER E OS MECANISMOS DE CONTROLE

Já no final do século XVIII e início do XIX, com a formação da sociedade disciplinar, tanto as penas aplicadas ao infrator quanto o tratamento daqueles que apresentam sofrimento mental passaram a visar o controle do sujeito e da virtualidade das ações. Com o surgimento da psiquiatria e sua aliança ao direito penal, as penas começaram a incidir não tanto sobre o ato cometido, mas visavam o controle do que o sujeito podia vir a fazer. A noção de indivíduo perigoso surgiu a partir de então, atrelando a loucura à periculosidade (FOUCAULT, 1973/2003).1 1 Sobre o conceito de periculosidade, ver a tese de doutorado de Fernanda Otoni de Barros, Gênese do conceito de periculosidade, defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas: Sociologia e Política, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Para Foucault, "se a psiquiatria se tornou tão importante no século XVIII não foi simplesmente porque ela aplicava uma nova racionalidade médica às desordens da mente ou da conduta, foi também porque ela funcionava como uma forma de higiene pública" (1978/2006, p.9). Na virada para o século XIX, a psiquiatria alcançou autonomia como saber por ter se inserido na medicina enquanto modo de reação aos perigos próprios ao corpo social. Com o aumento da população em áreas urbanas e o surgimento da mão de obra industrial, o corpo social aparece como um campo de intervenção médica, devido ao aparecimento das questões biológicas ligadas às populações humanas, tais como aumento da natalidade, mortalidade, condições de moradia e fenômenos patológicos como epidemias. Os psiquiatras da época consideravam que as condições insalubres de vida podiam levar à loucura. Além disso, o louco era tomado como fonte de perigos para os outros, para si mesmo e para sua descendência, pois se supunha uma transmissão hereditária da loucura (FOUCAULT, 1978/2006).

A função de vigilância que passou a se exercer desde então permitiu a constituição de um saber-poder denominado por Michel Foucault de exame. Essa forma de saber ordena-se em torno da norma e prescreve comportamentos considerados normais. Os saberes disciplinares, dentre os quais se situam a pedagogia, a psicologia e a psiquiatria, operam segundo a lógica do exame: "a todo momento se pune, se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior" (FOUCAULT, 1973/2003, p.120).

A crença infantil de que o bem deve ser recompensado e o mal deve ser castigado está na base dos mecanismos de controle que se desenvolveram a partir dos saberes disciplinares. Essa crença, por se apresentar como saber inquestionável, orienta as ações quando se trata de responder ao desvio da norma e à violência. Por parecer tão natural, como "ordem das coisas", tal saber pode produzir agentes sem que tenham decidido por isto (MILNER, 2007).

A consequência de se abordar o problema pela via do controle é o abandono do sofrimento à própria sorte, produzindo-se o descuido (MILNER, 2007). Engendrar uma máquina de produção de "intratáveis" pode ser finalmente o maior efeito desse mecanismo.2 2 Veja-se, por exemplo, o caso de Champinha, que permaneceu no sistema prisional de São Paulo, ainda que a medida judicial aplicada tenha sido extinta. Seguindo essa lógica, perpetua-se a falta de atenção ao sofrimento, favorecendo-se a ação destrutiva da pulsão de morte.

O descuido vem acompanhado da destruição, conforme mostrou Hannah Arendt (1983), a partir do julgamento do carrasco nazista Eichmann. Ao comentar os massacres administrativos dos judeus que ocorreram no governo totalitário nazista, a autora aponta para o fato de o descuido ser uma das formas de apresentação do mal banalizado que surge no mundo contemporâneo. A banalidade estaria no fato de Eichmann ter se tornado um dos maiores assassinos do governo nazista exatamente por esse descuido que nos remete à ação da pulsão de morte, e não por estupidez ou por uma natureza demoníaca. Isso é o que nos deixa mais perplexos: o controle total e a destruição por descuido caminham juntos (GOMES, 2008)!

No governo das coisas, o saber dos peritos é um instrumento que serve para orientar as decisões. Jean-Claude Milner denomina governo das coisas as decisões sobre o futuro das pessoas baseadas no saber de especialistas, que visam apenas manter uma ordem estabelecida, prescindindo da dimensão do sujeito em sua singularidade. Assim, a perícia "responde a uma demanda que provém dos que decidem: diga-me o que está se passando hoje, diga-me o que tenho que saber" (MILNER, 2007, p.33).

Mas só pode haver certeza sobre o que já se passou; não há saber científico que permita uma previsão infalível, já que existe a contingência. A consequência disso é que as previsões dos experts são, na melhor das hipóteses, continuamente superadas, referem-se sempre ao passado, ou, no extremo, não podem sequer ser chamadas de científicas. O ato médico supremo seria então a autópsia, prossegue Milner, já que a morte é a única fonte de certeza que temos. Dentro dessa lógica, os sujeitos só seriam admitidos sob a forma de cadáveres.

Lembremos, com Karl Popper (2000), que a ciência é feita de conhecimentos hipotéticos, provisórios, sempre refutáveis, diferenciando-se assim da episteme e do conhecimento definitivo. O saber da perícia, por outro lado, apresenta-se muito mais como hipótese não testável, a ser sempre confirmada. Ainda de acordo com Milner (2007), perícia científica é uma expressão contraditória em seus termos. A investigação científica é fundada em uma estrutura lógica e temporal que não tem o objetivo de confirmar hipóteses, mas pode invalidá-las, produzindo uma ruptura com o saber estabelecido.

Fernanda Otoni de Barros (2004), ao retomar as contribuições de Anthony Giddens, afirma que a crença em sistemas peritos perfeitos, em habilidades técnicas infalíveis é uma ficção criada pelo homem, pois elementos do acaso podem sempre intervir, demonstrando a impossibilidade de um saber total que elimine definitivamente os riscos. A confiança no saber é sempre cega, e isso vale igualmente para a confiança que se deposita no saber dos peritos.

A medicalização generalizada que ocorre em nossa sociedade pode ser entendida como um novo modo de apresentação do controle. De acordo com Robert Castel (1987), os medicamentos representam o denominador comum da prática psiquiátrica hoje. O autor afirma que esta prática vem se transformando em atividade de avaliação: "O psiquiatra aparece cada vez mais como um especialista que marca um destino sem modificar uma situação" (CASTEL, 1987, p.111). Para prevenir os perigos que desde o século XIX foram atrelados à existência do louco (FOUCAULT, 1978/2006), a psiquiatria biológica prescreve medicamento para todos os psicóticos, a despeito das singularidades.

Para o louco infrator, que depende da avaliação dos peritos forenses para definir os rumos de sua história, a situação não é diferente. A avaliação da perícia pode resultar até mesmo na impossibilidade de extinção do processo que engendrou as relações do sujeito à justiça. É o modo de controle mais extremo que renasce por essa via: para alguns, pode existir prisão perpétua, ainda que nossa Constituição Federal assegure que não deve haver, como um direito fundamental de qualquer cidadão.

DAS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE

No texto Pequeno discurso aos psiquiatras, Jacques Lacan assinala o declínio da clínica psiquiátrica que é absorvida pela medicina, na medida em que esta entra inteiramente no dinamismo farmacêutico:

"A psiquiatria entra na medicina geral na mesma base em que a medicina geral entra completamente no dinamismo farmacêutico. Evidentemente, produzem-se aí novas coisas: obnubila-se, tempera-se, interfere-se ou modifica-se. Mas, não se sabe bem o que se modifica, nem até onde irão essas modificações; (...)." (LACAN, 1967, p.4)3 3 No original: " La psychiatrie rentre dans la médecine générale sur la base de ceci que la médecine générale entre elle-même entièrement dans le dynamisme pharmaceutique. Évidemment, il se produit là des choses nouvelles: on obnubile, on tempère, on interfère ou modifie... Mais on ne sait pas du tout ce qu'on modifie, ni d'ailleurs où iront ces modifications, ni même le sens qu'elles ont."

O autor aponta, assim, para a dimensão acéfala da ciência em sua aliança ao discurso capitalista. Nesse sentido, Dominique Laurent (2007) chama a atenção para o fato de a psiquiatria biológica nos Estados Unidos não se questionar sobre a fragmentação da clínica psiquiátrica, ao se deparar com o aumento das passagens ao ato homicida pelos jovens americanos, apesar de tais atos causarem comoção social e mobilizarem diferentes áreas do saber.

O isolamento do louco como objeto da psiquiatria, de acordo com Lacan (1967), permite o aparecimento de uma função que subsiste ao declínio da clínica psiquiátrica e permanece na concepção de tratamento da psiquiatria contemporânea. Se tendemos cada vez menos a isolar o louco é devido ao surgimento de outras formas de contenção que substituem os muros do asilo. Lacan aborda a questão dos medicamentos, para dizer que a loucura não se dissolve em razão da difusão do tratamento com psicofármacos no campo psiquiátrico.

No texto O lugar da psicanálise na medicina (1966/2001), Lacan afirma que a autoridade do médico declina em função das transformações trazidas pelos avanços da ciência; ele se torna um especialista entre muitos e é convocado a responder como um agente distribuidor.

Assim, a associação entre a ciência e o discurso do capitalista permite-nos entrever a maneira pela qual o consumo se coloca como exigência — a medicação aparece como mais um dos objetos de consumo, ofertados pela indústria farmacológica. Lacan (1967) considera, entretanto, que o louco não demanda objetos passíveis de completar o Outro, tal como fazem os neuróticos. Ele não se liga ao Outro pelo objeto a, porque ele o tem a sua disposição, no bolso.

No mundo contemporâneo, a inserção social apresenta-se predominantemente como consumo (Miller, 2008). O sujeito psicótico, por sua vez, pode se mostrar avesso à inserção por essa via, colocando impasses à ordem do consumo.

O tratamento da psicose requer um Outro permeável, que possa abrir a possibilidade a que o sujeito insira algo próprio. Segundo propõem Antônio Teixeira e outros (2008), a inserção pode acontecer se o Outro é flexível, capaz de se modificar a partir das singularidades que acolhe.

Constatamos, entretanto, que há no discurso da psiquiatria biológica uma proposta de normalização da loucura, ao pretender que o louco se adapte a essa exigência de consumo, como se fosse possível estabelecer, com a demanda generalizada de consumo de medicação, uma suplência universal e um único modo de gozo para todos. Diante dessa proposta universalizante, cabe verificar como os casos respondem. Certamente, para muitos psicóticos o medicamento é um recurso fundamental. Mas, seria assim para todos? O tratamento do gozo teria uma relação necessária com o uso de neurolépticos?

Alguns casos demonstram que uma estabilização pode acontecer independente do uso de medicamentos. Evidentemente, isto ocorre como resultado de muito trabalho por parte do sujeito. Todavia, o importante a ressaltar aqui é que esses casos interrogam a relação necessária estabelecida entre o uso de medicamento e os efeitos de estabilização, levando-nos a considerar tal relação como uma ficção na qual se crê como uma verdade científica, que se mantém graças aos investimentos e interesses da indústria farmacológica. A complexidade da clínica e a singularidade do encontro de cada sujeito com a questão do medicamento inviabilizam esse ideal do tratamento medicamentoso para todos.

Considero que há uma passagem da instituição total ao saber com pretensões totalitárias que alimenta novas formas de controle. Como mostrou Deleuze (1992), o controle é hoje muito mais sutil e acontece também nos espaços abertos. Apesar de haver, com a Reforma Psiquiátrica no Brasil, uma substituição do modelo manicomial de tratamento pelos serviços abertos, o que parece se constituir na atualidade é um saber total que, a meu ver, somente a abertura às singularidades permitiria descompletar.

A experiência clínica com loucos infratores mostra que cada sujeito empreende um tratamento singular que envolve a construção de recursos capazes de moderar o gozo, o sofrimento. O que podemos assinalar como universal, no âmbito desse tratamento, é apenas o caráter de moderação do gozo que cada solução singular porta.

Ao recuperar as elaborações de Foucault, verificamos que, desde o surgimento do discurso psiquiátrico como saber disciplinar, o louco é tomado como um objeto, e não propriamente como um sujeito. Se nos voltarmos, por outro lado, aos escritos de Freud e Lacan, constatamos que a direção do tratamento caminha em sentido diverso. Lacan, ao retomar a leitura sobre o caso Schreber, afirma que "a liberdade que Freud se deu aí foi simplesmente aquela, decisiva em tal matéria, de introduzir o sujeito como tal, o que significa não avaliar o louco em termos de déficit e de dissociação das funções." (LACAN, 1966/2003, p.220).

A direção do tratamento na psicose, de acordo com Lacan, caminha de modo a produzir uma separação do objeto, para que o próprio sujeito não se reduza à condição de objeto de gozo para o Outro. Pierre Naveau (2007) precisa esse aspecto ao afirmar que, quando não houve a extração do objeto, existem dois modos de operá-la: "uma violenta e forçada", tal como se dá na passagem ao ato, "e outra não violenta e não forçada", que pode ser o trabalho de invenção empreendido pelo psicótico. Tratar o psicótico como objeto não seria justamente constituí-lo como perigoso, já que se encontra no horizonte a possibilidade da passagem ao ato?

Nos últimos anos do ensino de Lacan, a psicose deixa de ser tributária de um déficit com relação à neurose, permitindo-nos pensar a clínica e o trabalho de invenção empreendido por cada sujeito. A pluralização dos nomes do pai, ocorrida no início dos anos 1960, possibilita os avanços teóricos relativos à clínica da psicose, ao apontar que o par nome do pai e função fálica é mais um dentre as inumeráveis invenções possíveis para tratar o real. Lacan abandona, desta maneira, o nome do pai e o falo como normas e passa à multiplicidade de amarrações que os seres falantes apresentam. Essa concepção do ser falante permite radicalizar o rompimento com a normatividade própria ao discurso psiquiátrico e estabelecer o sintoma como a norma singular que pode dar consistência ao ser falante. Pois o sintoma, como afirma Miller (2003, p.10), "seria a regra própria de distribuição da libido de cada sujeito". O sujeito pode, assim, conectar-se ao Outro de acordo com sua singularidade, a partir da construção de uma resposta razoável, sem, contudo, prescindir de uma parcela de satisfação (BARROS-BRISSET, 2010).

Lacan oferece um ponto de partida para pensarmos as invenções, no Seminário 21, quando considera que todo ser falante inventa algo para preencher o furo no real — cada um inventa o que pode. "O saber, ali onde o apreendemos pela primeira vez, assim, manejável, [...] todos sabemos porque inventamos um truque para preencher o furo no real. Aí onde não há relação sexual, isso produz troumatisme. Inventa-se. Inventa-se o que se pode." (LACAN, 1974).

Lacan toma a invenção como forma de saber, como uma resposta do ser falante ao real, pelo fato de não haver complementaridade entre sujeito e objeto. No Seminário 23, apresenta-nos uma definição da responsabilidade como a arte da qual cada um é capaz, ou seja, a resposta singular que cada ser falante inventa. A responsabilidade de cada um, isto é, o saber fazer com o gozo designa um saber faltoso, à medida que esse fazer escapa.

Como aponta Miller (2003b), ao analista cabe devolver ao sujeito a lógica de sua invenção. Ele pode assim ampliar seus recursos, ao se apropriar de seu modo singular de tratar o sofrimento.

O LUGAR DO ANALISTA NA CLÍNICA COM LOUCOS INFRATORES

Ao longo dos dez anos de experiência do PAI-PJ(Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais), a psicanálise de orientação lacaniana tem se mostrado um instrumento que permite a sustentação do trabalho, pois se propõe a mediar a relação do sujeito com a justiça e com o tratamento. Como nos diz Fernanda Otoni de Barros, a existência desse lugar mediador que se caracteriza por dar lugar ao sujeito, escutando o modo singular como cada um pode tratar seu sofrimento, tem demonstrado que é possível prescindir de soluções segregativas, na atenção ao louco infrator (BARROS-BRISSET, 2010).

Na clínica com loucos infratores, confrontamo-nos com a demanda de tratamento por parte da justiça, que tem como fim último a inserção social. O psicótico infrator é objeto de legislação específica, que prevê a necessidade de tratamento, visando sua reinserção na sociedade. Entretanto, como demonstra a experiência com os casos acompanhados pelo PAI-PJ, essa demanda de inserção não se faz sem uma tentativa de supressão dos sintomas da loucura e de adaptação social, verificadas no momento em que o sujeito pode encerrar suas relações com a justiça, pela obtenção da cessação de periculosidade, no exame psiquiátrico que põe fim à medida judicial.

O modelo de tratamento que orienta os peritos forenses ligados à psiquiatria biológica requer, necessariamente, o uso de neurolépticos, a despeito do trabalho de invenção e responsabilização empreendido por muitos psicóticos. É um modelo que dispensa a posição do sujeito.

Parece-me que o imperativo universal do consumo de medicação para todos os psicóticos pode acabar recaindo no problema da segregação, que seria assim formulado: passa no exame de cessação de periculosidade apenas o psicótico que faz uso de neurolépticos. Os que não usam ficariam eternamente ligados à justiça. Assim, constituir-se-ia um novo modelo de segregação que viria substituir o asilo.

Lacan (1950/2003) identifica aí uma concepção sanitária da pena no surgimento da criminologia, disciplina que se localiza na interface entre direito penal e psiquiatria. Ele aponta o perigo da segregação que se vincula a tal concepção e localiza nesse contexto as funções do perito que avalia o criminoso, visando tomar medidas preventivas contra o crime. Sobre este ponto, Miller considera que não nos encontramos mais na época do "vigiar e punir", mas num momento que "a palavra de ordem é 'vigiar e prevenir'" (MILLER, 2005, p.4).

Podemos estabelecer uma correspondência entre a concepção sanitária presente na perícia assinalada por Lacan e o neo-higienismo contemporâneo, que toma o homem médio como referência, como apontado por Miller ao abordar o romance de Robert Musil, O homem sem qualidades. Musil, nessa reflexão sobre o pensamento estatístico, refere-se à substituição do verdadeiro pelo provável, que ocorre no mundo contemporâneo. No campo da saúde mental, o princípio da epidemiologia vincula-se à categoria do homem médio de Quételet. Assim, define-se o normal e o patológico unicamente com base na média e nos desvios desta. O homem sem qualidades, conforme nos diz Miller, é o homem quantitativo de Quételet, é a unidade contável e comparável que alimenta o discurso universal.

A grande contribuição da psicanálise para o campo da saúde mental seria justamente abrir a possibilidade de orientar-se pela singularidade de cada sujeito, de secretariá-lo na constituição de laços com a cidade (BARROS-BRISSET, 2010). Mas como localizar a posição do analista na clínica com loucos infratores? É necessário situarmos a época em que estamos inseridos para pensarmos o lugar do analista e sua responsabilidade neste contexto.

Em Intuições milanesas, Miller assinala que não vivemos mais em uma sociedade disciplinar. Com o avanço do discurso do capitalismo, o fato de a busca pelo gozo orientar a vida social implica reconhecermos o fim da época disciplinar e que há somente "trajetórias, arranjos e regimes de gozo" (MILLER, 2002, p.14). O autor aponta, no último ensino de Lacan, um modo de abordar a subjetividade específica da era da globalização, pois o foco do tratamento se desloca para as mudanças que podem ocorrer na relação entre o ser falante e o gozo.

Marie-Hélène Brousse, em O inconsciente é a política, afirma que a neutralidade do analista implica que ele possa orientar-se dentro da subjetividade de sua época. A neutralidade implica não emitir juízos, não confundir a própria função com a de um juiz. E implica, sobretudo, um compromisso com o ser falante e seu sintoma, um "engajamento com relação à orientação do sujeito" (BROUSSE, 2003, p.21).

A autora lembra ainda que "a psicanálise é uma escolha sobre uma modalidade particular de tratamento sobre o gozo." (Idem, p.31). É um discurso em que o ser falante, com suas respostas, não é segregado, diferentemente dos discursos que fazem mestria, ou seja, nos quais o simbólico ocupa função de comando. É a única forma de laço social, para sermos precisos, em que se pode prescindir da segregação, ao dar lugar ao ser falante com seus modos de satisfação.

É necessário, no entanto, considerar ainda um aspecto sobre a especificidade dos sujeitos psicóticos em sua relação com a justiça. Jean-Claude Milner (2007) adverte que a avaliação é uma ideologia que se presta a tudo. Instituições como hospitais e prisões se servem dessa ideologia e dos profissionais "psi" para intervir na dimensão mais íntima e secreta da vida das pessoas, visando conectá-las à normalidade dos grupos.

Frente a essa ideologia, algo do singular deve ser resguardado, considerando-se a exposição que pode acontecer nos processos. A preservação da intimidade de cada um exige uma parcela de desconexão entre o singular e o coletivo, uma zona em que o controle não possa penetrar, para a manutenção do que não cabe regular da singularidade (MILNER, 2007). Assim, ao analista cabe cuidar do direito ao segredo que a ética assegura a cada sujeito.

CONCLUSÃO

A perícia, ao se ancorar no saber disciplinar para intervir nas decisões sobre o futuro, que é sempre condicionado às contingências, não leva em conta a dimensão do sujeito, tomando-o como objeto. Milner esclarece que a certeza desse saber pretensamente totalizante só pode se realizar no campo da medicina legal, na prática da autópsia que ocorre com cadáveres.

O lugar do perito e o lugar do psicanalista são heterogêneos, não coincidem, devido às posições diferentes que ocupam frente ao saber e ao sujeito. O lugar do analista define-se pelo não saber, por dar lugar ao sujeito para que apresente suas respostas para lidar com o sofrimento que o acomete. O termo perícia, por outro lado, parece carregar consigo uma vinculação inexorável ao saber, inviabilizando a apresentação do sujeito. Podemos concluir que somente as singularidades permitem descompletar o saber totalitário que se constitui no mundo atual. Assim, uma questão permanece: A demonstração da possibilidade de respostas razoáveis diferentes dos modelos standards poderia guiar as decisões sobre o destino do louco infrator?

Recebido em 28/5/2010.

Aprovado em 24/6/2010.

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    Agradecimentos à Fernanda Otoni de Barros-Brisset, pela grande generosidade na transmissão de seu saber-fazer com a clínica.
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    Sobre o conceito de periculosidade, ver a tese de doutorado de Fernanda Otoni de Barros,
    Gênese do conceito de periculosidade, defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas: Sociologia e Política, da Universidade Federal de Minas Gerais.
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    Veja-se, por exemplo, o caso de Champinha, que permaneceu no sistema prisional de São Paulo, ainda que a medida judicial aplicada tenha sido extinta.
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    No original: "
    La psychiatrie rentre dans la médecine générale sur la base de ceci que la médecine générale entre elle-même entièrement dans le dynamisme pharmaceutique. Évidemment, il se produit là des choses nouvelles: on obnubile, on tempère, on interfère ou modifie... Mais on ne sait pas du tout ce qu'on modifie, ni d'ailleurs où iront ces modifications, ni même le sens qu'elles ont."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Maio 2010
    • Aceito
      24 Jun 2010
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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