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Preceitos poético-musicais de Wagner na poesia modernista hispano-americana

Wagner's musical and poetical precepts in hispanic modernist poetry

Resumo

Partindo da exposição analítica de alguns dos principais preceitos poéticos elaborados por Richard Wagner em seu tratado Ópera e Drama (1853) e do comentário a suas possíveis reverberações na prática poética de autores ligados ao chamado modernismo hispano-americano, o artigo reivindica a reintrodução da preceptiva músico-poética de Wagner no corpus técnico-teórico dos estudos da musicalidade poética do modernismo hispano-americano e da poesia simbolista internacional.

Palavras-chave
Richard Wagner; Ópera e Drama (1851); Modernismo hispano-americano; Rubén Darío; Julio Herrera y Reissig

Abstract

Beginning with an analytic account of some of the main poetical precepts formulated by Richard Wagner in his treatise Opera and Drama (1853), and based on critical comments about their possible effects upon the poetry of some of the so-called Hispanic Modernists, this paper claims that this Wagnerian text should be taken into account as a technical and theoretical corpus to the study of the poetical musicality of Hispanic Modernism and, more broadly, of the international Symbolist poetry in general.

Keywords
Richard Wagner; Opera and Drama (1851); Hispanic Modernism; Rubén Darío; Julio Herrera y Reissig

Resumen : Partiendo de una exposición analítica de algunos de los principales preceptos poéticos elaborados por Richard Wagner en su tratado Ópera y Drama (1853) y del comentario a sus posibles reverberaciones en la práctica poética de autores del modernismo hispanoamericano, este artículo reivindica la reincorporación de la preceptiva músico-poética de Wagner al corpus técnico-teórico de los estudios de la musicalidad poética del modernismo hispanoamericano y de la poesía simbolista internacional.

Palabras clave
Richard Wagner; Opera y Dramaitalic> (1851); Modernismo hispanoamericano; Rubén Darío; Julio Herrera y Reissig


Loreley en la lengua de la lira

Rubén Darío, “Divagación”, 1896

Na terceira e última parte do tratado Ópera e drama (1852), Richard Wagner oferece uma prescrição detalhada para a arte do drama musical, indicando o caminho para que o poeta e o músico promovam um encontro pleno entre as palavras e os sons, formando um amálgama indissociável que poderia elevar o drama à sua máxima potência. Segundo Wagner, um drama musical assim concebido resultaria superior à ópera (em que a música predomina amplamente sobre a palavra) e ao drama sem música; e, aliado aos demais recursos artísticos da encenação (dança, cenários, figurinos etc.), poderia configurar-se como obra de arte total, Gesamtkunstwerk.

Este artigo pretende estudar esses preceitos com interesse voltado a sua relação com a prática de poetas líricos posteriores, especialmente da América Hispânica. É preciso levar em conta, evidentemente, que a finalidade do tratado de Wagner impõe limites específicos à tarefa do poeta. Wagner não se dirige ao poeta lírico que publicará seus versos em revistas ou livros, mas àquele cujos versos devem servir em ponto ótimo à composição dramático-musical de que eles farão parte. Cabe lembrar também que o tratado, embora apresentado em modo prescritivo, se vale decisivamente de um aspecto descritivo: pode ser lido como análise e exposição dos procedimentos adotados pelo próprio autor na composição de música e libreto de seus dramas musicais, sobretudo as quatro unidades do Anel do Nibelungo. Por fim, cumpre anotar que a atuação pública de Wagner - como músico, compositor, teórico, pensador e possivelmente em qualquer papel que tenha desempenhado - foi muitas vezes agressiva e polêmica, de modo que hoje não resta uma vírgula sua que não tenha sido contundentemente questionada, criticada, desmentida, desmascarada ou até ridicularizada1 1 Entre os ataques mais completos e efetivos contra Wagner podem-se destacar dois livros de Nietzsche - O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, ambos de 1888 - e um de Adorno, cujo título em inglês é In Search of Wagner, de 1953. O francês Edouard Schuré (1944: 16), wagneriano inveterado, escreve esta polida ressalva em seu livro sobre Wagner: “Como poeta e como músico, Wagner foi o mais universal dos artistas; como homem e como pensador, foi o mais obstinado dos teutões, e creio que seu germanismo exclusivista o fez às vezes injusto para com outras nações como a França e a Itália”. .

Essas ressalvas têm sido talvez os principais motivos para que os preceitos poéticos lançados em seu tratado sobre o drama musical sejam menos frequentes do que poderiam no âmbito dos estudos poéticos. Veremos, no entanto, como eles mantêm uma relação de grande semelhança com certas escolhas de poetas da segunda metade do século XIX, sobretudo os que se identificam em algum grau com o chamado simbolismo. Pode-se dizer que a proposição wagneriana de três preceitos fundamentais para o verso - um principal, ligado ao ritmo, e dois derivados desse primeiro, a aliteração e a assonância - constitui uma das mais claras e detalhadas exposições de que dispõe o estudioso da poesia simbolista para reconhecer os modos de operação dessas escolhas e avaliar a própria historicidade que se inscreve na música da poesia finissecular. Em resumo, o tratado de Wagner ajuda a explicar o mote verlainiano “De la musique avant toute chose” (Verlaine 1884: 23) Verlaine, Paul. Jadis et Naguère. Paris: Léon Vanier, 1884. e o divino império da música referido por Mallarmé, Rubén Darío e tantos outros. Nesse sentido, vale a pena antecipar aqui uma afirmação de Ópera e drama, ainda que ela talvez só possa ser compreendida depois da exposição dos argumentos que motivam Wagner a escrevê-la:

A ciência desnudou o organismo do idioma; mas o que ela nos mostrou foi um organismo defunto, que só pode ser revivificado pelo Poeta no maior de seus esforços. Para tanto, ele deve curar as feridas que o escalpelo anatômico abriu no corpo do idioma e soprar dentro dele um alento que o anime ao movimento próprio. Esse alento é - a música. (Wagner 1893: 265, Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893. grifos do autor)2 2 Neste artigo, traduzo trechos de Ópera e drama a partir da célebre tradução inglesa de William Ashton Ellis (Opera and Drama, 1893). Consultei também a tradução ao espanhol da terceira parte do tratado por Ilse T.M. de Brugger, publicada como livro independente, sob o título de La poesía y la música en el drama del futuro (1952).

E todo o resto é literatura, completaria Verlaine em sua “Arte Poética”. Mallarmé (2010: 163) Mallarmé, Stéphane. Divagações. Tr. Fernando Scheibe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010. ratifica esse posicionamento ao escrever, em “Crise de verso”: “Ouvir o indiscutível raio - como traços douram e dilaceram um meandro de melodias: ou a Música junta-se ao Verso para formar, desde Wagner, a Poesia”. Um fragmento crítico do poeta boliviano Franz Tamayo, datado de 1905, registra a percepção de que a poesia francesa da segunda metade do século XIX deve muito de sua musicalidade à influência de Wagner: “A poesia francesa foi sempre marmórea e oratória, e fora de umas poucas notas de Racine, a música boreal só se introduziu nela desde a influência wagneriana. [...] Wagner tem influído mais na poesia do que na música francesas” (Tamayo 1979: 124Tamayo, Franz. Obra escogida. Caracas: Biblioteca Ayacucho , 1979.). O impacto geral da obra de Wagner em seu tempo foi assim descrito por Lacoue-Labarthe:

É difícil formar hoje uma ideia do choque que Wagner provocou, seja para quem o admira ou para quem o desdenha. Foi, por toda a Europa, um acontecimento; e se o wagnerismo - uma espécie de fenômeno de massa da burguesia culta - se espalhou com tamanho vigor e rapidez, foi devido não só ao talento do mestre para a propaganda ou ao zelo de seus idólatras, mas também à súbita aparição daquilo que o século havia tentado produzir desesperadamente desde os inícios do romantismo: uma obra de “grande arte” na escala imputada a obras da arte grega, ou mesmo na escala da grande arte cristã, foi então finalmente produzida, e descobriu-se o segredo daquilo que Hegel chamava a “religião da arte”. De fato, o que se fundou foi como que uma nova religião. (Lacoue-Labarthe 1994: xix) Lacoue-Labarthe, Philippe. Musica ficta (Figures of Wagner). Tr. Felicia McCarren. Stanford: Stanford U.P., 1994.

Preceitos poéticos de Ópera e drama

As duas primeiras partes de Ópera e drama se dedicam a criticar, separadamente, a situação de momento da ópera e da poesia dramática na Europa. Para tanto, Wagner escreve em cada uma das partes a história dos respectivos gêneros, sem deixar de esboçar, em ambos os casos, uma história mais ampla das respectivas artes a que pertencem - a música e a poesia. A pressuposição geral de Wagner, já vastamente exposta em outro livro, A obra de arte do futuro (1849), é a de que música, poesia e dança nasceram juntas e se celebraram em perfeita comunhão na tragédia grega; depois, se separaram ao longo da história até esgotarem recentemente suas possibilidades de permanecer independentes, e agora (no século XIX) deveriam voltar a reunir-se. Todo o esforço empreendido nas duas primeiras partes de Ópera e drama tem por finalidade persuadir o leitor de que a música e a poesia devem (pois finalmente podem) voltar a se encontrar após um longo período de separação, seja para estimulá-lo a produzir dramas musicais em conformidade com os preceitos lançados, seja para convencê-lo a admitir que as obras de Wagner são o melhor que se pode esperar da arte em geral.

A ópera criticada por Wagner é sobretudo a chamada ópera italiana. “Italiana” aí não se refere ao país de procedência dos compositores - e Wagner insiste em ressaltar, sempre nacionalista, que, nesse caso, o melhor italiano foi um germânico, Mozart3 3 A Áustria fazia parte então, junto com a Prússia, da Confederação Germânica (1815-1866). -, mas ao gênero e a seu idioma tradicional. Ao descrever a origem do gênero nas cortes italianas do século XVIII, Wagner o acusa de ter sido criado artificialmente para entreter aristocratas luxuosos:

Não foi a partir do teatro popular medieval, em que encontramos vestígios de uma cooperação natural da arte da Música com a do Drama, que a Ópera surgiu. Nas luxuosas cortes italianas - notadamente o único grande solo da cultura europeia em que o Drama nunca se desenvolveu de modo significativo - ocorreu a certas pessoas distintas, a quem a música de igreja de Palestrina já não agradava, empregar os cantores, contratados para entretê-las em seus festivais, no canto de arias, isto é, melodias populares subtraídas de sua ingenuidade e verdade, às quais “textos” ajuntados com uma aparência de coesão dramática eram encaixados como calços. (Wagner 1893: 18) Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.

A característica central desse tipo de ópera era a composição por números, pela qual se destacavam as árias, os duetos e outras seções em que a canção assume um amplo predomínio sobre os demais elementos da obra. A crítica de Wagner consiste, basicamente, em acusar os compositores de retalharem canções populares tradicionais para obter a empatia do público, privando-o, no entanto, de um contato com a verdadeira arte que estaria por detrás daquelas melodias, e oferecendo-lhe em troca uma experiência algo prazerosa e muito degradante. Para Wagner, a ária reciclava as canções tradicionais, ceifando-lhes as palavras com que haviam sido compostas e substituindo-as desajuizadamente por quaisquer outras que fossem capazes de fazer com que uma antiga melodia coubesse agora no tema da representação. Para sustentar essa distinção, Wagner escreve que o povo é o solo que conserva ainda as raízes da verdadeira arte e da verdadeira linguagem, sob uma camada de neve que é a civilização; alegoriza assim a valorização romântica de uma arte popular, coletiva e tradicional, que expressa coisas verdadeiras e naturais, contra uma arte enganosa que se compraz em imitar essas formas naturais para agradar plateias e patrões, dando ares de grandeza a coisas mesquinhas.

Isso não quer dizer que Wagner desdenhe, no tratado, os grandes compositores e as grandes óperas que havia conhecido até então. O substrato da concepção de arte que rege seu julgamento é a teoria romântica da expressividade; seu alvo são as configurações específicas que produziriam na ópera uma inversão fundamental: a música deveria ser tratada como um meio privilegiado de expressão para o drama, mas na ópera, pelo contrário, o meio se torna o fim e vice-versa.

Wagner exalta diversos compositores de ópera pelas realizações conquistadas no campo da música; reclama, porém, da posição cada vez menos privilegiada dos poetas na ópera. Chega a dizer que Mozart, o “mais absoluto dos músicos”, era capaz, como um deus, de produzir algo (grande música) a partir de nada (poesia ruim), e que teria podido resolver o problema se houvesse encontrado um grande poeta a quem ajudar, em vez de ter operado, como mandavam seus patronos, no sentido contrário. Observe-se que esse ataque não se dirige tampouco à qualidade dos libretistas (registre-se, por exemplo, o celebrado Lorenzo da Ponte, um dos principais colaboradores de Mozart), mas à posição de subserviência que se lhes impunha, restando-lhes, segundo Wagner, a tarefa secretarial de traduzir drama em ópera para ajudar o músico, quando o melhor caminho seria o contrário.

Wagner considera, então, que a ópera em si foi um gênero manco desde sua origem, por subjugar as possibilidades do poeta às do músico; e, mais do que isso, que já era um gênero morto desde a consagração pública de Rossini, quando, opina, se revelou inelutavelmente a absoluta irrelevância das palavras na ópera. De positivo, a história da ópera teria causado um inaudito desenvolvimento técnico e expressivo da melodia; mas, diante dessa construção poderosíssima, as palavras do libreto teriam perdido mais e mais espaço. Decorre daí o cruel julgamento que Wagner faz do rossiniano alemão Meyerbeer, escrevendo que sua obra atinge o máximo efeito, mas sem causa: “O segredo da música operística de Meyerbeer é - o Efeito. [...] De fato, a música meyerbeeriana produz [...] um efeito sem causa” (Wagner 1893: 95-6Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.).

Na terceira parte de Ópera e drama, Wagner discorre sobre a separação e o reencontro do músico e do poeta através de uma alegoria que vale a pena explorar. Escreve que o poeta e o músico são como dois caminhantes que partem de um mesmo ponto em sentidos opostos até se reencontrarem uma primeira vez no outro extremo do planeta, quando param para conversar e contar um ao outro o que viram e viveram. O poeta migrou por terra firme, desertos insonoros, montanhas íngremes e vastas planícies; o músico atravessou os mares e esteve frequentemente a ponto de afundar, mas soube sobreviver. Estimulados pelos relatos mútuos, cada um decide conhecer o caminho percorrido pelo outro, até que se encontram pela segunda vez, agora no mesmo ponto da primeira partida. Wagner assim conclui sua narração:

Agora o poeta atravessou os mares, e o músico percorreu os continentes. Não se separam mais, pois ambos conhecem a Terra: o que antes imaginavam em seus sonhos proféticos como tal e tal coisa, agora haviam testemunhado em sua realidade efetiva. Eles são Um [...]. O poeta tornou-se músico, o músico, poeta: agora são ambos um só artista perfeito. (Wagner 1893: 300) Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.

Nesse momento, aparentemente, a alegoria se abre à interpretação, e a primeira pista é uma forte sugestão de que ela se refira a coisas históricas. O ponto inicial da viagem poderia ser, por exemplo, o declínio da tragédia grega e a ascensão da filosofia, nos termos que Nietzsche desenvolveria em seu ensaio sobre O nascimento da tragédia, dedicado a Wagner. O ponto final é certamente o presente de Wagner; o momento privilegiado em que ele próprio pretendia promover o reencontro triunfal de ambas as artes. O ponto intermediário é que parece mais ambíguo.

Contudo, mostrando que a alegoria se destinava a esclarecer e não a obscurecer o argumento, o mesmo autor procede, já no parágrafo seguinte, à glosa que fizera parecer cumprir ao leitor. Ele diz que, no ponto do primeiro reencontro, a conversa entre o poeta e o músico se parecia com a moderna ideia de melodia, a qual, por um lado, devia sua existência aos empenhos interiores concebidos pelo poeta em sua dura caminhada por terra, mas, por outro, devia sua manifestação sensível unicamente às experiências vividas pelo músico no oceano. Interpreta os mares percorridos pelo músico como a harmonia - o eixo vertical da pauta, responsável pela simultaneidade expressa ou virtual dos sons, sempre vedado, segundo Wagner, às capacidades do poeta, que apenas pode sonhar com ele. A glosa se estende com uma descrição da segunda jornada do poeta, aquela em que ele parte para os mares da harmonia, para conhecer por experiência aquilo que só o músico saberia dominar. A primeira viagem do músico é um antecedente fundamental para o poeta: havendo inventado o barco e os instrumentos adequados para a travessia, o músico os cede ao poeta, que de outro modo não poderia fazer a viagem, e o instrui sobre como usá-los. Wagner fantasia detalhes da navegação do poeta e, por fim, conclui a glosa ao mito interpretando o símbolo do barco:

Ao timão desse veleiro glorioso que atravessa as águas, o Poeta, que antes, passo a passo, tinha medido penosamente os montes e os vales, se regozija agora com a consciência dos poderes do homem, que a tudo conquista; da alta borda, as ondas, por mais facilmente que o sacudam, parecem-lhe apoios dóceis e fiéis de seu nobre destino, esse destino da meta poética. Seu barco é o artefato vigoroso que lhe permite realizar sua vontade mais ampla e mais forte. Fervente de amor, ele agradece ao músico que, exposto às duras intempéries do mar, inventou esse barco e o deixou em suas mãos: pois esse veleiro é o conquistador da inundação da harmonia - é a orquestra. (Wagner 1893: 301, Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893. grifo do autor)

A partir daí é que, finalmente, entra a preceituação wagneriana para o trabalho do poeta na composição do libreto do drama musical. Para Wagner, a versificação culta na Europa da era moderna (desde o “renascimento”) padecia de uma falha fundamental: fora criada a partir da imitação da métrica grega e latina, a qual, porém, só se podia apreender incompletamente, a partir dos vestígios que ela deixara nas versões escritas de poemas antigos. Wagner supõe que os metros e ritmos da poesia grega tenham correspondido, no tempo em que surgiram, a aspectos não escritos da prática de que participavam, como os modos de declamação, os gestos dos declamadores e, em muitos casos, o acompanhamento musical. Ao apreendê-los dos registros escritos, a poesia moderna teria prescindido dessas ligações fundamentais e adotado (ou mesmo inventado) um esquema absolutamente artificial, sem profundidade histórica e sem correspondência alguma com os ritmos e metros da linguagem realmente usada pelos homens antigos ou modernos. Para Wagner, um verso alemão concebido como imitação por abstração da inapreensível métrica grega provocaria um choque entre o sentimento e o entendimento do ouvinte ou leitor: o sentimento o levaria a reconhecer uma frase escrita em sua língua familiar, mas o entendimento teria que desempenhar a todo momento a tarefa indigna de indicar ao sentimento um esquema métrico que lhe era estranho. Wagner compara essa operação à de um pintor que, tendo desenhado uma vaca que em nada se parece a uma vaca, precisasse escrever a seu lado, como aviso aos espectadores - atenção, “isto é uma vaca” (Wagner 1893: 241Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.).

Wagner começa, então, a desqualificar todo o sistema métrico da poesia moderna, para mais adiante propor que os versos tenham medidas livres - já que conta com sua posterior incorporação à música, e considera que o músico será capaz de equilibrar ou até aproveitar as desigualdades dos versos na melodia. Concentra seus ataques numa das figuras principais dessa métrica moderna inventada em imitação aos supostos esquemas antigos: o pentâmetro iâmbico, “monstro de cinco pés”, que, obrigando o poeta a recortar a língua em unidades iguais de uma sílaba fraca e uma forte, causaria quase sempre prejuízos profundos, como o banimento de inúmeras palavras inadaptáveis ao esquema ou, pior, a frequente inversão de valores acentuais - acentos métricos onde não há acentos prosódicos e vice-versa -, que faria assemelhar-se a experiência do “verso escrito”, diz Wagner (1983: 242)Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893., à de cavalgar um pangaré manco. A esse verso escrito ele opõe o “verso vivo”, que deveria ser considerado junto com a melodia rítmico-musical. Observe-se que, se a oposição com o verso vivo faz pensar no verso escrito da lírica moderna como verso morto, isso não significa que os únicos exemplos de versos vivos sejam os versos de seus próprios libretos: também haveriam sido vivos na antiguidade os versos dos poemas gregos, e seguiriam vivendo os versos das canções populares de que ele falara na primeira parte do tratado.

Nesse ponto, começa a ficar claro que o interesse central da preceituação de Wagner para o poeta de libretos incide sobre o ritmo. A métrica está praticamente abolida das preocupações do poeta, pois cumpre ao músico realizá-la através da melodia; e o vínculo entre a melodia e o verso é o acento prosódico (Wagner 1983: 250Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.). Acento prosódico aqui não é o acento gramatical ou normativo de uma palavra: entende-o antes como um acento principal de uma frase quando realmente entoada num certo contexto comunicativo. Na fala, segundo Wagner, o acento prosódico não aparece sempre, mas apenas quando importa; o poeta deveria imitar essa economia dos acentos e ainda expandi-la para outros aspectos ao selecionar sua linguagem, concentrando-se no núcleo comunicativo ou expressivo de um enunciado e limpando seu verso de todo tipo de excessos, palavras explicativas, referências políticas ou históricas etc.

O método sugerido por Wagner para a correta apreensão do acento prosódico é quase empírico: ele garante que uma observação fiel das expressões que as pessoas usam na vida comum quando sentem emoções aumentadas dará ao poeta a medida dos acentos a empregar (Wagner 1983: 257Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.). Escrevi “quase empírico” porque Wagner não se refere à fala de qualquer pessoa observada por qualquer poeta, mas sim, romanticamente, à fala de pessoas especialmente expressivas, que só um verdadeiro poeta poderá selecionar. Wagner (1983: 257)Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893. antecipa o resultado dessa pesquisa com uma pequena amostragem, em que já entra em plena preceituação para a representação poética adequada de diferentes afetos por meio da imitação do ritmo que eles imporiam realmente à fala: “Um afeto ativo de ira vai permitir que um número maior de acentos seja emitido em uma só expiração, enquanto um profundo e doloroso sofrimento vai consumir todo o alento com sons menos numerosos e mais prolongados”.

Cabe imaginar os benefícios que ele esperava obter de um libreto assim concebido: a longa frase irada e cheia de acentos receberia uma melodia ágil e vigorosa, enquanto a frase de lamentação, que até poderia se compor apenas de interjeições curtas - ai, sofro, miséria -, teria suas poucas sílabas indefinidamente prolongadas na composição musical. Finalizando essa preceituação rítmica, Wagner postula que esses acentos prosódicos não são naturalmente todos iguais, mas que, novamente, o poeta não precisa se preocupar em equilibrá-los, posto que o músico saberá aproveitar o desequilíbrio na melodia (fazendo-o acompanhar de subidas e descidas no tom, por exemplo).

Wagner conta com a possibilidade de uma colaboração valiosa do poeta na definição rítmica dos versos antes do trabalho do músico. Nesse ponto, seu preceito rítmico fundamental - a concisão do verso conforme a economia do acento prosódico perceptível em situações especiais da fala real - se desdobra em dois preceitos auxiliares, a aliteração e a assonância, em termos que procuro resumir.

A concentração do poeta no núcleo expressivo de um enunciado que ele quer pôr em verso deve levá-lo a eleger uma palavra como a mais importante desse verso. Ao escolhê-la, diz Wagner, ele deve fazê-la dominar as demais não apenas pelo sentido, como também pela sonoridade. O caráter sonoro dessa palavra está determinado principalmente por dois sons: a vogal tônica de sua raiz (recorde-se o óbvio: que ele pensa na língua alemã) e a consoante que a precede. Wagner acredita que a vogal tônica da raiz guarda o segredo imemorial dessa palavra; que ela remete a um momento longínquo e idealizado em que a palavra teria sido criada por reverberação de seu mais puro referente. Novamente, sua explicação é alegórica; recorre a imagens da natureza para marcar sua visão orgânica de uma linguagem original: a vogal é o sangue quente que circula pelo organismo da raiz; o povo é o solo que conserva as raízes da verdadeira linguagem sob uma camada de neve que é a civilização (Wagner 1983: 265; 267Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.).

O caráter da vogal encontra-se plenamente manifesto em seu próprio som; mas, para Wagner, até o ouvido dos modernos estaria corrompido pelo ut pictura poesis, e teria desenvolvido um sentido intermediário que ele chama “o olho do ouvido”, também sujeito, como a visão propriamente dita, aos enganos fáceis da aparência: deveríamos julgar um homem pelo que ele fala e faz, diz Wagner, mas estamos condicionados a avaliar antes seu aspecto fisionômico, suas roupas etc. Assim, o poeta deve satisfazer primeiro a demanda do “olho do ouvido” para depois conseguir fazer o som da vogal chegar ao “ouvido do ouvido”. Para isso, ele tem que vestir a vogal com a roupa mais adequada ao encontro. A consoante que antecede imediatamente a vogal é essa roupa; mas é também a camada de pele que, recobrindo organicamente o corpo da vogal, concorre para a determinação de seu caráter interno.

Com base nessas considerações, Wagner (1983Wagner, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.: 140) retoma a preceituação rítmica: o sentido da frase já estaria bem apoiado sobre os acentos prosódicos, mas, se o poeta quer fazê-la chegar como expressão afetiva ao sentimento, deve enriquecê-la com uma aliteração das raízes acentuadas, pois a aliteração é capaz de sugerir aos “olhos do ouvido” uma vinculação entre duas coisas intelectualmente distintas.

Dirigindo um aparte a todos os poetas (não só os libretistas, mas também os poetas de “versos escritos”), Wagner convoca-os a falar ao “ouvido do ouvido” através da aliteração, e aproveita para elevá-la jocosamente como um recurso superior e mais nobre do que a rima: “Acercai-vos a este sentido esplêndido, oh poetas! Permiti-lhe ver vossa cara, a cara da palavra, e não as nádegas caídas, que vais arrastando, frouxas e sem vida, na rima final de vosso discurso prosaico e que ofereceis ao ouvido para contentá-lo” (Wagner 1952Wagner, Richard. La poesía y la música en el drama del futuro. Trad. Ilse T.M. de Brugger. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1952.: 41). Mas aí termina a preceituação para o poeta libretista, e começa a primeira tarefa do músico, que é colorir com timbres de instrumentos adequados as aliterações (orquestração) e, sobretudo, revelar o parentesco de todas as vogais em tons (harmonia). O “drama do futuro” seria, por fim, o resultado desse encontro entre o poeta e o músico.

Apropriações no modernismo hispano-americano

A preceituação para o músico excede os objetivos deste artigo, cujo interesse é apontar semelhanças entre os preceitos poéticos de Wagner e certas escolhas de poetas que viriam a sustentar a leitura de poemas do fim do século XIX como “musicais”. A aliteração e a assonância têm longa tradição na poesia em língua inglesa e alemã, mas não nas línguas latinas, que historicamente privilegiaram a rima final como elemento coesivo do aspecto sonoro dos versos. Com Verlaine e os simbolistas, os dois recursos assumem um papel de destaque na poesia francesa, e logo passam a aparecer abundantemente em português (por exemplo, em Eugénio de Castro ou Cruz e Sousa) e espanhol (nos modernistas hispano-americanos) como marcas de uma guinada musicalizante da elocução e simbólica da invenção poética. Para medir a novidade do recurso diante da tradição da língua espanhola, vale confrontar o vasto corpus conhecido de poemas aliterativos surgidos na década de 1890 com o que escreveu sobre assunto o chileno Eduardo de la Barra num de seus Estudos de métrica da década de 1880:

A aliteração [...] constituía o principal elemento dos ritmos rúnicos. [...] Entre os franceses e espanhóis costumam achar-se rastros vagos de aliteração; mas, antes como um meio de produzir harmonias imitativas do que como elemento rítmico. Os poetas latinos não eram extranhos a esta espécie de rima rúnica [...] Mas [a aliteração] jamais para nós passará de um jogo pueril de letras, sílabas e palavras. (Barra 1952: 220) Barra, Eduardo de la. Páginas escogidas. Selección e introducción de Raúl Silva Castro. Santiago de Chile: Universo, 1952.

O “jamais” de Eduardo de la Barra seria refutado poucos anos depois, quando, malgrado a resistência conservadora, a aliteração triunfaria como recurso rítmico e simbólico a partir da recepção positiva dos versos dos modernistas, entre os quais os mais citados nesse sentido seriam alguns do nicaraguense Rubén Darío: “Bajo el ala aleve del leve abanico” (1901Darío, Rubén. Prosas profanas y otros poemas. 2.ed. París: Vda de Ch. Bouret, 1901.: 52), “Loreley en la lengua de la lira” (1901Darío, Rubén. Prosas profanas y otros poemas. 2.ed. París: Vda de Ch. Bouret, 1901.: 57) etc. Há, ademais, um caso de curiosa concentração em um único som consonantal, o “l”, promovido pelo poeta de nome aliterado Leopoldo Lugones. No soneto “Camelia”, de Los crepúsculos del jardín (1905), lê-se a formulação de uma espécie de preceito paro o uso do “l”:

Cómo se llama el corazón lo augura: - Clelia, Eulalia, Clotilde - algún pristino Nombre con muchas eles, como un fino Cristal, todo vibrante de agua pura. (Lugones 1980: 23) Lugones, Leopoldo. Los crepúsculos del jardín. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1980.

Associa-se ao “l” um valor líquido, “todo vibrante de água pura”. Nos versos subsequentes, as qualidades da “Camelia” vão acumulando “eles”: sua pele tem claror, blancura, palidez; sua alma é lilial; suas maneiras são prolijas etc. O leitor registra o preceito, e passa a vê-lo aplicado em outros poemas do mesmo livro; em “Romántica”, por exemplo, encontra-se a seguinte estrofe:

En el lago espectral, la clara luna Que da el insomnio del amor aciago Reglaba sus fulgores como una Camelia deshojada sobre el lago. (Lugones 1980Lugones, Leopoldo. Los crepúsculos del jardín. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1980.: 31)

Volta aí a sonora camélia, cujas folhas dispersas sobre o lago são comparadas aos fulgores da clara lua. Em “El solterón”, a página em branco (blanco) que angustia o escritor é descrita com frequentes “eles”; a associação com o líquido é reiterada pelo vocabulário (glacial, reflexo, água, cristal, gela, aquarela), e se dedica a representar a página como um mallarmaico lago congelado:

El crepúsculo perplejo Entra a una alcoba glacial, En cuyo empañado espejo Con soslayado reflejo Turba el agua del cristal. El lecho blanco se hiela Junto al siniestro baúl, Y en su herrumbada tachuela Envejece una acuarela Cuadrada de felpa azul. (Lugones 1980: 24) Lugones, Leopoldo. Los crepúsculos del jardín. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1980.

Em “A tus imperfecciones”, poema em que o “tu” pode ser lido como a poesia moderna, a voz lírica “alaba” o “lirio” de suas “melancolías”, e depois anota: “Un ritmo marítimo / ondula en los volantes de tus faldas claras” (Lugones 1980: 46) Lugones, Leopoldo. Los crepúsculos del jardín. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1980..

Recorde-se que Wagner pedia ao poeta apenas a repetição do fonema, sem atribuição de valor simbólico: a orquestra é que se responsabilizaria por colorir a consoante com um determinado timbre instrumental, e esse timbre é que poderia assumir, no todo da composição, um valor simbólico. Mas alguns poetas de verso escrito quiseram adaptar inteiramente os preceitos de Wagner, inclusive os musicais, à poesia sem música. O exemplo mais evidente disso seria a poesia instrumentista do wagneriano René Ghil, que, em seu Tratado do verbo (1886) Ghil, René. Traité du Verbe. Avant-dire de Stéphane Mallarmé. Paris: Giraud, 1886., propõe associações entre instrumentos, cores e fonemas, montando uma tabela que deveria servir como receita aos poetas para a obtenção de uma poesia com valor orquestral. Primeiro estabelece correspondências entre vogais e cores, glosando a maneira do verso de abertura do poema “Les voyelles” de Rimbaud (1998: 187) - “A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles” -, mas trocando algumas cores: “A noir, E blanc, I bleu, O rouge, U jaune” (Ghil 1886: 28). Em seguida, Ghil (1886: 28)Ghil, René. Traité du Verbe. Avant-dire de Stéphane Mallarmé. Paris: Giraud, 1886. faz o mesmo com instrumentos: “A, les orgues; E, les harpes; I, les violons; O, les cuivres; U, les flûtes”; então especifica os valores dos ditongos, e por fim elege as consoantes mais adequadas à composição de sílabas com as vogais.

Os poetas do modernismo hispano-americano quase sempre recusaram a validade desse tipo de relação direta entre instrumentos e fonemas; Rubén Darío (1905: 198) Darío, Rubén. Los raros. 2.ed. Barcelona: Maucci, 1905. chegou a escrever que “René Ghil e sua tentativa de instrumentação, Gustave Khan e sua apreciação do valor tonal das palavras são [...] excêntricos literários levados por uma concepção da arte, na verdade, abstrusa e difícil”. Mas exploraram à exaustão os efeitos sugestivos de uma distribuição programada e variada dos sons pelos versos, e é por esse motivo que as palavras “orquestração” e “música wagneriana” aparecem frequentemente nos textos críticos do período. Em relação à assonância, o uruguaio Julio Herrera y Reissig produziu um poema inteiramente baseado nesse recurso.

Em 1902, uma publicação periódica de Montevidéu (o Almanaque artístico del siglo XX) faz circular um estranhíssimo soneto de Julio Herrera y Reissig:

Solo verde-amarillo para flauta. Clave de U Virgilio es amarillo Y Fray Luis verde. (Manera de Mallarmé) AndanteÚrsula punza la boyuna yunta; La lujuria perfuma con su fruta, La púbera frescura de la ruta Por donde ondula la venusa junta. PianoRecién la hirsuta barba rubia apunta Al dios Agricultura. La impoluta Pianísimo Uña fecunda del amor, debuta CrescendoCual una duda de nupcial pregunta. Anuncian lluvias las adustas lunas. Almizcladuras, uvas, aceitunas, ForteGulas de mar, fortunas de las musas; Hay bilis en las rudas armaduras FortísimoHan madurado todas las verduras, Y una burra hace hablar las cornamusas. (Herrera y Reissig 1998: 323) Herrera y Reissig, Julio. Poesía completa y prosas. Madrid/São Paulo: ALLCA XX / Scipione Cultural, 1998. Colección Archivos.

Há tantas referências paratextuais a decifrar que o leitor demora a entrar nos versos do soneto. O título é sinestésico e extravagante; a epígrafe junta três poetas de épocas e línguas diferentes sem fazer com que se entenda o motivo; e as palavras indicadoras de andamento fazem pensar numa partitura. O sentido dos versos pode beirar o inapreensível, mas a inclinação para a música está claramente indicada pelo título e pelos andamentos.

Trata-se de um poema “instrumentista”, composto segundo os preceitos do Tratado do verbo (1886) de René Ghil. A tabela de correspondências de Ghil dá a chave para sua compreensão: o “u” corresponde à flauta e ao amarelo. Mas no soneto “Les voyelles” de Rimbaud, o “u” é verde. Por isso o poeta diz que o solo é verde-amarelo, para flauta e em clave de “u”. A flauta é também o instrumento associado à tradição da poesia pastoril, que tem Virgílio como modelo antigo, Fray Luis de León como modelo espanhol castiço e o Mallarmé de “L’Après-midi d’un faune” como modelo moderno. Somados aos indicadores de andamento, esses elementos paratextuais determinam, então, o gênero lírico-pastoril do soneto e diversos traços de seu estilo.

Então os versos. Parecem paródia. O primeiro que se nota neles é que a escolha de palavras está determinada por uma regra sonora: na primeira estrofe, todas - com exceção de artigos, conectivos, pronomes etc. - tem o “u” como vogal tônica e o “a” como átona final; nas demais, o “u” segue predominando amplamente. Muitas palavras difíceis e frases paratáticas dificultam a compreensão do sentido do poema, que aliás, para muitos, não tem sentido algum. O crítico Lauxar (in Herrera y Reissig, 1998: 1209) Herrera y Reissig, Julio. Poesía completa y prosas. Madrid/São Paulo: ALLCA XX / Scipione Cultural, 1998. Colección Archivos. escreveu, por exemplo, em 1914: “Já foi dito que este solo é simbolista à maneira de Mallarmé. Não perderei tempo em demonstrar o contrário. Mallarmé não é fácil de entender e o Solo não tem sentido: eis aqui toda sua relação”. Com um pouco mais de boa vontade, poderia ter entendido alguma coisa: o solo verde-amarelo vai do verde ao amarelo, começando com um quadro rural em verdes prados e culminando na bile amarela de que se pintam as verduras amadurecidas; no caminho, sugere-se paralelamente o amadurecimento de uma jovem para o amor. Mas, diante da insistência musical, o sentido comunicativo dos versos realmente fica em segundo plano.

A reação ao soneto foi pequena, mas intensa; revisitaram-se diversas tópicas de vituperação contra as tendências decadente, simbolista, instrumentista, harmonista, modernista. Uma carta de Herrera y Reissig registra a admiração de pelo menos um leitor, seu amigo Edmundo Montagne, cujo texto, infelizmente, se perdeu:

O senhor interpretou como bom profeta, com uma exatidão fotográfica, meu solo Verde-amarelo para flauta. Não esperava outra coisa de seu talento e sua sensibilidade refinada. O u a ingenuíssimo e pastoril, de amores virgilianos, foi escutado pelo senhor com ouvidos de músico wagnerista. Igualmente que por lá, aqui não faltaram os imbecis que dissessem coisas néscias sobre minha partitura. Aqueles das eternas compreensões absolutas, como diz tão bem o senhor, falaram na surdina contra o soneto, que o senhor e eu saboreamos.

Mas felizmente não faltaram três ou três e meio homens de letras em Montevidéu que tenham achado muito bom e veraz o tal soneto. A gradação que o senhor encontrou é segura: “a gradação que é uma verdade no amor, uma verdade afetiva e fenomenológica” (suas palavras são de uma luminosa interpretação) fez bramar aos burgueses de nossa arte pueril. Enfim, querido Montagne, esta América é o último do último, escrever para idiotas e retardatários! (Herrera y Reissig 1998: 810-811, tr. n.) Herrera y Reissig, Julio. Poesía completa y prosas. Madrid/São Paulo: ALLCA XX / Scipione Cultural, 1998. Colección Archivos.

Quando se refere aos ouvidos de músico wagnerista que o amigo demonstrara ter, e equipara a reação a seu soneto com aquela que se havia armado contra Wagner na França, Herrera y Reissig confirma a existência de uma relação corrente entre o instrumentismo de René Ghil e os preceitos poético-musicais de Wagner; mais do que isso, celebra a disposição musical de Montagne para a leitura de poesia, que exigia, segundo Herrera y Reissig (1978: 350)Herrera y Reissig, Julio. Poesía completa y prosa selecta. Prólogo de Idea Vilariño. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1978., “um receptor harmonioso que seja uma alma instrumentada e um clavicórdio que seja um homem”. O “Solo verde-amarelo” é um caso extremo; nenhum outro poema de Herrera y Reissig apresenta tão claramente uma chave instrumentista, e em nenhum outro aparecem tampouco as indicações de andamento, a insistência tamanha na repetição de um único som etc. Mas a perseguição de uma música poética é um ponto chave de suas obras.

Considerações finais

Numa crônica em que relata suas impressões sobre a estreia de A Valquíria de Wagner em Madri, Rubén Darío (1926: 44) Darío, Rubén.. España contemporánea. Madrid: Biblioteca Rubén Darío, Imp. de Galo Sáenz, 1926. comemora haver na capital espanhola muitos admiradores da música wagneriana, aos quais ele chama “os adoradores do santo culto que renova Pitágoras”. Além disso, no livro Los raros, de 1896, termina seu elogio do drama Belkiss, do português Eugénio de Castro, com o seguinte juízo:

Uma sucessão de cenas fastuosas se desenvolve ao eco de uma wagneriana orquestração verbal. Pode-se assegurar sem temor a equívoco que os primeiros “músicos”, no sentido pitagórico e no sentido wagneriano, da arte da palavra, são hoje Gabrielle D’Annunzio e Eugénio de Castro. (Darío 1905: 249-50) Darío, Rubén. Los raros. 2.ed. Barcelona: Maucci, 1905.

Em Darío, a música é metáfora mestra de toda atividade artística, não só da poesia. Ainda que, em seus versos, Darío tenha aproveitado extensamente a sugestão das outras artes, pretende tê-lo feito “sob o divino império da música” (1968Sierra, Justo. Prólogo a Peregrinaciones de Rubén Darío (1901). In MEJÍA SÁNCHEZ, Ernesto (ed.). Estudios sobre Rubén Darío. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1968.: 697), e por isso recebe o seguinte elogio de Justo Sierra:

É seu o instrumento poético, inteiramente seu. Quero dizer que Rubén o domina a ponto de parecer seu criador, de parecer o inventor de seu modo de fazer versos; e esse instrumento é como um órgão automático: clarim, flauta, címbalo, harpa, violino e lira, a tudo pulsa por igual. Não sei se alguém jamais duvidou de que este poeta fosse capaz de cinzelar sua estrofe em mármore clássico como Leconte de Lisle e Núñez de Arce, ou em bronze como Hugo e Díaz Mirón, ou em argila de Tânagra como Campoamor e Banville; amostras de sua destreza de escultor tem dado para não se esquecerem; mas é músico e é músico wagneriano. (Sierra, 1901: 139) Sierra, Justo. Prólogo a Peregrinaciones de Rubén Darío (1901). In MEJÍA SÁNCHEZ, Ernesto (ed.). Estudios sobre Rubén Darío. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1968.

Percebe-se que o lema verlainiano “De la musique avant toute chose” (Verlaine 1884: 23) Verlaine, Paul. Jadis et Naguère. Paris: Léon Vanier, 1884. não deve ser tomado como marco inaugural das postulações musicais para a poesia simbolista finissecular internacional, mas como enunciado reorientador de uma questão que já vinha sendo tratada ao longo do século. Este artigo investiga a pertinência da música da poesia modernista hispano-americana a um conjunto mais amplo, que não se restringe a uma aclimatação da música da poesia contemporânea francesa - “simbolismo” -, mas que reúne e intervém sobre diversas proposições poéticas do século XIX; e reivindica uma nova consideração da preceptiva músico-poética de Wagner no âmbito dos estudos da musicalidade poética do modernismo hispano-americano e da poesia simbolista internacional.

Referências bibliográficas

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  • Darío, Rubén.. España contemporánea Madrid: Biblioteca Rubén Darío, Imp. de Galo Sáenz, 1926.
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  • Mallarmé, Stéphane. Divagações Tr. Fernando Scheibe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010.
  • Schuré, Eduardo. Wagner: el genio de la música a través de sus obras Tr. Gastón Gómez Lerroux. Buenos Aires: Suma, 1944.
  • Sierra, Justo. Prólogo a Peregrinaciones de Rubén Darío (1901). In MEJÍA SÁNCHEZ, Ernesto (ed.). Estudios sobre Rubén Darío México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1968.
  • Tamayo, Franz. Obra escogida Caracas: Biblioteca Ayacucho , 1979.
  • Verlaine, Paul. Jadis et Naguère Paris: Léon Vanier, 1884.
  • Wagner, Richard. Opera and Drama Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.
  • Wagner, Richard. La poesía y la música en el drama del futuro Trad. Ilse T.M. de Brugger. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1952.
  • 1
    Entre os ataques mais completos e efetivos contra Wagner podem-se destacar dois livros de Nietzsche - O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, ambos de 1888 - e um de Adorno, cujo título em inglês é In Search of Wagner, de 1953. O francês Edouard Schuré (1944Schuré, Eduardo. Wagner: el genio de la música a través de sus obras. Tr. Gastón Gómez Lerroux. Buenos Aires: Suma, 1944.: 16), wagneriano inveterado, escreve esta polida ressalva em seu livro sobre Wagner: “Como poeta e como músico, Wagner foi o mais universal dos artistas; como homem e como pensador, foi o mais obstinado dos teutões, e creio que seu germanismo exclusivista o fez às vezes injusto para com outras nações como a França e a Itália”.
  • 2
    Neste artigo, traduzo trechos de Ópera e drama a partir da célebre tradução inglesa de William Ashton Ellis (Opera and Drama, 1893). Consultei também a tradução ao espanhol da terceira parte do tratado por Ilse T.M. de Brugger, publicada como livro independente, sob o título de La poesía y la música en el drama del futuro (1952).
  • 3
    A Áustria fazia parte então, junto com a Prússia, da Confederação Germânica (1815-1866).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    23 Dez 2018
  • Aceito
    01 Abr 2019
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