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Lacan gramático

Lacan the grammarian

Resumos

Partindo do conjunto de noções gramaticais encontradas na obra de Lacan (como o uso dos tempos verbais e da negação), o autor procura situar as relações que aí se colocam entre a linguagem e a estrutura do inconsciente. Percorrendo os antecedentes teóricos da reflexão lingüística lacaniana, os resultados indicam uma dupla tentativa, por parte de Lacan: primeiramente, de aproximar certas particularidades entre os conceitos de inconsciente e de língua, em que o funcionamento da segunda revela aspectos importantes para a apreensão do primeiro, e, posteriormente, de distanciar os conceitos consagrados do terreno lingüístico daqueles que ele mesmo propõe para ocupar esse lugar.

Lacan; linguagem; gramática; inconsciente; estrutura


Starting off based on some grammar notions found very often in the works of Jacques Lacan (like negation's and verbal tenses' usage), the author brings up the relationship between the language and the unconscious' structure. Revisiting the theoretical antecedents of the Lacanian reflection, this text points to the double facet of Lacan's aim: on the one hand, he binds close together some particularities between the concepts of unconscious and language, whose operations reveal important issues concerning the former, and, on the other hand, he tries to avoid the traditional linguistic perception of those concepts, claiming to have them replaced by his own re-creations.

Lacan; language; grammar; unconscious; structure


ARTIGOS

Lacan gramático* * Tradução de Tereza Cristina Pinto e Marcos Lopes. Revisão de Ivã Carlos Lopes e Waldir Beividas.

Lacan the grammarian

Michel Arrivé

Professor titular do Departamento de Ciências da Linguagem da Universidade de Paris X. 200, av. de la République, 92000 Nanterre Cedex, França. E-mail: arrivem@europost.org

RESUMO

Partindo do conjunto de noções gramaticais encontradas na obra de Lacan (como o uso dos tempos verbais e da negação), o autor procura situar as relações que aí se colocam entre a linguagem e a estrutura do inconsciente. Percorrendo os antecedentes teóricos da reflexão lingüística lacaniana, os resultados indicam uma dupla tentativa, por parte de Lacan: primeiramente, de aproximar certas particularidades entre os conceitos de inconsciente e de língua, em que o funcionamento da segunda revela aspectos importantes para a apreensão do primeiro, e, posteriormente, de distanciar os conceitos consagrados do terreno lingüístico daqueles que ele mesmo propõe para ocupar esse lugar.

Palavras-chave: Lacan, linguagem, gramática, inconsciente, estrutura.

ABSTRACT

Starting off based on some grammar notions found very often in the works of Jacques Lacan (like negation's and verbal tenses' usage), the author brings up the relationship between the language and the unconscious' structure. Revisiting the theoretical antecedents of the Lacanian reflection, this text points to the double facet of Lacan's aim: on the one hand, he binds close together some particularities between the concepts of unconscious and language, whose operations reveal important issues concerning the former, and, on the other hand, he tries to avoid the traditional linguistic perception of those concepts, claiming to have them replaced by his own re-creations.

Keywords: Lacan, language, grammar, unconscious, structure.

I. O INCONSCIENTE ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM

"Olhem bem o lado formal, gramatical, das coisas."

Le Séminaire, livre III: Les psychoses, p. 236

Gostaria, antes de mais nada, de indicar de que maneira trabalhei na preparação deste texto sobre "Lacan gramático".

Uma primeira fase do trabalho impunha-se de forma imperativa: era preciso reunir todos os pontos do texto de Lacan em que são abordados problemas de gramática, no sentido usual da palavra: questões de morfologia e de sintaxe das línguas, ou melhor, como veremos em breve, essencialmente de uma língua: o francês. Cumpri essa tarefa com os instrumentos que tinha à mão: o texto dos Escritos e os dez volumes publicados do Seminário. Reli esse conjunto de forma exaustiva. Quanto aos outros textos — livros ainda inéditos do Seminário e publicações diversas — eu dispunha somente — com uma exceção, a do Seminário XV — daquilo que é citado sobre os problemas de gramática em meus livros de 1986 e 1994.

A primeira fase do trabalho forneceu-me uma espécie de inventário dos problemas gramaticais presentes na obra de Lacan. Nesse ponto, duas trilhas se abriram para a continuidade de meu trabalho:

1. A primeira consistia na construção de um tratado de gramática lacaniana de acordo com os termos do inventário, na descrição de seu conteúdo e na apreciação do interesse de tal gramática, do ponto de vista lingüístico.

2. A segunda consistia na atividade de pôr em relação o conjunto das posições gramaticais de Lacan — ou esta ou aquela porção privilegiada entre elas — com as concepções desenvolvidas por ele a respeito da estrutura do inconsciente.

A primeira dessas tarefas não é desprovida de interesse. No entanto, trata-se em grande medida de um interesse negativo, que pode ser resumido nas três seguintes observações:

1. A gramática, no sentido usual que é empregado aqui, não é, entre as demais disciplinas da lingüística, aquela que mais seduz Lacan. Ela é ultrapassada com folga por muitas outras disciplinas:

• Em primeiríssimo lugar aparece sem sombra de dúvida a reflexão geral sobre o signo, que reaparece insistentemente — como é natural — com a referência constante a Saussure. Não é minha intenção estender a discussão sobre os numerosos problemas que daí advêm, mas não hesitarei em entrar nos pormenores daqueles que são ainda fonte de dificuldades: sabemos muito bem que a relação de Lacan a Saussure é tudo, menos simples.

• Em segundo lugar, entre as disciplinas lingüísticas privilegiadas por Lacan aparecem, quantitativamente empatadas, duas disciplinas bastante diferentes: a fonologia e a etimologia. Sobre a primeira, Lacan dispõe de informações nas quais pensamos reconhecer essencialmente a influência de Jakobson, que tinha certa simpatia por Lacan, como se observa no Séminaire XX (Encore), p. 20. Mas é preciso assinalar que Lacan efetua um alargamento considerável da noção de fonema, a ponto de fazê-la designar tanto as unidades estritamente distintivas quanto as unidades significativas, quaisquer que sejam suas dimensões: o sentido dessa extensão é evidentemente marcar a unidade dos funcionamentos lingüísticos, fundados sobre o regime da oposição recíproca. Assim, as duas famosas "oralizações" fort e da ("lá" e "aqui") do garotinho de Além do princípio do prazer (1921-1951) são fonemas, no entender de Lacan:

"A forma de matematização na qual se inscreve a descoberta do fonema como função de pares opositivos formados pelos menores elementos discriminativos apreensíveis da semântica leva-nos aos próprios fundamentos nos quais a última doutrina de Freud vê, diante de uma conotação vocálica da presença e da ausência, as fontes subjetivas da função simbólica." (Écrits, p. 284-285; ver também Le Séminaire, V, p. 49, 63 e 222, XI, p. 60-1 e XX, p. 22)

Quanto à etimologia, ela comparece todo o tempo à reflexão de Lacan, mas com algumas precauções. Assim, ele se interessa, como Freud, pela relação entre Seele ("alma") e selig ("morto", logo "feliz"): mas essa relação é para ele "menos etimológica (diacrônica, precisamente) que homófona (sincrônica, precisamente)" (Écrits, p. 569). Da mesma forma, ele diz "dar mais peso" à apreensão da oposição entre das Ding e die Sache, à "percepção do uso do significante na sincronia", que às "sondagens etimológicas" (Le Séminaire, livre VII, p. 56). No entanto, não se deve pensar que ele deixa completamente de lado essas sondagens: assim, o nome francês da coisa determina as observações a seguir:

"Se tentássemos ancorar na linguagem a constituição do objeto, seríamos forçados a constatar que ela só se apresenta no nível do conceito, muito diferentemente de qualquer nominativo,1 1 Deve-se compreender aqui nominativo não como uma referência ao primeiro caso da declinação, mas com o sentido de "designativo", "referencial", em oposição ao "nível do conceito". e que a coisa, tomada redutivamente como substantivo, reparte-se no duplo raio divergente da causa na qual ela se abrigou em nossa língua e do nada [rien, N. T.] ao qual ela deixou sua vestimenta latina (rem)." (Écrits, p. 498)2 2 Confira-se também nos Écrits, p. 29 (sobre purloined) e no Séminaire, livre IV, p. 170 (sobre fétiche [fetiche], fée [fada], factice [factício]), p. 211 (sobre tuer [matar]: "vem do latim tutare, que quer dizer conservar"), p. 306, sobre "a raiz MR, que se encontra tanto em mère [mãe], mara e também la mer [o mar] em francês", livre V, p. 94 (sobre demander [pedir, perguntar] e 347 (sobre a relação entre fallos [falo] e fley [veia]), livre VII (p. 102, sobre danger [perigo] em suas relações etimológicas com dame [dama]), 179-180 (ainda sobre a dame, dessa vez relacionada a " domnoyer, que significa qualquer coisa como acariciar, brincar") p. 197-198 (sobre as teorias etimológicas de Hans Sperber), p. 233 (sobre a etimologia de même [mesmo]) e p. 292 (sobre émoi [perturbação]), Livre VIII, p. 244-245 (sobre as "ambigüidades significantes" ilustradas pela história da palavra réglisse [alcaçuz]), Livre XX, p. 85 (sobre alhqeia), etc.

A gramática aparece, então, salvo engano, em quarto lugar entre as disciplinas lingüísticas utilizadas por Lacan. Entretanto, trata-se de um corpus tão amplo que, por fim, um grande número de problemas gramaticais acaba sendo mencionado de forma mais ou menos fugaz: listo aqui, naturalmente sem preocupação de exaustividade, os problemas da concordância do verbo com o sujeito,3 3 Trata-se do problema da diferença que existe entre eu sou a mulher que não te abandonarei e eu sou a mulher que não te abandonará ( Le Séminaire, Livre III, p. 308). do tempo e dos aspectos do verbo,4 4 Lacan se interessa particularmente por essa distinção, que se oferece a ele como uma forma elegante de contornar o problema da ausência do tempo no inconsciente. Assim, ele aconselha a um tumultuador impertinente, incomodado por esse problema, que "volte às aulas de gramática para distinguir as 'formas de aspecto' que vislumbram, da enunciação, aquilo no que o sujeito se transforma, daquelas que colocam o enunciado na linha dos acontecimentos. Assim, ele não confundirá o sujeito do acabado com a presença do passado" ( Écrits, p. 664; ver também p. 629 e Le Séminaire, Livre III, p. 322). as questões levantadas pela categoria da pessoa — falarei disso mais adiante. Lacan se interessa muito pela pontuação, a tal ponto que ele imagina "uma pontuação sem texto" (Écrits, p. 388): metáfora para significar a forma da castração quando, submetida à Verwerfung, reaparece erraticamente no real. Por aí vemos a importância que ganha para ele esse aspecto não-textual da escrita.5 5 Ver também Écrits p. 255, 310, 314-315, 373, 503 e 806 e Le Séminaire, Livre III, p. 337. A noção central da sintaxe — a frase — está no cerne das preocupações de Lacan. O problema repetitivo que ele coloca sobre isso é a maneira pela qual se "encerra" o sentido da frase: "Existe frase quando alguma coisa se encerra no nível do significante, ou seja, tudo aquilo que foi enunciado de significante, no seu lugar, entre o começo e a pontuação" (Le Séminaire, Livre V, p. 514;6 6 Esse texto foi estabelecido com base nas notas tomadas por um ouvinte, que foram reelaboradas pelo editor do Seminário. ver também, sobre esse "encerramento" do sentido pela sua última palavra, Écrits, p. 838 e Le Séminaire, Livre III, p. 154-155, Livre V, p. 15 e 90).

Resumindo, seria possível extrair da reflexão de Lacan uma gramática praticamente completa: ela traria observações sobre a exclamação (Le Séminaire, Livre V, p. 63), a interrogação (Écrits, p. 661) e, certamente, uma generosa porção de dissertações sobre a negação: voltarei a esse tema na segunda seção de meu texto.

2. As observações de Lacan sobre a gramática dizem respeito sobretudo ao francês. Se me pedissem para dar uma idéia da proporção, eu diria que ela fica em torno de 80%. As outras poucas línguas que aparecem esporadicamente são o latim (por exemplo sobre os verbos depoentes, Le Séminaire, Livre III, p. 317-318), 7 7 Lacan se refere aqui ao artigo de Benveniste sobre a voz média (BENVENISTE, 1950-1966). o grego antigo (com um pouco mais de freqüência, sobretudo pelo problema da negação — e especificamente a comparação do mh grego ao ne francês, ver especialmente Le Séminaire, Livre VII, p. 353) e, dentre as línguas vivas, quase que exclusivamente o inglês e o alemão. A situação de quase-monopólio dada ao francês não deixa de ser interessante. Com sua fonte calcada na prática, ela testemunha em favor de um aspecto da interpretação que proponho mais adiante, sobre o postulado fundamental do "inconsciente estruturado como uma linguagem": de fato, a meu ver, a língua é que constitui o modelo da estrutura do inconsciente. A língua, desde que ela não seja ultrapassada pelo seu outro: alíngua [lalangue]. E onde mais a alíngua poderia ser encarnada, senão na língua materna?8 8 Sobre o problema das relações entre alíngua e a linguagem, confira-se igualmente o texto citado na nota 20. Não seria preciso insistir muito para que eu dissesse que o inconsciente está estruturado, segundo Lacan, como o francês. No fundo, quem poderia se surpreender com isso? A "língua fundamental" do presidente Schreber é o alemão, não é? E ainda por cima um alemão bem alemão, por assim dizer, "um pouco arcaico, mas ainda muito vigoroso, e riquíssimo em eufemismos" (SCHREBER, 1903-1975, p. 28-13).9 9 A dupla paginação refere-se à tradução francesa (primeiro número) e à edição original alemã (segundo número). Ora, é justamente essa "língua fundamental" que Freud assimila explicitamente ao inconsciente, numa nota muito negligenciada das "Remarques psychanalytiques" (1911-1979, p. 308). Assim, vemos Freud antecipar literalmente Lacan, enunciando antes dele a fórmula "o inconsciente é linguagem", mas com a condição de atribuir a linguagem o sentido de "língua materna".

3. Num grande número de problemas levantados por Lacan, a informação gramatical provém de fontes bastante fáceis de se identificar, ainda que não estejam citadas em todos os casos. Em primeiro lugar entre essas fontes, aparecem os ilustres duetistas Damourette e Pichon, particularmente citados por sua análise da negação francesa em dois componentes, a discordância e a foraclusão. Benveniste vem em segundo lugar. Sabe-se que Lacan tinha por ele menos simpatia que por Jakobson, certamente em decorrência da publicação de "Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana" (BENVENISTE, 1956-1966). Mas, antes desse incidente e também depois, ele o lia. Tanto assim que é a ele que Lacan se refere quando fala da terceira pessoa:

"A chamada terceira pessoa não existe. Aproveito esta ocasião de lhes dizer isso para começar a abalar alguns princípios que com certeza as aulas de gramática na escola primária inculcaram-lhes tenazmente. Não existe terceira pessoa, Benveniste o demonstrou de forma clara." (Le Séminaire, Livre III, p. 314, ver também p. 322)

Passagem interessante: traz um exemplo de como Lacan realiza uma torção do ensinamento de Benveniste. Este último substitui a noção de terceira pessoa pela noção — que de fato é difícil de apreender — de não-pessoa.10 10 Alguns excelentes lingüistas — cujos nomes não cito, para não constranger ninguém — sempre tropeçaram nessa noção, que foi introduzida em "Structure des relations de personne dans le verbe", 1946-1966, p. 225-236. Lacan transforma essa substituição em negação, e estabelece o aforismo "não existe terceira pessoa" a partir do modelo das famosas fórmulas negativas "não existe metalinguagem" ou "não existe relação sexual".

Por fim, Gustave Guillaume, citado explicitamente uma vez, é utilizado na análise do pretérito imperfeito (ver abaixo).11 11 Outros gramáticos e lingüistas entram também no inventário dos informantes de Lacan, por exemplo a dupla homófona Ferdinand Brunot e Charles Brunot: Lacan zomba cruelmente ( Écrits, p. 663 e 800) das declarações que eles sustentam em Précis de grammaire historique de la langue française (1931-1966) sobre o ne chamado de "expletivo" ou "expressivo" (ver mais adiante).

Certamente minhas três observações fazem ver que a primeira trilha que se abriu para mim — o exame intrínseco das posições de Lacan sobre a gramática — não era nada desinteressante. Entretanto, é óbvio que a segunda trilha será, no contexto de nossa discussão, muito mais interessante. Ela consiste, volto a lembrar, numa tentativa de trazer à luz a articulação das posições de Lacan sobre a gramática com suas concepções sobre a estrutura do inconsciente. É essa segunda trilha — "estrada principal", esperemos, e não "trilha de elefante" — 12 12 Os leitores do Séminaire III terão reconhecido o empréstimo da metáfora com a qual Lacan apresenta a função do significante (p. 321-331). que me ponho a seguir agora.

Uma condição inicial se impõe, contudo: levar em consideração a maneira pela qual Lacan concebe a estrutura do inconsciente. Por um lado, é extremamente simples e, por outro, extremamente complexa. Extremamente simples por causa da insistência em uma fórmula, na maioria das vezes idêntica a si própria.13 13 Veremos mais adiante de que forma deve-se interpretar esse na maioria das vezes. E extremamente complexa porque cada um dos termos que a constitui cria problemas. O inconsciente, por exemplo, é tão in-consciente — un-bewusst — quanto seu nome diz? Lacan denuncia em diversas ocasiões (por exemplo em Télévision [1973a], p. 15) o caráter negativo da palavra, "que permite que se suponha qualquer coisa do mundo, sem contar o resto". O particípio estruturado seria mais transparente? De modo algum, já que a noção pressuposta por ele — a estrutura — é intimamente vinculada à linguagem, tão intimamente que os dois objetos chegam a se confundir: "Na medida em que o inconsciente está implicado nisso, existem duas facetas oferecidas pela estrutura, quer dizer a linguagem" (Télévision, [1973a], p. 18).

Resta o artigo: o indefinido uma. Não parece deixar entrever, precisamente, que a linguagem em questão não é uma, e que é como uma delas, dentre várias outras, que o inconsciente está estruturado? Pluralidade problemática, ao menos para os lingüistas: em geral eles não falam de linguagem no plural, exceto quando se referem a objetos — linguagens lógicas, linguagens de programação, etc. — que, precisamente, não estão no campo da linguagem, no singular. Mas está descartado de saída que seja a esse tipo de linguagens que a fórmula lacaniana remete. Convém, pois, voltarmos a essa fórmula, tanto ao que tem de simples quanto ao de complexo.

1. O que tem de simples é sua insistência: ela reaparece muitas e muitas vezes no discurso de Lacan. Não pretendo fazer disso um cavalo de batalha. Direi simplesmente que creio tê-la encontrado ao menos uma vintena de vezes em minhas releituras dos Escritos e dos Seminários. Para ilustrar sua permanência e sua importância, contento-me em observar que Lacan, depois de ter dado à fórmula sua forma canônica (por exemplo nos Écrits, p. 868),14 14 O texto, "La Science et la vérité", é a conferência de abertura do seminário do ano 1965-1966. volta a citá-la logo em seguida. Às vezes lembra que ela é de sua autoria: é o que vemos em 1972 no Séminaire XX ("Meu dizer, que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, não faz parte do campo da lingüística", p. 20). Mas outras vezes age como se a fórmula viesse de outro alguém; assim, no "L'Étourdit": "O inconsciente sendo 'estruturado como uma linguagem', quer dizer, alíngua onde ele habita, está sujeito ao equívoco pelo qual cada uma delas se distingue." (Scilicet, 4 [1973b], p. 47; voltarei mais adiante sobre esse fragmento).

2. No entanto, as coisas não são tão simples quanto parecem. Com efeito, permanência não significa que a fórmula seja constantemente idêntica a si mesma: ela evoluiu com o passar do tempo. Assim, em 1957 vamos encontrá-la sob outra roupagem:

"Tudo aquilo que é da ordem do inconsciente — na medida em que este é estruturado pela linguagem — coloca-nos diante do seguinte fenômeno: nem o gênero, nem tampouco a classe nos permitem apreender as propriedades mais significativas; a única via se encontra no exemplo particular." (Le Séminaire, livre V, p. 60)15 15 Dois anos antes, Lacan fizera uma descrição metafórica das relações entre linguagem e inconsciente: "O inconsciente é, no mais profundo de si, estruturado, enredado, acorrentado pela linguagem" ( Le Séminaire, Livre III, p. 135).

O leitor terá notado as duas diferenças consideráveis que separam essa forma antiga do aforismo de seu aspecto posterior: a preposição pela aparece no lugar do como e a linguagem é agraciada com o artigo definido. Dezesseis anos depois, no Séminaire XX, Lacan recusaria completamente a concepção do inconsciente estruturado pela / por uma linguagem:

"Vocês percebem que, ao conservar ainda esse como, continuo indo na mesma direção de quando me arrisco a dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Digo como para não dizer, bato sempre nessa tecla, que o inconsciente é estruturado por uma linguagem. O inconsciente é estruturado como as reuniões de que trata a teoria dos conjuntos, que são como letras." (Le Séminaire, Livre XX, Encore, p. 46-47)

Ficou claro: o por fazia intervir uma relação causal, como mostra a transformação ativa da frase (a linguagem estrutura o inconsciente). Lacan substitui essa relação causal pela relação homológica manifesta pelo como. E esse é um problema diferente daquele que se coloca quando se pergunta de que maneira o caráter estritamente homológico dessa relação se articula com a proposta, freqüente também, que diz que "a condição do inconsciente é a linguagem" (Télévision [1973a], p. 15). Aqui, não há relações causais, mas sim uma pressuposição: sem linguagem, nada de inconsciente.

A segunda divergência, aparentemente mais radical, é provavelmente menos importante, apesar do seu caráter espetacular. Consiste na supressão pura e simples do segmento estruturado como uma e no estabelecimento da identidade entre linguagem e inconsciente. É o que é feito sob a forma mais rapidamente categórica: "O inconsciente é linguagem", Écrits, p. 866. Ou de forma mediata: "O inconsciente não tem por si próprio nenhuma outra estrutura, afinal de contas, além de uma estrutura de linguagem" (Le Séminaire, Livre VII, p. 42).

Certamente, não há equivalência formal entre a metáfora — no sentido tradicional da retórica — dessas fórmulas e a comparação do aforismo canônico. Entretanto, as duas proposições parecem ter em vista um mesmo referente. Poderíamos decerto demonstrá-lo fazendo uma análise rigorosa — fora de nosso propósito de agora — das condições sob as quais elas aparecem na sincronia do mesmo texto.16 16 Trata-se, efetivamente, do texto "La science et la vérité", assinalado antes.

Não tenho, pode-se perceber, nenhum desprezo por tais problemas de análise literal do texto. Mas não posso fazer nada além de obrigá-los a esperar que seja feito um trabalho sobre a história do pensamento lacaniano. E concentro-me a partir de agora no problema capital: de que forma Lacan concebe essa "linguagem" que aparece em seu dizer como tendo o inconsciente estruturado à sua maneira? O problema se põe de forma redundante, e sob todos os seus aspectos, até a questão das origens, nos Escritos e no Seminário. Os leitores assíduos do Seminário se lembram com certeza das longas discussões sobre a fórmula bíblica In principio erat verbum e dos debates inflamados que ela provocou sobre a tradução de verbum: verbo? linguagem? discurso? fala? (Le Séminaire, Livre II, p. 355 e ss. e Livre VII, p. 12 e 354).

Que é feito, volto à questão, da linguagem, essa sobre a qual Lacan fala quando diz que o inconsciente se estrutura como ela? Para essa questão extremamente delicada, desenvolvo agora a resposta já sugerida acima.

Como os lingüistas — ou, em todo caso, como alguns (a maioria?) deles, a começar por Saussure —, Lacan concebe a linguagem como sendo constituída por dois objetos distintos. A dificuldade é que ele nem sempre dá a esses objetos o mesmo nome, e ainda por cima estabelece novas distinções no seio dos dois objetos distintos.

A primeira dicotomia é aquela normalmente fixada pela oposição entre língua e fala. Sobre a língua cito, entre outros possíveis, um fragmento dos Écrits extraído de "La direction de la cure", texto que data de 1958:

"Nossa doutrina do significante está fundada no fato de que o inconsciente tem a estrutura radical da linguagem, que um material que aí está deve jogar de acordo com leis que são aquelas descobertas pelo estudo das línguas positivas, das línguas que são ou que foram efetivamente faladas." (Écrits, p. 594)

A proposição é isenta de qualquer ambigüidade, de qualquer obscuridade: a estrutura da linguagem é aquela que observamos nas línguas reais. É que, para citar um fragmento ligeiramente anterior (1955) do Seminário, "a linguagem [é] encarnada na língua humana" (Le Séminaire, Livre II, p. 367).

Aqui, tudo está claro. E continuaria a sê-lo, afinal, se Lacan continuasse a dar o nome de língua a esse componente propriamente estrutural da linguagem. O problema é que age assim raramente, ou, francamente falando, quase nunca: ele usa muito mais linguagem no lugar de língua. Com certeza, isso ajuda a explicar o uso do artigo indefinido uma na forma canônica da fórmula: pois as línguas são, diferentemente da linguagem, mais que uma só. Em suma, o termo linguagem é tomado, alternativamente, com o senso global que geralmente os lingüistas lhe conferem e com o senso limitante de língua.

Qual é, pois, o segundo componente da linguagem segundo Lacan? Aqui os lingüistas não terão nenhuma surpresa metodológica: de acordo com sua expectativa saussuriana, eles encontrarão a fala. Numerosas passagens do texto lacaniano evidenciam essa oposição da fala como ato à língua como estrutura, começando por esta belíssima, embora breve, metáfora alfabética nos Escritos: "O abc da estrutura de linguagem e o bê-á-bá esquecido da fala" (Écrits, p. 321).

Vale a pena determo-nos um pouco nessa fórmula. Vemos antes de mais nada que o termo linguagem é aí, assim me parece, usado no sentido que a lingüística geralmente confere à língua. Nota-se além disso a oposição da linguagem — nome lacaniano da língua — à fala: a primeira está estruturada por um conjunto de regras que é aqui metaforizado pela sucessão ordenada das letras do alfabeto: a seqüência abc é a imagem de todas as regras. A fala consiste em fazer aparecer as unidades na sua seqüência discursiva, diferente daquela das regras do alfabeto: b seguido de a resulta no pequeno segmento de discurso ba.17 17 Coloco-me aqui a pequena e fútil questão de saber se Lacan pensava claramente, quando propôs essa metáfora alfabética, na intenção de Freud sobre a sílaba gráfica na Interpretação dos sonhos: "[Em nosso sistema de escrita] ab indica uma só sílaba, a e b separados por um espaço nos permite entender que a é a última letra de uma palavra, b a primeira de uma outra" (FREUD, 1900-1967, p. 271). Fútil, reconheço, essa minha questão. Mas a aproximação, que se impõe, mostra claramente o interesse igual atribuído pelos dois autores ao significante em sua manifestação mais literal: a letra do alfabeto. Por último, percebemos que o exemplo de unidade lingüística que está na ponta do lápis — é bem o caso, aqui — de Lacan é justamente a letra, "esse suporte material que o discurso concreto pega emprestado da linguagem"18 18 Constata-se que nesse ponto Lacan utiliza, conforme o previsto, linguagem com o sentido de língua e — novidade — discurso concreto com, eu creio, o sentido de fala. De qualquer maneira, essa equivalência entre discurso e fala não é infelizmente uma constante da reflexão lacaniana. (Écrits, p. 495). Mas essa referência à letra não é constante: um conteúdo muito próximo é articulado, sem a metáfora do alfabeto, no fragmento a seguir: "A fala se institui como tal na estrutura do mundo semântico que é o da linguagem" (Le Séminaire, Livre I, p. 267).

Nesse momento de sua análise, o lingüista pensa estar em terreno mais ou menos conhecido: reencontra uma oposição que conhece com os mesmos nomes em Saussure, e sob outros termos em outros aparatos terminológicos. Por isso, ele se sente seguro. Será que ele tem razão de estar seguro? De maneira alguma! Ele se encontra, sem se dar conta, em campo minado. E isso por várias razões; eis aqui as principais:

1. A oposição da língua — será necessário lembrar mais uma vez que ela é muitas vezes chamada linguagem? — é articulada com a oposição saussuriana da sincronia e da diacronia. Isso aparece de forma mais ou menos clara em diversas passagens, sendo a mais explícita a seguinte:

"O sistema do significante ou da linguagem para descrevê-lo sincronicamente, o sistema do discurso [que deve ser tomado, como foi dito na nota 18, com o sentido de fala] para descrevê-lo diacronicamente, a criança entra nisso logo de saída." (Séminaire IV, p. 261; ver também p. 299, além de Séminaire V, p. 31 e 493 e Écrits, p. 658 e 805)

Assim, a linguagem é duplamente estruturada: enquanto "sistema do significante" (é o abc de que falávamos antes, e vê-se que a expressão sistema do significante assume também um estatuto equivalente a língua) e enquanto "sistema do discurso": é o bê-á-bá " que vislumbramos acima, e é a fala que, como se pode perceber nesse momento, é também sistema. O primeiro sistema é de natureza sincrônica, e o segundo, de natureza diacrônica. É preciso tomar cuidado com essa utilização especificamente lacaniana da oposição saussuriana: para Lacan, a sincronia é o modo de existência do sistema do significante, quer dizer, a língua, aliás a linguagem. A diacronia é a diacronia breve do ato de fala. Nesse ponto, assim como em alguns outros, Lacan parece se distanciar o mínimo possível da letra do ensinamento saussuriano: aquilo que ele chama de "diacronia do discurso" seria talvez traduzido em termos estritamente saussurianos por "caráter linear do significante". Mas sabe-se que existe uma relação — subterrânea, eu estava prestes a dizer: mas não é o caso, apesar da aparência — entre as duas noções saussurianas de diacronia e de linearidade. Apresentei minhas explicações sobre esse problema em Arrivé 1995, e contento-me aqui em remeter o leitor a elas.19 19 Durante essa discussão, Sémir Badir fez notar que a oposição sincronia / diacronia no sentido que lhe confere Lacan evoca uma outra distinção saussuriana: a das relações sintagmáticas (fundadas, como estamos lembrados — ver CLG p. 170 — sobre o "caráter linear da língua") e das relações associativas. Ele continuava, perplexo pelo fato de Lacan não ter utilizado essa oposição. Perplexidade interessante, que Badir me fez compartilhar. É certo que, a menos que eu me engane ou tenha deixado passar alguma coisa, Lacan não utiliza, ou utiliza pouquíssimo a oposição do sintagma e do paradigma. É sem dúvida pelo fato da dupla sincronia e diacronia pôr de saída a questão da inscrição dos fenômenos, a começar pelo fenômeno da fala, no tempo. Convém além disso notar que Lacan utiliza também a oposição sincronia / diacronia no seu sentido estritamente sausseriano: é o que vimos, há pouco, nas suas observações sobre a etimologia.

2. Para o "sistema do significante", nome propriamente lacaniano da língua, o terreno é repleto de minas não menos perigosas. Efetivamente, a estrutura desse sistema não é idêntica à que os lingüistas descrevem sob esse nome. Entro aqui num problema muito vasto e árduo. Não o abordarei diretamente: já se vê que não é nada mais nada menos que o problema da estrutura do inconsciente. Contentar-me-ei com uma observação relativa à história da reflexão de Lacan.

O conceito de a língua, com o corte, visível mas não audível, entre o artigo e o substantivo, será, relativamente tarde, acompanhado pelo de alíngua numa só grafia.20 20 A etimologia lacaniana dessa palavra parece dupla: a supressão (por integração) do artigo definido é visível. E, por outro lado, a palavra evoca — quando se está prevenido — a lalação, jogo pré-lingüístico da criança que tenta adquirir sua língua materna. Pelo menos é o que está indicado explicitamente por Lacan, em 1975, na "Conférence à Genève sur le symptôme": "( ) a linguagem, essa linguagem que não tem absolutamente existência teórica, intervém sempre sob a forma disso que nomeio com uma palavra, que eu quis trazer para o mais próximo possível da palavra lalação [ lallation] - alíngua [ lalangue]" (LACAN, 1985, p. 11). Lacan quer com isso destacar a especificidade da estrutura desse sistema, fundado principalmente sobre o equívoco e a homofonia: é o que fica explícito no fragmento, já citado acima, de "L'étourdit". Não hesito, e veremos por que, em repetir a primeira frase:

"O inconsciente sendo 'estruturado como uma linguagem', quer dizer, alíngua onde ele habita, está sujeito ao equívoco pelo qual cada uma delas se distingue. Uma língua dentre outras não é nada mais do que a totalidade dos equívocos que sua história deixou que nela subsistissem." (1973b, p. 47)

Não sei se vocês perceberam, ao ler a primeira frase, que é impossível determinar o referente do ele que habita n'alíngua:21 21 Essa passagem só pode ser compreendida se levarmos em conta que a palavra langage (linguagem) é, na língua francesa, uma palavra de gênero masculino. [N. T.] seria a linguagem? Seria o inconsciente? Mas o inconsciente não seria linguagem? Aqui, a forma do texto se molda pelo conteúdo que ele articula: o que estrutura alíngua é a "totalidade dos equívocos" que nela existem e subsistem. Compreende-se assim a insistência de Lacan, ao mesmo tempo, sobre o problema teórico do equívoco e sobre seu manejo discursivo: sabemos que a prática do equívoco progride na medida em que avançamos diacronicamente na produção de Lacan. Desde 1960, ele observa, como que saboreando, "o aspecto irremediavelmente estapafúrdio que o inconsciente conserva de suas raízes lingüísticas" (Écrits, p. 811). Estapafúrdio, é claro, porque está fundado sobre o equívoco.

Já ficou claro: a "estrutura do significante", tal como a considera Lacan, não se confunde com que os lingüistas chamam de "estrutura da língua". Certamente não porque estes recusem o equívoco e a homofonia: basta que nos reportemos ao CLG. Mas é verdade que os lingüistas não lhes dão a função fundamental e fundadora que lhes é conferida por Lacan.

3. Passo agora à questão da fala [parole].22 22 Escolhemos aqui a tradução de parole por fala, pois a comparação com o conceito homônimo de Saussure (igualmente parole) não poderia ser feita com base na tradução que se propõe tradicionalmente, na obra de Lacan, de parole por palavra. [N. T.] Aqui os fatos parecem menos inquietantes, mas, na realidade, são ainda mais. Efetivamente, a fala lacaniana não se confunde, a despeito das primeiras aparências, com a fala saussuriana: é que ela se duplica. Os dois objetos que resultam desta duplicação são, de um lado, a fala plena — às vezes chamada de fala verídica (Séminaire I, p. 59) ou ainda fala verdadeira (Écrits, p. 351) ou fala fundamental (Séminaire III, p. 181) — e, de outro lado, a fala vazia que é por vezes — infelizmente, nem sempre — assimilada ao discurso (Séminaire V, p. 16) e, mais tarde, ao discurso corrente [fr. discours courant] ortografado, ludicamente, "disque ourcourant". Onde se situa a oposição entre esses dois tipos de fala? Precisamente, no seguinte traço: a fala plena é ato. Cito aqui o segmento mais explícito:

"A fala plena é aquela que visa, que constrói a verdade tal como ela é estabelecida no reconhecimento de um pelo outro. A fala plena é fala que faz ato. Um dos sujeitos se vê, depois, como um outro que ele não era antes. É por isso que essa dimensão não pode ser evitada na experiência analítica." (Le Séminaire, Livre I, p. 125-126; ver também Écrits, p. 351)

Texto fundamental, a meu ver, tanto para o analista quanto para o lingüista. Para o analista, ele marca com grande força o laço indissolúvel entre a teoria e a prática: "É o fundamento ou a fala fundadora — você é isso, minha mulher, meu mestre, mil outras coisas. Esse você é isso, quando o recebo, faz-me, na fala, outro que não sou" (Le Séminaire, Livre III, p. 315).

Para o lingüista, fixa claramente ao mesmo tempo o que há de comum e o que subsiste como diferença entre o que ele próprio entende por fala e a palavra homônima de Lacan. Em comum, certamente, a intersubjetividade: nos dois campos a fala institui uma relação entre os sujeitos. As diferenças se encontram na natureza dessa relação. Para o analista, a fala é ato. Aqui, por certo, o lingüista prestaria atenção: ele conhece bem, sob o nome de enunciados performativos, fatos de fala que também constituem atos. Mas vê-se imediatamente o abismo que separa esses segmentos de discurso da fala plena. Ela é continuamente performativa em cada um de seus segmentos, mesmo o aparentemente mais anódino, de sorte que se faz necessário aqui falar em performatividade generalizada. E a ação que ela produz é absolutamente específica: nada menos que a transformação de um dos sujeitos. Estamos longe do efeito daqueles pobres e pequenos enunciados performativos: chegariam eles, em algum momento, a transformar o sujeito? Vasto campo de perplexidade, e quase deserto, certamente. De todo modo, este não é o momento de explorá-lo.

Em suma, o que se pareceria mais com a fala, simplesmente, seria talvez a fala vazia. Mas Lacan só se interessa por essa última, precisamente, para caracterizá-la negativamente em relação à fala plena.

Como se pôde verificar ao longo desta contribuição, o campo comum à lingüística e a psicanálise é recoberto de minas e armadilhas. Resta-nos a constatação de que, a despeito dos perigos que corremos em percorrê-lo, esse campo comum é o da linguagem, da língua e da fala. Para esses três objetos existe, como todos sabem, já muito antes da lingüística, uma disciplina antiqüíssima: a gramática. Qual é o lugar que Lacan confere a essa disciplina em sua reflexão?

II. A GRAMÁTICA FRANCESA: MODELO DO INCONSCIENTE?

Acabamos de ver que Lacan manifesta pela gramática um interesse constante. E como poderia ser diferente para o autor que diz "o inconsciente, isso fala, o que o faz depender da linguagem" (1973a, p. 16)? O inconsciente fala: ele produz um discurso. A necessidade de uma gramática desse discurso se impõe de saída:"O desejo do sonho não é assumido pelo sujeito que diz 'Eu' na sua fala. Articulado entretanto no lugar do Outro, ele é discurso, discurso cuja gramática Freud começou a enunciar" (Écrits, p. 629; o texto é "La direction de la cure", que data de 1958).

E Lacan se engaja logo na gramática desse discurso, mobilizando sucessivamente (e talvez até um pouco avidamente, no caso da segunda) as boas e velhas categorias gramaticais de modo e de aspecto:

"É assim que os votos que ele [o discurso do sonho] constitui não têm flexão optativa para modificar o indicativo de sua fórmula. Nisso veríamos, numa referência lingüística, que o que se chama de aspecto do verbo é, aqui, o do acabado (verdadeiro sentido de Wunscherfüllung)."23 23 Podemos contestar: Wunscherfüllung é — como demonstra o sufixo - ung — antes o ato de acabar do que o acabado. (Ibid.).

Um pouco mais tarde, falando sobre as curiosas idas e vindas de Freud sobre o problema da ausência da negação no inconsciente, Lacan enuncia que:

"É então ao suporte do significante que somos dirigidos pelas proposições de Freud, e desde a primeira [a proposição freudiana segundo a qual não haveria negação no inconsciente. Ver 1900-1967, p. 274-275]. Desnecessário sublinhar que os retornos pelos quais envereda a segunda [aquela que reconhece a existência de certos meios de 'exprimir o não', 1900-1967, p. 281-283] marcam, pelas balizas sempre gramaticais que Freud coloca nessas retomadas, que se trata efetivamente de uma ordem do discurso." (Écrits, p. 659; trata-se do texto "Remarque sur le rapport de Daniel Lagache", que data de 1960)

Se "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", é realmente necessário que de alguma forma ele seja regido por uma gramática. Aqui é preciso ler Lacan ao pé da letra e fazer o inventário das questões de gramática sobre as quais ele se posiciona. A hipótese é que cada uma dessas posições e o conjunto que elas constituem mostram de que maneira o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

A dificuldade é que tal inventário das questões de gramática, sobre as quais Lacan se inclina, é considerável. Mesmo se levarmos em conta que, como acabamos de perceber, a compreensão da gramática é duplamente limitada:

• a gramática não é por certo a disciplina lingüística que retém mais freqüentemente o autor: vimos acima que ela continua relativamente distante em relação à reflexão geral sobre o problema do signo, e — apenas um pouco distante — em relação à fonologia e à etimologia.

• vimos igualmente acima que se trata da gramática de uma língua: a dele, pela qual se interessa quase que exclusivamente, com algumas exceções. Para essa preferência cedida à gramática francesa, ele fornece às vezes uma discreta justificativa: "Eu peço a vocês para verem comigo hoje alguns exemplos cuja importância lingüística é, para nós, franceses, absolutamente sensível" (Le Séminaire, Livre III, p. 315. O problema referido aqui é o da concordância entre a pessoa e o verbo em frases como tu és aquele que me seguirás / seguirá). 24 24 No original: tu es celui qui me suivras / suivra. Em francês, não há diferença de pronúncia entre as formas suivras [seguirás] e suivra [seguirá]. [N. T.]

A despeito dessa dupla limitação, o corpus — com praticamente apenas uma exceção (Le Séminaire XV) na obra de Lacan publicada até o momento (outubro 1999) — recobre quase todas as questões de gramática tratadas nos manuais. O tratamento que Lacan lhes dispensa tem uma particularidade comum, a meu ver, jamais desmentida: elas não são estudadas gratuitamente, pelo prazer de falar de gramática, mas sim exclusivamente pela intenção de estreitar ainda mais as relações entre linguagem e inconsciente. O bom método seria então tratar todos os problemas gramaticais levantados por Lacan: cada um deles contém, à sua maneira, uma indicação sobre a forma pela qual "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Entretanto, essas indicações são por vezes muito rápidas ou apenas alusivas. Chegam mesmo a ser, às vezes, quase implícitas. É por isso que faço uma escolha dentre os problemas gramaticais oferecidos por Lacan: retive — de uma forma que, admito, guarda o risco de parecer um pouco arbitrária — os problemas que pareceram ilustrar da forma mais transparente as relações entre linguagem e inconsciente. São três:

1. O problema dos tempos verbais;

2. O problema dos shifters, denominação inglesa conservada por Lacan dos embreantes [embrayeurs]25 25 Mantivemos a designação francesa, que figura na tradução em português dos textos de Jakobson a esse respeito. [N. T.] ou indicadores;

3. O problema da negação e, mais especificamente, o dos elementos da negação francesa.

Gostaria de ter podido abordar um quarto problema: o da concordância entre a pessoa e o verbo nas estruturas do tipo tu és aquele que me seguirás / seguirá, aliado ao problema dos verbos depoentes latinos e da voz média (Séminaire III, p. 307-308, 315-319, 322, Séminaire V, p. 150-151, Écrits, p. 445). Entretanto, os limites quantitativos me impediram de fazê-lo.

Verificaremos que os três problemas abordados (o mesmo vale para o quarto) estão intimamente ligados, a tal ponto que por vezes chegam a ser inseparáveis. Tal fato faz com que a ordem de exposição, a partir de agora embasada em critérios de inteligibilidade, seja, no fundo, pouco importante.

1. O problema dos tempos verbais

Dentre os tempos verbais — da língua francesa, obviamente — Lacan se interessa sobretudo pelo presente, pelo futuro anterior26 26 O futuro anterior, em francês, é uma forma de conjugação composta em dois termos (verbo auxiliar ter ou ser mais um verbo no particípio) e usada em dois casos típicos: 1) para marcar a aspectualidade da frase, ou seja, o caráter conclusivo da ação ("Nous serons bientôt arrivés à Paris" [Logo teremos chegado a Paris]) ou 2) para marcar a temporalidade da frase, isto é, indicar a anterioridade de um acontecimento futuro por relação a outro também futuro. O primeiro acontecimento (isto é, aquele que se realizará primeiro) é indicado no futuro anterior, o segundo no futuro simples. Assim, por exemplo, "Je serai parti quand il viendra" ([Já] Terei saído quando ele chegar"). É esse valor, de temporalidade, que Arrivé destaca nas discussões de Lacan sobre o assunto. O leitor interessado encontrará mais pormenores na gramática publicada pelo autor deste artigo — ARRIVÉ, Michel; GADET, Françoise & GALMICHE, Michel. La Grammaire d'aujourd'hui: guide alphabétique de linguistique française, Paris, Flammarion, 1986, sobretudo às páginas 274-277. [N. T.] e pelo imperfeito. Sobre o presente não direi nada nesta primeira seção: com efeito, ele é explicitamente integrado ao problema dos shifters: "( ) o sujeito é designado aí pelos shifters (ou seja, Eu, todas as partículas e flexões que fixam sua presença como sujeito do discurso e, com elas, o presente da cronologia)" (Écrits, p. 664). Ele será, portanto, evocado quando da abordagem desse tema.

O futuro anterior e o imperfeito são, cada um à sua maneira, formas verbais específicas do estatuto do sujeito do inconsciente.

1.1. O futuro anterior

De modo geral, Lacan não negligencia de forma alguma o problema do aspecto verbal. Vimos acima que ele identificava certo acabado no discurso do sonho. E, no texto "Remarque sur le rapport de Daniel Lagache", ele convida determinado tumultuador impertinente27 27 No original: telle impertinente "mouche du coche". [N. T.] a:

"distinguir o tempo da cronologia, as "formas aspectuais" que focalizam, da enunciação, aquilo em que aí se transforma o sujeito, das que situam o enunciado na linha dos acontecimentos. Então ele [o tumultuador] não confundirá o sujeito do acabado com a presença do passado." (Écrits, p. 664)

Quanto ao futuro anterior, o que importa é o seu valor temporal, valor que lhe permite situar um processo no futuro como anterior a outro processo. Aquilo que desse valor é selecionado por Lacan é o caráter evanescente da ação que ele designa: ainda não realizada no momento da enunciação, mas já ultrapassada e imersa no passado no momento em que se efetua o processo em relação ao qual ela é dada como anterior.

Essa análise se manifesta implicitamente, na língua-objeto, pelo emprego do futuro anterior para descrever o modo de existência temporal do inconsciente. É o que se pode observar principalmente no Séminaire I, na sessão de 7 de abril de 1954:

"De um lado o inconsciente é ( ) algo negativo, idealmente inacessível. De outro lado, é algo quase real. Enfim, algo que será realizado no simbólico ou, mais exatamente, que, graças ao progresso simbólico na análise, terá sido [sublinhado por Lacan]." (Séminaire I, p. 181; ver um outro exemplo, p. 182)

Entretanto, já no "Discurso de Roma" (que data de setembro de 1953), Lacan tinha teorizado metalingüisticamente o emprego do futuro anterior do seguinte modo:

"Identifico-me na linguagem, mas somente se me perco nela como objeto. O que se realiza na minha história não é passado definido do que foi, nem mesmo o perfeito do que foi no que eu sou, 28 28 Vemos aqui um novo traço do interesse de Lacan pela categoria do aspecto, do qual uma das posições é aqui abordada sob o nome benvenistiano de perfeito, outro nome de realizado. mas sim o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que estou me transformando." (Écrits, p. 299-300)

Mais tarde, em 1960, em "Subversion du sujet et dialectique du désir", as etapas do percurso do sujeito sobre o grafo do desejo serão descritas como as que possibilitam "um efeito de retroversão pelo qual o sujeito, a cada etapa, transforma-se naquilo que era no momento antecedente, e só é capaz de anunciar-se no futuro anterior: ele terá sido" (Écrits, p. 808).

1.2. O imperfeito

De uma forma aparentemente paradoxal, o modo de existência temporal significado pelo imperfeito não é, para Lacan, fundamentalmente diferente do futuro anterior. Para se compreender esse parentesco lacaniano entre duas formas tão diferentes, é preciso levar em conta que, orientado por Damourette e Pichon e sobretudo, aqui, por Gustave Guillaume, ele considera a unicidade absoluta dos valores do imperfeito. A referência — única, se vi bem — a Guillaume se encontra no Séminaire XV, de 10 de janeiro de 1968:

"Será que dentro desse 'eu penso', 'eu sou'? É de fato certo que a revelação do 'eu penso' do inconsciente implica ( ) alguma coisa que, lá onde o cogito de Descartes nos faz tocar a implicação 'logo sou', é essa dimensão que chamarei do desarmamento que faz com que seguramente eu pense e, ao me perceber, eu era aí, mais exatamente como se diz — vocês sabem que eu já utilizei esse exemplo, mas a experiência me ensinou que não é inútil repetir — é no mesmo sentido que, segundo o exemplo extraído das observações do lingüista Guillaume, no mesmo sentido do emprego tão específico do imperfeito em francês, que dá toda a ambigüidade da expressão 'um instante mais tarde, a bomba explodia'. O que quer dizer, justamente, que ela não explode." (Séminaire XV, p. 79)

Lacan não contesta a importância do cogito cartesiano para o sujeito do inconsciente. Com uma ressalva apenas, mas ela é muito importante: o eu sou cartesiano se vê substituído por um eu estava lá. Além disso, esse imperfeito deve ser compreendido como aquele que comenta Guillaume29 29 Guillaume volta a esse problema em vários episódios. A análise mais detalhada encontra-se às páginas 189-195 e 198-199 de Leçons de linguistique 1938-1939 que, publicadas em 1992, seguramente não conheceram as mãos de Lacan. Mas ele pode ter tido acesso à reedição, publicada em 1965, de Temps et Verbe, cuja primeira edição remonta a 1929. O problema foi aí abordado no mesmo contexto teórico das Leçons, apesar de um pouco mais brevemente, às páginas 68-69. a propósito do exemplo um instante depois / mais tarde, o trem descarrilava, levemente modificado para a ocorrência. Tanto para o trem como para a bomba, o acontecimento pode suceder ou não. Tendo notado tal "suspense" — é o termo guillaumiano — sob a forma da "ambigüidade", Lacan opta, nesse caso, pelo não-acesso da ação ao acontecimento. Tal é o estatuto do sujeito do inconsciente: "desarmado" justo antes de advir, um pouco como aquele que, sujeito de um terá sido, não terá tocado as raias do ser senão para se transformar naquilo que já era. "Desmontado", como a bomba logo antes de explodir.

Alguns anos antes, a análise proposta — sem a referência a Guillaume — era muito semelhante:

"Resta somente esse ser cuja consagração ele só alcança quando não é mais. Tal é o encontro no tempo mais ambíguo da morfologia do verbo francês, aquele que se designa como o imperfeito. Ele estava aí contém a mesma duplicidade na qual fica suspenso: um instante mais tarde, a bomba explodia, quando, por falta de contexto, não se pode deduzir se o acontecimento se produziu ou não." (Écrits, p. 678)

Essa análise, percebe-se logo, é bastante litigiosa do ponto de vista lingüístico. Isso se deve ao fato de que Lacan distorceu um pouco a análise guillaumiana. Exatamente em dois pontos:

1. Guillaume, de fato, apresenta a hipótese da unicidade do imperfeito (como também de todos os outros tempos). Lacan parece então se inscrever na continuidade dessa hipótese. Mas, contrariamente a Guillaume e, na verdade, a qualquer análise lingüística do imperfeito, ele vê essa unidade — ouso dizer — na duplicidade: compreendo que Lacan coloca o imperfeito como sendo sempre ambíguo, tanto no exemplo de ele estava aí como no exemplo do trem ou da bomba. E isso não é absolutamente o que Guillaume diz: a ambigüidade do exemplo do trem que hesita em descarrilar se produz apenas sob o "ponto de vista do discurso" que, segundo a escolha que se faz entre um instante depois e um instante mais tarde faz desviar a "decadência do acabado" do imperfeito para o lado positivo (e o trem descarrila, a bomba explode) ou para o lado negativo (e o trem prossegue o seu caminho, a bomba é "desarmada"). Nenhuma dessas comutações é possível com os tranqüilos imperfeitos do tipo ele estava aí, que não têm absolutamente nada de ambíguo.

Uma vez estabelecidas a "ambigüidade" e a "duplicidade" fundamentais do imperfeito, Lacan dissolve constantemente o equívoco em favor do não-advento do processo: donde o estatuto específico desse "ser cujo advento só se apreende quando não é mais".

Acharemos um outro exemplo desse sofisma — será preciso dizer que, como Lacan, não confiro nenhum valor negativo a esse termo?30 30 Veremos mais claramente adiante quando da alusão ao "sofisma" dos três prisioneiros. — na ilustre análise do sonho ele não sabia que estava morto. Lacan o utiliza três vezes (Séminaire VI, não consultado; Séminaire VII, p. 36 e 289; Écrits, p. 801-802). Frase paradoxal que mantém a vida suspensa na ignorância pela qual o sujeito é afastado de sua própria morte.31 31 Inversamente, M. Valdemar somente se manteve vivo por falar periodicamente, no sono hipnótico em que foi mergulhado in articulo mortis, a frase eu estou morto ( Séminaire II, p. 270): se ele fala é porque está vivo, apesar de sua morte. Lacan atribui o paradoxo ao valor ambíguo do imperfeito:

"Ele não sabia Mais um pouco, e ele sabia, ah! que isso nunca aconteça! Prefiro morrer a que ele saiba. Sim, é assim que Eu32 32 Escolhemos aqui a tradução do pronome pessoal reto je por eu, mas mantivemos o pronome pessoal tônico no original moi, pois tal tradução não é possível para o português (por exemplo, de moi para mim). Assim, indicaremos, sempre que houver necessidade, qual o pronome em questão no texto e manteremos, no caso de je/eu, a grafia maiúscula ou minúscula original. [N. T.] venho aqui, aqui onde eu estava: quem sabia que eu estava morto?

Ser de não-sendo, é assim que advém Eu como sujeito que se conjuga na dupla aporia de uma subsistência verdadeira que se anula de seu saber e de um discurso no qual é a morte que sustenta a sua existência." (Écrits, p. 802)

Sim, mas a dupla aporia que sustenta paradoxalmente o advir do Eu como sujeito não vem do valor do imperfeito. Por uma razão simples: o imperfeito não tem, nesse caso, o valor que lhe atribui Lacan, como o mostra de sobejo o fato de que a "dupla aporia" subsiste se o verbo for enunciado no presente: ele não sabe que está morto. Mas Lacan persiste e, em seu comentário do célebre aforismo freudiano Wo Es War soll Ich werden, continua a atribuir ao imperfeito o valor de "iminência obstada" que este não tem. Lacan, aliás, quase o reconhece implicitamente, pois nota que o imperfeito traduz aqui o perfeito alemão, totalmente inapto para assumir esse valor:

"O francês diz: Lá onde estava Usemos da vantagem de um imperfeito distinto que a língua nos oferece. Lá onde estava, ainda agora, lá onde estava há pouco, entre essa extinção que ainda brilha e essa eclosão que tropeça, Eu posso vir ao ser de desaparecer do meu dito." (Écrits, p. 801)

Resta uma questão difícil: qual é exatamente o sujeito que é afetado pelo estatuto temporal tão específico do futuro anterior e do imperfeito, tal como o concebe Lacan? Pois observamos que o "ser de não sendo" que (se) enuncia sob essas formas temporais é designado unicamente por eu, Eu e não moi e ainda menos le moi, em alemão Ich e não das Ich:33 33 Será preciso lembrar que em alemão não existe oposição morfológica correspondente àquela que, em francês, distingue a forma conjunta je da forma disjunta moi? A oposição ich/mich tem um outro estatuto, e estritamente casual (nominativo/acusativo). pois no aforismo freudiano, Ich não é substantivado pelo artigo das. Lacan, com essa observação — formulada alguns anos antes em "A coisa freudiana" — procura eliminar a interpretação de Ich por le moi. E como se a ausência do artigo das na fórmula freudiana não fosse suficiente, ele traduz Ich por Je e, para justificar sua tradução, alega rapidamente um problema de gramática histórica do francês: a substituição do ce suis-je antigo pelo c'est moi 34 34 Traduzindo ambas as expressões: "sou eu". [N. T.] moderno.35 35 A substituição foi feita progressivamente a partir da segunda metade do século XV, segundo Brunot (1905, p. 465-466) e talvez um pouco mais cedo segundo Moignet (1965). Observe-se o interesse de Lacan por esse problema que, embora espetacular, é muito pouco valorizado pelos historiadores da língua aos quais ele podia ter acesso. O mais verossímil é que, uma vez mais, o Essai de grammaire de la langue française de Damourette e Pichon tenha fornecido a Lacan essa pista. Ver v. IV, 1940, p. 573-580. "Ich, eu, lá devo (como se dizia: sou eu [ce suis-je], antes de dizermos sou eu [c'est moi]), werden, devir, quer dizer, nem sobrevir, nem mesmo advir, mas vir ao dia nesse lugar mesmo enquanto lugar de ser" (Écrits, p. 417).

É de fato do sujeito do inconsciente que se trata aqui, como diz Lacan quase explicitamente na conclusão da análise do sonho ele não sabia que estava morto:

"Esse ele não sabia, no imperfeito, guarda o campo radical da enunciação, quer dizer, da relação mais fundamental entre o sujeito e a articulação significante. Isso quer dizer que ele não é o agente, mas o suporte, na medida em que não saberia mesmo suportar as conseqüências. É na sua relação com a articulação significante que ele, sujeito, surge como conseqüência." (Séminaire VII, p. 258-259)

2. O problema dos shifters

Se bem vi, Lacan não utiliza o termo embreante, introduzido por Ruwet em 1968 em sua tradução de Essais de linguistique générale de Jakobson (1963), e mais precisamente do artigo "Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe", publicado em inglês em 1957. Ele recorre ao termo inglês original shifter (que, por sua vez, chegou a Jakobson por Jespersen, 1922). Usa também, mas raramente, o termo indicador (por vezes citado de forma inexata como indicativo) que é o termo benvenistiano (BENVENISTE; 1956-1966, p. 253).36 36 O texto de Benveniste "La nature des pronoms" foi originalmente publicado em 1956 na coletânea For Roman Jakobson. Entretanto, esse artigo repousa, na parte conceitual, sobre duas conferências realizadas por Jakobson em 1950, que Benveniste pode ter conhecido. Sobre esses problemas de cronologia, ver Normand 1985 e Perret 1988. Autorizar-me-ei, logo mais, a emitir uma hipótese sobre o silêncio de Lacan em relação à palavra embreante que, de todo modo, cronologicamente ao menos, ele chegou a conhecer.

Não vamos perder o rumo ao nos embrenharmos pelos embreantes: tirando o trocadilho, arriscamo-nos a fazer confusão. É por isso que me permito um breve esclarecimento da noção.

Tomo, como exemplo, o embreante por excelência: eu ou, naturalmente, suas diferentes realizações flexivas: em francês, me e moi. Vemos, pelo destino que lhes deu Lacan em sua teoria do sujeito, que elas são significantes no mais alto grau. Mas elas têm exatamente o mesmo estatuto de shifter que eu. A propriedade comum a essas formas — embreantes actanciais — é a de ter simultaneamente como referente o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. Essa reunião de dois sujeitos tem como efeito imediato fazer mudar (to shift)37 37 Constata-se que o termo embreante introduz uma metáfora mecânica e, especificamente, automobilística, que não estava presente no termo shifter; a palavra embreante, como o diz Ruwet em sua nota da tradução, "pareceu-nos própria para designar as unidades do código que fazem embreagem da mensagem sobre a situação" (Jakobson, 1963, p. 178). Todo motorista sabe a diferença que existe entre trocar de marcha ( to shift [gears]) [N. T.: com a utilização da embreagem, presumivelmente] e embrear ( to let [in the clutch]) [N. T.: Isto é, acionar a embreagem para liberar o veículo da tração do motor]. Vale notar que o termo shifter não teria podido proporcionar de nenhum modo uma teoria da debreagem, na esteira da teoria da embreagem. o referente quando se muda o sujeito da enunciação. Ela explica também certas propriedades atualmente bem conhecidas dos enunciados que comportam o embreante eu. Por exemplo, posso dizer eu sei que Francis veio e eu não sei se Francis veio, mas não posso dizer, ao menos nas condições normais, (1) *eu não sei que Francis veio nem (2) *eu sei se Francis veio: o mesmo sujeito designado por eu, enquanto sujeito do enunciado, é necessariamente impedido, enquanto sujeito da enunciação, de marcar ao mesmo tempo — como faz o presente — sua ignorância sobre o que ele apresenta como verificado, como em (1), ou seu saber sobre o que ele coloca como dúvida, como em (2).38 38 Sucessivamente, interressaram-se pelo problema Borillo (1976), Milner (1978), Martin (1983-1987a) e Culioli (1990).

Até aqui, tudo parece claro: o que visamos é o referente de eu. A partir do momento em que se passa ao problema do enunciado, as coisas mudam: temos a escolha entre a cacofonia e o silêncio.39 39 O silêncio? Freqüentemente. A cacofonia? Confesso que tenho dificuldades em encontrar um sentido para a fórmula de Milner "o sentido do eu é proferir o significante eu " (1978, p. 78. Por outro lado, quando da abordagem do referente, a análise de Milner era plenamente aceitável: "o referente de eu é aquele que emprega eu"; 1975-1976, p. 70). Entretanto é indispensável supor um significado para o shifter, como também para qualquer outro elemento lingüístico: é precisamente a condição que lhe permite assumir um referente. Para não entrar aqui em debates confusos (e seguramente extemporâneos), contentar-me-ei com uma fórmula que pode parecer decepcionante por sua aparência tautológica: o significado de eu é a propriedade que ele tem de juntar o sujeito do enunciado com o da enunciação.40 40 Observa-se que essa fórmula se distingue da definição referencial pela introdução da noção de propriedade que, em sua especificidade, constitui o significado de eu. Propriedade inteiramente específica, que ele partilha — com modalidades que se diferenciam para cada um deles apenas pelo componente adotado da instância da enunciação — somente com os outros embreantes: componente actancial para eu, tu e seus derivados, temporal para hoje, ontem e amanhã e companhia, componente espacial para aqui, e seus similares.

E quanto à posição de Lacan em relação aos shifters? No início, é muito simples. Lacan está de acordo com o fato de que o shifter designa, no enunciado, o sujeito da enunciação.

"À estrutura da linguagem, uma vez reconhecida no inconsciente, que tipo de sujeito podemos conferir? Pode-se aqui tentar, por uma questão de método, partir da definição estritamente lingüística do Eu como significante: onde ele é apenas o shifter ou indicativo que no sujeito do enunciado designa o sujeito como aquele que fala atualmente." (Écrits, p. 800. Ver também p. 663-664, com uma alusão ao "presente da cronologia", tempo do verbo que, de modo legítimo — e muito benvenistiano — ele integra à classe dos indicadores)

Até aqui, tudo vai bem: Lacan segue exatamente os passos de Jakobson e de Benveniste, que está presente, como mostrei acima, no termo indicativo, retomado, quase como um lapso, do indicador benvenistiano. Mas logo surge a divergência fundamental: ela se encontra na insurreição de Lacan contra a idéia de que o shifter possa significar o sujeito da enunciação:

"Vale dizer que ele designa o sujeito da enunciação, mas que ele não o significa. Como é evidente, a propósito, que todo significante do sujeito da enunciação pode não comparecer no enunciado, além disso, há aquelas que diferem do Eu, e não somente o que chama, de forma insuficiente, os casos da primeira pessoa do singular, acrescentaríamos o seu lugar na invocação plural e até mesmo no Si [Soi] da auto-sugestão." (Ibid.).

Deixo de lado essa argumentação, ela parece bem fraca. Não é porque o significante pode "não comparecer" que ele é desprovido de significado quando comparece. Aliás, Lacan, quatro anos antes, aparentemente não dava a mesma importância a uma observação semelhante:

"( ) O eu nunca está lá onde aparece sob a forma de um significante particular. O eu é o eu daquele que pronuncia o discurso. Tudo o que se diz tem sob si um eu que o pronuncia. É no interior dessa enunciação que o tu aparece."41 41 É evidentemente difícil, lendo esse texto, não pensar no artigo de Benveniste "Structure des relations de personne dans le verbe", onde se encontram principalmente as formulações seguintes: "Dizendo eu, não posso não falar de mim. Na segunda pessoa, tu é necessariamente designado por eu e não pode ser pensado fora de uma situação a partir do eu; ao mesmo tempo, eu enuncia alguma coisa como predicado de tu" (1946-1966, p. 229). (Séminaire III, p. 310)

A principal dificuldade está na disjunção, proposta por Lacan, entre designação e significação. Tal disjunção coloca de fato três questões um tanto desconcertantes:

1. O que acontece com a própria possibilidade dessa disjunção? Um elemento lingüístico, qualquer que seja ele, pode designar sem significar? Lembramos que essa possibilidade foi longamente sustentada acerca dos nomes próprios, que não deixam de possuir suas relações com os embreantes. Mas sabemos também que essa teoria da "vacuidade" dos nomes próprios é contestada há muito tempo (ver principalmente Martin 1983-1987b e Gary-Prieur 1994). De toda forma, Lacan, ao menos até onde li, não levanta essa lebre: ele age como se fosse evidente que os shifters pudessem designar sem significar.

2. Se o sujeito da enunciação não é significado pelo shifter eu, seria ele então significado por algum outro elemento? E qual? A resposta aparece imediatamente: "Cremos ter reconhecido o sujeito da enunciação no significante ne, chamado pelos gramáticos de ne expletivo" (Ibid.).

Vê-se por esse exemplo: o problema dos shifters é, para Lacan, estreitamente ligado ao da negação, ao menos da negação francesa, e a um dos elementos que a ela se referem: o ne, efetivamente chamado de expletivo quando se manifesta só. Sou entretanto levado a protelar o exame desse problema, que terá seu lugar quando do estudo da negação.

3. Vendo as coisas sob o aspecto "formal, gramatical" — segundo a exigência de Lacan —, um fato aparece claramente: se o eu do enunciado designa sem significar o sujeito da enunciação, devidamente significado por um outro elemento — o ne chamado expletivo — então a coalescência dos dois sujeitos é, rigorosamente falando, impossível. Será então que há entre o enunciado e a enunciação uma clivagem completa, uma discordância absoluta? Aqui também a resposta de Lacan é totalmente segura: sim, existe mesmo "disjunção", "discordância", Spaltung — divisão, cisão, clivagem — entre o enunciado e a enunciação. Os textos nos quais se mostra essa cisão são numerosos e concordantes, tanto nos Séminaires — principalmente os de números V, p. 15-19, VII, p. 353 (com uma análise talvez demasiadamente sutil do mh do grego antigo)42 42 O excesso de sutileza se justifica porque, a meu ver, Lacan quer a qualquer custo fazer do mh do grego antigo o ne do francês. Nenhum helenista pode aceitar tal assimilação: o mh do grego antigo constitui por si só uma negação, ao contrário do ne francês. Mas as análises um pouco capciosas a que Lacan se dedicou para sua demonstração permitiram-lhe enunciar com grande clareza duas proposições: "[o ne] não tem nenhuma razão de ser, se ele não é o sujeito, ele mesmo", e "o mh está aí pela Spaltung entre enunciação e enunciado" (p. 353). e XI, p. 127-188, quanto nos Écrits, principalmente às p. 664 e 800. Em várias dessas ocorrências, a discordância entre essas duas linhas é ilustrada pelo grafo chamado de "abridor de garrafas" (Écrits, p. 815) que, em sua forma primitiva — a mais simples — apresenta-se assim:43 43 Foi dessa forma que ele foi apresentado pela primeira vez, salvo engano meu, no Seminário V. Será preciso lembrar que a utilização desse gráfico se apóia na análise gramatical do ilustre Witz do familionário no Chiste e suas relações com o inconsciente?

Vemos, no sentido mais concreto dessa palavra, que os dois níveis nada fazem além de se cruzar, e é no intervalo, no sentido mais literal do termo, que se situa o significante do sujeito da enunciação:

"O ne tem seu lugar flutuante entre os dois níveis do gráfico que eu os ensinei a usar para aí encontrar a distinção: aquilo que é da enunciação e aquilo que é do enunciado. Enunciando temo que qualquer coisa,44 44 A frase " temo que... qualquer coisa" em francês pode (e mesmo deve, de acordo com a norma culta) comportar um ne expletivo. Por exemplo, para "Temo que ele venha", diz-se "Je crains qu'il ne vienne", que é exatamente o contrário de "Je crains qu'il ne vienne pas" ("Temo que ele não venha"). O ne expletivo serve, em francês, se não para modificar o sentido da frase, para reforçar a idéia de receio pela realização da possibilidade contrária que ele indica. Assim, avant qu'il ne vienne é o mesmo que avant qu'il vienne ["antes que ele venha", nos dois casos], mas o primeiro chama a atenção para o receio do enunciatário pela possibilidade desse "ele" (sujeito da oração) vir antes do esperado. [N. T.] faço essa coisa surgir em sua existência, e ao mesmo tempo na existência do pedido — que ele venha. É aí que entra esse pequeno ne, que mostra a discordância entre a enunciação e o enunciado." (Le Séminaire VII, p. 79)45 45 O gráfico do abridor de garrafa em suas formas sucessivas, cada vez mais complexas, que lhe são dadas a seguir, coloca-nos diante de problemas dificílimos. Abordei alguns deles em Arrivé 1994.

Nessa discordância da enunciação e do enunciado reencontramos a análise citada nas primeiras páginas desse capítulo sobre o "desejo do sonho", que não é "assumido pelo sujeito que diz 'Eu' em sua fala". Se aproximarmos os dois projetos, verificaremos que o desejo do sonho é assemelhado à cadeia da enunciação (chamada, nos Écrits, p. 600, "enunciação inconsciente"), articulada ao lugar do Outro, enquanto o discurso assumido por eu forma a cadeia do enunciado: como poderia se dar a coalescência dos sujeitos desses dois discursos? Em suma, para Lacan, os shifters existem de fato — no sentido que ele dá a essa noção (ver acima). Mas começamos a compreender que não há embreantes, já que eles provocariam a assimilação dos sujeitos que são por definição estranhos um ao outro.46 46 Vemos que é dessa forma que tento explicar a obstinação de Lacan em manter o termo inglês shifter, apesar de ele conhecer muito bem — chega a citá-lo em uma nota dos Écrits, p. 495 — a tradução de Ruwet, que data de 1963.

3. O problema da negação

Da mesma forma que o problema dos tempos verbais nos conduziu à questão dos shifters, esta por sua vez nos leva à questão da negação. Ou, ao menos, a um de seus aspectos: a negação francesa. Pois será infelizmente impossível abordar o problema da negação em toda sua amplitude: trata-se por certo de um dos capítulos da gramática que mais tomaram a atenção de Lacan, tanto nos Escritos como na quase totalidade dos Seminários. Não há nada de surpreendente nessa proliferação: acontece que o problema da negação está também no centro das reflexões de Freud. Desde as idas e vindas que aparecem na Traumdeutung sobre o estatuto da negação no sonho — ela existe no sonho? não existe?47 47 Ver os textos citados no começo deste capítulo. — até chegar ao tão enigmático e fascinante artigo sobre "Die Verneinung" (1925-1992),48 48 Creio que não foi dada a devida atenção à forma dessa palavra, que significa literalmente "o ato de dizer 'não'" e se opõe a Bejahung, "o ato de dizer 'sim'" (ver por exemplo as alusões de Lacan a essa oposição no Séminaire III, p. 58, 95 e 98). É difícil traduzir corretamente essas duas palavras para o francês, e ainda mais estabelecer a distinção necessária entre Verneinug e Negation, igualmente presente no alemão de Freud, em especial na palavra composta Negationssymbol, "símbolo de negação", quer dizer "marca lingüística da negação". que põe em relação a negação e a pulsão de morte, a negação, especialmente no sentido daquilo que Freud chama de "símbolo da negação", reaparece sempre em suas reflexões. Nesse particular, Lacan começa a caminhar seguindo as pegadas de Freud.

Mas Freud nunca se interessou pela especificidade da negação francesa. Diferentemente do alemão que, como tantas outras línguas, tem um "símbolo negativo" único, o francês comporta uma negação em dois termos: o ne e um segundo termo, variável segundo o escopo da negação ou a categoria do objeto em foco: de pas e plus até jamais e personne, passando por guère (que não é exatamente uma negação) e pelo que restritivo (este definitivamente não é uma negação, e no entanto aceita o ne).49 49 Em linhas gerais, a negação francesa em dois termos apresenta-se na forma: ne + verbo + termo complementar. O advérbio ne modifica o sentido isolado do termo complementar — que pode ser outro advérbio (ex. " pas") ou um pronome (ex. " personne") — ao qual ele se liga; esse termo complementar é responsável pela modalidade da negação. As configurações citadas pelo autor são aproximadamente traduzidas para o português assim: E uma particularidade a mais: o primeiro termo e alguns dos segundos podem dar lugar, separadamente, a utilizações não-negativas — ou que são, ao menos, suscetíveis de ser analisadas como tal. É o que fazem em especial Damourette e Pichon, que dão a esses dois termos os nomes de discordancial e foraclusivo, e às operações que eles marcam os nomes correlativos de discordância e foraclusão.

Leitor assíduo dos dois gramáticos, familiar a um deles,50 50 Trata-se de Édouard Pichon, a cujo propósito lembrarei somente que, médico de formação, mas gramático por vocação e também na prática, pelo exercício da profissão, foi o primeiro lingüista — pois ele merece incontestavelmente esse título — a se tornar psicanalista, oferecendo um exemplo que, muitos anos depois, seria seguido por tantos outros. Mais pormenores podem ser encontrados em Arrivé 1994 e Roudinesco 1982 e 1986. Lacan assimila as duas noções. Ele dá tanto a uma quanto a outra um lugar decisivo na sua concepção do "inconsciente estruturado como uma linguagem".

A foraclusão

Sobre a foraclusão falarei pouco, contentando-me em citar a decisão definitiva pela qual Lacan, nos últimos parágrafos do Seminário III, resolve, depois de uns bons nove meses de reflexão, traduzir com o termo gramatical foraclusão o conceito freudiano de Verwerfung:

"É impossível ignorar, na fenomenologia da psicose, a originalidade do significante enquanto tal. O que existe de palpável no fenômeno de tudo aquilo que acontece na psicose é que se trata da abordagem realizada pelo sujeito de um significante como tal, e da impossibilidade dessa abordagem. Não volto à noção de Verwerfung que foi meu ponto de partida, e para a qual, depois de muito pensar, proponho a vocês que seja adotada definitivamente esta tradução, que me parece a melhor: a foraclusão." [Séminaire III, p. 361]

Assim, é um conceito tomado dos gramáticos51 51 Que não venham me dizer de forma alguma que a foraclusão que traduz a Verwerfung vem diretamente do léxico jurídico, onde ela encontra, de fato, sua origem! Não que esse último esteja ausente do pensamento lacaniano. Mas como é que Lacan omitiria Damourette e Pichon ao cabo de uma reflexão sobre a negação? É verdade que, a menos que eu tenha deixado passar alguma coisa, nem o nome de Damourette e nem mesmo o de Pichon são explicitamente mencionados nesse Seminário — enquanto em alguns outros eles são citados abundantemente. Silêncio, aos meus olhos, cheio de significação: Lacan realiza a "foraclusão" do nome daqueles que lhe oferecem o instrumento para pensar o inconsciente estruturado como uma linguagem. que dá o nome lacaniano a uma das operações fundamentais do inconsciente.

A discordância

É curioso constatar que a discordância é para Lacan completamente separada da foraclusão: nada poderia ser mais concorde com os ensinamentos de Damourette e Pichon, que vêem nos dois "taxemas" — é o nome que dão, em seu próprio dialeto, aos morfemas gramaticais — dois elementos inteiramente "independentes" (1930, p. 144) que só se reúnem quando se trata de dotar o francês de sua negação, ou daquilo que faz as vezes dela: pois eles chegam a pensar, de uma maneira que é formalmente muito lacaniana, que em francês não existe negação (Ibid., p. 146).

Lacan pensa exatamente como eles, ao menos quando se trata de separar a discordância da foraclusão: como acabamos de ver, a foraclusão substitui a Verwerfung, enquanto a discordância se insere na problemática das relações entre enunciado e enunciação. Estamos ainda, é claro, dentro da teoria do sujeito, mas em regiões tão distantes quanto possível.

Acabamos de perceber, ao final da seção precedente: o ne que se pretende "expletivo" ou "expressivo"52 52 Lacan zomba cruelmente dos gramáticos — especialmente Brunot e Bruneau (1931-1966) — que empregam um ou outro desses adjetivos ( Écrits, p. 663). tem por função única "significar" o "sujeito da enunciação", sujeito esse que, como ficou evidente, recebe uma concepção completamente diferente da dos lingüistas:

"O sujeito desse desejo é designado pelo Eu do discurso? De jeito nenhum, porque este só é sujeito do enunciado, que não articula nada além do temor e seu objeto, o Eu sendo aí evidentemente indício da presença que o enuncia hic et nunc, ou seja, em posição de shifter. O sujeito da enunciação enquanto atravessa seu desejo não está em parte alguma senão nesse ne [ ]." (Écrits, p. 664)

Percebe-se que me autorizei a interromper a frase de Lacan antes de seu término. É que aquilo que vem a seguir no texto pareceu-me enigmático durante muito tempo. Lacan continua sua frase desvendando o "valor" do ne:

"O sujeito da enunciação enquanto atravessa seu desejo não está em parte alguma senão nesse ne cujo valor deve ser encontrado em uma precipitação em lógica — é assim que chamaremos a função à qual seu uso se prende em 'avant qu'il ne vienne' ['antes que ele venha'; ver a nota 43]." (Ibid.)

A alusão ao uso de ne em avant qu'il ne vienne tem origem, sem dúvida, na leitura de Damourette e Pichon, que falam muito disso (1930, p. 134-135). Mas a noção que Lacan introduz de "precipitação em lógica" nos coloca um problema. Ele imagina sem dúvida que o ne marca a ansiedade do sujeito que quer ver realizado seu desejo. Sujeito? Sim, mas qual sujeito? É sem dúvida nenhuma o sujeito da enunciação que é atingido por essa "precipitação": de fato, acabamos de ver que é exatamente esse sujeito — indissoluvelmente sujeito do desejo — que é significado pelo ne. Nada a ver então com o eu do discurso. Mas, e quanto à precipitação, especificamente, o que acontece? Nesse ponto, é preciso refolhear mais uma vez os Escritos e os Seminários para vislumbrar o que pode ser o início de uma solução. A noção de "precipitação em lógica", sob a forma literal ou sob manifestações lexicais aparentadas, aparece em várias outras passagens do texto de Lacan, por exemplo em "Le temps logique et l'assertion de certitude anticipée. Un nouveau sophisme" (Écrits, p. 664, nota), em "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanlyse" (Écrits, p. 241, 256-257 e 287), e finalmente no Séminaire II, p. 334. Em todas essas passagens — bastante próximas, tanto no tempo quanto na concepção53 53 A primeira, que remonta a 1945, é no entanto muito nitidamente anterior às duas outras, que datam de 1953 e 1955. Mas Lacan voltaria a esse problema muito mais tarde, por exemplo, em 1964, no Séminaire XI, p. 39, 56 e 107, onde a questão gira em torno da "precipitação identificatória". — trata-se sempre do mesmo problema: o procedimento pelo qual o sujeito, ao final de um percurso intersubjetivo escandido, identifica-se como aquilo que ele "terá sido" — vê-se que estou usando intencionalmente o futuro anterior, tempo apto a significar o estatuto do sujeito do inconsciente:

"O autor destas linhas tentou demonstrar na lógica de um sofisma a dinâmica do tempo através da qual a ação humana, enquanto ação ordenada pela ação do outro, encontra na escansão de suas hesitações o surgimento de sua certeza, e na decisão que a conclui dá à ação do outro que ela passa a incluir, com sua sanção relativa ao passado, seu sentido que está por vir.

Demonstramos por aí que é a certeza antecipada pelo sujeito no tempo de compreender que, pela pressa que precipita o momento de concluir, determina no outro a decisão que faz do próprio movimento do sujeito erro ou verdade." (Écrits, p. 287)

Os leitores assíduos de Lacan terão naturalmente identificado o "sofisma" — entende-se por que, antes, empreguei esse termo sem valor pejorativo: Lacan faz o mesmo (Écrits, p. 199) — ao qual ele alude: é o apólogo dos três prisioneiros. Cada um deles recebe nas costas um disco que não vê, mas que é visto pelos seus dois companheiros. Branco ou preto, o disco invisível? A decisão cabe a cada um deles, que deve também explicar o motivo de sua escolha. As condições — muito específicas para serem expostas detalhadamente aqui — são tais que não permitem que isso seja feito sem que se observe o comportamento dos companheiros, e, uma vez tirada a conclusão, sem que aquele que conclui se precipite em manifestá-la, já que cada um dos três dispõe de todos os dados para realizar ao mesmo tempo o mesmo raciocínio sofístico.

Qual é a função demonstrativa desse apólogo repetitivo e de sua vinculação ao problema do ne? Ela é necessariamente dupla. Pelo apólogo em si mesmo, Lacan tenta primeiramente tornar compreensível a função do tempo no processo de identificação do sujeito em suas relações com outros sujeitos e do ato de fala que conclui esse processo (Écrits, p. 213 e 287). Mas quando põe em relação o problema do apólogo e do ne discordante, ele vai mais longe: identifica um objeto da língua portador, a título de significado, de uma propriedade da fala. Ele constitui como objetos homólogos a língua como sistema "sincrônico" de significantes e a fala como ato "diacrônico" do sujeito. Ele marca portanto que é de acordo com os dois níveis da língua e da fala que "o inconsciente está estruturado como uma linguagem".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

O leitor há de ter notado por conta própria: as referências bibliográficas são, no texto do artigo, apresentadas de forma variável segundo os autores. Não o fiz por extravagância, nem pelo prazer do insólito: foi simplesmente para levar em consideração a variabilidade das condições de manifestação dos diversos textos citados:

1. Para Lacan, adotei a citação dos itens pelo título. Sabemos que, com efeito, os Escritos reúnem um grande número de textos de datas muito diferentes (de 1936 a 1965 ) e que os livros sucessivos do Seminário foram publicados tardiamente, numa ordem que nada tem a ver com aquela em que foram enunciados por Lacan. Citar esses textos pela data de publicação teria induzido a idéias falsas sobre sua cronologia relativa. Logo a seguir vêm as indicações necessárias sobre suas datas e seus editores:

Écrits, 1966, Paris, Le Seuil.

Le Séminaire, Livre I, Les écrits techniques de Freud, 1953-1954, Paris, Le Seuil, 1975.

Le Séminaire, Livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, 1954-1955, Paris, Le Seuil, 1978.

Le Séminaire, Livre III, Les psychoses, 1955-1956, Paris, Le Seuil, 1981.

Le Séminaire, Livre IV, La relation d'objet, 1956-1957, Paris, Le Seuil, 1994.

Le Séminaire, Livre V, Les formations de l'inconscient, 1957-1958, Paris, Le Seuil, 1998.

Le Séminaire, Livre VII, L'éthique de la psychanalyse, 1959-1960, Paris, Le Seuil, 1986.

Le Séminaire, Livre VIII, Le transfert, 1960-1961, Paris, Le Seuil, 1991.

Le Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, 1964, Paris, Le Seuil, 1973.

Le Séminaire, Livre XV, L'acte psychanalytique, inédito.

Le Séminaire, Livre XVII, L'envers de la psychanalyse, 1969-1970, Paris, Le Seuil, 1991.

Le Séminaire, Livre XX, Encore, 1972-1973, Paris, Le Seuil, 1975.

Três outros textos de Lacan foram citados:

Télévision, Paris, Le Seuil, 1973a.

"L'Étourdit", Scilicet, 4, p. 5-52, 1973 b.

"Conférence à Genève sur le symptôme", 1985, Le bloc-notes de la psychanalyse, p. 5-23.

2. Para Freud e Schreber, o problema com que nos deparamos é a divergência entre a primeira data de publicação em alemão e a data da tradução utilizada. Tomei a iniciativa de apresentá-las as duas:

Para Freud:

(1900) L'interprétation des rêves, Paris, PUF, 1967.

(1905) Le mot d'esprit et sa relation à l'inconscient, Paris, Gallimard, 1988.

(1911) "Remarques psychanalytiques sur l'autobiographie d'un cas de paranoïa (Le président Schreber)", in Cinq psychanalyses, Paris, PUF, 1979, p. 263-324.

(1920) "Au-delà du principe de plaisir", in Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1951, p. 7-81.

(1925) "La négation" ["Die Verneinung"], in Œuvres complètes, v. XVII, PUF, 1992, p. 167-171.

Para Schreber:

(1903) Mémoires d'un névropathe, Paris, Le Seuil, 1975.

3. O Curso de língüística geral de Ferdinand de Saussure, sob a abreviação tradicional CLG, foi citado exclusivamente de acordo com a edição padrão, aparentemente a única que Lacan consultou.

4. Por fim, os poucos textos de outros autores são citados de forma tradicional:

ARRIVÉ, M. Linguistique et psychanalyse, Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan et les autres, Paris, Méridiens-Klincksieck, 1986.

_______. Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient, Freud, Saussure, Pichon, Lacan, Paris, PUF, 1994.

_______. "Diachronie et linéarité", in: Saussure aujourd'hui, Nanterre, LINX, p. 139-145, 1995. BENVENISTE, Émile (1946) "Structure des relations de personne dans le verbe", in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p. 225-236.

_______. (1950) "Actif et moyen dans le verbe", in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p.168-175.

_______. (1956) "Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne", in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p. 75-87. BORILLO, Andrée. "Remarques sur l'interrogation indirecte en français", in Méthodes en grammaire française, Paris, Klincksieck, 1976.

BRUNOT, Ferdinand. Histoire de la langue française des origines à 1900, t. I, De l'époque latine à la renaissance, Paris, Armand Colin, 1905.

_______. e BRUNEAU, Charles (1931) Précis de grammaire historique de la langue française, Paris, Masson, 1966. CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l'énonciation. Opérations et représentations, t. I, Gap et Paris, Ophrys, 1990.

DAMOURETTE, Jacques e PICHON, Édouard, [1930], Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française, t. I, Paris, d'Artrey.

_______. [1940] Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française, t. IV, Paris, d'Artrey. GARY-PRIEUR, Marie-Noëlle. Grammaire du nom propre, Paris, PUF, 1994.

GUILLAUME, Gustave. (1929) Temps et verbe. Théorie des aspects, des modes et des temps, Paris, Champion, 1965.

GUILLAUME, G. Leçons de linguistique de Gustave Guillaume, 1938-1939, Lille, Presses Universitaires de Lille et Québec, Presses de l'Université Laval, 1992.

JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale, traduits et préfacés par Nicolas Ruwet, Paris, Minuit, 1963.

JESPERSEN, Otto. Language, its Nature, Development and Origin, Londres, Allen and Unwin, 1922.

MARTIN, Robert. (1983) "L'opérateur savoir", in Langage et croyance, Bruxelas, Mardaga, 1987a, p. 43-51.

_______. (1983) "La notion d'univers de croyance dans la définition du nom propre", in Langage et croyance, Bruxelas, Mardaga, 1987b, p. 137-156. MILNER, Jean-Claude.(1975) "Réflexions sur l'arbitraire du signe", Ornicar?, n. 5, 1976, p. 73-85.

_______. L'amour de la langue, Paris, Le Seuil, 1978. MOIGNET, Gérard. Le pronom personnel, Paris, Klincksieck, 1965.

NORMAND, Claudine, "Le sujet dans la langue", Langages, 77, 1985, p. 7-20.

PERRET, Michèle. Le signe et la mention, Genebra, Droz, 1988.

ROUDINESCO, Elisabeth, La bataille de la psychanalyse en France, v. I, 1885-1939, Paris, Ramsay, 1982.

_______. La bataille de la psychanalyse en France, v. II, 1955-1985, Paris, Le Seuil, 1986.

Recebido em 20/8/2000. Aceito em 15/9/2000.

"ne pas" = não. Ex.: "Il est clair que la vérité que je cherche n'est pas en lui, mais en moi" — Proust ["É evidente que a verdade que procuro não está nele, mas em mim"].

"ne plus" = não mais. Ex.: "il ne sait plus ce que signifie le mot misère" — Balzac ["ele não sabe mais o que significa a palavra miséria"].

"ne jamais" = nunca. Ex.: "Sa tête, que la peur n'avait jamais courbée, se redressa" — Hugo ["Sua cabeça, que o medo nunca tinha baixado, endireitou-se"].

"ne personne" = ninguém. Ex.: "non, tu m'appartiens! et personne à présent ne t'arrachera d'ici!" — Flaubert ["não, tu pertences a mim! e agora ninguém te arrancará daqui!"].

"ne que" = senão, nada além de. Ex.: "Il avait jusqu'alors trouvé la vicomtesse pleine de cette aménité polie, de cette grâce melliflue donnée par l'éducation aristocratique, et qui n'est complète que si elle vient du cœur." — Balzac. ["Até então ele tinha achado que a viscondessa era cheia dessa amenidade fina, dessa graça melíflua trazida pela educação aristocrática, e que só é completa se vem do coração."]

"ne... guère" = não muito. Ex.: "Si nature ne prête un peu, il est malaisé que l'art et l'industrie aillent guiere [guère] avant" — Molière ["Se a natureza não der um pouco de si, é difícil a arte e a indústria irem muito longe"]. [N. T.]

  • Écrits, 1966, Paris, Le Seuil.
  • Le Séminaire, Livre I, Les écrits techniques de Freud, 1953-1954, Paris, Le Seuil, 1975.
  • Le Séminaire, Livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, 1954-1955, Paris, Le Seuil, 1978.
  • Le Séminaire, Livre III, Les psychoses, 1955-1956, Paris, Le Seuil, 1981.
  • Le Séminaire, Livre IV, La relation d'objet, 1956-1957, Paris, Le Seuil, 1994.
  • Le Séminaire, Livre V, Les formations de l'inconscient, 1957-1958, Paris, Le Seuil, 1998.
  • Le Séminaire, Livre VII, L'éthique de la psychanalyse, 1959-1960, Paris, Le Seuil, 1986.
  • Le Séminaire, Livre VIII, Le transfert, 1960-1961, Paris, Le Seuil, 1991.
  • Le Séminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, 1964, Paris, Le Seuil, 1973.
  • Le Séminaire, Livre XV, L'acte psychanalytique, inédito.
  • Le Séminaire, Livre XVII, L'envers de la psychanalyse, 1969-1970, Paris, Le Seuil, 1991.
  • Le Séminaire, Livre XX, Encore, 1972-1973, Paris, Le Seuil, 1975.
  • Télévision, Paris, Le Seuil, 1973a.
  • "L'Étourdit", Scilicet, 4, p. 5-52, 1973 b.
  • "Conférence à Genève sur le symptôme", 1985, Le bloc-notes de la psychanalyse, p. 5-23.
  • (1900) L'interprétation des rêves, Paris, PUF, 1967.
  • (1905) Le mot d'esprit et sa relation à l'inconscient, Paris, Gallimard, 1988.
  • (1911) "Remarques psychanalytiques sur l'autobiographie d'un cas de paranoïa (Le président Schreber)", in Cinq psychanalyses, Paris, PUF, 1979, p. 263-324.
  • (1920) "Au-delà du principe de plaisir", in Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1951, p. 7-81.
  • (1925) "La négation" ["Die Verneinung"], in Œuvres complètes, v. XVII, PUF, 1992, p. 167-171.
  • (1903) Mémoires d'un névropathe, Paris, Le Seuil, 1975.
  • ARRIVÉ, M. Linguistique et psychanalyse, Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan et les autres, Paris, Méridiens-Klincksieck, 1986.
  • _______. Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient, Freud, Saussure, Pichon, Lacan, Paris, PUF, 1994.
  • _______. "Diachronie et linéarité", in: Saussure aujourd'hui, Nanterre, LINX, p. 139-145, 1995.
  • BENVENISTE, Émile (1946) "Structure des relations de personne dans le verbe", in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p. 225-236.
  • _______. (1950) "Actif et moyen dans le verbe", in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p.168-175.
  • _______. (1956) "Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne", in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p. 75-87.
  • BORILLO, Andrée. "Remarques sur l'interrogation indirecte en français", in Méthodes en grammaire française, Paris, Klincksieck, 1976.
  • BRUNOT, Ferdinand. Histoire de la langue française des origines à 1900, t. I, De l'époque latine à la renaissance, Paris, Armand Colin, 1905.
  • _______. e BRUNEAU, Charles (1931) Précis de grammaire historique de la langue française, Paris, Masson, 1966.
  • CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l'énonciation. Opérations et représentations, t. I, Gap et Paris, Ophrys, 1990.
  • DAMOURETTE, Jacques e PICHON, Édouard, [1930], Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française, t. I, Paris, d'Artrey.
  • _______. [1940] Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française, t. IV, Paris, d'Artrey.
  • GARY-PRIEUR, Marie-Noëlle. Grammaire du nom propre, Paris, PUF, 1994.
  • GUILLAUME, Gustave. (1929) Temps et verbe. Théorie des aspects, des modes et des temps, Paris, Champion, 1965.
  • GUILLAUME, G. Leçons de linguistique de Gustave Guillaume, 1938-1939, Lille, Presses Universitaires de Lille et Québec, Presses de l'Université Laval, 1992.
  • JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale, traduits et préfacés par Nicolas Ruwet, Paris, Minuit, 1963.
  • JESPERSEN, Otto. Language, its Nature, Development and Origin, Londres, Allen and Unwin, 1922.
  • MARTIN, Robert. (1983) "L'opérateur savoir", in Langage et croyance, Bruxelas, Mardaga, 1987a, p. 43-51.
  • _______. (1983) "La notion d'univers de croyance dans la définition du nom propre", in Langage et croyance, Bruxelas, Mardaga, 1987b, p. 137-156.
  • MILNER, Jean-Claude.(1975) "Réflexions sur l'arbitraire du signe", Ornicar?, n. 5, 1976, p. 73-85.
  • _______. L'amour de la langue, Paris, Le Seuil, 1978.
  • MOIGNET, Gérard. Le pronom personnel, Paris, Klincksieck, 1965.
  • NORMAND, Claudine, "Le sujet dans la langue", Langages, 77, 1985, p. 7-20.
  • PERRET, Michèle. Le signe et la mention, Genebra, Droz, 1988.
  • ROUDINESCO, Elisabeth, La bataille de la psychanalyse en France, v. I, 1885-1939, Paris, Ramsay, 1982.
  • _______. La bataille de la psychanalyse en France, v. II, 1955-1985, Paris, Le Seuil, 1986.
  • *
    Tradução de Tereza Cristina Pinto e Marcos Lopes. Revisão de Ivã Carlos Lopes e Waldir Beividas.
  • 1
    Deve-se compreender aqui
    nominativo não como uma referência ao primeiro caso da declinação, mas com o sentido de "designativo", "referencial", em oposição ao "nível do conceito".
  • 2
    Confira-se também nos
    Écrits, p. 29 (sobre
    purloined) e no
    Séminaire, livre IV, p. 170 (sobre
    fétiche [fetiche],
    fée [fada],
    factice [factício]), p. 211 (sobre
    tuer [matar]: "vem do latim
    tutare, que quer dizer
    conservar"), p. 306, sobre "a raiz
    MR, que se encontra tanto em
    mère [mãe],
    mara e também
    la mer [o mar] em francês",
    livre V, p. 94 (sobre
    demander [pedir, perguntar] e 347 (sobre a relação entre
    fallos [falo] e
    fley [veia]),
    livre VII (p. 102, sobre
    danger [perigo] em suas relações etimológicas com
    dame [dama]), 179-180 (ainda sobre a
    dame, dessa vez relacionada a "
    domnoyer, que significa qualquer coisa como acariciar, brincar") p. 197-198 (sobre as teorias etimológicas de Hans Sperber), p. 233 (sobre a etimologia de
    même [mesmo]) e p. 292 (sobre
    émoi [perturbação]),
    Livre VIII, p. 244-245 (sobre as "ambigüidades significantes" ilustradas pela história da palavra
    réglisse [alcaçuz]),
    Livre XX, p. 85 (sobre
    alhqeia), etc.
  • 3
    Trata-se do problema da diferença que existe entre
    eu sou a mulher que não te abandonarei e
    eu sou a mulher que não te abandonará (
    Le Séminaire, Livre III, p. 308).
  • 4
    Lacan se interessa particularmente por essa distinção, que se oferece a ele como uma forma elegante de contornar o problema da ausência do tempo no inconsciente. Assim, ele aconselha a um tumultuador impertinente, incomodado por esse problema, que "volte às aulas de gramática para distinguir as 'formas de aspecto' que vislumbram, da enunciação, aquilo no que o sujeito se transforma, daquelas que colocam o enunciado na linha dos acontecimentos. Assim, ele não confundirá o sujeito do acabado com a presença do passado" (
    Écrits, p. 664; ver também p. 629 e
    Le Séminaire,
    Livre III, p. 322).
  • 5
    Ver também
    Écrits p. 255, 310, 314-315, 373, 503 e 806 e
    Le Séminaire, Livre III, p. 337.
  • 6
    Esse texto foi estabelecido com base nas notas tomadas por um ouvinte, que foram reelaboradas pelo editor do
    Seminário.
  • 7
    Lacan se refere aqui ao artigo de Benveniste sobre a voz média (BENVENISTE, 1950-1966).
  • 8
    Sobre o problema das relações entre
    alíngua e a
    linguagem, confira-se igualmente o texto citado na nota 20.
  • 9
    A dupla paginação refere-se à tradução francesa (primeiro número) e à edição original alemã (segundo número).
  • 10
    Alguns excelentes lingüistas — cujos nomes não cito, para não constranger ninguém — sempre tropeçaram nessa noção, que foi introduzida em "Structure des relations de personne dans le verbe", 1946-1966, p. 225-236.
  • 11
    Outros gramáticos e lingüistas entram também no inventário dos informantes de Lacan, por exemplo a dupla homófona Ferdinand Brunot e Charles Brunot: Lacan zomba cruelmente (
    Écrits, p. 663 e 800) das declarações que eles sustentam em
    Précis de grammaire historique de la langue française (1931-1966) sobre o
    ne chamado de "expletivo" ou "expressivo" (ver mais adiante).
  • 12
    Os leitores do
    Séminaire III terão reconhecido o empréstimo da metáfora com a qual Lacan apresenta a função do significante (p. 321-331).
  • 13
    Veremos mais adiante de que forma deve-se interpretar esse
    na maioria das vezes.
  • 14
    O texto, "La Science et la vérité", é a conferência de abertura do seminário do ano 1965-1966.
  • 15
    Dois anos antes, Lacan fizera uma descrição metafórica das relações entre linguagem e inconsciente: "O inconsciente é, no mais profundo de si, estruturado, enredado, acorrentado pela linguagem" (
    Le Séminaire, Livre III, p. 135).
  • 16
    Trata-se, efetivamente, do texto "La science et la vérité", assinalado antes.
  • 17
    Coloco-me aqui a pequena e fútil questão de saber se Lacan pensava claramente, quando propôs essa metáfora alfabética, na intenção de Freud sobre a sílaba gráfica na
    Interpretação dos sonhos: "[Em nosso sistema de escrita]
    ab indica uma só sílaba,
    a e
    b separados por um espaço nos permite entender que
    a é a última letra de uma palavra,
    b a primeira de uma outra" (FREUD, 1900-1967, p. 271). Fútil, reconheço, essa minha questão. Mas a aproximação, que se impõe, mostra claramente o interesse igual atribuído pelos dois autores ao significante em sua manifestação mais literal: a letra do alfabeto.
  • 18
    Constata-se que nesse ponto Lacan utiliza, conforme o previsto,
    linguagem com o sentido de
    língua e — novidade —
    discurso concreto com, eu creio, o sentido de
    fala. De qualquer maneira, essa equivalência entre
    discurso e
    fala não é infelizmente uma constante da reflexão lacaniana.
  • 19
    Durante essa discussão, Sémir Badir fez notar que a oposição
    sincronia / diacronia no sentido que lhe confere Lacan evoca uma outra distinção saussuriana: a das relações sintagmáticas (fundadas, como estamos lembrados — ver
    CLG p. 170 — sobre o "caráter linear da língua") e das relações associativas. Ele continuava, perplexo pelo fato de Lacan não ter utilizado essa oposição. Perplexidade interessante, que Badir me fez compartilhar. É certo que, a menos que eu me engane ou tenha deixado passar alguma coisa, Lacan não utiliza, ou utiliza pouquíssimo a oposição do sintagma e do paradigma. É sem dúvida pelo fato da dupla sincronia e diacronia pôr de saída a questão da inscrição dos fenômenos, a começar pelo fenômeno da fala, no tempo. Convém além disso notar que Lacan utiliza também a oposição
    sincronia / diacronia no seu sentido estritamente sausseriano: é o que vimos, há pouco, nas suas observações sobre a etimologia.
  • 20
    A etimologia lacaniana dessa palavra parece dupla: a supressão (por integração) do artigo definido é
    visível. E, por outro lado, a palavra evoca — quando se está prevenido — a
    lalação, jogo pré-lingüístico da criança que tenta adquirir sua língua materna. Pelo menos é o que está indicado explicitamente por Lacan, em 1975, na "Conférence à Genève sur le symptôme": "( ) a linguagem, essa linguagem que não tem absolutamente existência teórica, intervém sempre sob a forma disso que nomeio com uma palavra, que eu quis trazer para o mais próximo possível da palavra
    lalação [
    lallation] -
    alíngua [
    lalangue]" (LACAN, 1985, p. 11).
  • 21
    Essa passagem só pode ser compreendida se levarmos em conta que a palavra
    langage (linguagem) é, na língua francesa, uma palavra de gênero masculino. [N. T.]
  • 22
    Escolhemos aqui a tradução de
    parole por
    fala, pois a comparação com o conceito homônimo de Saussure (igualmente
    parole) não poderia ser feita com base na tradução que se propõe tradicionalmente, na obra de Lacan, de
    parole por
    palavra. [N. T.]
  • 23
    Podemos contestar:
    Wunscherfüllung é — como demonstra o sufixo -
    ung — antes o ato de acabar do que o acabado.
  • 24
    No original:
    tu es celui qui me suivras / suivra. Em francês, não há diferença de pronúncia entre as formas
    suivras [seguirás] e
    suivra [seguirá]. [N. T.]
  • 25
    Mantivemos a designação francesa, que figura na tradução em português dos textos de Jakobson a esse respeito. [N. T.]
  • 26
    O futuro anterior, em francês, é uma forma de conjugação composta em dois termos (verbo auxiliar ter ou ser mais um verbo no particípio) e usada em dois casos típicos: 1) para marcar a aspectualidade da frase, ou seja, o caráter conclusivo da ação ("Nous serons bientôt arrivés à Paris" [Logo teremos chegado a Paris]) ou 2) para marcar a temporalidade da frase, isto é, indicar a anterioridade de um acontecimento futuro por relação a outro também futuro. O primeiro acontecimento (isto é, aquele que se realizará primeiro) é indicado no futuro anterior, o segundo no futuro simples. Assim, por exemplo, "Je serai parti quand il viendra" ([Já] Terei saído quando ele chegar"). É esse valor, de temporalidade, que Arrivé destaca nas discussões de Lacan sobre o assunto. O leitor interessado encontrará mais pormenores na gramática publicada pelo autor deste artigo — ARRIVÉ, Michel; GADET, Françoise & GALMICHE, Michel.
    La Grammaire d'aujourd'hui: guide alphabétique de linguistique française, Paris, Flammarion, 1986, sobretudo às páginas 274-277. [N. T.]
  • 27
    No original:
    telle impertinente "mouche du coche". [N. T.]
  • 28
    Vemos aqui um novo traço do interesse de Lacan pela categoria do aspecto, do qual uma das posições é aqui abordada sob o nome benvenistiano de
    perfeito, outro nome de
    realizado.
  • 29
    Guillaume volta a esse problema em vários episódios. A análise mais detalhada encontra-se às páginas 189-195 e 198-199 de
    Leçons de linguistique 1938-1939 que, publicadas em 1992, seguramente não conheceram as mãos de Lacan. Mas ele pode ter tido acesso à reedição, publicada em 1965, de
    Temps et Verbe, cuja primeira edição remonta a 1929. O problema foi aí abordado no mesmo contexto teórico das
    Leçons, apesar de um pouco mais brevemente, às páginas 68-69.
  • 30
    Veremos mais claramente adiante quando da alusão ao "sofisma" dos três prisioneiros.
  • 31
    Inversamente, M. Valdemar somente se manteve vivo por falar periodicamente, no sono hipnótico em que foi mergulhado
    in articulo mortis, a frase
    eu estou morto (
    Séminaire II, p. 270): se ele fala é porque está vivo, apesar de sua morte.
  • 32
    Escolhemos aqui a tradução do pronome pessoal reto
    je por
    eu, mas mantivemos o pronome pessoal tônico no original
    moi, pois tal tradução não é possível para o português (por exemplo, de
    moi para
    mim). Assim, indicaremos, sempre que houver necessidade, qual o pronome em questão no texto e manteremos, no caso de
    je/eu, a grafia maiúscula ou minúscula original. [N. T.]
  • 33
    Será preciso lembrar que em alemão não existe oposição morfológica correspondente àquela que, em francês, distingue a forma conjunta
    je da forma disjunta
    moi? A oposição
    ich/mich tem um outro estatuto, e estritamente casual (nominativo/acusativo).
  • 34
    Traduzindo ambas as expressões: "sou eu". [N. T.]
  • 35
    A substituição foi feita progressivamente a partir da segunda metade do século XV, segundo Brunot (1905, p. 465-466) e talvez um pouco mais cedo segundo Moignet (1965). Observe-se o interesse de Lacan por esse problema que, embora espetacular, é muito pouco valorizado pelos historiadores da língua aos quais ele podia ter acesso. O mais verossímil é que, uma vez mais, o
    Essai de grammaire de la langue française de Damourette e Pichon tenha fornecido a Lacan essa pista. Ver v. IV, 1940, p. 573-580.
  • 36
    O texto de Benveniste "La nature des pronoms" foi originalmente publicado em 1956 na coletânea
    For Roman Jakobson. Entretanto, esse artigo repousa, na parte conceitual, sobre duas conferências realizadas por Jakobson em 1950, que Benveniste pode ter conhecido. Sobre esses problemas de cronologia, ver Normand 1985 e Perret 1988.
  • 37
    Constata-se que o termo
    embreante introduz uma metáfora mecânica e, especificamente, automobilística, que não estava presente no termo
    shifter; a palavra
    embreante, como o diz Ruwet em sua nota da tradução, "pareceu-nos própria para designar as unidades do código que fazem embreagem da mensagem sobre a situação" (Jakobson, 1963, p. 178). Todo motorista sabe a diferença que existe entre
    trocar de marcha (
    to shift [gears]) [N. T.: com a utilização da embreagem, presumivelmente] e
    embrear (
    to let [in the clutch]) [N. T.: Isto é, acionar a embreagem para liberar o veículo da tração do motor]. Vale notar que o termo
    shifter não teria podido proporcionar de nenhum modo uma teoria da
    debreagem, na esteira da teoria da
    embreagem.
  • 38
    Sucessivamente, interressaram-se pelo problema Borillo (1976), Milner (1978), Martin (1983-1987a) e Culioli (1990).
  • 39
    O silêncio? Freqüentemente. A cacofonia? Confesso que tenho dificuldades em encontrar um sentido para a fórmula de Milner "o sentido do
    eu é proferir o significante
    eu " (1978, p. 78. Por outro lado, quando da abordagem do referente, a análise de Milner era plenamente aceitável: "o referente de
    eu é aquele que emprega
    eu"; 1975-1976, p. 70).
  • 40
    Observa-se que essa fórmula se distingue da definição referencial pela introdução da noção de
    propriedade que, em sua especificidade, constitui o significado de
    eu.
  • 41
    É evidentemente difícil, lendo esse texto, não pensar no artigo de Benveniste "Structure des relations de personne dans le verbe", onde se encontram principalmente as formulações seguintes: "Dizendo
    eu, não posso não falar de mim. Na segunda pessoa,
    tu é necessariamente designado por
    eu e não pode ser pensado fora de uma situação a partir do
    eu; ao mesmo tempo,
    eu enuncia alguma coisa como predicado de
    tu" (1946-1966, p. 229).
  • 42
    O excesso de sutileza se justifica porque, a meu ver, Lacan quer a qualquer custo fazer do
    mh do grego antigo o
    ne do francês. Nenhum helenista pode aceitar tal assimilação: o
    mh do grego antigo constitui por si só uma negação, ao contrário do
    ne francês. Mas as análises um pouco capciosas a que Lacan se dedicou para sua demonstração permitiram-lhe enunciar com grande clareza duas proposições: "[o
    ne] não tem nenhuma razão de ser, se ele não é o sujeito, ele mesmo", e "o
    mh está aí pela
    Spaltung entre enunciação e enunciado" (p. 353).
  • 43
    Foi dessa forma que ele foi apresentado pela primeira vez, salvo engano meu, no
    Seminário V. Será preciso lembrar que a utilização desse gráfico se apóia na análise gramatical do ilustre
    Witz do
    familionário no
    Chiste e suas relações com o inconsciente?
  • 44
    A frase "
    temo que... qualquer coisa" em francês pode (e mesmo deve, de acordo com a norma culta) comportar um
    ne expletivo. Por exemplo, para "Temo que ele venha", diz-se "Je crains qu'il
    ne vienne", que é exatamente o contrário de "Je crains qu'il
    ne vienne
    pas" ("Temo que ele
    não venha").
    O
    ne expletivo serve, em francês, se não para modificar o sentido da frase, para reforçar a idéia de receio pela realização da possibilidade contrária que ele indica. Assim,
    avant qu'il ne vienne é o mesmo que
    avant qu'il vienne ["antes que ele venha", nos dois casos], mas o primeiro chama a atenção para o receio do enunciatário pela possibilidade desse "ele" (sujeito da oração) vir antes do esperado. [N. T.]
  • 45
    O gráfico do abridor de garrafa em suas formas sucessivas, cada vez mais complexas, que lhe são dadas a seguir, coloca-nos diante de problemas dificílimos. Abordei alguns deles em Arrivé 1994.
  • 46
    Vemos que é dessa forma que tento explicar a obstinação de Lacan em manter o termo inglês
    shifter, apesar de ele conhecer muito bem — chega a citá-lo em uma nota dos
    Écrits, p. 495 — a tradução de Ruwet, que data de 1963.
  • 47
    Ver os textos citados no começo deste capítulo.
  • 48
    Creio que não foi dada a devida atenção à forma dessa palavra, que significa literalmente "o ato de dizer 'não'" e se opõe a
    Bejahung, "o ato de dizer 'sim'" (ver por exemplo as alusões de Lacan a essa oposição no
    Séminaire III, p. 58, 95 e 98). É difícil traduzir corretamente essas duas palavras para o francês, e ainda mais estabelecer a distinção necessária entre
    Verneinug e
    Negation, igualmente presente no alemão de Freud, em especial na palavra composta
    Negationssymbol, "símbolo de negação", quer dizer "marca lingüística da negação".
  • 49
    Em linhas gerais, a negação francesa em dois termos apresenta-se na forma:
    ne + verbo + termo complementar. O advérbio
    ne modifica o sentido isolado do termo complementar — que pode ser outro advérbio (ex. "
    pas") ou um pronome (ex. "
    personne") — ao qual ele se liga; esse termo complementar é responsável pela modalidade da negação. As configurações citadas pelo autor são aproximadamente traduzidas para o português assim:
  • 50
    Trata-se de Édouard Pichon, a cujo propósito lembrarei somente que, médico de formação, mas gramático por vocação e também na prática, pelo exercício da profissão, foi o primeiro lingüista — pois ele merece incontestavelmente esse título — a se tornar psicanalista, oferecendo um exemplo que, muitos anos depois, seria seguido por tantos outros. Mais pormenores podem ser encontrados em Arrivé 1994 e Roudinesco 1982 e 1986.
  • 51
    Que não venham me dizer de forma alguma que a
    foraclusão que traduz a
    Verwerfung vem diretamente do léxico jurídico, onde ela encontra, de fato, sua origem! Não que esse último esteja ausente do pensamento lacaniano. Mas como é que Lacan omitiria Damourette e Pichon ao cabo de uma reflexão sobre a negação? É verdade que, a menos que eu tenha deixado passar alguma coisa, nem o nome de Damourette e nem mesmo o de Pichon são explicitamente mencionados nesse
    Seminário — enquanto em alguns outros eles são citados abundantemente. Silêncio, aos meus olhos, cheio de significação: Lacan realiza a "foraclusão" do nome daqueles que lhe oferecem o instrumento para pensar o inconsciente estruturado como uma linguagem.
  • 52
    Lacan zomba cruelmente dos gramáticos — especialmente Brunot e Bruneau (1931-1966) — que empregam um ou outro desses adjetivos (
    Écrits, p. 663).
  • 53
    A primeira, que remonta a 1945, é no entanto muito nitidamente anterior às duas outras, que datam de 1953 e 1955. Mas Lacan voltaria a esse problema muito mais tarde, por exemplo, em 1964, no
    Séminaire XI, p. 39, 56 e 107, onde a questão gira em torno da "precipitação identificatória".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2000

    Histórico

    • Aceito
      15 Set 2000
    • Recebido
      20 Ago 2000
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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