Acessibilidade / Reportar erro

A tese como atlas

The thesis as an atlas

Resenha de: Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac . Tese de Doutorado de Marlon Augusto Barbosa, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, em 05/2021.

Inaugurando um gesto recorrente da tese de Marlon Augusto Barbosa, o seu título - “Desvios na crítica” - institui um protocolo de leitura duplo. Por um lado, cumpre a função que lhe cabe num trabalho acadêmico: é expressão condensada de um problema e de uma diretriz. E, no entanto, ao nomear como desvio esses elementos ordenadores, passa discreta, mas decisivamente, a uma dimensão performativa: é inscrição, placa numa via, sinal de alerta: “desvios na [pista]”. Sem um determinante que os limite a tema, esses desvios se anunciam exercício, implicam risco. Já não se referem apenas às obras dos autores estudados, elencados no subtítulo: “Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac”, mas ao próprio volume que temos em mãos.

Sua materialidade importa. No tempo das teses em tela, essa chegou à banca em papel. E é mesmo uma tese de papel, esse não é um suporte acidental. Suporta melhor, sem excessivamente reduzi-la, a heterogeneidade com que lida. Há o texto dos capítulos, com vozes que menos se imiscuem do que se dobram-debruçam umas sobre as outras, há imagens (visuais, poéticas, teóricas), e epígrafes, e fragmentos, e intervalos - preservados, trabalhados, convidando a relações, mas desobrigando delas, no gozo das suspensões. Tudo funciona linearmente, na estrutura prevista e reconfortante de uma tese de doutorado, mas funciona principalmente em prancha constelada. Pequenos astros brilham aqui e ali, apelando uns aos outros na distância. Lançando fios de uma teia virtual que um leitor atento vai vendo desenhar-se diante de seus olhos, no volver (e revolver) das páginas; ou antes, deixando rastros num campo de perfurações que um leitor afetado vai sentindo corroer sua leitura, pô-la em crise.

O texto nos alerta: na superfície, o trabalho parece se organizar segundo um modelo tradicional, mas essa superfície não é superfície (esta palavra aparece 19 vezes na tese, e vai sendo rasgada na repetição). Como a pele não o é, como as pranchas do Atlas de Aby Warburg não o são, como capas de livros não são, como um mapa não é, como o mapa de um percurso acadêmico é ainda menos, como a mesa de trabalho de um doutorando não é. Essa mesa, estrelada, faz-se forma dobrável, armada por uma espiral para chegar até nós. A Introdução da tese é um convite a espreitá-la:

Diante de mim, durante todo esse tempo de pesquisa, sempre houve uma mesa preta de vidro. Nela, além de um notebook e alguns cadernos, era possível encontrar de forma desordenada uma porção de folhas e diversos livros abertos e empilhados uns sobre os outros. As capas de alguns desses livros carregam réplicas ou apenas fragmentos de algumas pinturas famosas, como se fossem pequenas obras de arte que deveriam estar na parede de um famoso museu, mas, que por serem apenas réplicas, e devido ao trabalho e a escrita de uma tese, se encontram dispostas sobre uma mesa. Esses livros, dispostos lado a lado, em cima e embaixo, como se fossem as cartas de um baralho, poderiam figurar para os leitores de Warburg como a possível réplica de uma prancha perdida do Atlas Mnemosyne. (BARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 12).

Esse quadro fundador, uma natureza-morta com gosto por trompe-l’oeil nas suas sugestivas sobreposições, lembra uma passagem de Francis Ponge, refletindo sobre Chardin e seus pequenos mundos de coisas:

[...] la moindre nature morte est un paysage métaphysique. [...] Le moindre arrangement des choses, dis-je, dans le moindre fragment d'espace, // Et non seulement la disposition des entrailles des poulets sacrés, celle des cartes battues puis étalées sur la table, celle du marc de café, celle des dés quand ils viennent d'être jetés. // Les grands signes ne sont pas qu'aux cieux. (PONGE, 1977PONGE, Francis. De la nature morte et de Chardin. In: PONGE, Francis. L’Atelier contemporain. Paris: Gallimard, 1977. p. 228-236, p. 235).1 1 “[...] uma natureza-morta qualquer é uma paisagem metafísica. [...] Um arranjo de coisas qualquer, digo, num fragmento de espaço qualquer, // E não apenas a disposição das entranhas das aves sagradas, aquela das cartas abertas e depois estendidas sobre a mesa, aquela da borra de café, aquela dos dados quando acabam de ser lançados. // Os grandes sinais não estão apenas nos céus.” (Tradução minha)

Não, “os grandes sinais não estão apenas nos céus”. Podem estar na concertada desordem de uma mesa de trabalho, de longo estudo: mise-en-place / en-abyme / en-scène, mise à nu. Os livros e papéis são sucedâneos de cartas de adivinhação (mas também de navegação: cartografias, roteiros), e vão dando a ver (a criar) os caminhos (descaminhos) de uma tese. A tese é também narrativa dessa mesa, dos encontros inesperados, das separações inevitáveis, dos percalços imprevistos, das dolorosas hesitações, dos achados luminosos que nela se dão. Como se essa mesa de doutorando fosse um recorte do infinito tabuleiro de Italo Calvino em O castelo dos destinos cruzadosCALVINO, Italo. O Castelo dos destinos cruzados. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 160 p.. Ali vão se abrigar personagens errantes que, emudecidas, contam suas histórias dispondo em sequência cartas de um baralho de tarô, ressignificadas a cada novo lance desse jogo de contar, a cada novo cruzamento de enredos distintos que passam a se entretecer. O doutorando se converte em narrador: “Escrevo um pequeno resumo, estabeleço um corte: aglutino, dissocio, me debruço sobre as [...] cartas. Nesse momento, [...] sou capaz de transformar o colecionador de nomes, de livros e de teorias que há em mim, em narrador” (BARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 15). Calvino é um autor caro, presença fantasmática, emergindo pela tese numa e noutra epígrafe. Balzac é uma carta de entrecruzamento, ponto assinalado “numa espécie de mapa [...] que pudesse mostrar quais seriam as continuidades e as rupturas que [Barthes e Didi-Huberman] estabeleceram com uma determinada tradição de leitura.” (BARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 16). Warburg é método.

Para o leitor, é mesmo como uma prancha perdida do Atlas Mnemosyne que a mesa, convertida em tese, se oferece. É essa a imagem operativa, o artefato epistemológico que vai inspirar e conduzir a sua montagem, orientar uma ética de relações que nela se ajusta e estabelecer o seu modo de significação enredado, em aberto, a sua qualidade movente. Trata-se de uma eleição muito coerente de modelo, para além da sedução que Warburg inevitavelmente exerce. A sua invenção estrutural, a sua “ciência sem nome” (como a (des)classificou Agamben) opera, diz o próprio Didi-Huberman, uma abertura na História da Arte. Uma abertura que é menos a ampliação do campo da disciplina do que uma perfuração que a atravessa e fere - “só esta abertura possui uma dimensão crítica” (DIDI-HUBERMAN, 2011DIDI-HUBERMAN, Georges. Ao passo ligeiro da serva: saber das imagens, saber excêntrico. Tradução de R.C. Botelho e R.P. Cabral. Lisboa: KKYM, 2011. 56 p., p. 11). Marlon Augusto testemunha um acidente semelhante na Teoria e na Crítica da Literatura.

É uma ferida que ele vê em uma das cartas de seu baralho, em um elemento crucial dessa prancha: o borrão vermelho na capa de A Pintura encarnada, de Didi-Huberman, debrum de chapéu numa tela de Vermeer que um outro regime de visualidade faz migrar e abre em sintoma: “alguém se feriu ou foi ferido ali por perto” (BARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 13). Assim, também o modo como “S/Z” se inscreve na capa do livro de Barthes, essa outra carta irradiadora, com um título que se torna signo de espelhamentos e mancha em forma de borboleta, metamorfose feita corpo, forma de voo.

Quem fala em voo fala em queda. É de Balzac, mas de um Balzac dialético, que se ausenta, de uma forma suportada pela sua perda, a primeira imagem dessa tese-prancha: um detalhe de La robe de chambre de Balzac, de Rodin. Um “volume portador de vazio, mostrador de vazio”, um vazio que nos olha (DIDI-HUBERMAN, 1998DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. 264 p., p. 35), perturbadoramente. Abismo que torna irresistível debruçar-se, mesmo já conhecendo a vertigem inevitável da queda. A fotografia da peça, recortada, que serve de epígrafe à tese, se relaciona com muitos elementos do trabalho: com figuras dos contos mobilizados de Balzac - “Sarrasine” e “A obra-prima desconhecida” -, com as leituras que Barthes e Didi-Huberman fazem deles; mas também com a sua formação como críticos no atrito dessas leituras, com as modalidades de crítica em crise que estabelecem. A visualidade do robe de um Balzac abismado é incorporada pela forma decrépita de um velho que irrompe num salão de baile, ruína de uma ninfa de Warburg, que, como era de se esperar, peregrina da reprodução de Ghirlandaio no Atlas Mnemosyne e adentra numa lufada de vento essa prancha fingida, vertida em tese, e a atravessa. Fugidia, a ninfa deixa entrever só a curva de um pé na obra-prima para sempre desconhecida do pintor Frenhofer, evocando a Gradiva de Jensen (e de Freud), para afinal se adivinhar no voo de um albatroz baudelairiano, um voo que sabe a queda, consumando-se em alegoria teórica. Para representar um modo de “pensar debruçado” sobre textos: em sobrevoo, mas sob constante ameaça de captura, permitindo ao “objeto olhado subir em direção ao olho, quaisquer que sejam os riscos ou as consequências” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. Pensar debruçado. Tradução de Vanessa Brito. Lisboa: KKYM , 2015. 28 p. E-book., l. 70).

Último elo (mas tudo aqui se move) de uma cadeia de reflexão, Marlon Augusto também se debruça sobre a feitura da sua tese, desdobrado num segundo Marlon Augusto capaz de serenamente observar aquele outro, que escolhe textos, recolhe citações, organiza capítulos, costura habilmente as sequências. Às vezes esse Marlon Albatroz, dos ares, interfere: “eu arriscaria dizer que”; “eu gostaria de lançar uma hipótese”; “eu penso em...”, e explica a feliz descoberta de que para falar de um autor (teórico, literário, aqui não importa a diferença) convém seguir as suas pistas e não o fazer caber numa fôrma.

A proposta da tese, como o Resumo deixa claro, é um ato, ou melhor seria dizer: uma atuação. A tarefa que aí se empreende não é tanto (ou não é simplesmente) escrever sobre as crises que Barthes e Didi-Huberman instauram na crítica hegemônica (embora também isso se faça, e muito bem, seguindo um percurso necessário), mas é, sobretudo, “criar uma condição de legibilidade” para essa postura: incorporando-a, dramatizando-a. Um drama em tese, com características particulares; que não implica despersonalização - há uma presença autoral que se imprime nitidamente no texto - ou simulação, mas o que talvez se possa chamar de hospitalidade: o anfitrião recebe e acolhe seus hóspedes, atento e respeitoso a suas irredutíveis diferenças, seus perfis críticos bem assinalados, seus modos de ler, que vão, no entanto, se acomodar nesse novo espaço também de pensamento e de leitura.

Há um ler junto a Barthes, que vai se tornando como Barthes. Não por artifícios que muito provavelmente resultariam ineficazes, não por um pastiche ou truque equivalente, mas por uma cuidadosa investigação que passa pelo estudo da biografia de Barthes (de muitas biografias de Barthes) e dos caminhos de sua atividade crítica. Que não se limita a referendá-la, mas a lê também criticamente, ousando, por justiça, ressalvas elegantes: uma defesa de Picard, até de Sainte Beuve. Mas que depois lealmente busca e encontra a justificativa para a oposição que Barthes faz a eles; legítima porque serve à construção de uma percepção da literatura que de pé dialoga com a História. Mas dizíamos: um ler como Barthes a que se chega sobretudo por uma investigação de estratégias, de pontos de interesse, de modos de abordagem, colhidos numa leitura atentíssima de S/Z, que acompanha algo voyeuristicamente o dobrar-se de Barthes sobre o “Sarrasine” de Balzac, gesto reconstituído (como uma cena é reconstituída) na tese, e acrescentado, por um crítico coadjuvante (ou principal?) que é testemunha amorosa e interessada, e não se pode furtar a seguir com reflexões, a aprofundá-las, a expandi-las criativamente.

Se Barthes opera a leitura por corte e montagem, por uma reconstrução algo cirúrgica, plástica, do conto de Balzac em S/Z, Marlon Augusto amplifica esses intervalos e essas articulações. Assim se criam deslocamentos (barthesianos) no sentido da trama do conto: o mistério a desvendar não é afinal a origem de uma família, mas a de uma voz, porque a família fala muitas línguas - e deveria haver “tantas linguagens quantos fossem os desejos” (BARTHES, 1997BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1997. 96 p., p. 23). Fica claro que é de desejo que “Sarrasine” (também) trata, que S/Z trata. Assim se criam sequências de fuga como a de uma dança macabra de que participam mortos e vivos, ruínas e ninfas, encerrada por uma frase-arabesco que Baudelaire certamente reputaria passo de dança: “As formas que flutuam e a geometria morta do velho.” (BARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 94). Um salto de leitura, que faz a leitura; é impossível não levantar os olhos da página aqui.

Há um ler como Didi-Huberman que é reconhecer que estruturas (mesmo quando já se aprendeu com Barthes que elas devem estar sempre em estruturação) desmoronam, e permitir isso. O princípio crítico se faz procedimento de organização de tese, ou vice-versa. Quando o espelhamento dos capítulos dedicados a cada teórico se mostra impossível, quando se escreve sobre isso, essa diferença se torna pista de leitura. Haverá outros mecanismos para criar relações entre os autores que se busca aproximar, mas sem esforços excessivos, redutores ou falseadores. A articulação pode não estar neles propriamente, e sim num terceiro, quarto termo. Como as ilustrações de Picasso para a ficção de Balzac, que, dispostas na tese, não ilustram nada: nem o conto, nem a argumentação de leitura; mas que, lidas (muito bem lidas), promovem pequenas explosões, sugerem outras referências, expandem a prancha e o nosso olhar sobre uma mesa de trabalho mais cheia e tumultuosa do que se afigura nessa tese bem montada.

Uma dessas ilustrações de Picasso se destaca como imagem especular da tese: prancha “fotografada”. “Painter and model knitting from Le Chef-d’oeuvre inconnu2 2 https://www.moma.org/collection/works/29304 mostra um pintor cativado pela modelo: mulher que tece, que

parece tecer o próprio tempo da espera. Ela é a rendeira de Vermeer, a Penélope de Homero. Ela se mantém ocupada com a costura: a costura parece ser alimentada pelos fios do seu próprio cabelo - sempre em movimento. Mas o pintor também costura: as linhas que atravessam o quadro também nos dizem sobre uma costura em construção. (BARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 108).

Na tela do pintor, volumes geométricos de uma estética cubista sugerem um abraço, talvez arquejante, como Marlon Augusto descreve o gesto da crítica para com o texto literário, mas os volumes que aí vão surgindo, interpenetrando-se, entrecortando-se, costurando-se por retas que seguem para o infinito passam bem a figurar a paisagem da tese: uma coleção de objetos dispersos postos em relação, um corpo de dilaceramentos e cicatrizes. É por esse jogo de formas: dos blocos de sentido às feridas que os conformam, ou deformam, que se faz a passagem (pelo menos a mais explícita) de Barthes a Didi-Huberman.

A leitura ao modo Didi-Huberman exige um pacto diverso, como se o próprio enredo dessa aventura crítica bloqueasse qualquer linearidade, qualquer totalização, em favor da abertura de sentido que se estrutura no sintoma. No conto de Balzac que Didi-Huberman elege, e evidentemente no modo como o lê, importa menos a sequência das ações do que a concentração de sentidos numa cena, numa imagem, num gesto, muitas vezes acessórios ou insignificantes: rostos que ruborizam, alfinetes, um pé, um pano. Como importam menos as relações alinhavadas pela ficção do que uma outra, não fantástica, mas especulativa, que advém do debruçamento crítico, e que Marlon Augusto revela: no pintor Frenhofer, Didi-Huberman encontra um duplo seu. O teórico da arte (que Didi-Huberman ainda viria a ser, em obras posteriores a A pintura encarnadaDIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada: seguido de A Obra-Prima Desconhecida, de Honoré de Balzac. São Paulo: Editora da Unifesp, 2012. 264 p.) se reconhece no esforço do pintor ficctício de devolver movimento às imagens e de concebê-las não como superfícies, mas como formas dotadas de uma “virtude intersticial” (DIDI-HUBERMAN apudBARBOSA, 2021BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., p. 128): assim os corpos pintados, assim as telas de pintura: porosos, propícios a dilaceramentos e passagens. Objetos instáveis. Uma qualidade que articula em complementariedade o corpo da pintura de Frenhofer e o corpo da narrativa de Balzac, nota Marlon Augusto, e também o próprio pensamento de Didi-Huberman, constantemente em busca de imagens que lhe sirvam de alegoria do seu fazer: incorporando conceitos, dramatizando-os, rasgando-os em forma aberta.

A tese de Marlon Augusto é, mais do que um exame dos gestos críticos de Barthes e de Didi-Huberman, um aprendizado amoroso dessas modalidades críticas em desvio e, a partir daí - desse lugar de um conhecimento que se dá por intimidade adquirida -, uma exposição desses modos de ler que põem a própria crítica em questão, ao repensar sua relação com a literatura, consigo mesma e com o poder. Que isso se faça, sobretudo, pela forma da tese, num desvio da forma tese, rasgada como produto encerrado de um saber (que se recusa) e deixando entrever as camadas de sua construção, os gestos que a conduzem, o seu trabalho de forma instável, é um de seus maiores méritos. Mais: é a garantia da compreensão de um objeto de estudo que não se deixa fixar, mas que se pode contemplar na rede de relações que uma mesa, uma prancha, um atlas suportam.

Referências:

  • BARBOSA, Marlon Augusto. Desvios na Crítica: Roland Barthes e Georges Didi-Huberman leitores de Honoré de Balzac. 2021. Tese. (Doutorado em Ciência da Literatura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
  • BARTHES, Roland. Aula Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1997. 96 p.
  • CALVINO, Italo. O Castelo dos destinos cruzados Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 160 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. 264 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Ao passo ligeiro da serva: saber das imagens, saber excêntrico. Tradução de R.C. Botelho e R.P. Cabral. Lisboa: KKYM, 2011. 56 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada: seguido de A Obra-Prima Desconhecida, de Honoré de Balzac. São Paulo: Editora da Unifesp, 2012. 264 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Pensar debruçado Tradução de Vanessa Brito. Lisboa: KKYM , 2015. 28 p. E-book
  • PONGE, Francis. De la nature morte et de Chardin. In: PONGE, Francis. L’Atelier contemporain Paris: Gallimard, 1977. p. 228-236
  • 1
    “[...] uma natureza-morta qualquer é uma paisagem metafísica. [...] Um arranjo de coisas qualquer, digo, num fragmento de espaço qualquer, // E não apenas a disposição das entranhas das aves sagradas, aquela das cartas abertas e depois estendidas sobre a mesa, aquela da borra de café, aquela dos dados quando acabam de ser lançados. // Os grandes sinais não estão apenas nos céus.” (Tradução minha)
  • 2
    https://www.moma.org/collection/works/29304
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com