Acessibilidade / Reportar erro

A bissexualidade no eixo da escuta psicanalítica: considerações teóricas acerca da clínica

Bisexuality in the axis of psychoanalytical listening: theoretical consideration on the clinical work

Resumos

Para onde olhamos e o que escutamos na clínica? As diversas respostas refletem as dificuldades de comunicação entre os analistas. A de Freud sempre foi o complexo de Édipo (e a castração), elevado, entre 1923 e 1925, ao estatuto de estrutura. Esta se impõe ao sujeito como trama e roteiro a serem dissolvidos. No entanto, o que se processa é o substrato originário da bissexualidade. São, portanto, as peculiares transmutações nesta última que importam na análise. A exploração desta via coloca em relevo os elementos estruturais, quantitativos, afetivos e míticos, tornando-os passíveis de interlocução com outras concepções sobre a análise.

Bissexualidade originária; complexo de Édipo; sentimento social


What is that we look at or aim at during analytical work? The different answers given reflect the difficulties of communication among psychoanalysts. Oedipus complex (and castration) was Freud's response, postulating it, between 1923 and 1925, as an inherited structure which, when triggered by its environmental counterpart, imposes a drama script to be subsequently dissolved. This, however, implies processing the original substrata of human bisexuality. Conducting an analysis means keeping the eye on the process and destiny of psychic bisexuality, which implies structural, affective, quantitative and mythical elements that can serve as a basis for communication among psychoanalysts.

original bisexuality; Oedipal complex; social feelings


ARTIGOS

A bissexualidade no eixo da escuta psicanalítica: considerações teóricas acerca da clínica* * Inicialmente apresentado na mesa "A bissexualidade e seus desafios", VI Congresso de Psicopatologia Fundamental, Recife, setembro de 2002.

Bisexuality in the axis of psychoanalytical listening: theoretical consideration on the clinical work

Daniel Delouya

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; professor de Pós-graduação em Psicologia e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Universidade São Marcos.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Daniel Delouya Rua Capote Valente 439 conj. 104 São Paulo SP 05409-010 delouya@terra.com.br

RESUMO

Para onde olhamos e o que escutamos na clínica? As diversas respostas refletem as dificuldades de comunicação entre os analistas. A de Freud sempre foi o complexo de Édipo (e a castração), elevado, entre 1923 e 1925, ao estatuto de estrutura. Esta se impõe ao sujeito como trama e roteiro a serem dissolvidos. No entanto, o que se processa é o substrato originário da bissexualidade. São, portanto, as peculiares transmutações nesta última que importam na análise. A exploração desta via coloca em relevo os elementos estruturais, quantitativos, afetivos e míticos, tornando-os passíveis de interlocução com outras concepções sobre a análise.

Palavras-chave: Bissexualidade originária, complexo de Édipo, sentimento social.

ABSTRACT

What is that we look at or aim at during analytical work? The different answers given reflect the difficulties of communication among psychoanalysts. Oedipus complex (and castration) was Freud's response, postulating it, between 1923 and 1925, as an inherited structure which, when triggered by its environmental counterpart, imposes a drama script to be subsequently dissolved. This, however, implies processing the original substrata of human bisexuality. Conducting an analysis means keeping the eye on the process and destiny of psychic bisexuality, which implies structural, affective, quantitative and mythical elements that can serve as a basis for communication among psychoanalysts.

Keywords: original bisexuality, Oedipal complex, social feelings.

Assistimos na psicanálise atual a diferentes modos de olhar, e diversas maneiras de se relacionar com o fazer e o acontecer clínicos. Embora essa situação tenha dificultado a comunicação entre colegas, o estado global do nosso campo está longe de se assemelhar à situação da mítica Torre de Babel. A variabilidade encontrada em relação à compreensão e à interpretação do material clínico é passível de ser reunida sob alguns poucos e principais pontos de vista. Um dos mais conhecidos centra-se no desenvolvimento mental, acompanhado na e através da experiência emocional junto ao paciente, em que se privilegia parâmetros tais como a oscilação entre as posições esquizoparonóide e depressiva, o deslocamento entre os estados alucinatório e comunicativo (Klein, 1946 e Bion, 1970), os estágios de maturação (Winnicott, 1965), etc. Em outra vertente, mais clássica, a atenção dirige-se para a representação inconsciente que domina o campo da transferência do momento. Nesta última visão, privilegia-se o escrutínio estrutural, das modalidades de assunção e de fuga das posições identificatórias em relação ao desejo, na trama edípica. Quadros clínicos clássicos — neuroses de transferência (histeria e neurose obsessiva), neuroses narcísicas (melancolia) e psicoses — são, nesta perspectiva, de grande relevo, porque ilustram, em suas configurações gerais, os referidos impasses. Freud jamais atribuiu aos quadros clínicos o estatuto de verdadeiras estruturas, como ocorre entre seus herdeiros lacanianos. Ao contrário, ele encontrou em seus pacientes uma mistura dessas configurações e uma lógica de continuidade entre elas. Portanto, a estrutura dessas configurações clínicas servem apenas de guias para "farejar" a modalidade expressiva do desejo inconsciente.

Um exame sobre a atenção clínica clássica de Freud leva à descoberta de uma chave: o enfoque nos destinos da bissexualidade originária. Assim, Freud acrescenta ao eixo estrutural — da diferenciação dos sexos em torno de Édipo — elementos históricos, de desenvolvimento, quantitativos, afetivos e míticos, entre outros; com isso facilita o diálogo dentro da comunidade dos analistas. Retomamos, a seguir, os marcos principais do trajeto de Freud acerca da bissexualidade, e a função dela na atenção e visada da clínica freudiana.

QUE BRINQUEM...

"Iesachaku haneárim lefanenu."

A Bíblia reitera, em várias passagens, este mando (da epígrafe): "que brinquem os moleques à nossa frente". O brincar dos meninos — no tocar e roçar dos corpos; subindo, alegres, um em cima do outro ou lambendo uns aos outros... — é cenário corriqueiro, desenrolando-se "à nossa frente", cativando nossos olhares, animando e arejando o valor intuitivo que creditamos à vida. Por que, então, esse brincar, pertencente à sexualidade perversa polimorfa (Freud, 1905), pode vir a ser encarado com repúdio ou tornar-se repulsivo, ao menos para alguns, se exercido à luz do dia entre adultos, e do mesmo sexo? Freud nos fornece, é verdade, uma série de explicações relativas ao destino "normal" da sexualidade perversa polimorfa na vida adulta: o recalcamento, a sublimação, além de sua reordenação e organização na dita sexualidade genital do adulto.

No entanto, o tema da bissexualidade é inquietante quando não explosivo; é minado, por assim dizer, pelas conhecidas sensibilidades sociais e ideológicas. Efeito que faz suspeitar da existência de um importante conteúdo inconsciente. Ao anunciar para Fliess, em 1901, o seu plano de escrever um livro sobre a bissexualidade, Freud desencadeia uma crise na intensa relação de ambos, de mais de 15 anos, o que desemboca no rompimento. Fliess insinua que Freud apropriou-se da descoberta que lhe confiara no "congresso" (a dois) em Breslau. Freud admite a cleptomania, registrando sua culpa em seu livro de 1901 (A psicopatologia da vida cotidiana). Após certo tempo, Fliess volta a acusá-lo de infidelidade, por ter entregue a descoberta da bissexualidade — "o segredo" — para Swoboda, paciente de Freud e amigo de Waininger, em cujo livro Fliess flagra o suposto furto. Freud defende-se: "meu interesse é a psicologia, não a biologia (domínio de Fliess); o que eu disse a Swoboda faz parte da função analítica de proporcionar ao paciente um clarão (Insight) sobre a bissexualidade, já que ela ocupa um lugar central nas neuroses". Mas Fliess não sossega, desconfia e suspeita. Freud perde a paciência: "mas que reivindicações mesquinhas??!!! A verdade é que você, Wilheim, não se interessa mais por mim, nem pelo meu trabalho, tampouco pela minha família... você deixou de me amar."1 1 As duas citações são súmulas de alguns trechos das poucas cartas trocadas em 1901 entre Freud e Fliess. A ruptura é definitiva. Uma irrupção de ciúmes, suspeitas e mesquinhez — eis uma desordem no manejo da economia bissexual.2 2 A análise e explanação dessas características encontram-se no artigo de 1922, sobre os ciúmes (ver a bibliografia que se segue). A crítica de Freud sobre Breuer, emitida na carta a Fliess, em que anunciou a intenção de escrever o livro sobre a bissexualidade, poderia ser aplicada a Fliess: "Breuer", diz Freud, "não soube preservar, como eu, e distinguir o amor e a dedicação aos homens, daquele dirigido às mulheres". Na famosa carta a Ferenczi, de 1910, Freud, comentando sua antiga relação com Fliess, alega ter sido bem sucedido lá onde o paranóico fracassa. Afirmação exagerada, embora compreensível, já que ele se ocupava, na época, da análise do delírio paranóico do presidente Schreber, em que o amor homossexual sofre a inversão para o ódio, e este projetado no outro. Freud realizou sua auto-análise em meio à relação com Fliess. O fim desta "análise" marca, então, a dissolução dos restos do complexo de Édipo. Dissolução condicionada, portanto, pela reconfiguração e elaboração da bissexualidade originária, como Freud viria a explicitar em 1923. Lidar com o Édipo é processar e perlaborar a bissexualidade originária.

A BISSEXUALIDADE ORIGINÁRIA E O PROCESSAMENTO DA TRAMA EDÍPICA

A indagação sobre o papel da bissexualidade nas neuropsicoses ocupou Freud durante 40 anos, desde 1897 até o grande testamento clínico de 1937, acompanhando pari passu a descoberta e as elaborações em torno do complexo de Édipo. Quando ele finalmente batizou, em 1923, o Édipo como estrutura, situou a bissexualidade originária nos fundamentos deste complexo.3 3 A estrutura em Freud, neste contexto, é algo que se refere a um molde herdado, construído na e pela história da espécie ( Totem e tabu, 1912) e neste sentido é uma reformulação das estruturas implícitas às protofantasias já postuladas na cartas com Fliess e retomadas no Homem dos Lobos (1914-8) e nas conferências de 1916-7. Porém, na forma como retomei a estrutura, adotei a formulação que lhe foi dada no Ego e Id e no artigo sobre a dissolução de complexo de Édipo, em que essa estrutura se coloca como molde para um roteiro que segue o processamento da bissexualidade originária, cujas dimensões se referem aos planos econômico e afetivo. A bissexualidade originária forma uma espécie de substrato sobre o qual se trabalha e se processa o Édipo. A bissexualidade, diz Freud, "ofusca e embaralha nossa visão sobre a natureza das escolhas objetais primárias" (1923). A elaboração da bissexualidade é, portanto, crucial e determinante para o destino de Édipo quando de sua dissolução e a formação do seu herdeiro, o superego.

Para Freud do terceiro capítulo do O Ego e o Id, o Édipo é programado hereditariamente; é guiado pelo "pai" filogenético, que impõe a identificação direta, sem investimento, ao pai ou aos pais. Entretanto, este plano genético é ativado pela configuração edípica, veiculada pelo inconsciente dos pais, e que permeia o ambiente e a cultura. Com esta formulação, Freud retira da configuração edípica todo o caráter anedótico, difundido no meio popular: não é o curso libidinal da excitação genital, do pênis ou do clitóris, que insere a criança na cena edípica. O estímulo e a masturbação nessas zonas ocorrem antes de haver qualquer fantasia de cunho edípico. Tampouco é a imersão na trama edípica que dota o sujeito da noção sobre as diferenças sexuais. A percepção da diferença entre homens e mulheres antecede a aquisição do sentido simbólico em torno do falo (Freud, 1925). O Édipo, portanto, vem de outro lugar, ou seja, é de ordem simbólica: em dado momento, instaura-se o valor simbólico do falo. Os investimentos e as identificações em relação, e com os pais se aglutinam em um conflito; o pênis adquire o valor narcísico, e as diferenças sexuais estarão prestes a adentrar e a se ressignificar em nova configuração psíquica, sob o "comando" e as modalidades ditadas pelas diferenças anatômicas. Estamos, então, no auge do complexo de castração. O que vem de cima (de fora), o simbólico, age sobre as trilhas de baixo, do programa filogenético, possibilitando o processo. O que se processa é a bissexualidade originária. Portanto, tanto o programa edípico, como seu disparo ou acionamento são garantidos, respectivamente, pela herança e pelo meio que representa a cultura. O essencial é o processamento da bissexualidade, que depende, em grande parte, do meio humano imediato, isto é, da configuração e transmissão inconscientes dos pais para a criança.

Em 1909, Freud descobre o elo da bissexualidade com a ambivalência afetiva primordial. Mas isso ocorre num momento avançado. A suspeita do papel fundamental da bissexualidade nas neuorpsicoses lhe ocorre já em 1900. Em janeiro de 1901, ele comenta com Fliess sobre a histeria de Dora que lhe demonstrou o papel crucial da bissexualidade; a histeria como sendo um sofrimento no plano amoroso, decorrente de uma indefinição conflitiva — bissexual — em relação ao desejo. O rancor e a vingança histéricos se devem ao embate que ela trava com a sexualidade, com o desejo despertado em relação ao homem. O pleno desenvolvimento dessa problemática é encontrado 30 anos mais tarde, nos textos sobre a feminilidade. Mas Freud só se assegura de suas conclusões quando são vinculadas com ele, com o menino que ele foi. A análise do Homem dos ratos (Freud, 1909) lhe esclareceu o papel da bissexualidade. Já na primeira sessão, Freud detecta, através de um ato falho do paciente, uma moção homossexual predominante. No decorrer do tratamento, vemos que essa demanda amorosa compete com o desprezo ao pai. Nesse entrave da perlaboração da ambivalência, em vista do predomínio do ódio, cria-se um impasse da assunção do desejo na identificação com o pai no Édipo.

Tais observações acerca da histeria e da neurose obsessiva continuam sendo capitais para o trabalho clínico. O impasse na assunção do desejo, da castração, fixa o sujeito em um estágio intermediário, inacabado, de elaboração da bissexualidade originária. Uma irresolução da qual sofre e goza a histérica, assim como na neurose obsessiva, essa determina, em grande parte, a defesa, colocando o sujeito, nas palavras de Freud, "atrás de um véu que o separa do mundo" (1918). Na psicose encontramos algo análogo, só que posto para fora, já que não se trata do simples recalque da castração, mas de sua rejeição ou, segundo a tradução de Lacan, da forclusão (1956). A projeção opera, aqui, sobre a bissexualidade, em forma de perseguição, na conhecida dupla denegação freudiana: "não sou eu que o amo; é ele que me odeia, me persegue" (Freud, 1911). O paranóico recalca para fora (Freud, 1894) o impasse obsessivo, do mesmo modo que, na paranóia feminina, o conflito histérico é projetado para o meio, o que, fatalmente, o faz retornar sobre o sujeito em forma de acusação delirante, como no caso narrado pelo Freud em 1915: "ele me arrastou em um flerte, com a intenção de me denunciar à superiora (à "mãe")". À semelhança desta mulher, trazida a Freud pelo advogado da paciente, uma paciente psicótica encarava seu desejo inconsciente de se separar da mãe como ameaça insuportável, o que a confrontava, vez por outra, com a vivência de temor alucinado de se tornar, de fato, uma prostituta.

Portanto, seja qual for a manobra em relação à castração: negando-a, desmentindo-a ou rejeitando-a, todas essas defesas expressam diferentes modos de fuga da castração e um recuo para a bissexualidade originária. A aceitação da castração implica, então, uma transformação da bissexualidade originária. Mas o que se transforma na castração? Como?

Freud descobre, através do Homem dos ratos (1909), a ambivalência afetiva originária, o que lhe permite, pouco depois (Totem e tabu, 1913), inseri-la no grande mito da formação do complexo nuclear do nascimento do sujeito. Neste mito, a comunidade dos irmãos atravessa dois estágios distintos: no primeiro, os irmãos são excluídos pelo pai; as mulheres e os bens lhes são negados. O assassinato do pai abre a possibilidade da divisão e distribuição dos bens, das mulheres e do poder. Passagem que pressupõe a elaboração da ambivalência afetiva, ou seja, uma transformação econômica da bissexualidade originária. No primeiro estágio, a frustração imposta pelo pai e a dependência de seus favores os colocam, em relação a ele, numa situação polarizada — bissexual — extremada, entre amor e ódio. Esta é compensada, segundo imaginamos, pelas relações de troca-troca entre os irmãos; a bissexualidade é atuada como nos jogos perversos polimorfos — de troca-troca — da infância ou nos estados extremos de confinamento na prisão. Já o vazio instaurado no segundo período, após o assassinato, é atravessado no luto, na culpa e nas saudades do pai morto. O contrato social na nova sociedade requer a sublimação, permitindo aos sujeitos conformarem-se aos ideais legados pelo pai morto. Porém, o ponto principal é que a atuação homossexual do primeiro estágio, sob a cobertura de certa proteção da mãe, sofre uma grande concessão narcísica. A moção homossexual transforma-se em uma identificação horizontal entre os irmãos, em torno do legado e lei paternos. Nasce, no lugar da bissexulidade, o sentimento social que, segundo Freud, é a conseqüência, pela identificação, da definição e ingresso do sujeito em uma nova ordem, como membro da série constituída sob a égide da lei e legado paternos.

Em 1921, Freud aprofunda o exposto no seu livro de 1913. O processo descrito no plano do mito e da história será retomado dois anos mais tarde, no terceiro capítulo do livro de 1923, em relação ao Édipo e à castração, além de suas retificações nos conhecidos artigos sobre a sexualidade, entre 1923 e 1925. O processamento da bissexualidade faz nascer o sentimento social, inserindo o sujeito na ordem da lei do pai morto, o que nada mais é do que a dissolução do complexo de Édipo, no lugar do qual surge, através da identificação, o superego: herdeiro e portador dos ideais.

Ao nosso ver, o trabalho clínico de 1922, sobre os ciúmes na neurose, paranóia e homossexualidade ilustra a relevância da bissexualidade originária para o objetivo central da análise, ou seja, a aceitação da castração. Nos diferentes contextos psicopatológicos, o ciúme flagra feições representativas das quotas bissexuais não elaboradas ou resistentes à perpetração da castração.

A ambivalência afetiva dos inícios é co-extensiva à bissexualidade originária e, no nível econômico, é relacionada à desfusão basal entre os dois grandes grupos de pulsões (Freud, 1930); já a identificação propicia certa coalescência desses grupos pulsionais, reduzindo a polarização narcísica entre amor e ódio para permitir a confluência na rota da libido em direção ao desejo. Mas, em conseqüência da introdução do masoquismo primário em 1924, Freud inverte daí em diante — sobretudo em 1930 e 1937 — a questão da bissexualidade originária. Ela deixa de servir à tendência ativa, de isolamento e de cisão afetiva, implícitas na desfusão entre as pulsões de vida e morte, e passa a se associar com a defesa ante a passividade ou como a rejeição da feminilidade. O que, no arranjo pulsional, significa o esforço de suturar, desesperadamente, a tendência e a ação desagregantes da pulsão de morte. Ou seja, o masoquismo atuado aparece como impasse principal à aceitação e assunção da castração.

Ora, é uma perturbação desta ordem que encontramos, incessantemente, na neurose obsessiva, quando persiste o ódio à função do pai. O isolamento, o véu que separa o sujeito do mundo, ergue-se em função do temor à homossexualidade, já que a perspectiva do ingresso na comunidade dos sujeitos é tingida de significados infantis de cunho homossexual, ao invés de caminhar para a identificação e a aquisição do sentimento social. Em alguns casos mais graves, limítrofes, a forte feição masoquista, de submissão ao pai, domina o cenário fantasmático, como defesa quase intransponível diante da castração, e no rechaço da passividade, implícita e inerente à identificação no Édipo. Algo parecido ocorre na histeria: no secreto amor e fidelidade à mulher, as moções genicofílicas renascem para impedir a assunção do desejo. Na psicose, tais configurações, da neurose obsessiva e da histeria, são projetadas fora, e seus valores afetivos sofrem uma permutação quanto ao objeto.

E a escolha homossexual? A homossexualidade ou o homoerotismo não são em si estados psicopatológicos. A perversão como quadro coloca-se em questão quando da atuação, no real, da fantasia ao invés de seu agenciamento no terreno simbólico. Entretanto, existem homossexuais que sofrem, e nos quais a neurose se matiza em torno da homossexualidade. Temos certa experiência com esses casos, nos quais notamos, também, as configurações mencionadas acima, embora com uma feição particular. Lembramos as relevantes percepções de Freud neste terreno: a primeira, a da escolha narcísica que ele descobriu em Leonardo — a identificação com a mãe, o objeto de amor passando a ocupar o lugar que "pertencia" ao sujeito sob o olhar da mãe; a segunda, a do horror, na homossexualidade masculina, diante do órgão feminino, refletindo uma espécie de repúdio extremado da castração. Além desses, Freud mostra, no artigo de 1922 sobre os ciúmes, que em alguns casos a escolha homossexual encontra-se na ordem neurótica mais palpável, devido a uma ferida narcísica em relação ao amor esperado da mãe (neste caso, do nascimento de um irmão), o que impede o sujeito de se engajar no trajeto penoso da castração, ou seja, da transformação da bissexualidade originária — da ambivalência afetiva — em um amor compartilhado do sentimento social. A sublimação surge, nesses casos, de forma evidente, uma vez que não requer, necessariamente, a resolução no plano edípico. Já a identificação horizontal é prejudicada, o que coincide com nossa experiência. Notamos, freqüentemente, que algumas escolhas homossexuais são atuações da bissexualidade originária erguendo-se, defensivamente, ante o sublimado amor homossexual — comum —, do sentimento social, resultado da castração.

Freud conclui que o complexo de Édipo e da castração são a espiga ("shibolleth") da psicanálise. No entanto, é o manejo dos grãos escondidos, das moções invertidas quanto aos seus fins, valores e objetos — ou seja, é a perlaboração de elementos sexuais perverso-polimorfos, determinados pela bissexualidade originária —, que constitui o sofrido desafio de uma análise.

COMENTÁRIO SOBRE A POSSÍVEL INTERLOCUÇÃO NO CAMPO PSICANALÍTICO

Manter o olhar sobre a bissexualidade originária e seus destinos em certo processo de cura analítica nos parece vantajoso porque não se coaduna apenas com a perspectiva estrutural que identifica a peculiar modalidade defensiva escolhida ante a problemática posta em torno do eixo da castração, mas permite, também, focar elementos dinâmicos e econômicos bastante centrais para quem mira os impasses afetivos no desenvolvimento do pensar. Creio que dois analistas podem intervir de forma muito semelhante nas suas abordagens técnicas com certo paciente e em dado momento da análise ou terapia, mantendo o olhar, por exemplo, sobre sua intolerância à frustração (conceito e operador central de observação clínica no aporte kleino-bioniano). No entanto, um enxergará nas "medidas" de fuga do paciente a incapacidade em se defrontar com o predominante elemento afetivo "ódio" — persistentemente observado pelo analista — para integrá-lo a um outro, do "amor" (consciente), a serviço do conhecimento da realidade psíquica (do ódio). Outro analista identificaria neste ódio recalcado um elemento estrutural que resiste em se submeter ao pai, numa problemática típica da neurose obsessiva (Freud, 1909), em que a ambivalência afetiva, constitutiva da bissexualidade originária, não se dispõe à metabolização na ordem simbólica da castração — ao conhecimento da realidade psíquica.

O exemplo geral antes exposto sugere que o contexto freudiano abre maiores possibilidades de interlocução no campo psicanalítico — maiores que aquelas vislumbradas na oferta de linguagens e posições de nossos grupos atuais.

REFERÊNCIAS

[As referências são da edição padrão inglesa (Standard Ed.), mantendo-se, porém, os títulos usuais em português.]

Recebido em 12/5/2003. Aprovado em 13/10/2003.

  • Bion, W.R. (1970/1988) Attention and interpretation London: Karnac.
  • Freud, S. (1986) Correspondência com Fliess Rio de Janeiro, Imago.
  • (1894) "As psiconeuroses de defesa", Standard ed 3, p.64.
  • _____. e BREUER (1895) Estudos sobre a histeria, Standard ed2.
  • (1896) "Novos comentários sobre as psiconeuroses de defesa", Standard ed 3, p.199.
  • (1899) "A interpretação dos sonhos", Standard ed 4-5.
  • (1905) "Fragmento de uma análise de caso de histeria (Caso Dora)", Standard ed 7, p.3.
  • (1907-8/1974) "L'Homme aux rats, Journal d'une analyse". Paris: PUF.
  • (1909) "Notas sobre um caso de neurose obsessiva (Homem dos ratos)", Standard ed 10, p.160.
  • (1910) "Leonardo da Vinci e uma memória de sua infância", Standard ed 11, p.60.
  • (1911) "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia — Caso Schreber", Standard ed 12, p.13.
  • (1912-3) "Totem e tabu", Standard ed 13, p.11.
  • (1914-8) "História de uma neurose infantil (O Homem dos Lobos)", Standard ed 17, p.3
  • (1915) "Um caso de paranóia contrário à teoria psicanalítica sobre a doença", Standard ed 14, p.263.
  • (1919) "Além do princípio do prazer", Standard ed 18, p.7.
  • (1919) "Bate-se em uma criança", Standard ed18, p.223.
  • (1921) "Psicologia das massas e análise do eu", Standard ed 18, p. 69.
  • (1922) "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, paranóia e homosexualidade", Standard ed 18, p.223.
  • (1923) "O Eu e o Isso", Standard ed 19, p.3.
  • (1923) "A organização genital infantil", Standard ed 19, p.177.
  • (1924) "O problema econômico do masoquismo", Standard ed19, p.157.
  • (1924) "A dissolução do complexo de Édipo", Standard ed 19.
  • (1925) "Algumas conseqüências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos", Standard ed19, p.243.
  • (1930) "O mal-estar na cultura", Standard ed 21, p.59.
  • (1937) "Análise terminável e interminável", Standard ed23, p.211.
  • KLEIN, M. (1946/1975) "Notes on some schizoid mechanisms", in Writings of Melanie Klein New York, v.III, p.1-24.
  • LACAN, J. (1956/1988) O Seminário, Livro 3, As psicoses Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
  • WINNICOTT, D.W. (1965/1990) The maturational processes and the facilitating environment London: Karnac.
  • Endereço para correspondência
    Daniel Delouya
    Rua Capote Valente 439 conj. 104
    São Paulo SP 05409-010
  • 1
    As duas citações são súmulas de alguns trechos das poucas cartas trocadas em 1901 entre Freud e Fliess.
  • 2
    A análise e explanação dessas características encontram-se no artigo de 1922, sobre os ciúmes (ver a bibliografia que se segue).
  • 3
    A estrutura em Freud, neste contexto, é algo que se refere a um molde herdado, construído na e pela história da espécie (
    Totem e tabu, 1912) e neste sentido é uma reformulação das estruturas implícitas às protofantasias já postuladas na cartas com Fliess e retomadas no
    Homem dos Lobos (1914-8) e nas conferências de 1916-7. Porém, na forma como retomei a estrutura, adotei a formulação que lhe foi dada no
    Ego e Id e no artigo sobre a dissolução de complexo de Édipo, em que essa estrutura se coloca como molde para um roteiro que segue o processamento da bissexualidade originária, cujas dimensões se referem aos planos econômico e afetivo.
  • *
    Inicialmente apresentado na mesa "A bissexualidade e seus desafios", VI Congresso de Psicopatologia Fundamental, Recife, setembro de 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Recebido
      12 Maio 2003
    • Aceito
      13 Out 2003
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com