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A FACE TRANSGRESSORA DA PIADA E DO HUMOR NA VIDA E NA OBRA DE FREUD1 1 Este artigo é fruto da dissertação de mestrado A face transgressora da piada: embates entre o riso e a censura, realizada com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

The transgressive face of joke and humor in the life and work of Freud

Resumo:

Considerar que o pai da psicanálise também possuía um lado jocoso e bem humorado, a princípio, pode causar certo estranhamento. No entanto, ao longo da obra freudiana, bem como em diversos episódios de sua vida pessoal, nos deparamos com momentos e situações inusitadas, nas quais Freud nos dá mostras de seu espirituoso senso de humor e apreço pelas piadas, valorizando-as por sua face transgressora. O presente artigo se propõe a demonstrar como a herança cultural de Freud contribuiu para seu interesse, que, de início, se tratava apenas de mero fascínio pessoal, tornando-se posteriormente tema de investigação psicanalítica.

Palavras-chave:
Freud; piada; humor; herança cultural; transgressão

Abstract:

Considering that the father of psychoanalysis also had a jesting and good humoured side, at first, can cause certain strangeness. However, throughout Freud’s work, as well as several episodes of his personal life, we encounter moments and unusual situations in which Freud gives us samples of his witty sense of humor and appreciation for jokes, valuing them for their transgressive face. This article aims to demonstrate how the cultural heritage of Freud contributed to his interest, which, at first, was just personal fascination, later becoming the subject of psychoanalytic investigation.

Keywords:
Freud; joke; humor; cultural heritage; transgression

UM FREUD ESPIRITUOSO

Em 10 de maio de 1933, ardiam nas praças da Alemanha fogueiras de livros cujas ideias haviam sido condenadas pelo regime nazista. Na lista negra, estavam incluídos desde textos de literatura de esquerda democrática a poetas, romancistas e cientistas, tais como Thomas Mann, Albert Einstein, Karl Marx, Franz Kafka e Sigmund Freud. Ao tomar conhecimento dos fatos, Freud teria comentado a Ernest Jones: “Que progresso estamos fazendo! Na idade média teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros” (GAY, 2012GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 593).

Como se sabe, os nazistas não se contentaram em queimar apenas livros. A perseguição aos judeus e aos opositores do regime piorou cada vez mais no decorrer da década de 1930. Depois de longas negociações, que não teriam acontecido sem a ação da influente amiga Marie Bonaparte, Freud conseguiu partir rumo ao exílio na Inglaterra. Tinha então 82 anos de idade. Ao fim do drama, a Gestapo exigiu que ele assinasse uma carta declarando que havia sido bem tratado pelas autoridades nazistas. Freud assinou a carta, não sem antes escrever, de próprio punho, um pequeno adendo: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos” (GAY, 2012GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 628).

O humor é um traço marcante da personalidade de Freud e de sua obra intelectual, não apenas no sentido de um recurso sempre disponível, mas também como objeto privilegiado de pesquisa, como revelam Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) e O humor (1927FREUD, S. El humor (1927). Buenos Aires: Amorrortu , 1991. (Obras completas, 21).). Pode-se dizer que, em psicanálise, a piada2 2 Consideramos importante apresentarmos logo no início do texto algumas observações quanto à tradução do termo espanhol chiste, por piada. O livro cujo título original em alemão é Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten foi traduzido pela Edição standard brasileira das obras de Freud como Os chistes e sua relação com o inconsciente. Cabe destacar que o termo Witz possui um significado abrangente, fator que dificulta sua tradução para outras línguas. Por exemplo, em francês é traduzido por mot d’esprit, em inglês por joke, em espanhol por chiste, termo adotado igualmente pela edição brasileira. Todavia, tal aproximação para o português é considerada uma escolha problemática e incompatível por diversos autores, a exemplo de Renato Mezan. Para este autor, Freud emprega o termo Witz para referir-se tanto às tiradas ferinas que têm a forma de uma curta sentença sarcástica, quanto às anedotas em forma de historieta. Isto é, Freud emprega Witz no sentido de piada. Assim como as jüdische Witze (piadas de judeus), no Brasil temos as piadas de português, loira, argentino etc. Decidimos, então, seguir a sugestão de Mezan (2005), ao traduzir Witz por piada ou dito espirituoso, e assim iremos nos referir a ele no decorrer deste trabalho, exceto nos casos em que faremos uma citação direta. é objeto de pesquisa tão nobre quanto o sonho, na medida em que compartilharia com ele os mesmos traços essenciais de formação: colocar em cena algo que é desejado, mas censurado, mediante uma deformação em seu material. O sonho e a piada (e, com eles, o sintoma neurótico e o engano) dizem o que não pode ser dito. São atos de transgressão.

Procuramos, nesse trabalho, explorar as raízes do senso de humor freudiano. Destacamos o papel do humor germânico do século XIX, que Freud consumia regularmente, e o humor judaico, cujas anedotas ele chegou a colecionar. Em ambos, encontramos o humor como a arma dos fracos, como um triunfo simbólico sobre aquele que oprime. É interessante notar que o humor nem sempre é o ato transgressivo que queremos aqui destacar. A partir de Minois (2003MINOIS, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.), podemos considerar que uma história política do riso tem dois polos. Ao polo transgressivo, opõe-se um polo conservador. Ao promover a descarga do riso, o humor pode trabalhar para conservar a situação, tirando-lhe um pouco das tensões. O humor pode ainda trabalhar como a arma dos poderosos, que com ele marcam mordazmente as diferenças que pretendem ter para com os outros. O humor rebaixa não apenas o poderoso governante, mas também o já rebaixado homem do povo. Assim, observar o humor de Freud, de suas raízes ao papel que toma em sua obra, é observar também uma tomada de posição que é, ao mesmo tempo, política e clínica.

A HERANÇA CULTURAL E SUAS RESSONÂNCIAS NA VIDA E OBRA DE FREUD

No século XIX, a Alemanha encontrava-se diante de um dilema no que tange à função do riso e da zombaria na sociedade e na política. Em detrimento das impactantes mudanças sociais e econômicas que ocorreram durante o período da Restauração, a pobreza havia aumentado de modo alarmante. Segundo Townsend (2000TOWNSEND, M. L. O humor e a esfera pública na Alemanha do século XIX. In: Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000.), havia um grande temor de que as classes populares promovessem um motim social. Diante desse quadro de crise, os poderes políticos da Europa, assombrados pelo fantasma da Revolução Francesa, convocaram o Congresso de Viena em 1815, a fim de tentar restabelecer a velha ordem social. Na Alemanha, instituíram-se os Decretos de Carlsbad, em 1819: uma série de leis rígidas elaboradas com o objetivo de reprimir toda e qualquer modalidade de dissensão política. Dentre seus regulamentos de maior importância estava a instituição da censura.

Contudo, tais leis de censura, ironicamente, estimularam o espírito subversivo dos cidadãos. Escritores e artistas da época sentiram-se instigados a experimentar múltiplas possibilidades que lhes permitissem escapar ao olhar sempre vigilante do Estado. Eles encontraram na linguagem ambígua do riso e da sátira uma possibilidade de expressão.

O riso tornou-se, então, uma arma política de relevância para os embates contrários ao regime opressivo, permitindo camuflar as críticas sob a aparência de diversão anódina. Esse fenômeno já vinha ocorrendo por toda a Europa e, no caso da Alemanha, aconteceu principalmente na cidade de Berlim3 3 De acordo com Townsend (2000, p. 226), no texto O humor e a esfera pública na Alemanha do século XIX, o humor popular destacou-se na Alemanha oitocentista. Nos dizeres da autora: “Era um fenômeno alemão, na realidade europeu, mas aconteceu de modo surpreendente no Estado da Prússia, principalmente na cidade de Berlim”. Diante disso, entendemos que se trata de um fenômeno cultural germânico, não obstante sua maior proeminência no estado prussiano. . Mas não por acaso. Conforme aponta Minois (2003MINOIS, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003., p. 487), devido a seu popular espírito humorístico, designado como Berliner Witz, Berlim era conhecida como “cidade-mãe da graça” e “pátria do espírito”. Os berlinenses eram famosos por sua zombaria, franqueza e ar de troça.

A força do riso se consolidou à medida que deixou de ser um simples passatempo tradicional, tornando-se um produto comercial, do mercado de massa. A Alemanha criou um novo gênero de publicação: o humor popular comercial, distribuído por diversas modalidades, tais como caricaturas, cartazes e volantes do gênero humorístico, folhetos de chistes (Witzhefte) etc. Além desses, surgiram grandes títulos de imprensa, a exemplo do Fliegende Blätter, fundado em 1845, a Leuchtkugeln, criada em 1848, em Munique, o Berliner Charivari e o Simplicissimus, no ano de 1896 (MINOIS, 2003MINOIS, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.).

O sucesso desse novo gênero foi de grande repercussão, pois havia um enorme público em potencial. De acordo com Townsend (2000TOWNSEND, M. L. O humor e a esfera pública na Alemanha do século XIX. In: Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000.), em 1840, cerca de oitenta e cinco por cento da população berlinense adulta era alfabetizada. Assim, todas as camadas sociais tinham acesso a essas publicações, desde o ajudante de barbeiro até os membros da corte de Berlim. Em meio a esta vasta gama de publicações, um personagem sobressaiu-se e rapidamente conquistou a preferência nacional, tornando-se a figura cômica favorita deste período: o Eckensteher Nante.

O personagem foi inspirado no trabalhador rude e indisciplinado da vida real, que aguardava diariamente por um contrato de trabalho. Era uma figura habitual não somente nas ruas de Berlim, mas por toda Europa Central. A famosa figura astuta, de comentários ásperos e pretenso talento para a réplica, tornou-se uma ferramenta literária útil. Os escritores e humoristas apoiaram-se no Eckensteher Nante para criticar o Estado de forma indireta, por meio de suas piadas aparentemente inocentes.

Citamos como exemplo a seguinte anedota, presente em um livro de piadas publicado em 1845, referente ao tratamento vergonhoso dado pelo Estado prussiano aos veteranos das Guerras de Libertação. Estes haviam lutado em prol da libertação do país, que estava sob jugo estrangeiro, no entanto, foram recompensados apenas com desemprego e desesperança. Na anedota, um ex-soldado comenta com o amigo: “É bom morrer pela Pátria... porque assim você não precisa viver como um veterano incapaz” (TOWNSEND, 2000TOWNSEND, M. L. O humor e a esfera pública na Alemanha do século XIX. In: Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 240).

Diante do amplo impacto que o personagem provocou na sociedade, o Estado encontrou-se perante uma complexa polêmica quanto ao riso. Preocupado com o crescente poder de influência do personagem, manteve todas as manifestações literárias e artísticas do Eckensteher Nante sob a vigilância rigorosa da polícia prussiana. Sua posição era cautelosa. Por um lado, o governo concedia certa liberdade às publicações humorísticas, pois acreditava que elas representariam uma alternativa inócua à agitação política. Todavia, ao mesmo tempo, tinha plena convicção de que o humor político poderia disseminar ideias subversivas entre a população, o que poderia resultar em uma fragilização dos alicerces morais do Estado. O governo conhecia bem as possibilidades ameaçadoras do riso. Em suma, o delicado posicionamento do governo perante o riso resumia-se ao seguinte dilema: adotar uma postura de tolerância plena demais para permitir o exutório ou uma política de interdição estrita demais para evitar uma contaminação social profunda?

Tal dilema não é exclusivo da Alemanha do século XIX. O riso funciona ao mesmo tempo como uma força revolucionária e como uma válvula de segurança, podendo incitar uma rebelião ou acalmar os espíritos indisciplinados. Em todo caso, era uma força a ser cautelosamente considerada.

O Eckensteher Nante foi um importante exemplo que demonstra como o riso desempenhou um papel crucial na esfera pública da revolucionária Europa Central de 1848. Ao personificar o povo alemão, o personagem proferiu críticas e zombarias contra o Estado e seu opressivo status quo, além de ter defendido uma mudança política e social que poderia beneficiar toda a sociedade, principalmente as classes populares. Minois (2003MINOIS, G. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.) salienta que compartilhar o riso com o Eckensteher Nante tornou possível aos alemães construir uma sólida cultura política longe do alcance da repressão governamental. Sua importância reside no fato de que o povo pôde seguramente criticar o poder e os infortúnios da sociedade por seu intermédio.

Cabe salientar que os ecos desse humor politizado reverberaram na Viena fin-de-siècle freudiana. Bruno Bettelheim (1956BETTELHEIM, B. A Viena de Freud e outros ensaios (1956). Rio de Janeiro: Campos, 1991./1991) descreve que, ao final do século XIX, a cidade austríaca, capital do império austro-húngaro, encontrava-se em processo de decadência militar e política, sendo progressivamente substituída por Berlim como centro dos estados de língua alemã. A decadência política de Viena levou a vasta maioria dos vienenses a buscar maneiras de escapar à apreensão que sentiam ao constatarem que sua organização social tradicional e segura estava se desintegrando. Uma das maneiras encontradas para enfrentar a aterrorizante realidade dos acontecimentos foi utilizar a negação como uma espécie de defesa. A elite vienense passou a desprezar a importância dos acontecimentos à sua volta, concentrando-se na diversão despreocupada e inconsequente.

A negação pelo divertimento imperava. Sucediam-se espetáculos de todos os tipos, a exemplo de operetas, valsas, desfiles e bailes; publicavam-se importantes obras de literatura e de poesia; abriam-se exposições e estreavam-se musicais e sinfonias. Com essas contínuas comemorações, negava-se à decadência do império qualquer gravidade.

Eram ocasiões nas quais os artistas exibiam seu talento e imaginação, ao mesmo tempo em que divertiam o povo. Contudo, justamente os artistas mais lúcidos iriam desnudar em suas criações essa atmosfera de hipocrisia moral que caracterizava o cotidiano vienense.

Segundo Kipman (1994KIPMAN, S-D. La gloire Du calembour. In: NYSENHOLC, A.; SZAFRAN, W. A. (orgs.). Freud et le rire. Paris: Métailié, 1994., p. 62, tradução nossa), “na época de Freud, nesta Viena magnífica e decadente, o dito espirituoso está na moda e os grandes humoristas são famosos”. Ademais, o autor acrescenta que esse humor era ao mesmo tempo leve e cínico, promovendo o riso enquanto prosseguia demolindo os fundamentos de uma sociedade em declínio. Como todo mundo em Viena, Freud era leitor assíduo de alguns periódicos satíricos, dentre os quais o Simplicissimus e o Die Fackel. Este último era conhecido por ser um espirituoso e devastador flagelo da corrupção política e social, cuja autoria era de Karl Kraus. O responsável pelo periódico era considerado por Freud um escritor com grande talento histriônico, muito habilidoso ao construir reflexões que reuniam inteligência e indignação em textos carregados de humor (GAY, 2012GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).

Para além da cultura germânica, pode-se considerar a penosa história do povo judeu, no seu sofrimento e resistência às condições que lhes foram impostas, como sendo outro fator que viria a contribuir decisivamente para o interesse de Freud no estudo das piadas. Sabe-se que o psicanalista vienense gostava de colecionar piadas, especialmente as mordazes anedotas judaicas. Em carta endereçada a Fliess, datada de 12 de junho de 1897, Freud asseverou: “Devo confessar que desde há algum tempo estou reunindo uma coleção de anedotas de judeus, de profunda importância” (MASSON, 1986MASSON, J. M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago , 1986.; STRACHEY, 1975STRACHEY, J. Nota introductoria a El chiste y su relación con lo inconciente (1975). In: FREUD, S. Obras completas, 8. Buenos Aires: Amorrortu, 1991./1991, p. 4).

A experiência histórica dos judeus, especialmente aquela vivenciada durante o sombrio período da Rússia czarista do século XIX, possibilitou o desenvolvimento do tão característico senso de humor desse povo (NOSEK, 2002NOSEK, L. Humor: estratégia de sobrevivência. In: FRANÇA, M. O. (org.). Freud: a cultura judaica e a modernidade. São Paulo: SENAC, 2002.). Foram tempos duros de opressão e de dificuldades econômicas extremas para grande parte dos judeus da Europa Oriental, que sofriam toda sorte de restrições quanto à sua mobilidade econômica e social.

Os judeus viviam em condições precárias. Não obstante, suas comunidades caracterizavam-se como grupos dotados de forte coesão interna e linguagem própria (o ídiche). Tal coesão era facilitada por uma densa rede de instituições próprias, ligadas à prática religiosa, à educação e aos diversos tipos de assistência aos mais vulneráveis - pobres, órfãos, viúvas, idosos etc.

Dentre essas instituições, a escola foi aquela que certamente mais contribuiu para o desenvolvimento do humor judaico. Cumpre destacar que praticamente todos os judeus eram alfabetizados e o estudo dos textos sagrados era bastante disseminado. A educação favoreceu o desenvolvimento de determinadas capacidades, tais como a percepção de analogias e a habilidade de ler entre as linhas. Mezan (2002MEZAN, R. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras , 2002.) ressalta que a facilidade verbal assim desenvolvida pelos judeus e seu grande apreço pela inteligência e sutileza contribuíram claramente para o desenvolvimento do humor judaico. Todavia, a agudeza de raciocínio e a hostilidade do ambiente não foram os únicos fatores a estimular a gênese desse senso de humor. Ainda de acordo com o autor supracitado, outra condição que é preciso ser levada em consideração é a mudança na relação com a autoridade trazida pela Revolução Francesa. Esta causou um profundo abalo na pretensão das autoridades que até então se consideravam inatingíveis. A ideia de que o status quo era por essência imutável e que os mais fortes sempre estariam em posição de superioridade em relação aos mais fracos, viu-se irremediavelmente contestada.

De acordo com Nosek (2002NOSEK, L. Humor: estratégia de sobrevivência. In: FRANÇA, M. O. (org.). Freud: a cultura judaica e a modernidade. São Paulo: SENAC, 2002.), no caso do povo judeu, o contexto de vida era dos mais injustos e opressivos, e o riso se revelou uma arma extremamente poderosa para criticá-lo, possibilitando uma réstia de esperança no ambiente sufocante em que viviam as comunidades. A crítica às autoridades não-judaicas e à hostilidade delas para com os judeus gerou piadas desde o contexto da Rússia czarista, estendendo-se a outros períodos sombrios, como nos anos 30, quando circulavam muitas piadas em que os judeus levavam a melhor sobre a brutalidade dos nazistas. A esse respeito, citamos o seguinte exemplo:

Fritz Rabinovitch é levado à presença de Hitler, o qual está furioso: “É você, judeu imundo, que anda fazendo piadas a meu respeito? Como aquela {conta}, aquela {conta} e aquela {conta}?!”. “Sim, sou eu”, responde Fritz. “Mas você não sabe que sou Adolf Hitler, o Führer do Reich que vai durar mil anos?”. E Fritz: “Essa não fui eu que inventei, não!”. (MEZAN, 2002MEZAN, R. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras , 2002., p. 293)

Desse modo, a função essencial do humor judaico seria a sua possibilidade de oferecer vias alternativas para a liberação das repressões, permitindo que a agressividade fosse expressa de modo socialmente admitido. Não por acaso, os alvos preferidos das piadas judaicas eram seus inimigos. Birman (2005BIRMAN, J. Frente e verso: O trágico e o cômico na desconstrução do poder. In: SLAVUTSKY, A.; KUPERMANN, D. (orgs.). Seria trágico... se não fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.) ressalta que o humor judaico foi uma das formas criativas de reação encontradas pela cultura judaica. Ao transformar o violento e mortífero discurso antissemita em objeto de piada e riso, os judeus não somente evitaram a incorporação da crueldade presente nesses discursos como, ao mesmo tempo, deixaram de ocupar uma posição passiva.

Nessa perspectiva, as piadas e o senso de humor ocupam lugar importante na cultura judaica, na medida em que ajudaram a impedir que esta fosse destruída como tradição. Transformar a agressão em piada e gozar com o riso que essa provoca, permitiu à cultura judaica não se identificar com seu agressor, bem como esvaziar, na cena social, o aniquilamento presente no discurso antissemita. Para Mezan (2002MEZAN, R. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras , 2002.), a agressividade necessariamente contida de um grupo desarmado e indefeso, mas provido de formidáveis reservas de inteligência, encontrou aí um canal de expressão cuja função psicológica é restaurar o narcisismo ferido cotidianamente pela opressão, miséria e indignidade geral da vida.

É importante problematizarmos que, embora Freud publicamente se declarasse judeu, sua ligação com a prática religiosa era quase nula. Autodenominando-se como judeu descrente, seu mérito na causa judaica se restringia ao único fato de jamais negar seu judaísmo. Freud apreciava o espírito subversivo judeu e sentia orgulho de sua identificação com a causa judaica. Em carta endereçada a sua noiva, ele descreveu: “Costumo sentir como se tivesse herdado toda a atitude desafiadora e paixões com as quais nossos ancestrais defenderam seu Templo, como se pudesse oferecer alegremente minha vida por uma grande causa” (GAY, 2012GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 604). Cabe destacar que um veio desafiador permeava a personalidade de Freud.

Diante do exposto, evidencia-se a estima que o pai da psicanálise tinha pela piada, principalmente em razão de sua faceta subversiva. Com efeito, a piada esteve presente em sua vida nos aspectos sociocultural, político, e, principalmente, na personalidade de Freud - fato evidenciado por seu senso de humor mordaz e rebelde. Segundo Luis Pereda (2005PEREDA, L. C. Humor e psicanálise. In: SLAVUTSKY, A.; KUPERMANN, D. (orgs.). Seria trágico... se não fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005.), o senso de humor e gosto pelas piadas refletiu-se em sua obra em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, trata-se de um tempero em seu estilo de escrever. Ao longo de toda a obra freudiana nos deparamos com diversos momentos no quais o autor se utiliza de uma metáfora ou alusão para esclarecer seus argumentos ou mesmo algum comentário bem humorado.

Em 1930, no texto Mal-estar na cultura, Freud apresenta uma reflexão sobre os impasses referentes ao progresso tecnológico obtido na sociedade moderna. Em determinado momento, o autor compara a maior parte da satisfação obtida pelos benefícios do progresso ao “prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das cobertas numa fria noite de inverno e depois recolhê-la” (FREUD, 1930/1991FREUD, S. El malestar en la cultura (1930 {1929}). Buenos Aires: Amorrortu , 1991. (Obras completas, 21)., p. 87). Isto é, trata-se de um mero “prazer barato”, conforme suas palavras. De modo simplificado, a intenção de Freud nesse momento era demonstrar que, embora o conhecimento científico e técnico adquirido tenha nos concedido poder para subjugar as forças da natureza e, por consequência, nos possibilitar viver com maior segurança, isso não nos tornou mais felizes. Para evidenciar essa controvérsia um tanto irônica, Freud recorreu de modo muito oportuno a uma simples metáfora.

No que tange aos comentários bem humorados do autor, selecionamos uma passagem localizada em um pequeno artigo intitulado Uma experiência religiosa. Neste texto, publicado em 1928, Freud nos descreve sua breve troca de correspondência com um médico norte-americano. Este último entrara em contato com Freud para relatar-lhe a respeito do restabelecimento de sua fé, após passar por uma experiência na qual Deus lhe falara diretamente. O médico comunicara a Freud que fazia muitas preces para que o mesmo lhe acontecesse. Ao que Freud respondeu de forma irônica:

Respondi-lhe educadamente que me alegrava inteirar-me de que essa experiência o houvera permitido conservar sua fé. Quanto a mim, Deus não havia feito tanto, nunca me havia feito ouvir uma voz interior como aquela, e se - em vista da minha idade - não se apressasse muito, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de minha vida o que agora sou, an infidel jew. {...} Aguardo todavia o resultado dessa intercessão. (FREUD, 1928FREUD, S. Una vivencia religiosa (1928 {1927}). Buenos Aires: Amorrortu , 1991. (Obras completas, 21)./1991, p. 168, grifos nossos)

Em segundo lugar, o outro sentido no qual o senso de humor e gosto pela piada refletiu-se na obra freudiana aparece na produção de dois textos específicos relacionados àquela temática: Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) e O humor (1927FREUD, S. El humor (1927). Buenos Aires: Amorrortu , 1991. (Obras completas, 21).). É sobre esses textos que trataremos no tópico a seguir.

O ESTATUTO DA PIADA E DO HUMOR NA OBRA DE FREUD

Em 1905, período de intensa atividade intelectual de Freud, três trabalhos de fundamental importância em sua obra foram publicados, a saber, a análise do Caso Dora, os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e Os chistes e sua relação com o inconsciente. De acordo com o biógrafo Ernest Jones (1989JONES, E. A vida e obra de Sigmund Freud (1957). 3v. Rio de Janeiro: Imago, 1989.), para além de seu interesse pessoal pela temática, um dos estímulos que levaram Freud a dedicar-se ao problema das piadas ocorreu em 1899, quando já concluía os preparativos para a publicação da Interpretação dos sonhos. Wilhelm Fliess, então correspondente de Freud na época, o teria criticado por utilizar-se de demasiadas piadas para relatar-lhe suas experiências analíticas, principalmente aquelas relacionadas aos sonhos.

Cabe salientar que a narrativa de piadas estava sempre presente na correspondência com Fliess. Ao expressar as suas inquietações, Freud costumava temperar seus relatos com muitas piadas. Fliess, no entanto, não compreendia o estilo de escrita de Freud, questionando-o frequentemente quanto a isso. Ele estranhava o uso das piadas em sua narrativa, como se a presença daquelas fosse algo estranho e fora de contexto.

Birman (2005BIRMAN, J. Frente e verso: O trágico e o cômico na desconstrução do poder. In: SLAVUTSKY, A.; KUPERMANN, D. (orgs.). Seria trágico... se não fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.) aponta que devemos ter em mente que o estatuto da ciência era uma questão determinante para a oposição de Fliess. Naquela época, o discurso academicista concebia que todo objeto científico deveria estar relacionado ao sério e solene, o que não era o caso da piada, pois esta estaria ligada ao pueril. Não obstante, a implicância de Fliess despertou o interesse de Freud. Ele passou a indagar-se a respeito de uma possível relação entre os sonhos e as piadas, na medida em que estas eram observadas com muita frequência no conteúdo dos sonhos. Em carta endereçada a Fliess, em 11 de setembro de 1899, Freud replicou: “Todos os sonhos são igual e insuportavelmente argutos, e precisam sê-lo, porque estão sob pressão e porque a via direta lhes está barrada”. E acrescentou: “A evidente argúcia de todos os processos {oníricos} está intimamente relacionada com a teoria do chiste e do cômico” (MASSON, 1986MASSON, J. M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago , 1986., p. 372).

Outro grande estímulo para Freud na época foi a publicação do livro Komic und Humor, em 1898, de Theodor Lipps, autor pelo qual demonstrava grande admiração e respeito. Foi este trabalho, segundo o próprio autor, que o encorajou a empreender este estudo (FREUD, 1905FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconciente (1905). Buenos Aires: Amorrortu, 1991. (Obras completas, 8)./1991).

Freud organizou Os chistes e sua relação com o inconsciente dividindo-o em três partes, a saber, analítica, sintética e teórica. Ao longo destas seções, o autor apresenta um levantamento daquelas que seriam as principais técnicas das piadas, discute seus propósitos, propõe a compreensão do seu mecanismo de efeito de prazer e destaca o lugar de importância da função do outro para a construção da piada, além de ressaltar a relação equivalente entre os processos de formação das piadas e dos sonhos. Por fim, volta-se para a problemática do cômico e do humor, diferenciando-os da piada.

Freud (1905FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconciente (1905). Buenos Aires: Amorrortu, 1991. (Obras completas, 8)./1991) discrimina as piadas quanto a seus propósitos ou finalidades, diferenciando-as em não tendenciosas ou inocentes, nas quais a piada não serve a nenhuma intenção particular, e tendenciosas, que servem a um fim específico.

No que se refere às piadas inocentes, seu efeito é, em regra, moderado. Isto quer dizer que a satisfação que estas nos proporcionam não consiste em mais que um leve sorriso. Seu efeito dificilmente provoca uma súbita explosão de riso, tal qual o fazem as piadas de caráter tendencioso. Em contrapartida, as piadas tendenciosas, em virtude de seus propósitos, possuem à sua disposição fontes de prazer às quais as inocentes não possuem acesso. Ademais, as piadas tendenciosas podem ser divididas em quatro subtipos: obscenas, que servem a uma intenção de natureza sexual; hostis, que servem a uma finalidade agressiva; cínicas, que servem para a blasfêmia; e as céticas, que servem para atacar nossa própria capacidade de razão.

Como vimos anteriormente, Freud era possuidor de um senso de humor mordaz e irreprimível, além de ser grande admirador da faceta subversiva e desafiadora das piadas. Diante disso, daremos ênfase às piadas tendenciosas hostis, que teriam por finalidade a expressão da agressividade.

O autor argumenta que, desde nossa infância, nossos impulsos hostis contra o próximo estão sujeitos a restrições, na medida em que a civilização força os indivíduos a renunciarem a uma parcela das suas disposições pulsionais em prol do convívio em sociedade. Não obstante, observa que “não conseguimos ir ainda tão longe a ponto de amar nossos inimigos ou oferecer-lhes a face esquerda depois de esbofeteada a direita” (FREUD 1905FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconciente (1905). Buenos Aires: Amorrortu, 1991. (Obras completas, 8)./1991, p. 96).

Diante disso, essa técnica de invectiva verbal apresenta-se como uma forma oportuna de substituir a hostilidade brutal proibida por outra, mais compatível com as normas sociais. Ao tornar nosso inimigo inferior, desprezível ou cômico, alcançamos, por outros meios, o prazer de aniquilá-lo. Essa técnica nos permite explorar no inimigo algo de ridículo que não poderíamos tratar abertamente. Por meio da piada, essas restrições são contornadas. A técnica da piada hostil permite que o insulto possa ser dirigido a nosso inimigo sem com isso quebrar a interdição social sobre a agressividade. É uma forma de agredir sem agredir.

A forma engenhosa das piadas hostis permite a expressão de pensamentos ofensivos, imorais, preconceituosos - em suma, tudo o que hoje chamaríamos de “politicamente incorreto”. Conforme ressalta Mezan (2005MEZAN, R. A Ilha dos Tesouros: relendo a piada e sua relação com o inconsciente. In: SLAVUTSKY, A.; KUPERMANN, D. (orgs.). Seria trágico... se não fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2005.), estes pensamentos derivam basicamente das esferas sexual e agressiva, de modo que a forma alusiva ou indireta permite que se digam coisas que a censura bloquearia caso o sujeito procurasse expressá-las sem esta máscara. O prazer dessas piadas é resultante da satisfação de um propósito que, de outra forma, não aconteceria. O procedimento torna possível realizar o desejo, ainda que de forma meramente alusiva. Ademais, o efeito de prazer está também relacionado à economia na despesa psíquica relativa à inibição. A vestimenta inocente ou engenhosa engana a censura, tornando supérflua a inibição que pesava sobre tais ideias recalcadas. O prazer deriva, portanto, da economia de um dispêndio psíquico, aquele que era necessário para manter a inibição.

Freud ressalta que o objeto de ataque dessas piadas não se restringe a pessoas comuns. Elas podem ser igualmente dirigidas a instituições, representantes de instituições, dogmas morais ou religiosos, e concepções de vida que desfrutam de tanto respeito que só podem sofrer objeções sob a máscara da frase espirituosa. Essas piadas são bastante apropriadas para atacar os grandes, dignos e poderosos, que são protegidos do rebaixamento direto por inibições internas e circunstâncias externas. A piada representa uma rebelião contra tal autoridade, uma liberação - ainda que momentânea - de sua opressão. Como exemplo, selecionamos uma piada direcionada a um indivíduo que ocupava uma alta posição social:

Um nobre estava dando uma volta por suas províncias e notou na multidão um homem, extraordinariamente semelhante à sua própria pessoa. Acenou, convocando-o, e perguntou-lhe: “Sua mãe esteve alguma vez a serviço do Palácio?” - “Não, Alteza”, foi a réplica, “mas meu pai esteve”. (FREUD, 1905FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconciente (1905). Buenos Aires: Amorrortu, 1991. (Obras completas, 8)./1991, p. 66)

No exemplo citado, a pessoa ofendida provavelmente gostaria de agredir fisicamente o impertinente indivíduo que ousara ultrajar a memória da sua mãe. No entanto, tratava-se de uma figura da nobreza, a quem não se poderia agredir ou mesmo insultar sem que houvesse maiores consequências. Portanto, o insulto deveria ser tolerado. Todavia, uma piada hostil possibilitou que a ofensa pudesse ser seguramente vingada, através de uma invectiva verbal que poderia passar por inocente. O exemplo apresentado caracteriza-se como uma verdadeira bofetada que só pode ser expressa de modo indireto. A frase espirituosa constitui-se em um modo socialmente aceitável de criticar ou ofender a outrem; e a razão desta tolerância reside justamente no modo disfarçado com que a injúria é lançada. Conforme destaca Mezan (2011MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 114), a alusão através da insinuação permite à piada “dizer sem dizer” aquilo que quer ser dito.

Em relação às considerações a respeito do humor, Freud inicialmente as postulou em seu texto de 1905, retomando o assunto apenas em 1927, no breve artigo intitulado O humor. Em 1905, afirmou que o humor possui uma estrita relação de parentesco com a piada. Contudo, a natureza de sua formação possui alguns diferenciais, a exemplo dos afetos aflitivos, que seriam o maior obstáculo para a emergência da piada. No entanto, tais afetos apresentam-se como condição de possibilidade para o humor, que pode ser definido como um recurso para obter prazer apesar dos afetos penosos, atuando como um substituto para estes afetos ao colocar-se no lugar deles.

No humor há, então, transformação de afeto. Trata-se de uma das “operações psíquicas mais elevadas” (FREUD, 1905FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconciente (1905). Buenos Aires: Amorrortu, 1991. (Obras completas, 8)./1992, p. 216), um recurso para obter prazer diante dos pesarosos embates da vida. A análise freudiana sobre o humor, assim, é realizada à luz dos processos defensivos, descritos como mecanismos psíquicos que realizam a tarefa de impedir a geração do desprazer, a partir de recursos fornecidos pelo próprio psiquismo. Em linhas gerais, a essência do humor consiste em afastar, por meio do dito humorístico, uma determinada situação que poderia originar afetos penosos.

O clássico exemplo de humor analisado por Freud é o Galgenhumor (humor patibular, humor negro), a respeito do qual o autor nos descreve a seguinte anedota: “Um condenado que estava sendo levado à execução em uma segunda-feira comentou: ‘É, vai começar bem a semana’ {...}”. Em seguida, no decorrer do caminho, pede um lenço para cobrir a garganta de modo a não pegar um resfriado (FREUD, 1905FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconciente (1905). Buenos Aires: Amorrortu, 1991. (Obras completas, 8)./1991, p. 216-217). Para o autor, o humorista tem por objetivo poupar os afetos penosos que a situação daria origem, afastando-os com um dito espirituoso. O próprio autor se utilizou desse artifício em diversas ocasiões, a exemplo do seguinte momento, relatado por Ernest Jones. Por muitos anos, Freud lutou contra um câncer no palato, que lhe conferiu dores intoleráveis e tornou-lhe o simples ato de comer algo praticamente impossível. Poucas semanas antes de sua morte, ele dedicara-se à leitura do conto de Honoré de Balzac, La Peau de Chagrin, sobre o qual comentou ironicamente: “Este é exatamente o livro para mim. Trata da inanição (morte pela fome)” (JONES, 1989JONES, E. A vida e obra de Sigmund Freud (1957). 3v. Rio de Janeiro: Imago, 1989., p. 248). Resignado frente à realidade cruel em que se encontrava, Freud proferiu um comentário bem humorado tal qual o condenado à forca, tornando sua pesarosa condição, por um breve momento, um pouco mais leve de se vivenciar.

Tal como a piada, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas diferencia-se por sua grandeza e elevação, que faltam ao primeiro. Ao recusar-se a sofrer e a ser afligido pelas provações da realidade, o eu permanece invulnerável aos traumas do mundo externo, demonstrando que esses não passam de meras ocasiões para obter prazer. Portanto, “o humor não é resignado, mas rebelde; não apenas significa o triunfo do eu se não também do princípio do prazer, afirmando-se contrário à crueldade das circunstâncias reais” (FREUD, 1927FREUD, S. Una vivencia religiosa (1928 {1927}). Buenos Aires: Amorrortu , 1991. (Obras completas, 21)./1991, p. 158-159). Ou seja, com a afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu, Freud considerou que a formulação humorística representaria a vitória do princípio do prazer sobre a crueldade das circunstâncias reais.

De acordo com Kupermann (2003KUPERMANN, D. Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), em O humor é afirmada a rebeldia do sujeito que despreza a opção pela resignação, mesmo diante da ameaça radical representada pela pena de morte. Para além desse caráter liberador, o humor possui um valor mais alto, enobrecedor. De acordo com Freud, a pilhéria feita pelo humor não é o essencial, tendo apenas valor preliminar. Para ele, a questão principal é a da “intenção” que o humor transmite: “Vejam! Esse é o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!” (FREUD, 1927FREUD, S. Una vivencia religiosa (1928 {1927}). Buenos Aires: Amorrortu , 1991. (Obras completas, 21)./1991, p. 162). Segundo Ungier (2001UNGIER, A. Por acaso: o humor na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.), Freud concebia o humor como uma habilidade privilegiada do ser humano para lidar com experiências traumáticas. No humor, o espírito arguto eleva-se acima de seu próprio sofrimento, de onde consegue extrair prazer para continuar vivendo ou enfrentar seu cadafalso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dotado de um temperamento desafiador e um senso de humor mordaz e irreprimível, Freud valorizava a piada e o humor justamente pela particular característica subversiva de ambos. Característica essa, importa ressaltar, que permite a construção de vias alternativas de desafio e enfrentamento. Na piada, encontramos a possibilidade de expressar, de forma dissimulada, intenções eróticas e agressivas, em meio às restrições sociais. A piada é uma saída indireta, um caminho desviante, um ato de transgressão. A piada diz o que não pode ser dito.

É interessante notar, quanto a isso, que o efeito da censura sobre a piada não é extingui-la, mas atiçá-la. Não há melhor combustível para o humorista que a censura. Millôr Fernandes, o grande humorista brasileiro, abandonou o satírico O Pasquim no momento em que a censura governamental é suspensa, com a abertura democrática dos anos 1980. Ele sentiu-se desmotivado a trabalhar ali sem a guerra diária contra os censores, que aguçava seu temperamento forte (BRAGA, 1991BRAGA, J. L. O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991.). A internet responde imediatamente, em nosso tempo, às tentativas de censurar piadas contra políticos com enxurradas de memes produzidos e reproduzidos à exaustão. A piada, então, tem dimensão de resistência, que cresce no enfrentamento das forças, sofistica-se a cada ação contra ela.

As observações quanto ao humor, por sua vez, destacam a transformação do afeto. Da desgraça, extrair o prazer de uma risada. Operação refinada, das mais elevadas, ao lado da sublimação. Se a sublimação eleva seu objeto à dignidade de coisa, o humor extrai, da indignidade de seu objeto, um prazer nobre e refinado que, se não faz desaparecer a indignidade, pelo menos a torna suportável. O humor, então, também resiste - não à censura, mas ao sofrimento e à própria morte. Enxergamos bem a ligação dessas duas figuras às raízes do humor alemão e do humor judaico. A resistência política que enfrenta o inimigo e a censura por meio da astúcia; a resistência à própria morte que enfrenta as agruras da vida, transformando a desgraça em graça.

Referências

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  • UNGIER, A. Por acaso: o humor na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.
  • 1
    Este artigo é fruto da dissertação de mestrado A face transgressora da piada: embates entre o riso e a censura, realizada com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
  • 2
    Consideramos importante apresentarmos logo no início do texto algumas observações quanto à tradução do termo espanhol chiste, por piada. O livro cujo título original em alemão é Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten foi traduzido pela Edição standard brasileira das obras de Freud como Os chistes e sua relação com o inconsciente. Cabe destacar que o termo Witz possui um significado abrangente, fator que dificulta sua tradução para outras línguas. Por exemplo, em francês é traduzido por mot d’esprit, em inglês por joke, em espanhol por chiste, termo adotado igualmente pela edição brasileira. Todavia, tal aproximação para o português é considerada uma escolha problemática e incompatível por diversos autores, a exemplo de Renato Mezan. Para este autor, Freud emprega o termo Witz para referir-se tanto às tiradas ferinas que têm a forma de uma curta sentença sarcástica, quanto às anedotas em forma de historieta. Isto é, Freud emprega Witz no sentido de piada. Assim como as jüdische Witze (piadas de judeus), no Brasil temos as piadas de português, loira, argentino etc. Decidimos, então, seguir a sugestão de Mezan (2005), ao traduzir Witz por piada ou dito espirituoso, e assim iremos nos referir a ele no decorrer deste trabalho, exceto nos casos em que faremos uma citação direta.
  • 3
    De acordo com Townsend (2000, p. 226), no texto O humor e a esfera pública na Alemanha do século XIX, o humor popular destacou-se na Alemanha oitocentista. Nos dizeres da autora: “Era um fenômeno alemão, na realidade europeu, mas aconteceu de modo surpreendente no Estado da Prússia, principalmente na cidade de Berlim”. Diante disso, entendemos que se trata de um fenômeno cultural germânico, não obstante sua maior proeminência no estado prussiano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2016
  • Aceito
    19 Out 2016
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