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Vidas secas: trabalho, terra e migração num “livrinho sem paisagens”

Vidas secas: work, land and migration in a “book without landscapes”

Resumo

Leitura do romance Vidas secas de Graciliano Ramos, na qual se destacam questões relativas à paisagem da seca, à exploração do trabalho, à propriedade da terra e à migração.

Palavras-chave:
Vidas secas; seca; trabalho; terra; migração

Abstract

Reading of the novel Vidas secas by Graciliano Ramos, which highlights issues related to the landscape of drought, the exploitation of labor, land ownership and migration.

Keywords:
Vidas secas; drought; labor; land; migration

Résumé

Lecture du roman Vidas secas de Graciliano Ramos, qui met en lumière les problèmes liés au paysage de la sécheresse, à l’exploitation des travailleurs, à la propriété foncière et à la migration.

Mots-clés:
Vidas secas; sécheresse; travail; terre; migration

À Doutora Silvia Jardim,

em agradecimento.

O primeiro parágrafo do primeiro capítulo de Vidas secas expõe vigorosamente a paisagem da seca e arrasta o leitor para dentro dela, colocando-o diante de personagens que lutam contra a fome, o cansaço, e estão submetidas a condições naturais as mais ásperas, implacáveis. Trata-se do único capítulo do romance que nos franqueia o fenômeno da seca e suas inclemências. Sublinhe-se que são inextricáveis, já nesse início, natureza e sofrimento humano, hostilidade do meio ambiente e condição humana reduzida a possibilidades mínimas. Como o meio físico não interessa senão em face dos problemas do homem, Graciliano Ramos não deixou de assinalar a inexistência do foco exclusivo nas paisagens, que as tornaria irrelevantes, ao escrever a José Condé a respeito de Vidas secas: “Fiz um livrinho sem paisagens” (apudMORAES, 1992, p. 163MORAES, Denis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.). Na verdade, já em suas primeiras palavras, o narrador descortina a paisagem, ou seja, o cenário da seca, mas ela não se mostra senão impregnada de sentidos e sentimentos humanos, aos quais não escapa nem o menor dos elementos que a compõem. E é essa impregnação que torna impressiva a paisagem, sem o que esta não aparece na narrativa. Vejamos mais de perto.

Na primeira frase há descrição sumária da paisagem: planície na qual aparecem juazeiros. Já nesse início há referência a duas cores. Primeiramente o narrador menciona certa tonalidade avermelhada da planície, o que remete ao domínio da seca, à desesperança. Em seguida, anota que na planície “os juazeiros alargavam duas manchas verdes”, alvo dos retirantes em busca de algum refrigério. Ao longo do capítulo inicial, intitulado “Mudança”, outras menções cromáticas aparecerão, como recursos de descrição objetiva do espaço, mas sugerindo também liames entre cores e inclemências da seca ou, em outro polo, entre cores e alívios da natureza. Em face de tais correlações significativas, emergem anseios, apreensões, esperanças e medos dos viventes.

Se o parágrafo de abertura do romance, desde a frase inicial até a última palavra, coloca o leitor em plena paisagem da seca, esta não é descrita simplesmente. O narrador não cuida apenas de destacar as imagens de uma natureza sob a ação da estiagem, mas de imbricar rigorosamente a penúria, a água e a vegetação escassas, o conjunto de efeitos naturais da seca, enfim, no sofrimento da família de retirantes, e nos seus anseios de minorar a impiedade das condições que se lhe impõem. Assim, ao caminharem todo o dia naquelas paragens inóspitas, “estavam cansados e famintos”. Sua caminhada progredira bem porque “haviam repousado bastante na areia do rio seco”. “Procuravam uma sombra” há horas. Longinquamente apareceu a “folhagem dos juazeiros”, que lhes daria o que procuravam, “através dos galhos pelados da catinga seca”. E “[a]rrastaram-se para lá, devagar (...)” (RAMOS, 2003, p. 9RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.) - a forma verbal e o advérbio de modo por mim grifados não deixam dúvida quanto à situação de limite físico das forças e, não obstante, à necessidade de continuar a marcha para lugar menos impiedoso.

A aflição de sertanejos exige do narrador providências que não se firmam inteiramente no registro objetivo na seguinte passagem: “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (RAMOS, 2003, p. 9RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A sequência das formas verbais, que leva ao sumiço, confere aos juazeiros mobilidade não compatível, em parte ao menos, com a objetividade expositiva, como se fossem uma espécie de miragem para as personagens. Cada uma das ações da vegetação parece corresponder a ansiedades e tormentos de sinha Vitória, de Fabiano e dos meninos, movidos por urgências pessoais excruciantes. Sob o acicate das necessidades, as angústias das personagens como que se projetam no ambiente, conferindo ao refúgio desejado movimentos que, ainda que possam ser sugeridos por maior ou menor visibilidade existente entre trechos, como realidade objetiva (a distância que dificulta a visão, há referência a certa ladeira), são também, provavelmente, projeções subjetivas dos retirantes no espaço da seca1 1 A sustentar esta última hipótese, talvez caiba citar outra passagem no mesmo capítulo em que sinha Vitória aponta os juazeiros que provavelmente apenas ela veja: “Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis”. (Cf. RAMOS, 2003, p. 11). .

Como vemos e ainda veremos, toda referência ao meio físico ou à sua descrição é indissociável dos padecimentos e anseios dos miseráveis. Portanto, nesse capítulo inicial, aquele em que as personagens estão submetidas aos rigores da seca, expõem-se as relações entre ambiente natural e sofrimento de retirantes, entre natureza e drama de nordestinos miseráveis, as quais são, no fim das contas, relações entre meio físico e tragédia social do Nordeste - tragédia a que Graciliano Ramos dá destaque, no decênio de 1930, como uma das expressões máximas da situação apartada dos pobres no Brasil. Entretanto, trata-se de relações que só se compreendem pela mediação fundamental da exploração econômica bem presente em capítulos posteriores do romance, o que torna insustentável o vínculo causal entre ambiente ou fenômeno natural da seca e miséria - simplificação que impediria de compreender a contundência crítica do texto, segundo a qual a exploração do trabalho e a propriedade da terra são problemas centrais, como veremos. Assim, assinalando a crítica à espoliação do trabalhador no romance, diga-se que, no plano artístico e quanto ao vínculo de que trato, Vidas secas tem alguma afinidade com certa tradição historiográfica brasileira, que se forma, segundo a historiadora Ângela de Castro Gomes, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX; tradição que começava a tratar o “espaço geográfico” como algo que não era simplesmente “natural”, mas que tinha de ser visto também como uma dimensão integrante do social (GOMES, 2001, p. 29-44GOMES, Angela de Castro. Gilberto Freyre e Oliveira Lima: Casa Grande e Senzala e o contexto historiográfico do início do século XX. Revista História (São Paulo). vol. 20, 2001, p. 29-44.).

Os parágrafos seguintes dão sequência a descrições do ambiente e registros de sentimentos ou reações das personagens a circunstâncias adversas ao extremo. Trata-se de passagens cuja chave está no amálgama entre forças, elementos da natureza e padecimentos incontornáveis de seres humanos submetidos a condições nas quais avulta a morte. Justamente a morte constitui o motivo central daquelas passagens. O menino mais velho, exaurido, não consegue mais caminhar, e Fabiano quer forçá-lo a continuar a marcha, dirigindo-lhe palavras duras, fustigando-o com a faca, dando-lhe algumas pancadas. Em seguida, espia os arredores. Ele vê o que nos descreve o narrador: a paisagem da seca com restos mortais, urubus e animais quase mortos. No cenário sob o domínio da morte, as variações cromáticas são agora o verde da catinga, “um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”, e o negro dos urubus em volta de “bichos moribundos”. Nesse lugar, o vaqueiro sente desejo de matar o filho que se recusa a prosseguir. Sob o cerco da desgraça, a seca aparece-lhe “como um fato necessário”, inevitável, uma espécie de destino devido ao qual lhe cabe o imperativo da marcha, cujo fim ignora, entretanto: “(...) o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde”. Se a criança tornava-se um obstáculo a mais, ainda que não fosse culpada de nada, talvez devesse ser eliminada. A brutalidade do intento está bem ajustada à necessidade de “responsabilizar alguém pela sua desgraça”, que se volta contra “esse obstáculo miúdo [que] não era culpado”, corolário, portanto, da impotência real diante da adversidade. Esta, que se impõe com a força de um acontecimento necessário, fustiga e torna o coração de Fabiano “grosso” naquele momento.

De novo a geografia da seca descortina-se, e o narrador, fiel a seu procedimento, reitera o recurso de que se vale desde o parágrafo de abertura, como vimos: a descrição da terra não se dissocia da sofrida “mudança” da família sertaneja ora pelos “caminhos, cheios de espinho e seixos”, ora pela “lama seca e rachada que escaldava os pés”. As desgraças simultâneas - sentir-se submetido à fatalidade, experiência medonha da fome, esgotamento das forças, suplícios do percurso em ambiente hostil - levam à ideia de abandonar o filho à morte no descampado, sintoma de embrutecimento do sertanejo sob o peso de tais circunstâncias. De tão impiedosa, a cogitação deixa Fabiano irresoluto. Em consonância com aquele cenário de morte, com urubus e ossadas nos quais pensa o vaqueiro ao examinar os arredores, o menino exaurido estava “frio como um defunto” (RAMOS, Graciliano, 2003, p.10RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.)2 2 Em texto publicado no jornal Diário de Notícias em 14/08/1938, ao tratar da paisagem em Vidas secas, Rubem Braga afirmou que, para um sertanejo como Fabiano, a “paisagem é uma questão de vida ou de morte”. (Cf. BRAGA, Rubem, 2001, p. 127). . Afinal, o pensamento impiedoso não se converte em ato, e a impossibilidade de perpetrá-lo dá a medida do inaceitável ou do que há de irredutível na condição humana; em suma, do que é necessário salvaguardar, entre seres humanos, em face do risco desumanizador presente nas ações brutais: “Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato” (RAMOS, 2003, p. 10-11RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

Creio que os trechos comentados são suficientes para expor procedimento narrativo cuja recorrência em Vidas secas, e não apenas nos exemplos citados, elucida afirmação já referida de Graciliano sobre o “livrinho sem paisagens”. No capítulo “Mudança”, anoto ainda outras pequenas passagens nas quais a tônica está no nexo entre a natureza e a experiência dos viventes, com tudo o que nesta há de sacrifício, temor e confiança: o reaparecimento dos juazeiros impõe a superação das dificuldades, a necessidade de sobrepujar os martírios da jornada: “As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos” (RAMOS, p. 12RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.); a apreensão diante do que poderia não passar de um fugidio sinal de mudança climática: “Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, (...) temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida por aquele azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente” (RAMOS, 2003, p. 13RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.); a esperança de chuva e o sonho, enfim, de reconstrução da vida estreitamente vinculada a condições climáticas que transformassem o cenário da seca: “Certamente ia chover. (...) A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. (...) As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde” (RAMOS, 2003, p. 15RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

O final do primeiro capítulo está quase inteiramente centrado em cogitações de Fabiano, nas quais é grande a parte que cabe ao porvir entrevisto/desejado - e o tempo verbal predominante, o futuro do pretérito, reitera, condicionadas à chuva, as esperanças acalentadas pelo vaqueiro acerca do futuro. Assinale-se o contraste entre a narração da caminhada, que prodigaliza, não obstante sua sobriedade, o martírio, o quase esgotamento de forças naquela jornada e a morte, e os parágrafos finais do capítulo, a partir do trecho em que Fabiano se afasta, desce a ladeira para buscar água. Sucedem-se passagens nas quais a palavra do narrador ajusta-se ao íntimo do vaqueiro, agora inspirado por sentimentos que o impulsionam a viver e a crer na vida futura: “(...) uma alegria doida enchia o coração de Fabiano.”; “Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras (...); “Eram todos felizes”; “A cara murcha de sinha Vitória remoçaria (...)”; “A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer o dono daquele mundo” (RAMOS, 2003, p. 15-16RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.)3 3 Comentando esse “paraíso possível dos retirantes de Vidas secas”, Alfredo Bosi observa que o narrador apresenta movimento duplo, que é a chave do realismo crítico de Graciliano. Segundo o crítico, de um lado, o narrador se aproxima da “mente do sertanejo”, cujos desejos são expressos por meio do discurso indireto livre; de outro, distancia-se em relação à consciência da personagem, pelo uso do modo condicional, expresso pelo futuro do pretérito. Assim, trata-se de procedimento que dá expressão ao sonho da personagem sem deixar de submetê-lo à dúvida do narrador. (Cf.BOSI, 2003, p. 20-21). Faço apenas um acréscimo: assim como o narrador submete o sonho à incerteza, o exercício da dúvida não é raro em Fabiano. Pelo contrário, ele frequentemente duvida. E no capítulo seguinte do romance, como veremos, consciente das limitações de sua situação, a dúvida emerge e resiste a seus projetos de futuro. . O desejo de mudança dá a esta palavra vigência subjetiva, internalizada nos anseios por uma vida reconstruída, para além do significado ostensivo do título do capítulo, deslocamento compulsório de flagelados. Além da referência à chuva, índice de crença em mudança climática favorável, as perspectivas de trabalho, acalentadas pela personagem, constituem o outro fator decisivo de otimismo quanto ao futuro. A registrar que as duas referências ao labor de vaqueiro, nos trechos de que trato, não deixam dúvida de que sua força de trabalho, em sinergia com a natureza transfigurada pelo desejado fim da estiagem, revigoraria as coisas, tornaria tudo estável, levaria vida à “fazenda morta”. Mas é preciso dizer que a segunda referência não apenas reforça a primeira. Na verdade, em seu entusiasmo momentâneo e desmedido, a personagem salta imaginariamente da condição de flagelado à de vaqueiro, e desta à de alguém com autonomia, que teria o controle de seu mundo, “para bem dizer o dono daquele mundo”. Se tais antecipações do futuro infundem-lhe ânimo, a cota de ilusão de que se alimentam não custará a aparecer, como se verá no capítulo seguinte, cujo título é “Fabiano”. Contrariando o entendimento apressado e simplificador de Vidas secas como “romance desmontável”, cujas partes poderiam ser arranjadas majoritariamente de modo aleatório, o capítulo “Fabiano” dá sequência coerente, estruturalmente necessária, ao final do primeiro4 4 Em seu estudo sobre o romance de 30, Luís Bueno analisou cuidadosamente a estrutura de Vidas secas para demonstrar que há “um ritmo geral da narrativa que nos deixa uma forte impressão de unidade”. Ainda que não se possa falar propriamente da existência de “uma contiguidade entre os capítulos, há uma continuidade que garante a unidade do romance (...)”. Mais adiante o crítico afirma que “Vidas secas é um romance cuidadosamente montado, a partir de peças fabricadas com perfeição. (...) essas peças compõem uma arquitetura tão precisa que qualquer mudança no arranjo produzirá alguma coisa que não é Vidas secas. Portanto, não é possível considerá-lo desmontável (...)”. (Cf. BUENO, 2006, p. 649 e 658). .

No segundo capítulo, informa-nos o narrador que o vaqueiro e sua família possuem agora uma casa, não mais se encontram na condição de retirantes. Entretanto, à superação momentânea da privação total segue-se a descrição de movimentos de corpo de que se vale Fabiano ao andar, os quais remontam a antepassados e chegam aos filhos. Trata-se de movimentos cuja reprodução pode ser inútil, mas traz a marca de uma herança familiar, reveladora de condições de vida. Segundo o narrador, espécie de “gesto hereditário” (RAMOS, 2003, p. 18RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Portanto, o início do capítulo traz a confirmação da mudança qualitativa quanto ao império da necessidade anterior, e logo a seguir estampa a perpetuidade de gesto que sela certo destino de arraia miúda do sertão. Aliás, essa oscilação entre outra experiência (ou que, em certo momento, pode ser tomado como tal, ou, ainda, o desejo de viver outra experiência) e a repetição como sina constitui movimento a assinalar em um capítulo que expõe, do início ao fim, situações de Fabiano, bem como suas reflexões e sentimentos.

Inicialmente, pelo uso do discurso indireto livre, faculta-se ao leitor o estado de espírito do vaqueiro, orgulhoso e satisfeito com a superação de dificuldades extremas. Logo o bem-estar que sente e a boa disposição de espírito exteriorizam-se na exclamação em voz alta: “- Fabiano, você é um homem (...)” (RAMOS, 2003, p. 18RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A frase seguinte, em oposição à anterior, ditada pela necessidade súbita de se corrigir e impor-se comedimento, não é exclamada, mas murmurada: “- Você é um bicho, Fabiano” (RAMOS, 2003, p. 19RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Entre as frases opostas há constatação que explica a correção pretendida. Sutilmente, outro contraste se insinua. Como ficou dito, no final do capítulo anterior o vaqueiro sonha com um futuro no qual a reconstrução da vida, após a seca e com o renascimento da fazenda, teria como uma de suas forças o trabalho a ser exercido com o desejado domínio sobre seu mundo. Já a constatação posterior segue trilha diversa, bem distante do sonho, antinômica àquelas esperanças. O narrador aproxima-se da mente do sertanejo, e este reconhece, sem atenuações e ilusões sobre futuro, suas reais condições de trabalho e de vida, das quais decorre a atitude subalterna de “cabra”, apesar de branco, diante dos “brancos”: “E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. (...) como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra” (RAMOS, 2003, p. 18RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

Não obstante a dureza da frase murmurada a respeito de si próprio, revelando consciência da extrema destituição a ponto de negar sua existência como homem, afirmada no instante anterior, a sequência da reflexão não deixa de ser algo compensatória. Nesse momento, Fabiano dá acento positivo à condição de bicho autoatribuída, na referida oposição homem-bicho, que será recorrente em esforços de autoexame da personagem. Considera-se um bicho e se sente orgulhoso por isto. Verdade que o orgulho não é infundado, pois deriva da força de sobrevivência, da capacidade de sobrepujar dificuldades que é própria dos desamparados. Foi reduzido à condição de bicho e como tal mostra sua força: “Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. - Um bicho, Fabiano” (RAMOS, 2003, p. 19RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

Nelson Pereira dos Santos, diretor da clássica adaptação cinematográfica de Vidas secas, ressaltou o tratamento da questão agrária no romance. Graciliano Ramos soube discernir os problemas de fundo, o que torna forte o questionamento que há no livro: “Vidas secas é um depoimento sobre a questão agrária da maior importância; e duradouro, porque coloca o problema da migração e o problema da terra sem dar ênfase à questão da seca”. E, em sintonia com Graciliano, Santos acrescentou ainda: “o problema do Nordeste não é o clima, mas a relação de trabalho e o regime de propriedade” (apudAVELLAR, 2007, p. 48AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.).

Bem mais recentemente, em estudo já citado, Luís Bueno apontou que, com a óbvia exceção do primeiro capítulo e apesar de as vidas serem secas, o ambiente em que se inserem e circulam as personagens não está sob a inclemência da seca. Por mais surpreendente que seja, “a maior parte do enredo se passa em tempos de fartura” (BUENO, 2006, p. 662BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.). Contrapondo-se a outras leituras que naturalizam a miséria da família ou baseiam a penúria das personagens em uma “ideia de inevitável”, Bueno afirma: “Aquelas pessoas podem até estar condenadas à miséria, mas isso, dentro do romance, não tem nada a ver com o ciclo natural da seca e da chuva” (BUENO, 2006, p. 663BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.). Portanto, o que está em primeiro plano no romance não é a fatalidade da natureza. O sofrimento não está naturalizado nos ciclos da seca e da chuva, mas as razões de sua existência devem ser buscadas principalmente em fatores de ordem social e econômica.

As observações de Santos e Bueno ajudam a entender a situação de Fabiano relativa à terra e a seu trabalho nela. A posse provisória da fazenda durou até o retorno do proprietário após o fim da seca. Aceito pelo fazendeiro, torna-se alguém que “criara raízes, estava plantado”. Como pode trabalhar e enraizar-se, qualifica-se como “medonha” a situação na qual chegara àquele lugar. Era vaqueiro “e ninguém o tiraria dali”. Ele e os outros membros da família “estavam agarrados à terra” em contraste com a errância anterior. Mas não dura a certeza consoladora de se sentir fixado no lugar, onde garante o sustento. Como não lhe cabe a propriedade da terra, torna-se absurda a ideia de sentir-se nela fixado: “Considerar-se plantado em terra alheia!”. A consciência de ser um despossuído aviva a recordação do ser errante, condição que, por incontornável, parece ser “sina”. Daí a sucessão de comparações que atestam o caráter provisório de sua existência: “andar para cima e para baixo, como judeu errante”; encontrava-se “ali de passagem, era hóspede (...) hóspede que se demorava demais”. A mais contundente das comparações, porém, é aquela que diz respeito à supressão do trabalho: “Um vagabundo empurrado pela seca” (RAMOS, 2003, p.19RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A privação de trabalho e a errância aparecem vinculadas ao fenômeno natural da seca numa frase, a qual remete à impotência de quem está entregue à própria sorte, à mercê do infortúnio. A meu ver, o registro rápido, nessa pequena frase inserida no discurso indireto do narrador, mas que é parte de parágrafo impregnado por percepções e sentimentos da personagem, alude a certo modo de ver do sertanejo. Compreende-se que, para alguém como Fabiano, experimentado nas condições extremas da seca, cujo retorno aparece-lhe como inevitável, avulte às vezes o fenômeno natural em si5 5 Na seguinte passagem do mesmo capítulo, em registro bem mais ampliado, Fabiano aflige-se ao pensar na chegada do fenômeno da seca, agente natural da devastação: “Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas - ela se avizinhando a galope, com vontade de matá-lo.” (Cf.RAMOS, p. 24, grifo meu). . Portanto, a frase expressa algo dessa experiência de sofrimento - na própria pele, por assim dizer. Por outro ângulo, há entendimento fundado no problema estrutural da propriedade. O enunciado sobre a seca está inserido em passagem que ata inequivocamente, como foi comentado, desamparo e propriedade da terra, desde a ameaça de expulsão pelo fazendeiro até o reconhecimento de que a terra, por ser alheia, veta o enraizamento.Valendo-se ora do discurso indireto ora do indireto livre, o trecho é notável pela sucessão e coexistência de juízos diferenciados acerca das situações, dos problemas. Ao transitar entre polaridades e de um discernimento a outro (enraizamento/desenraizamento; terra em propriedade de outrem/impacto imediato da volta do fenômeno natural da seca), tal passagem alia a força da explicação estrutural e o comprometimento com a experiência daquele que sofre com a seca.

Além da convicção de que não passa de bicho, reforçada em seguida, Fabiano lembra a arbitrariedade do patrão: deste recebe gritos e descomposturas mesmo com os bons resultados de seu trabalho, a respeito dos quais o vaqueiro não tem dúvida. Antípoda das esperanças que nutriu - “seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo” -, sua redução a coisa possuída, “coisa da fazenda”, não poderia ser mais amarga. Se antes ainda havia orgulho ao aceitar-se como bicho, pela capacidade de resistir, a desilusão é a tônica agora, inequívoca na consideração de que ele não passa de um “traste”. E reitera-se o caráter provisório da existência da família, o destino de seres errantes que lhes é inescapável, pois o vaqueiro, como subtrabalhador descartável, “seria despedido quando menos esperasse” (RAMOS, 2003, p. 23RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

Mas o capítulo não termina marcado por desencantamento, não univocamente. Mais uma vez, outra possibilidade de vida insinua-se: o vaqueiro quer “correr mundo, ver terras”. O propósito de lutar contra a sorte adversa não está extinto. Seus intentos cheios de energia reinstalam, prospectivamente, a consideração de si como homem: “Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. - Um homem, Fabiano” (RAMOS, 2003, p. 24RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Entretanto, a disposição meditativa não dá trégua, e ele de novo duvida de que possa ser um homem no futuro. A razão da dúvida pauta-se, uma vez mais, pela concretude de suas condições: o exercício do trabalho explorado em terra que não lhe pertence.

A nova inflexão na parte final do capítulo sobre rumos da vida e a dúvida renitente devem-se ao fato de Fabiano ser uma personagem atormentada por conflitos internos, por autoquestionamentos e questionamentos do mundo em que lhe cabe viver. Personagem frequentemente perseguida por ideias e sentimentos contraditórios6 6 Digamos que para Graciliano Ramos despossuídos como Fabiano e os outros membros da família do vaqueiro não se reduzem a seres unidimensionais, voltados apenas à sobrevivência, cuja vida interior não seja digna de registro. . Note-se que, aqui e em toda a narrativa, os dilemas interiores são rigorosamente pautados pela materialidade da existência, a do vaqueiro e a de sua família. Na citada carta a Condé, Graciliano escreveu que objetivava “auscultar a alma” do sertanejo, procurando expor suas reações espirituais ante as durezas do meio físico e a extrema injustiça (apudMORAES, 1992, p. 163MORAES, Denis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.). A inspiração materialista do vínculo buscado, que sustenta a ligação íntima entre o espiritual e a vida material com as relações de classe, é manifesta. Esse é o sentido do que o autor chamou de “pesquisa psicológica”, tarefa a que se propôs ao escrever Vidas secas. As passagens comentadas não deixam dúvida quanto à mestria da realização.

Algumas vezes referida anteriormente, a intenção de falar com sinha Vitória sobre a educação dos meninos dá remate ao capítulo. Para Fabiano, o assunto é inseparável da situação de vida sobre a qual paira, mesmo em períodos de alguma segurança, a ameaça da seca. Reitera-se no íntimo do vaqueiro a tensão entre esperança e dúvida em relação ao futuro: “Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia.” Apenas a hipótese de vida futura sem o peso “daquele perigo” poderia abrir aos meninos as vias de outros conhecimentos, ensejando talvez modos de viver não mais regrados pela rotina dos trabalhos braçais e pela conformidade ao comportamento próprio de “gente da laia deles” (RAMOS, 2003, p. 25RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A preocupação com a educação dos meninos tem fundamento prático; portanto, incide sobre exigências da vida sertaneja, cuja transformação é uma incógnita para Fabiano. Essa questão a respeito dos filhos reaparecerá no fim do livro, no momento em que a “fuga” da família exige o planejamento da vida futura; e a esperança de outra vida na cidade fará pensar na escola para os meninos, chance de torná-los diferentes dos pais.

Para demonstrar que Vidas secas é “um romance montado”, cuja unidade é sutil mas inegável, Luis Bueno identifica dois movimentos: “um movimento da escassez ou insegurança para a satisfação ou segurança e, posteriormente, o movimento oposto, da satisfação para a escassez” (BUENO, 2006, p. 650BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.). Com base em tais movimentos e propondo a divisão do romance em duas partes, cujo centro é “Inverno”, o crítico analisa as relações especulares entre os capítulos na obra, um a um: por exemplo, entre o primeiro e o último, entre o segundo e o penúltimo e assim por diante. Seu estudo da estrutura prova cabalmente a unidade da obra e explicita como insustentável a faina da desmontagem, a qual só pode ser mantida em incompatibilidade plena com o que a análise demonstra: a montagem sutil e cuidadosa do romance.

Não faço propriamente uma restrição à leitura que Bueno faz de “Fabiano”, mas reitero o que já acentuei nos comentários que fiz sobre esse capítulo. O propósito do ensaísta é o de sustentar, como ficou dito, as referidas relações especulares entre os capítulos. Ele faz isso de modo muito convincente, mas o confronto entre as partes, privilegiando o tom geral de cada uma, talvez tenha levado o crítico a não dar a atenção devida a certas nuances do segundo capítulo do livro. Assim, em confronto com o “O mundo coberto de penas”, “Fabiano” é, para ele, a parte do romance em que a família se consolida na fazenda a que chegara. Quanto ao vaqueiro, o crítico destaca a “resignação em relação ao patrão”; a superação do estado de penúria, ao menos temporariamente, o que torna possível desligar-se das preocupações com a sobrevivência imediata e voltar-se para a educação dos meninos; orgulho da superação das dificuldades; o enraizamento na terra, ainda que alheia; o esmorecimento da recordação dos sofrimentos passados; a volta para casa, que é o espaço do descanso, da tranquilidade, onde encontrará a comida. E todos esses indícios da consolidação familiar contrastam com os do penúltimo capítulo, no qual a família se prepara para deixar a fazenda, e o horizonte de desgraças já se anuncia.

Sem negar nenhum desses sinais de alguma estabilidade e confiança apontados, na leitura que faço do segundo capítulo examino, como se viu, oscilações, tensões próprias que se manifestam no íntimo de Fabiano ou são assinaladas pelo narrador, as quais derivam da situação da família. Penso que a precariedade desta, reiterada ao longo do capítulo, imponha a consideração mais detida de sua vigência naquele momento mais estável. Vejamos de novo, de modo sumário, algumas passagens do capítulo, reexaminando-as agora em face dos sinais de consolidação de Fabiano e sua gente.

Logo o narrador nos informa, com efeito, do estado de satisfação do vaqueiro, no qual as lembranças dolorosas do passado se atenuam. A personagem sente-se fortalecida, afirma que é um homem. Mesmo após corrigir-se, afirmando-se bicho, tem orgulho ao reconhecer sua resistência vigorosa às adversidades e, além disso, como consequência desse vigor, sente-se enraizado. Contudo, em seguida se entristece, a admissão de engano desfaz ilusões, e a satisfação não resiste à verificação do fato: a existência provisória de um errante. Em outro trecho, após sabermos que Fabiano preocupa-se em dar “um ensinamento aos meninos”, o narrador afirma que ele “(i)a inquieto, uma sombra no olho azulado”. Logo em seguida, outra imagem amplia a inquietude ao complementar a anterior, certamente relacionada também à preocupação com os meninos, e o narrador conjectura: “Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco” (RAMOS, 2003, p. 21RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Como vimos, no final do capítulo, esse desassossego em relação aos filhos, ao modo como devem ser educados, aparecerá, ele próprio, decisivamente vinculado à perturbação quase sempre presente com o “perigo” da estiagem. Portanto, se a educação dos meninos é “uma espécie de luxo só possível nos anos bons”, como quer Bueno (BUENO, 2006, p. 652BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.), ela não se desprende, para Fabiano, da sina daqueles que têm de enfrentar as secas enquanto as secas existirem.

Se, naquele momento, o vaqueiro tem uma casa, está contratado para trabalhar, tal situação livra a família da penúria, mas não a livra de estar “ali de passagem”. Descartáveis, “nem teriam meio de conduzir os cacarecos”. Eles “(v)iviam de trouxa arrumada” (RAMOS, 2003, p. 23RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A transitoriedade das condições, palpável nas expressões utilizadas, impõe-se e preocupa Fabiano. A memória da seca, ameaçadora, reaparece. Não há como não distinguir certa segurança momentânea, que diferencia significativamente a estada na fazenda do período anterior de escassez e da situação posterior em que a estiagem se anuncia, mas penso que tais temores e apreensões atenuam consideravelmente a estabilidade de momento. Em outra passagem de seu livro, citada antes, Luís Bueno não deixa de dizer que, apesar de a terra não ser seca, apesar da fartura na maior parte do romance, as vidas ”são secas”, ou seja, marcadas pela carência. Não é outro o sentido do que diz o narrador a certa altura do capítulo “Fabiano”, acentuando a secura daquelas vidas, mesmo quando há mais firmeza de situação: “Tudo seco em redor” (RAMOS, 2003, p. 24RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

Em relação a “Inverno”, farei algumas observações sumárias que também não corroboram inteiramente a leitura do crítico.

A posição central de “Inverno”, localizado rigorosamente no meio do livro, após os seis primeiros e antes dos seis últimos capítulos, confirma a montagem meticulosa da obra. Relações podem ser feitas entre esse capítulo central e dois outros, justamente o primeiro e o último, permitindo articular o meio com o início e com o fim do romance. “Inverno” estabelece contraponto em relação a “Mudança”. Naquele há frio, chuva torrencial, e a família está mais ou menos abrigada, protegendo-se; neste, calor, seca, e a família em marcha à procura de algum abrigo. Além disso, em “Inverno” a situação das pessoas, de maior segurança, diferencia-se marcadamente da que vemos no último, “Fuga”, quando Fabiano e sua gente têm de pôr de novo o pé na estrada.

No capítulo central, a família se junta próximo ao fogo para enfrentar “um frio medonho”. O lume fraco aquece os meninos, mas apenas em parte. O ar penetra pelas rachaduras das paredes e gretas da janela, desconforta e impede o sono. O fantasma da enchente assusta, pois poderia trazer-lhes a desgraça, o desabrigo, a vida ao deus-dará, ao menos por uns dias. Naquele inverno, “o despotismo de água” ameaça (RAMOS, 2003, p. 63-65RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A estiagem se foi, o clima mudou muito, a vida deles melhorou, mas a desproteção é patente. Ao contrário do que afirma Bueno, isso claramente importa7 7 “Eles não estão livres da desgraça, afinal de contas, a água subiu, há uma enchente. Mas nem isso importa (...)”. (Cf. BUENO, 2006, p. 654). , ao menos para sinha Vitória, que “andava amedrontada”, “suspirava”, movia “o abano com força para não ouvir o barulho do rio, que se aproximava”. Em reforço a tal estado, os enunciados seguintes não deixam dúvida, embutindo no discurso do narrador o sentimento de aflição da pobre mulher: “Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça”; “Deus protegeria a família” (RAMOS, 2003, p. 66RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Assim, mesmo nesse capítulo, que estabelece contraponto com a penúria presente em outras partes de Vidas secas, mesmo no exíguo plano doméstico da vida, a segurança coexiste com a vulnerabilidade. Ao destacar essa última, penso que não se pode afirmar que, embora haja uma enchente, “tudo é sinal de segurança, de alegria, que só é possível no espaço restrito da vida familiar” (BUENO, 2006, p. 654BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.).

Por outro lado, em “Inverno” Fabiano não deixa de estar de bom humor, contente, pois “(n)ão havia o perigo da seca imediata, que aterrorizara a família durante meses” (RAMOS, 2003, p. 65RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Como a relativa estabilidade permite, pode o sonho ser cultivado, uma vez mais, no modo condicional como antes. Agora cabe mesmo sonhar com a aquisição “de uma cama de lastro de couro”, tão desejada por sinha Vitória.

Já em capítulo anterior, “Sinha Vitória”, o narrador anotara a chegada de um “começo de prosperidade”. Eles “comiam, engordavam”. Todavia, não deixara de registrar o desamparo de quem nada possui: “se se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troços miúdos”. Ou seja, os minguados pertences são aqueles mesmos do período da seca, sobre os quais temos notícia no começo da narrativa. Entretanto, estão mais satisfeitos: “eram quase felizes” (RAMOS, 2003, p. 45RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Satisfações, esperanças manifestam-se em tempo de segurança possível, conquanto suas bases frágeis se acentuem. Os capítulos da “prosperidade”, da “segurança” estão rigorosamente pautados, a meu ver, por esse nexo problemático. Chova ou faça sol, haja penúria ou tempos mais propícios, tais passagens explicitam que aquelas vidas são marcadas pela privação, pois as estruturas mantêm-se intocadas.

Creio que já ficou claro que concordo plenamente com o entendimento segundo o qual em Vidas secas a prioridade não é dada ao fenômeno climático, natural. De outro ângulo, evidentemente não se trata de minimizar a seca e o que ela impõe às pessoas: o agravamento de seu estado de penúria. Não obstante sua ocorrência plena restringir-se apenas ao início do romance, os efeitos da estiagem sobre a família são devastadores, não por acaso reiterados, com certa minúcia, na descrição da marcha e do meio físico, como vimos no primeiro capítulo. Além disso, como as personagens não escapam da extrema pobreza de arraia miúda (sem terra, sem trabalho garantido) mesmo quando já não se encontram sob o flagelo daquelas condições, são recorrentes a memória do flagelo e o temor de seu reaparecimento. Mesmo pequena, a alteração climática aparece às vezes carregada de presságios incômodos, que fustigam. Os sentimentos são irreprimíveis, exteriorizam-se no corpo, na face de Fabiano, por exemplo, no seguinte trecho do capítulo “Sinha Vitória”: “Um mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se. Diligenciou afastar a recordação, temendo que ela virasse realidade” (RAMOS, 2003, p. 43RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Em outro momento, no capítulo “Inverno”, apenas a hipótese da seca, temida por Fabiano antes da chegada das chuvas, “ao ver a criação definhar na catinga torrada”, origina pensamentos e sentimentos contrários à família, desnorteados, nutridos por violências fantasiosas, que avivam o pesar e a humilhação: “Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhação” (RAMOS, 2003, p. 67RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Portanto, esses trechos corroboram algo já sugerido e, a meu ver, fundamental no livro: com foco nos problemas estruturais referidos, o realismo crítico de Graciliano Ramos dá a devida importância à vivência da seca pelas pessoas, salientando-lhe a dureza, a contundência que lhe é própria.

No capítulo “Contas”, a espoliação de Fabiano como trabalhador é esquadrinhada. Seja na partilha dos animais, seja no acerto das contas com o patrão, os ganhos são minguados a ponto de não haver outra conclusão possível, para ele, após receber: foi roubado. Sinha Vitória escancara a “ladroeira” ao refazer as contas. Em certo momento, a atitude do vaqueiro diante do esbulho é firme, mas fugaz, não se sustenta porque qualquer forma de protesto contra a negação de direitos não passa de insolência para o dono da terra, passível de ser punida com a expulsão da fazenda. De novo, a consciência dolorosa de ser alguém descartável (nos seus termos, apenas um “cabra”) dá-lhe a certeza da impotência. Por necessidade defensiva, a indignação se converte em pedido de desculpa, bem como a fraudulência das contas em ignorância da mulher8 8 Em nota de seu estudo sobre Memórias do cárcere, Fabio Cesar Alves considera como um dos temas centrais de Vidas secas, notadamente no capítulo “Contas”, a “relação do camponês com a (i)legalidade da ordem fundiária”, acrescentando a herança escravista aludida na passagem em que a vítima do roubo, o próprio Fabiano, não se conforma e se compara a negro sem carta de alforria. (Cf. ALVES, 2016, p. 75-76). .

Em reforço ao esbulho patronal, ele se lembra da extorsão imposta pelo governo: a recordação de tentativa de vender carne de porco que lhe pertencia e da aparição de funcionário da prefeitura a exigir de Fabiano pagamento de imposto. Ao cobrar de quem não tem nada, o governo não deixa de mostrar sua existência e seu modo de atuar para pessoas como ele. Diga-se que agentes do Estado aparecem na narrativa unicamente como promotores da opressão e da espoliação: o soldado amarelo, com toda sua violência e covardia, e o cobrador de impostos da prefeitura, que impõe ao vaqueiro imposto e multa. Experiências que reiteram a inexistência de direitos em vidas como a de Fabiano e remetem-se ao país que se modernizava, avançava nas leis de proteção ao trabalho formal e urbano, mas excluía o acesso dos trabalhadores rurais aos benefícios da legislação protetora no governo de Getúlio Vargas (Cf. SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 362SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.; OLIVEIRA, 2003, p. 25-119OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista. In: Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 25-119. ).

Na maior parte desse capítulo, a angústia da personagem domina, porque é insuportável o sentimento gerado pela certeza de ter sido logrado, extorquido. Na medida em que mais aviva sua condição de desvalido, a injustiça é intolerável. O tensionamento interno de Fabiano chega a um de seus momentos de apogeu, pois a indignação extremada tem de ser disciplinada pela submissão, dominada pela resignação aparente, imposta pela impotência efetiva. Em certa passagem, a consciência de ser vítima ultrapassa o motivo imediato do sentimento de revolta, a extorsão patronal, e divisa iniquidades em conjunto, rotinizadas na vida de um despossuído, e que juntam a seca, o capital, as estruturas de poder: “Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele” (RAMOS, 2003, p. 97RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.).

Inconformado com a espoliação, Fabiano recorda o vocabulário do logro, de que se vale o patrão: “prazos”, “juros” que justificariam o pagamento ínfimo. Com lucidez, percebe a lógica das “palavras difíceis”, o que as faz ser assim consideradas por ele: são usadas para ocultar o procedimento iníquo. Ao lembrar-se daqueles vocábulos, Fabiano medita, mais uma vez, sobre certo uso das palavras e seus objetivos, sempre em detrimento dos direitos de alguém como ele, que não as domina: “(...) sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado” (RAMOS, 2003RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 97). Como em outros momentos, ao pensar no assunto, considera de modo ambivalente a comunicação verbal, de que carece. Quanto a essa carência, principalmente seu Tomás da Bolandeira, homem de leitura, com domínio das palavras, e, em menor grau, sinha Terta, que “falava quase tão bem como as pessoas da cidade”, são os antípodas do vaqueiro. A exemplaridade de ambos, recorrente quando topa com as dificuldades próprias da escassez vocabular, dá a medida da admiração que sente e do desejo de superar suas limitações. Entretanto, homem calejado na dureza da vida naquelas paragens, alertara a seu Tomás que de nada lhe valeriam a leitura e as palavras difíceis quando a seca chegasse. Dito e feito: para Fabiano a desgraça do velho, que tudo perdera, reduzira sua competência vocabular e todo seu repertório de conhecimentos à inutilidade. Assim como o iletrado vaqueiro, o outro, lido e bem falante, ainda por cima remediado, também não escapou da miséria, o que não deixa de ser para aquele, por vezes, espécie de consolo: não ter de se lamentar por não possuir o que é apanágio deste. Por outro lado, Fabiano lamenta a sorte de seu Tomás, reitera a admiração por sua capacidade verbal.

Como ficou dito, no capítulo “Contas” a ambivalência também se desvela. Inicialmente o caráter especioso de certo uso das palavras, instrumentalizadas para exploração máxima de homens sem qualquer amparo, como o vaqueiro. Em face das relações de poder, as palavras são inquietantes para quem não está a salvo do propósito iníquo que elas encobrem: “Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras” (RAMOS, 2003, p. 98RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Mas as palavras também eram bonitas, e o domínio delas poderia armá-lo para superar sujeições da condição de “infeliz que não tinha onde cair morto” (RAMOS, 2003, p. 98RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Com efeito, pensar sobre a linguagem verbal só lhe é possível à luz do conhecimento empírico; não há disjuntiva possível, para Fabiano, entre palavras e realidades vividas.

No penúltimo capítulo, “O mundo coberto de penas”, a inquietação de sinha Vitória e Fabiano é grande em razão dos sinais de que a seca voltaria: o sol secava os poços e o bebedouro cobria-se de aves chamadas arribações. O desassossego, num crescendo, levará a família a deixar a fazenda, retomar destino de errantes. São momentos cruciais e angustiantes, nos quais às agruras do presente somam-se recordações insuportáveis (a humilhação causada pelo soldado amarelo, as contas do patrão, o sacrifício de Baleia) que toldam o espírito de Fabiano. A recorrência obsessiva de tais lembranças veta o apego sentimental ao passado e aos lugares, sempre marcados, para o vaqueiro, pelas experiências de vida nas quais se deram agravos e pesares. O coração volta a ser “grosso” como em “Mudança”, e lhe aparece como incontornável a ação de “abandonar aqueles lugares amaldiçoados” (RAMOS, 2003, p. 115-116RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Como não resta à família senão fugir, “Fuga” é o título do capítulo derradeiro, sobre o qual há, até hoje, divergências de monta. Com finca-pé nos sonhos das personagens, alguns intérpretes veem otimismo no final de Vidas secas, enquanto outros salientam a postura distanciada do narrador, devido à qual tais sonhos não se sustentam e a negatividade prevalece. Para encerrar, direi algumas palavras sobre esse capítulo, como o interpreto e me posiciono quanto às dissensões.

A princípio, a incerteza domina Fabiano: ele não quer abandonar a fazenda, mas a realidade, desfavorável ao extremo, impõe-se, convertida em “cemitério”. Resta-lhe procurar “um lugar menos seco para enterrar-se” (RAMOS, 2003, p. 118RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). O pequeno trecho, entre outros, remete-se à paisagem sob o domínio da morte, tal qual a do primeiro capítulo. A certa altura, sinha Vitória passa a conversar com o marido “por monossílabos”, entabulam “uma conversa longa e entrecortada, cheia de mal-entendidos e repetições” (RAMOS, 2003, p. 120-121RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). As referências que faz o narrador aos percalços comunicativos salientam, outra vez, a carência da comunicação verbal da família. Não obstante toda a dificuldade, os esforços do casal para conversar são mais frequentes nesse momento crucial de decisão sobre o futuro do que em qualquer outro momento, como alguns intérpretes de Vidas secas apontaram. Aos poucos, o diálogo torna-se cada vez mais nítido, sugerindo-se mesmo certos traços da fala - “a própria entoação, os modismos peculiares da fala” - nos trechos em discurso indireto livre, como notou Adriano da Gama Cury (apudMACHADO, 2003, p. 194MACHADO, Duda. De volta a Vidas secas (ao encontro de Fabiano)”Revista USP, São Paulo, n. 58, junho/agosto 2003, p. 182-199.). O narrador ressalta também, em discurso indireto, como referido acima, a conversa do casal. E nesse diálogo quero frisar um ponto importante, a meu ver, para a compreensão do final do romance.

Eles têm de decidir sobre o futuro, mas a pergunta que sinha Vitória faz a Fabiano diz respeito ao passado: “poderiam voltar a ser o que já tinham sido?” (RAMOS, 2003, p. 120RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Logo se esclarece o sentido da pergunta, ou seja, a possibilidade de “tornarem a viver como tinham vivido”, terem de novo uma vida como a que tiveram “numa casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás”. Eles concluem que isso não lhes convinha, porque a seca continuaria a assustá-los. Há reconhecimento de que não devem repetir a experiência de vida tão conhecida, iludidos por segurança frágil, breve interregno, à espreita da miséria (RAMOS, 2003, p. 121RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). A conversa continua, e o consenso entre marido e mulher não tarda: era preciso dar um basta naquela vida de desgraçados, que os assemelhava a bichos. Embora a possibilidade de deixar de ser vaqueiro e a inviabilidade de continuar a viver na fazenda abandonada, onde tudo fenece, gerem tensões e dúvidas em Fabiano, como sempre, o poder afugentador das recordações - de novo, o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia - logo predomina no espírito da personagem, tornando o passado intolerável.

Penso ser necessário ressaltar o propósito das personagens de não voltarem a viver como antes, ainda que não neguem período de alguma proteção e estabilidade. Essa recusa do já vivido não foi contemplada por certa leitura do final de Vidas secas, consagrada por grandes críticos, a que encarece a sugestão de “uma fatalidade” (Álvaro Lins), de certo “retorno perpétuo” ou do “círculo sem saída” (Antonio Candido). Segundo os críticos citados, o último capítulo remete-se ao primeiro, e o entrelaçamento de fim e começo sinalizaria a errância imposta pela seca (LINS, 2000LINS, Álvaro. “Valores e misérias das Vidas secas” (posfácio). In: RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 80ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 127-155. , p. 153), a vida daquela gente em círculo fechado (CANDIDO, 1992, p. 47 e 107CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: Ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.). Trata-se de interpretação que não pode ser descartada. Ao contrário, como já veremos, porque a negatividade do desfecho de Vidas secas dá fundamento ao que é decisivo para os críticos: o bloqueio a mudanças efetivas, substantivas, para a família. Entretanto, Lins e Candido não consideram o intento comum de sinha Vitória e seu marido: eles não querem repetir a vida de sempre. Tal propósito os impulsiona para “uma terra distante”, “muito longe”, onde poderiam fixar-se, “adotariam costumes diferentes”; iriam para uma cidade, onde “os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles”, “alcançariam uma terra desconhecida” (RAMOS, 2003, p. 123 e 127RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Ora, os viventes buscam justamente uma saída, escapar do círculo perverso - objetivo que, por si só, abre possibilidades que não existiam no primeiro capítulo. Nem por isso pode-se afirmar que se trata de encerramento otimista. No final do livro, a alusão à cidade grande, a que se vincula a esperança do casal de sertanejos, acena com a ampliação de horizontes, ao sonho de ir além da existência miserável de sempre. Por outro lado, a esperança é tênue, pois seu fundamento é muito frágil. Afinal, se Fabiano “estava contente e acreditava nessa terra”, para onde rumavam, era “porque não sabia como ela era nem onde era” (RAMOS, 2003, p. 127RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). Na verdade, as palavras são o principal sustentáculo das esperanças, pois o que diz sinha Vitória sobre essa terra ignota encantava o vaqueiro. Sobre isso o narrador insiste no parágrafo final, o que não deixa de ser inopinado: “As palavras de sinha Vitória encantavam-no. (...) Repetia docilmente as palavras de sinha Vitória, as palavras que sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele” (RAMOS, 2003, p. 127RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). No romance da atrofia da palavra, uma das marcas do estado de destituição a que estão submetidos os viventes, as palavras são decisivas naquele momento de necessidade da conversa sobre o futuro. Entretanto, circunscritas a palavras, as esperanças têm limitação patente.

Sair de um ciclo ligado à natureza, com suas estiagens e chuvas, para o “ciclo maior do capital”, ao ir para o Sul, migrar do sertão para uma grande cidade e tornar-se lá, na melhor das hipóteses, mão de obra barata, esta é a trajetória de despossuídos como Fabiano e sua família nas condições brasileiras, posta pelo final do romance, como bem observou Alfredo Bosi. O crítico anota ainda que, nas últimas linhas de Vidas secas, a cidade seria cativeiro, onde desvalidos do sertão, novo proletariado, ficariam presos (BOSI, 2003, p. 22-23BOSI, Alfredo. “Céu, inferno”. In:Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 19-50.).

Por um lado, “[a]o invés de desenhar um ciclo fechado”, o encerramento do romance “ensaia um movimento para além do ciclo de sucessivas secas” (BUENO, 2006, p. 663BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.), animado pelo sonho de sertanejos, no qual vislumbram ilusoriamente a cidade grande como espaço de integração possível para gente como eles. Por outro lado, bem vistas as coisas pelo narrador, a dureza das palavras finais em Vidas secas não dá curso a ilusões. Pelo contrário, a problemática da migração interna, a ampliar-se no fim do decênio de 1930, favorecendo a exploração dos deserdados, sobretudo nordestinos, exige tratamento sem atenuações. Assim, em contraste brusco e abrupto com o sonho, marido e mulher iriam acabar-se “como uns cachorros, inúteis”. A cidade como prisão reitera certa experiência de cativeiro já vivida por Fabiano. A manutenção da miséria só poderia reproduzir a migração dos que sofrem: “E o sertão continuaria a mandar gente para lá” (RAMOS, 2003, p. 128RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.). E a frase final reduz as diferenças e individualidades das pessoas da família à condição única de “homens fortes, brutos”, a qual basta para convertê-los em força de trabalho superexplorada.

O final de Vidas secas constitui um dos pontos culminantes do realismo crítico de Graciliano Ramos. Sua força se mantém e dialoga com momentos altos da reflexão sobre o Nordeste. Cada um dos viventes da família de sinha Vitória é um “nordesterrado”, termo usado por Francisco de Oliveira, quase 40 anos depois da publicação de Vidas secas, no livro Elegia para uma re(li)gião, de 1977, em que interpreta a história econômica, social e política do Nordeste e do Brasil, abarcando a experiência da Sudene (OLIVEIRA, 1981, p. 19OLIVEIRA, Francisco. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste. Planejamento e conflito de classes. 3a. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. ). Ainda mais recentemente, com base em estudo que, ao apontar a permanência do Nordeste como a região mais pobre do país, frisa o forte componente regional da pobreza brasileira, André Singer ressalta o que Vidas secas expôs, no final dos anos 30, com força artística inigualável: a urgência de nossa “questão setentrional”, na qual há centralidade do subproletariado brasileiro, sem lugar no mundo do trabalho formal em regime capitalista (SINGER, André, 2012SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 44). A despeito das transformações do país nas várias décadas que nos separam do decênio de 1930, não obstante o combate à miséria e a dinamização econômica em governos recentes (Cf. SINGER, 2012, p. 9-49SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), tal questão se mantém a desafiar todo e qualquer empenho consistente para que o Brasil deixe para trás o que persiste em ser, segundo a definição lapidar de Eric Hobsbawm: “um monumento à negligência social” (HOBSBAWM, 1995, p. 555HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. 2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.).

Referências

  • ALVES, Fabio Cesar. Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileira São Paulo: Editora 34, 2016.
  • AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
  • BOSI, Alfredo. “Céu, inferno”. In:Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 19-50.
  • BRAGA, Rubem. “Vidas secas”. In: Teresa revista de literatura brasileira, USP, n. 2. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 126-128.
  • BUENO, Luís. Uma história do romance de 30 São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.
  • CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: Ensaios sobre Graciliano Ramos Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • GOMES, Angela de Castro. Gilberto Freyre e Oliveira Lima: Casa Grande e Senzala e o contexto historiográfico do início do século XX. Revista História (São Paulo) vol. 20, 2001, p. 29-44.
  • HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • LINS, Álvaro. “Valores e misérias das Vidas secas” (posfácio). In: RAMOS, Graciliano. Vidas secas 80ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 127-155.
  • MACHADO, Duda. De volta a Vidas secas (ao encontro de Fabiano)”Revista USP, São Paulo, n. 58, junho/agosto 2003, p. 182-199.
  • MORAES, Denis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos Rio de Janeiro: José Olympio, 1992.
  • OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista. In: Crítica à razão dualista/O ornitorrinco São Paulo: Boitempo, 2003, p. 25-119.
  • OLIVEIRA, Francisco. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste. Planejamento e conflito de classes 3a. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
  • RAMOS, Graciliano. Vidas secas 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • 1
    A sustentar esta última hipótese, talvez caiba citar outra passagem no mesmo capítulo em que sinha Vitória aponta os juazeiros que provavelmente apenas ela veja: “Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis”. (Cf. RAMOS, 2003RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 11).
  • 2
    Em texto publicado no jornal Diário de Notícias em 14/08/1938, ao tratar da paisagem em Vidas secas, Rubem Braga afirmou que, para um sertanejo como Fabiano, a “paisagem é uma questão de vida ou de morte”. (Cf. BRAGA, Rubem, 2001BRAGA, Rubem. “Vidas secas”. In: Teresa revista de literatura brasileira, USP, n. 2. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 126-128., p. 127).
  • 3
    Comentando esse “paraíso possível dos retirantes de Vidas secas”, Alfredo Bosi observa que o narrador apresenta movimento duplo, que é a chave do realismo crítico de Graciliano. Segundo o crítico, de um lado, o narrador se aproxima da “mente do sertanejo”, cujos desejos são expressos por meio do discurso indireto livre; de outro, distancia-se em relação à consciência da personagem, pelo uso do modo condicional, expresso pelo futuro do pretérito. Assim, trata-se de procedimento que dá expressão ao sonho da personagem sem deixar de submetê-lo à dúvida do narrador. (Cf.BOSI, 2003BOSI, Alfredo. “Céu, inferno”. In:Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 19-50., p. 20-21). Faço apenas um acréscimo: assim como o narrador submete o sonho à incerteza, o exercício da dúvida não é raro em Fabiano. Pelo contrário, ele frequentemente duvida. E no capítulo seguinte do romance, como veremos, consciente das limitações de sua situação, a dúvida emerge e resiste a seus projetos de futuro.
  • 4
    Em seu estudo sobre o romance de 30, Luís Bueno analisou cuidadosamente a estrutura de Vidas secas para demonstrar que há “um ritmo geral da narrativa que nos deixa uma forte impressão de unidade”. Ainda que não se possa falar propriamente da existência de “uma contiguidade entre os capítulos, há uma continuidade que garante a unidade do romance (...)”. Mais adiante o crítico afirma que “Vidas secas é um romance cuidadosamente montado, a partir de peças fabricadas com perfeição. (...) essas peças compõem uma arquitetura tão precisa que qualquer mudança no arranjo produzirá alguma coisa que não é Vidas secas. Portanto, não é possível considerá-lo desmontável (...)”. (Cf. BUENO, 2006BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006., p. 649 e 658).
  • 5
    Na seguinte passagem do mesmo capítulo, em registro bem mais ampliado, Fabiano aflige-se ao pensar na chegada do fenômeno da seca, agente natural da devastação: “Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas - ela se avizinhando a galope, com vontade de matá-lo.” (Cf.RAMOSRAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89a. edição. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 24, grifo meu).
  • 6
    Digamos que para Graciliano Ramos despossuídos como Fabiano e os outros membros da família do vaqueiro não se reduzem a seres unidimensionais, voltados apenas à sobrevivência, cuja vida interior não seja digna de registro.
  • 7
    “Eles não estão livres da desgraça, afinal de contas, a água subiu, há uma enchente. Mas nem isso importa (...)”. (Cf. BUENO, 2006BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006., p. 654).
  • 8
    Em nota de seu estudo sobre Memórias do cárcere, Fabio Cesar Alves considera como um dos temas centrais de Vidas secas, notadamente no capítulo “Contas”, a “relação do camponês com a (i)legalidade da ordem fundiária”, acrescentando a herança escravista aludida na passagem em que a vítima do roubo, o próprio Fabiano, não se conforma e se compara a negro sem carta de alforria. (Cf. ALVES, 2016ALVES, Fabio Cesar. Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileira. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 75-76).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2019
  • Aceito
    31 Ago 2019
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