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EU ACABEI DE ESCREVER O ARTIGO – UM ESTUDO SOBRE AMBIGUIDADE EM CONSTRUÇÕES COM O VERBO ACABAR

RESUMO:

Sentenças com o verbo acabar seguido de uma oração infinitiva encabeçada pela preposição de apresentam duas leituras. Uma, que chamarei de culminativa, aponta para o menor subevento final de um evento denotado pelo verbo no infinitivo; a outra, que chamarei de leitura de recência, coloca o tempo do evento da oração infinitiva relativamente próximo, e anterior, a outro tempo tomado como referência. Neste artigo, proponho que as duas leituras envolvem estruturas e interpretações para o verbo acabar radicalmente distintas. O trabalho, assumindo o arcabouço teórico da Morfologia Distribuída, apresenta evidências de que: (1) na leitura culminativa, temos, tipicamente, controle, enquanto na leitura de recência, alçamento; (2) as orações infinitivas na leitura de recência veiculam informação temporal/aspectual não veiculada pelas infinitivas na leitura culminativa; (3) enquanto na leitura culminativa o verbo acabar introduz um subevento do evento denotado pela oração infinitiva, na leitura de recência o verbo somente veicula um conjunto de relações temporais.

PALAVRAS-CHAVE:
Alçamento; Controle; Culminação; Recência; Estrutura argumental

ABSTRACT:

Sentences including the verb acabar followed by an infinitive clause headed by the preposition de have two readings: one, which I will call culminative reading, points out to the smallest final sub-event of an event denoted by the verb of the infinitive clause; the other, which I will call recency reading, places the time of the event of the infinitive clause immediately before another time taken as reference. In this paper, I propose that the two readings involve structures and interpretations of the verb acabar radically different. This work, assuming the theoretical framework of Distributed Morphology, shows evidences that: (1) in culminative reading, we typically have control, while in the recency reading, raising; (2) the infinitive sentences in the recency reading convey temporal/aspectual information not conveyed by the infinitives in culminative reading; (3) while in culminative reading the verb acabar introduces a sub-event of the event denoted by the infinitive sentence, in the recency reading the verb only conveys a set of temporal relations.

KEYWORDS:
Raising; Control; Culmination; Recency; Argument structure

Introdução

No português brasileiro há duas leituras possíveis para a sentença (1) abaixo: uma em que o evento denotado pela oração infinitiva culmina ou atinge um ponto final natural ou contextualmente definido – chamemo-la leitura culminativa; e uma em que o evento descrito pela oração infinitiva culmina ou tem uma subdivisão sua, da qual se fala, terminando um pouco antes (numa escala de tempo relativa à situação e ao tipo de evento em jogo) de uma referência temporal estabelecida (no caso de (1), o momento em que a frase é dita) – chamemo-la leitura de recência1 1 Para marcar a leitura de recência costuma-se atribuir um acento ou ênfase ao verbo acabar. .

  • (1)

    Eu acabei de escrever o artigo.

Do ponto de vista sintático, verbos aspectuais como acabar comportam-se de modo geral como verbos de alçamento. Entretanto, há uma assimetria entre as leituras acima quanto a essa propriedade. Vejamos:

  • (2)

    Para a leitura de recência:

    1. Eu acabei de escrever o artigo./O artigo acabou de cair da escrivaninha.

    2. O artigo acabou de ser escrito por mim.

    3. A cobra acabou de fumar./A vaca acabou de ir para o brejo.

    4. *Foi (de) escrever o artigo que eu acabei.

Em (a) fica claro que o que determina a interpretação do sujeito (sua função semântica na frase) não é o predicado encabeçado pelo verbo acabar, mas o predicado mais encaixado, pois os dois sujeitos têm papéis diferentes a depender do verbo que está no infinitivo. Em (b) vemos que é possível colocar o predicado encaixado na voz passiva. Em (c) vemos que a presença do verbo acabar não desfaz a interpretação idiomática do sujeito da frase. A sentença (d) mostra que não é possível clivar a oração não-finita complemento do verbo acabar, o que é permitido quando há controle (compare-se com: é escrever o artigo que eu quero). Todas essas características apontam para o fato de que o sujeito da sentença é gerado dentro da oração infinitiva encaixada e alçado para a posição de sujeito da matriz (ver, por exemplo, DAVIES; DUBINSKY, 2004DAVIES, W. D; DUBINSKY, S. The Grammar of Raising and Control: A Course in Syntactic Argumentation. Hoboken: Blackwell Publishing, 2004.; LANDAU, 2013LANDAU, I. Control in Generative Grammar. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., entre outros, para uma discussão sobre esse ponto) – ou seja, na leitura de recência, o verbo acabar é de alçamento.

No caso da leitura culminativa, contudo, não é muito claro que algumas dessas características se preservem. Vejamos abaixo:

  • (3)

    Para a leitura culminativa:

    1. Eu acabei de escrever o artigo./?O bolo acabou de crescer.

    2. ?*O artigo acabou de ser escrito por mim.

    3. #A cobra acabou de fumar./#A vaca acabou de ir para o brejo.

    4. ??Foi (?*de) escrever o artigo (o) que eu acabei (não (??de) preparar a aula).

Em (3a) a sentença em que o sujeito não pode ser agente, por ser inanimado, é um tanto marginal em relação àquela em que o sujeito é agente – o que significa que, talvez, o verbo acabar tenha, tipicamente, relação com a interpretação temática do sujeito na leitura culminativa. De modo mais agudo, na comparação com (2b), a voz passiva em (3b) é degradada. Em (3c) a leitura idiomática do sujeito é, quando muito, bastante marginal e, em (3d), o julgamento de gramaticalidade para a clivagem, ainda que bastante degradado, melhora levemente em relação ao que encontramos em (2d) – desde que a preposição de não esteja presente.

A comparação revela que, no mínimo, existem estruturas diferentes para as duas leituras, a culminativa e a de recência, mesmo admitindo que, na leitura culminativa, também possamos ter, muito marginalmente, alçamento (ou seja, que tenhamos algum tipo de ambiguidade estrutural neste caso)2 2 Não tratarei neste artigo de uma possível classificação do verbo acabar, nas duas leituras sob análise, como verbo de reestruturação, ainda que reconheça que pelo menos algumas das características de verbos de reestruturação sejam identificáveis no verbo acabar em ambas as leituras. Sobre verbos de reestruturação, ver Cinque (2006), Fukuda (2006), Rech (2011), entre outros. .

Além dessas propriedades sintáticas, há diferenças com relação a leitura aspectual do predicado da oração infinitiva. A leitura culminativa claramente nos diz que o evento denotado pela oração infinitiva atinge seu télos, seu ponto final intrínseco, quando este existe, ou um ponto contextualmente (ou adverbialmente) definido como ponto final do evento. Ademais, para que essa leitura seja licenciada, é preciso que exista um subevento final no evento veiculado pelo predicado da oração infinitiva (BERTUCCI, 2011BERTUCCI, R. A. Uma análise semântica para verbos aspectuais em português brasileiro. 189f. 2011. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.), subevento propriamente contido no evento codificado por este predicado. Isso tem consequências quanto ao tipo de evento selecionado quando estamos considerando essa interpretação. Por exemplo, se o evento já é uma culminação (achievement, na nomenclatura de VENDLER, 1957VENDLER, Z. Verbs and Times. The Philosophical Review, Durham, v. 66, n. 2, p. 143-160, 1957.), não é possível a leitura culminativa, somente a de recência, como é o caso de (4) abaixo:

  • (4)

    Eu acabei de chegar no parque.

Ou seja, para que a leitura culminativa seja licenciada, a própria oração infinitiva encaixada tem que denotar um evento com características especiais, tipicamente deve ter as propriedades acionais de processos culminados (accomplishments, na nomenclatura de VENDLER, 1957VENDLER, Z. Verbs and Times. The Philosophical Review, Durham, v. 66, n. 2, p. 143-160, 1957.).

Contudo, no caso da leitura de recência, a situação é totalmente outra. Qualquer tipo de eventualidade é permitida como complemento do verbo acabar, com exceção de alguns estados. Vejamos:

  • (5)
    1. Eu acabei de correr na praia.

    2. Eu acabei de chegar no parque.

    3. Eu acabei de fechar a loja.

    4. Eu acabei de varrer a sala.

    5. ??Eu acabei de estar doente.

    6. ?*Eu acabei de ter/possuir uma casa.

    7. Eu acabei de tossir.

    8. Eu acabei de pular muitas vezes.

    9. Eu acabei de ver o lobo.

    10. Eu acabei de me orgulhar do meu filho.

Ou seja, enquanto o verbo acabar na leitura culminativa faz uma seleção sobre o tipo de predicado do seu complemento oracional, o verbo acabar na leitura de recência não faz seleção. Note-se que na leitura de recência sequer o ponto final intrínseco do evento (seu télos) veiculado pela oração infinitiva precisa ser atingido. Por exemplo, em (6) a seguir, o uso da construção com o verbo acabar é permitida, desde que a leitura seja de recência:

  • (6)

    Eu acabei de pintar a parede dessa casa por mais de seis horas e só agora você me avisa que a cor não era essa?

Aqui, a locução adverbial por mais de seis horas indica que o predicado pintar a parede dessa casa, que pode ser lido como um processo com culminação, não necessariamente atingiu sua culminação, a despeito de o verbo acabar estar presente. A leitura culminativa entra em franca contradição com as implicações da presença de locuções adverbiais como essa3 3 A não ser que se tratasse de uma tarefa de pintar as paredes por mais de seis horas. Nesse caso, posso dizer que acabei (terminei) a tarefa de pintar as paredes por mais de seis horas, sem contradição, e a locução por mais de seis horas parece estar, de fato, definindo um modo para o evento, não somente um intervalo temporal, que necessariamente excluiria a culminação desse evento. Veja-se que posso dizer: eu já acabei de pintar o muro por mais de seis horas conforme você me pediu. .

Duas construções distintas com o verbo acabar têm a mesma propriedade (MEDEIROS, 2018aMEDEIROS, A. B. Eu acabei escrevendo o artigo: um estudo sobre a forma acabar+gerúndio no português brasileiro. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 60, n.1, p. 7-29, 2018a.). São exemplos:

  • (7)
    1. Pedro acabou pintando o muro (por horas).

    2. Acabou que Pedro já tinha pintado o muro antes4 4 Um dos avaliadores sugere que há um valor discursivo em sentenças como (7a) que não é encontrado em sentenças como (1): em (7a), a despeito de Pedro ser o agente da pintura do muro, um conjunto de circunstâncias culminou na sua pintura, como se o levassem a fazê-lo. Ainda que eu não o considere um “valor discursivo distinto”, essa propriedade é verdadeira, mas não resulta de um contraste pragmático. Argumento, em Medeiros (2020), que se trata de uma especificação semântica particular do verbo acabar no contexto de determinados tipos de complemento oracional (CP encabeçado pela conjunção que, orações gerundivas e orações que se seguem à preposição por). .

Em (7a), a situação é semelhante à que encontramos na leitura de recência, em que o verbo acabar não exige um processo culminado; em (7b), o que quer que tenha acabado, acabou depois de eu ter pintado o muro – e não é o verbo acabar que aponta para o ponto final do evento da oração encaixada, mas o tempo verbal nela.

Outras propriedades são dignas de nota. Observem-se os exemplos abaixo:

  • (8)
    1. ?Acabou de eles preencherem o formulário.

    2. ?Acabaram eles de preencher o formulário.

    3. ??Acabou eles de preencherem o formulário.

    4. ??Acabou eles de preencher o formulário.

    5. *Acabou de eles preencher o formulário.

    6. *Acabaram de eles preencher o formulário.

O exemplo marginal (8a) tem a leitura de recência, mas não a culminativa. O exemplo também marginal (8b) é ambíguo, permitindo as duas leituras. Apesar de marginais, os dois exemplos são menos degradados do que (8c), em que não há concordância entre o verbo acabar e seu sujeito posposto, a preposição que introduz a oração encaixada vem depois do sujeito, e a oração infinitiva inclui um infinitivo flexionado concordando com o sujeito posposto, e do que (8d), em que o infinitivo da oração encaixada é impessoal e o sujeito é plural e posposto ao verbo acabar.

Uma coisa fica evidente aqui: que somente a concordância do sistema flexional seria capaz de atribuir Caso aos sujeitos quando eles estão dentro da oração encaixada, não a preposição de. Note-se que se a preposição de fosse capaz de atribuir Caso ao sujeito da oração infinitiva, esperaríamos que a sentença (9) a seguir fosse aceitável, como ocorre com certas construções do inglês em que uma preposição fica adjacente ao sujeito de uma oração que a complementa, mas não é isso que acontece5 5 O exemplo clássico do português falado no Brasil de preposição definido o caso morfológico de sujeito de oração infinitiva é a forma para mim fazer, que é muitíssimo frequente. Encontrei, no entanto, comportamento semelhante com a preposição de, em inúmeras ocorrências da sequência apesar de mim ter… na internet. Isso mostra que, pelo menos em certas construções, muitos falantes atribuem caso oblíquo ao sujeito de oração infinitiva adjacente à preposição de. Um exemplo de frase com apesar de mim ter é o seguinte: “Fiz uma cirurgia de varizes a uma semana atrás com ele, estava com medo, mas correu tudo bem, apesar de mim ter ficado nervosa. Muito bom médico…” Essa frase pode ser encontrada no seguinte endereço: https://www.doctoralia.com.br/medico/luiz+akira+okamoto-10596097/opinioes. .

  • (9)

    *Acabou de mim preencher o formulário.

Outra coisa importante diz respeito aos advérbios e sua posição em relação à preposição de. Observem-se as sentenças abaixo, com um advérbio de modo:

  • (10)
    1. Eles acabaram de pintar o muro cuidadosamente.

    2. Eles acabaram de cuidadosamente pintar o muro.

    3. Eles acabaram cuidadosamente de pintar o muro.

    4. Cuidadosamente eles acabaram de pintar o muro.

O exemplo (10a) se divide entre a leitura em que eles terminaram cuidadosamente a atividade de pintar o muro (ou seja, o que se garante é que pelo menos o subevento final da atividade de pintar o muro, o subevento que inclui a culminação do evento, foi realizado com cuidado), a leitura em que a atividade de pintar o muro cuidadosamente foi concluída por eles e a leitura em que eles recentemente pintaram o muro com cuidado. A leitura fortemente preferida em (10b) é aquela em que eles recentemente pintaram o muro cuidadosamente; mas aceita-se, bem marginalmente, a leitura em que a atividade de pintar o muro cuidadosamente foi concluída por eles. A leitura em que eles terminaram cuidadosamente a atividade de pintar o muro não é possível. O exemplo (10c) só admite a leitura em que eles terminaram cuidadosamente a atividade de pintar o muro. O exemplo (10d) é ambíguo como (10a).

O exemplo (10c) acima garante que quando um advérbio de modo vem entre o verbo acabar e a preposição de não temos alçamento. Isso é importante, pois, assim, vê-se que o verbo acabar, na leitura culminativa, tipicamente tem um componente ativo, modificável por um advérbio de modo voltado para o agente. Por outro lado, a presença do advérbio entre a preposição e a oração infinitiva (deslocado à esquerda), como encontramos em (10b), mostra, seguindo Rizzi (1997)RIZZI, L. The Fine Structure of the Left Periphery. In: HAEGEMAN, L. (org.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337., que a preposição de não é a realização do nó de finitude (Fin0) da camada CP expandida, como ocorre com di seguido de infinitivo no italiano (RIZZI, 1997RIZZI, L. The Fine Structure of the Left Periphery. In: HAEGEMAN, L. (org.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337.), mas um nó mais alto. Nas seções a seguir trataremos com mais detalhes destas questões.

Neste artigo, apresentarei uma proposta para explicar as diferenças de interpretação (leitura culminativa versus de recência) e de comportamento sintático (controle versus alçamento). As duas ideias principais que explorarei neste trabalho são as seguintes: (a) a raiz do verbo acabar, √kab-, pode ocorrer em posições diferentes na estrutura do vP que toma a oração infinitiva com seu complemento, forçando ou não a anexação do núcleo Voz a esse vP (KRATZER, 1996KRATZER, A. Severing the External Argument from its Verb. In: ROORYCK, J.; ZARING, L. (org.). Phrase Structure and the Lexicon. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1996. p. 109-137.; MARANTZ, 2013aMARANTZ, A. Locality Domains for Contextual Allomorphy across the Interfaces. In: MATUSHANSKY, O.; MARANTZ, A. (org.). Distributed Morphology Today: Morphemes for Morris Halle. Cambridge: The MIT Press, 2013a. p. 95-116.), podendo, assim, gerar uma leitura eventiva/agentiva do verbo acabar; (b) há dois CPs não-finitos, um em que o complementizador preposicional de toma diretamente uma estrutura verbal sem a mediação de um núcleo flexional F (leitura culminativa), e outra em que o núcleo F está presente (leitura de recência).

O artigo tem a seguinte organização. Na primeira seção, apresento brevemente uma proposta de teoria de estrutura argumental desenvolvida em Medeiros (2018b)MEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298. que será usada neste trabalho para tratar das estruturas de eventos em que a raiz do verbo acabar é licenciada. Na sequência, faço uma discussão e uma proposta para a estrutura interna das orações infinitivas nas duas leituras discutidas acima (recência e culminativa). Nas seções seguintes, desenvolvo as propostas sintático-semânticas que explicam as propriedades discutidas antes. Na seção final falo um pouco da interrelação entre tempo verbal e as leituras de recência e culminativa, e tento explicar as restrições apresentadas.

Argumentos e estrutura

Em Medeiros (2018b)MEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298. proponho uma teoria de estrutura argumental em que os sintagmas verbais podem ter até três camadas sintáticas, com até três subeventualidades envolvidas, e uma relação de causação ou implicação entre essas eventualidades. Em linhas gerais, tem-se o seguinte desenho.

As estruturas envolvem um núcleo v que tipicamente introduz um evento (que pode ser durativo, sem ponto final intrínseco, ou uma culminação) e possivelmente um núcleo X que pode introduzir tanto um evento como um estado mais encaixado na estrutura do vP. As raízes são ou modificadoras de X (quando há um X, mas não necessariamente quando ele está lá) ou modificadoras de v. Quando são modificadoras de v, um núcleo Voz, que introduz argumento externo (KRATZER, 1996KRATZER, A. Severing the External Argument from its Verb. In: ROORYCK, J.; ZARING, L. (org.). Phrase Structure and the Lexicon. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1996. p. 109-137.), é necessariamente anexado a vP (MARANTZ, 2006MARANTZ, A. Rederived Generalizations. New York: New York University, 2006. Manuscrito., 2013aMARANTZ, A. Locality Domains for Contextual Allomorphy across the Interfaces. In: MATUSHANSKY, O.; MARANTZ, A. (org.). Distributed Morphology Today: Morphemes for Morris Halle. Cambridge: The MIT Press, 2013a. p. 95-116.); quando a raiz é modificadora de X, um núcleo Voz pode ser anexado ao vP (mas, a depender do conteúdo da raiz naquele contexto sintático, o núcleo Voz é bloqueado – é o caso dos inacusativos). Verbos bimorfêmicos tipicamente terão X (que será frequentemente realizado por um prefixo) e v em sua estrutura. Complementos verbais podem estar incluídos ou na estrutura do XP, mais encaixada, ou na estrutura do vP. Assim, as estruturas argumentais (de eventos) associadas a verbos em português com pelo menos um subevento dinâmico (ou seja, estão excluídos os puramente estativos) reduzem-se aos seguintes arranjos:

Como disse anteriormente, o núcleo X pode ser fonologicamente realizado por um prefixo, o que vai ao encontro de algumas alegações da literatura de que verbos bimorfêmicos teriam complemento obrigatório – pois, nos arranjos em (11), sempre que há X, um DP é anexado a ele, já que X introduz uma subeventualidade ou atingida pelo referente do DP (um estado) ou da qual o referente do DP é um undergoer.

O verbo acabar é bimorfêmico, com uma raiz, √kab-, que ocorre no nome cabo (cuja intepretação varia entre “extremidade” e “termo, fim”), no adjetivo cabal (que significa “final”, “definitivo”), etc., e um prefixo, a-, que ocorre em vários verbos denominais, como acarpetar e atormentar.

Tendo em vista os arranjos acima, exploraremos a hipótese de que as estruturas (11b) e (11c) estariam na origem das interpretações de recência e culminação respectivamente. Algumas coisas, entretanto, precisam ser ajustadas. A primeira é que, seguindo a discussão feita na seção anterior, o que é DP em (11) será um CP nas construções que estamos estudando neste artigo. A segunda é que, pelo menos na leitura de recência, o v mais alto (associado ao verbo acabar) não introduzirá variáveis de evento ou estado (seria, talvez, um alossema nulo de v; MARANTZ, 2013bMARANTZ, A. Verbal Argument Structure: Events and Participants. Lingua, Amsterdam, v. 130, p. 152-168, 2013b.), como na proposta original (MEDEIROS, 2018bMEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298.).

Mas antes de tratar da estrutura do vP encabeçado pelo verbo acabar, façamos uma breve discussão sobre as propriedades das orações infinitivas selecionadas nesse contexto.

A estrutura da oração infinitiva

Na introdução deste trabalho, mostrei que há diferenças sintáticas entre duas leituras, culminativa e de recência, com a leitura culminativa tendo um comportamento sintático semelhante ao de estruturas sintáticas envolvendo controle obrigatório (e bem marginalmente de alçamento), e a leitura de recência tendo comportamento típico de estruturas com verbo de alçamento. Mas qual seria a estrutura das orações infinitivas envolvidas nas duas leituras? Haveria diferentes tipos de orações infinitivas a depender da leitura em questão?

A primeira característica das orações não finitas envolvidas em construções com o verbo acabar é que elas admitem o deslocamento à esquerda de alguns tipos de advérbio, como vimos em (10b), seja na leitura de recência, seja na leitura culminativa. Note-se que, assumindo a proposta cartográfica de Rizzi (1997)RIZZI, L. The Fine Structure of the Left Periphery. In: HAEGEMAN, L. (org.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337., o deslocamento do advérbio indica que a preposição de não pode ser a expressão lexical do nó mais baixo da camada expandida do CP, o nó Fin0, uma vez que o advérbio estaria topicalizado ou focalizado, e tópico e foco se colocam, na teoria Rizzi, entre os nós FinP e ForceP, respectivamente o nó mais baixo e o nó mais alto da camada expandida do CP. Ou seja, se de fosse a realização de Fin0, a ordem advérbio-de, com esse advérbio atuando semanticamente no interior da oração infinitiva, seria licenciada – mas este nunca é o caso. É preciso dizer ainda que, independentemente de qual seja o nó realizado pela preposição de, ele está acima dos nós que introduzem tópicos e focos na camada CP expandida. Isso é o inverso do que acontece com o italiano, segundo Rizzi (1997)RIZZI, L. The Fine Structure of the Left Periphery. In: HAEGEMAN, L. (org.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337., para quem a preposição di, em oposição à conjunção che, realizaria o nó Fin0 e selecionaria diretamente uma oração não-finita como complemento (de fato, um IP infinitivo). No português, temos que assumir que há um núcleo C qualquer, encabeçado por de, que seleciona um Fin0 que toma orações infinitivas (do mesmo modo que há um núcleo C ou Força que seleciona um Fin0 que seleciona orações finitas); e que uma possível atribuição de Caso por de para o sujeito da oração infinitiva (cf. nota 6) fica bloqueada pelo fato de a preposição ser a realização de um núcleo (mais alto) da camada CP.

Assim, as orações infinitivas tomadas pelo verbo aspectual acabar terão, no mínimo, a seguinte estrutura, independentemente da interpretação que dermos à construção envolvendo o verbo acabar:

Suponhamos que a presença de uma camada CP na oração encaixada impeça a transferência de Caso nominativo para o sujeito de uma oração não-finita através de um expletivo nulo, numa construção do tipo expletivo-associado, tanto nas construções com controle, como nas construções com verbo de alçamento em geral6 6 Note-se que verbos como parecer tampouco permitem o abandono do sujeito na oração infinitiva encaixada, gerando uma construção do tipo expletivo-associado. Por exemplo: *Pareceu eles construir aquela casa. Compare-se com eles pareceram construir aquela casa. Por outro lado, é possível haver algo semelhante a uma construção do tipo expletivo-associado em formas acabar+gerúndio: acabou eles escrevendo o artigo. Pode ser que, em geral, nas construções de alçamento, as orações não finitas tenham uma camada CP que impede a formação de uma associação entre um expletivo e o sujeito dessa oração; contudo, nas construções do tipo acabar+gerúndio a oração gerundiva não envolva CP (MEDEIROS, 2020; STOWELL, 1982, tratando de orações gerundivas do inglês em outros contextos sintáticos). . Assim, a não ser que a flexão do infinitivo concorde (infinitivo pessoal) com o sujeito encaixado, como ocorre em (8a), ou que o verbo acabar concorde com o sujeito posposto a ele, como em (8b), sentenças como (8e, f), repetidas abaixo em (13), serão mais degradadas ou altamente degradadas. A ideia é que, em (13e) e (13f), o sujeito da oração infinitiva não consegue Caso nenhum, por conta de não haver um potencial atribuidor de Caso para o pronome eles, e pelo fato de a oração infinitiva encaixada envolver uma flexão (infinitivo impessoal) que não atribui/checa Caso nominativo. As outras sentenças em (13) seriam degradadas por razões distintas, mas relacionadas à estrutura (12). Em (13c), teria havido um alçamento ou topicalização do sujeito da oração encaixada para uma posição externa a CP, mas, como vimos, os deslocamentos à esquerda estão pospostos à preposição de, que encabeça C, e, portanto, esse alçamento do sujeito deveria ser proibido; a mera posposição do sujeito ao verbo acabar também é pouco aceitável. Em (13d), ou temos leitura culminativa, com sujeito agente de acabar, cuja posposição, por ser agente, seria bastante restrita em português brasileiro (FIGUEIREDO SILVA, 1996FIGUEIREDO SILVA, M. C. A Posição Sujeito no Português Brasileiro: Frases Finitas e Infinitivas. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. para uma discussão), ou a leitura é de recência e eles está topicalizado acima de CP, o que é, como já vimos, proibido.

  • (13)
    • c.

      ??Acabou eles de preencherem o formulário.

    • d.

      ??Acabou eles de preencher o formulário.

    • e.

      ?*Acabou de eles preencher o formulário.

    • f.

      *Acabaram de eles preencher o formulário.

Tudo que foi discutido até aqui pode sugerir que as orações infinitivas nas duas leituras são idênticas, mas mostrarei que não são.

Na leitura culminativa, somente predicados que denotem processos culminados (ou atividades para as quais se pode atribuir algum ponto final contextual) são licenciados, o que sugere que o verbo acabar está selecionando semanticamente o predicado dentro da oração infinitiva. O mesmo não se dá com a leitura de recência, onde o verbo acabar não faz nenhuma exigência quanto às propriedades aspectuais ou de aktionsart do evento denotado pelo sintagma verbal mais encaixado. Uma maneira de lidar com essa diferença é supor que a estrutura sintática permite ao verbo acabar um acesso mais direto (ou menos mediado) ao VP da oração infinitiva na leitura culminativa do que na leitura de recência. O argumento é interessante, mas haveria outra evidência, talvez mais forte, para postularmos diferentes orações infinitivas?

Tomemos locuções adverbiais que servem para diagnosticar telicidade: em X tempo. Observemos agora os exemplos a seguir:

  • (14)
    1. Ele acabou de pintar o muro em duas horas.

    2. ?Ele acabou de em duas horas pintar o muro.

    3. Ele acabou em duas horas de pintar o muro.

    4. Em duas horas ele acabou de pintar o muro.

Em (14a) há duas leituras: uma em que ele concluiu em duas horas a atividade de pintar o muro (leitura culminativa, onde se lê que um subevento de pintar o muro que inclui seu subevento final durou duas horas, não necessariamente o evento todo) e outra em que muito recentemente ele pintou o muro em duas horas (leitura de recência). Em (14b) somente a segunda leitura de recência é licenciada7 7 Note-se que a leitura de recência não é licenciada quando o tempo verbal de acabar é futuro (ver discussão sobre o exemplos (16) a seguir e penúltima seção deste artigo). Assim, frases como Ele vai acabar de pintar o muro em duas horas só têm leitura culminativa. Curiosamente, quando deslocamos a locução adverbial em duas horas para próximo da preposição de em uma sentença cujo tempo verbal de acabar é futuro, produzimos uma sentença mais degradada, justamente porque o tempo futuro não é compatível com a leitura de recência: (i) *?Ele vai acabar de em duas horas pintar o muro. Vale dizer, ainda, sobre (14b), que, colocando um acento sobre o verbo acabar e pausas em torno da locução adverbial em duas horas, a sentença melhora bastante. O acento ou ênfase sobre o verbo acabar marca a leitura de recência; cf. nota 2. . Em (14c) e (14d) somente a primeira leitura acima (culminativa) é licenciada.

A ordenação em (14b) seria o resultado do deslocamento da expressão em duas horas para a periferia esquerda da oração infinitiva. Para haver deslocamento da locução adverbial em duas horas, é necessário que ela seja parte da oração infinitiva, não da oração principal finita. O que chama a atenção nos exemplos (14) é que não há leitura culminativa (ou (14b) é bastante degradada com esta leitura) para a sentença em que a locução adverbial está deslocada dentro da oração infinitiva (o exemplo (14b)). Isso sugere que a locução em duas horas na leitura culminativa tem como alvo algum constituinte da oração principal, cujo verbo é acabar, não da oração infinitiva – pois, se na leitura culminativa a locução fizesse parte da oração infinitiva, não haveria razão para que ela não pudesse se deslocar para a periferia esquerda, fornecendo, mesmo deslocada, uma medida temporal do evento como um todo. Ou seja, as duas leituras de (14a) seriam representadas pelas seguintes estruturas de constituintes:

  • (15)
    1. [ele acabou [de pintar o muro] [em duas horas]] (leitura culminativa)

    2. [ele acabou [de pintar o muro [em duas horas]]] (leitura de recência)

Agora suponhamos que locuções adverbiais como em X tempo ou por X tempo tenham como alvo, tipicamente, alguma posição na camada flexional de uma sentença, ou só sejam licenciadas pela existência de uma camada flexional veiculando tempo ou aspecto de ponto de vista. Veja-se que a expressão em duas horas seria degradada em um predicado como pintar o muro se o verbo estivesse em um tempo progressivo (#Pedro está pintando o muro em cinco minutos), o que sugere que essa locução não só leva em consideração propriedades de aktionsart do predicado, mas também pelo menos o aspecto veiculado pelo sistema flexional acima do verbo. Isso nos leva a concluir que há uma camada flexional (não finita) também na sentença infinitiva quando as formas que estamos investigando têm leitura de recência. Chamemos essa camada flexional de FP. Note-se que é plausível assumir que este F tenha relação com a codificação de anterioridade do tempo do evento veiculado pelo sintagma verbal infinitivo em relação a alguma referência temporal dada. Analisemos os exemplos abaixo:

  • (16)
    1. Pedro vai acabar de pintar a parede quando João chegar.

    2. Pedro vai ter acabado de pintar a parede quando João chegar.

    3. Pedro vai acabar de ter pintado a parede quando João chegar.

Em (16a) a única leitura possível é a culminativa; (16b) é ambígua; em (16c) a leitura é de recência8 8 Parece-me haver uma leitura culminativa bastante marginal neste exemplo, quando o verbo acabar não é acentuado. Parece-me, ainda, que a forma composta no CP não está estabelecendo relações temporais quando a leitura é culminativa – é como se a forma composta do verbo na oração infinitiva fosse somente uma espécie de reforço ao fato de que o evento de pintar o muro está concluído. . O ponto mais interessante dos exemplos acima é o fato de que quando temos uma forma de passado composto dentro da oração infinitiva (sentença (16c)), a leitura é de recência. Isso indica claramente que na leitura de recência o infinitivo não é temporalmente neutro, mas codifica alguma forma de ancoramento temporal num “passado”. Mais adiante procuraremos explicar por que (16a) não tem leitura de recência e por que (16b) é ambígua.

Ou seja, na leitura de recência, há, para além dos núcleos da camada CP expandida, um núcleo flexional codificando algum tipo de informação temporal ou aspectual dentro da oração infinitiva; na leitura culminativa não existe essa camada, e o núcleo mais baixo da região CP toma diretamente o sintagma verbal (ou o Voz-P, como veremos).

O verbo acabar e as leituras culminativa e de recência

Nos parágrafos (a) e (b) abaixo tento estabelecer quais são as condições de verdade da sentença (17), nas duas leituras. A partir das condições de verdade definidas abaixo tentarei mostrar como elas são derivadas da estrutura sintática que proporei na sequência.

  • (17)

    Pedro acabou de pintar o muro

    1. Leitura culminativa:

      Pedro acabou de pintar o muro é verdadeira sse existe um evento e’, do qual Pedro é o agente ou originador, e existe um evento e de pintar o muro, tal que e’e e e’ contém o menor subevento final de e (BERTUCCI, 2011BERTUCCI, R. A. Uma análise semântica para verbos aspectuais em português brasileiro. 189f. 2011. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.) e o tempo de e’ é anterior ao tempo da fala (speech time; REICHENBACH, 1966REICHENBACH, H. Elements of Symbolic Logic. New York: Free Press, 1966.).

    2. Leitura de recência:

      Pedro acabou de pintar o muro é verdadeira sse existe um evento e de pintar o muro do qual Pedro é o agente ou originador e o intervalo de tempo do evento e (ou de uma sua subparte contextualmente relevante) precede imediatamente um intervalo de tempo t que é anterior a um tempo de referência t’ e t’ coincide com o tempo da fala e t tende a zero no contexto.

Alguns pontos precisam ser esclarecidos sobre os enunciados em (a) e (b). Com relação à leitura culminativa, em (a), é importante que fique claro que a frase (17) afirma que Pedro é o agente de, no mínimo, o menor subevento final do evento de pintar o muro; não necessariamente do evento inteiro. Isso é claro, uma vez que a frase (17) também é verdadeira num contexto em que Pedro somente termina o trabalho de pintura começado por outra pessoa. É óbvio que se Pedro é pelo menos o agente do subevento final de pintar o muro em (17), nada impede que ele tenha realizado o trabalho inteiro, do início ao fim. Portanto, a sentença (17), com as condições de verdade dadas em (a), também pode ser verdadeira num cenário em que Pedro realizou toda a pintura do muro.

A formulação em (a) também leva em conta o que já havia mencionado antes: que o próprio verbo acabar introduz um evento do qual o sujeito da frase é agente; e esse evento pode ser modificado por advérbios, como mostramos nos exemplos (10).

Com relação à leitura de recência, em (b), Pedro é o agente de pintar o muro, ou de uma subparte sua contextualmente relevante, da qual se fala. Mas os aspectos mais importantes das condições de verdade em (b) são: (1) que não existe um subevento cujo agente é o sujeito da sentença – o sujeito é o agente (ou está incluído entre os agentes) do predicado da oração infinitiva e a definição só trata de uma relação entre tempos; e (2) que o evento denotado por pintar o muro (ou de uma sua subparte contextualmente relevante) é, de algum modo, interpretado perfectivamente, ou seja, sua temporalidade está encerrada em algum tempo anterior a outro tempo. Isso explica parcialmente o fato de a leitura de recência ser sensível ao tempo do verbo principal, acabar, mas não às propriedades de aktiosart do predicado no CP. Trataremos deste ponto mais pormenorizadamente nas próximas seções.

Que na leitura de recência não haja subevento encabeçado pelo verbo acabar (aspecto (1) apontado no parágrafo anterior) fica evidente pelo fato de que a modificação por advérbios de modo só tem efeitos sobre os eventos denotados pela oração infinitiva. Portanto, o verbo acabar, se adotarmos uma semântica de eventos (DAVISON, 2001DAVIDSON, D. The Logical Form of Action Sentences. In: DAVIDSON, D. Essays on Actions and Events. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 105-121.; PARSONS, 1990PARSONS, T. Events in the Semantics of English: A Study of Subatomic Semantics. Cambridge: The MIT Press, 1990.), não introduzirá variável de evento aqui.

Sintaxe e o verbo acabar

Continuando uma discussão iniciada acima, proponho que as estruturas sintáticas das orações infinitivas nas leituras culminativa e de recência sejam, respectivamente, (18) e (19):

Se adotarmos uma teoria como a da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993HALLE, M.; MARANTZ, A. Distributed Morphology and the Pieces of Inflection. In: HALE, K.; KEYSER, S. J. (org.). The View from Building 20. Cambridge: The MIT Press, 1993. p. 111-176.; MARANTZ, 1997MARANTZ, A. No escape from syntax: don't try morphological analysis in the privacy of your own lexicon. In: ANNUAL PENN LINGUISTICS COLLOQUIUM, 21., 1997. Working Papers in Linguistics, Philadelphia, v. 4, n. 2, p. 201-225, 1997.), podemos imaginar que, em (18), a forma infinitiva do verbo vem como uma realização morfológica default de verbos não flexionados. Assim, o verbo ganharia suas marcas flexionais (de infinitivo) na MS (Morphological Structure), que é pós-sintática.

Vemos, ainda, que em (18) há um PRO9 9 Estou deixando de lado neste trabalho a discussão sobre o Caso nulo atribuído a PRO por parte da literatura (CHOMSKY, 1995); no contexto de (18), PRO não teria como checar, valorar ou receber esse Caso nulo. Também deixo de lado discussões a respeito de PRO não ser regido, como propõe a literatura GB (CHOMSKY, 1981). na posição de especificador de Voz-P. Assumamos que este PRO seja controlado pelo sujeito da sentença, mas que o PRO possa também, em certos contextos, ser parcialmente controlado. Neste caso, conseguimos dar conta do fato de que a sentença (17) também é verdadeira num contexto em que Pedro é somente um dos agentes de pintar o muro (o último no tempo). Uma pergunta que pode ocorrer ao leitor neste momento é: por que não assumir que o sintagma verbal dentro do CP é um vP, sem Voz ou PRO? Há dois problemas para essa proposta. O primeiro é que o Caso estrutural do complemento do vP mais encaixado teria que ser atribuído pelo núcleo Voz do verbo principal, acabar, que está, estruturalmente, distante do complemento da oração infinitiva. O segundo e mais importante problema é que esperaríamos que pudesse haver uma passiva do verbo acabar com leitura culminativa: o muro foi acabado de pintar. Mas essa forma é um tanto degradada, e sua leitura (ainda que também marginal) é a de recência em exemplos como este (implicando um acento no verbo acabar) – ver nota 12.

Mas, então, como a estrutura em (18) se encaixa na projeção do verbo acabar? Vejamos.

Tomemos a estrutura (11c) acima. Adotando esta estrutura para a leitura culminativa, a raiz √kab- modificará o v e acarretará duas coisas: (1) que um núcleo de Voz seja anexado acima do vP, introduzindo um argumento externo para o verbo acabar (MARANTZ, 2006MARANTZ, A. Rederived Generalizations. New York: New York University, 2006. Manuscrito.; MEDEIROS, 2018bMEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298.); e (2) que v introduza uma variável de evento (MEDEIROS, 2018bMEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298.). O núcleo X abaixo será realizado pelo prefixo e criará uma posição para um objeto obrigatório – que será um CP. Vamos assumir que, no caso de complementos sentenciais obrigatórios, X não necessariamente introduza uma subeventualidade (ou seja, nesses casos, X nos diz somente que existe um argumento interno obrigatório, no caso, um CP)10 10 Note-se que X talvez não seja semanticamente nulo em sentenças como em Pedro acabou a pintura do muro. Nesse caso a sentença não aponta para o subevento final do processo de pintar o muro, mas expressa, entre outras coisas, um estado da pintura do muro. . A estrutura abaixo ilustra a proposta para a sentença em (17), repetida abaixo como (20):

  • (20)

    Pedro acabou de pintar o muro.

A presença da raiz √kab- como modificadora do núcleo v faz com que o sujeito introduzido por Voz seja interpretado como um iniciador ativo do evento introduzido na estrutura por v (MEDEIROS, 2018bMEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298.). Vamos agora supor que a combinação da raiz √kab- com o v mais alto, [v kab v], defina, lexicalmente, uma restrição para a interpretação do evento introduzido por este v, de modo que ele seja interpretado como um subevento que necessariamente inclua o subevento final do primeiro evento c-comadado pelo constituinte [v kab v] na estrutura. Ou seja, estou propondo que haja uma “identificação parcial” de dois eventos, aquele introduzido pelo v mais alto e aquele introduzido pelo Voz-P/vP mais baixo, dentro do CP. Vamos supor, ainda, que se houver um núcleo flexional, com algum potencial de especificação temporal ou aspectual para o vP dentro do CP complemento, não é possível que [v kab v] tenha acesso ao evento mais encaixado para fazer essa “identificação parcial” de eventos. Os núcleos C e Fin0, sem potencial de quantificação sobre eventos, serão simplesmente “transparentes” para a “ação” do verbo acabar sobre o Voz-P mais encaixado. A suposição parece plausível se imaginarmos que núcleos flexionais criam especificação temporal ou aspectual que poderia tornar o evento do CP complemento incompatível com as exigências do verbo acabar (retomaremos essa discussão quando tratarmos da leitura de recência):

Note-se que para que seja possível a identificação parcial entre eventos (para que seja possível que o evento e’ seja uma parte do evento e no esquema (22)) é preciso que o evento e tenha um subevento final propriamente contido em e.

Esta estrutura explica as interpretações distintas de possíveis anexações de advérbios de modo (ver exemplos (10) na introdução a este artigo). Suponhamos que o advérbio cuidadosamente esteja anexado ao Voz-P dentro da oração infinitiva. Ele, portanto, será um modificador de e, não de e’. Mas, como e’ é uma parte de e, não há como e ser realizado com cuidado sem que e’ o seja. O esquema abaixo ilustra o ponto:

Quando cuidadosamente é anexado ao vP mais alto, temos uma leitura em que o evento e’ nos esquemas acima é modificado por cuidadosamente. Veja-se o exemplo a seguir:

O esquema (23) mostra o advérbio tomando o vP mais alto e, portanto, modificando o evento veiculado pelo constituinte [v kab v]. Como queríamos, este advérbio tem escopo sobre o subevento e’, o que faz com que a frase (17) seja verdadeira também numa situação em que somente o estágio final do evento de pintar o muro foi realizado cuidadosamente.

Seguindo a proposta de Kratzer (1996)KRATZER, A. Severing the External Argument from its Verb. In: ROORYCK, J.; ZARING, L. (org.). Phrase Structure and the Lexicon. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1996. p. 109-137., a anexação de um núcleo Voz mais alto, que introduz outra variável de evento, disparará a operação identificação de eventos (KRATZER, 1996KRATZER, A. Severing the External Argument from its Verb. In: ROORYCK, J.; ZARING, L. (org.). Phrase Structure and the Lexicon. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1996. p. 109-137., p.122) entre o evento introduzido por Voz e o evento introduzido pelo vP mais baixo; o núcleo Voz também abrirá uma posição temática (iniciador ou agente) para o sujeito do verbo acabar. Ou seja, o sujeito da frase será o agente de e’. Por isso, na leitura culminativa, uma estrutura como (22) acima bloquearia sujeitos não-agentes e, consequentemente, sintagmas verbais não-agentivos em CP.

Agora tratemos da leitura de recência.

Para a leitura de recência proponho que a estrutura associada ao verbo acabar seja aquela apresentada em (11b), mas com a substituição de um DP por um CP em XP:

Diferenças importantes de (25) em relação à (21) são: (a) a raiz está anexada abaixo de XP, não ao v mais alto, o que implica, pelo menos, a não obrigatoriedade de um núcleo Voz anexado acima deste vP (MARANTZ, 2006MARANTZ, A. Rederived Generalizations. New York: New York University, 2006. Manuscrito.; MEDEIROS, 2018bMEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298.); (b) na oração infinitiva temos um núcleo flexional F; (c) o núcleo v mais alto não introduzirá evento (variável de eventos).

Não é verdade que todos os tipos de verbos denotem eventos ou estados. Certos verbos de alçamento, como os auxiliares e alguns verbos aspectuais indicam, outrossim, possibilidade, necessidade, relações temporais e estágios de processos referidos por outros predicados. Ou seja, o núcleo v é uma categoria verbal, que gera radicais verbais a partir de raízes acategoriais (MARANTZ, 1997MARANTZ, A. No escape from syntax: don't try morphological analysis in the privacy of your own lexicon. In: ANNUAL PENN LINGUISTICS COLLOQUIUM, 21., 1997. Working Papers in Linguistics, Philadelphia, v. 4, n. 2, p. 201-225, 1997.), mas ser uma categoria verbal não significa introduzir necessariamente uma variável de evento ou de estado – ainda que pareça significar que, pelo menos, terá alguma relação com algum evento ou estado.

Suponhamos, assim, que o v mais alto na estrutura (25), a qual tem leitura de recência, não introduz um evento (cf. (c) acima). Suas funções são criar um verbo a partir da raiz √kab- e estabelecer uma ponte entre o tempo da oração principal e o núcleo F da oração subordinada em (25).

Vamos imaginar, ainda, que o constituinte [X a kab] com leitura de recência seja licenciado em (25) somente se houver um traço de anterioridade temporal, [+ant], na estrutura funcional F no interior da oração infinitiva. Esse traço pode ser “herdado” do núcleo T que toma o vP mais alto ou ser albergado desde o início no próprio F – neste caso com consequências para a forma do infinitivo, produzindo uma forma composta com particípio (cf. (16c)). O núcleo F com esse traço estabelece que existe um evento, definido pela camada verbal tomada por ele, e que o tempo desse evento, te, é imediatamente anterior a um intervalo de tempo t qualquer – ou seja, digamos que a diferença entre o ponto final de te e o ponto inicial de t é zero.

Mas o que o constituinte [X a kab] oferece como contribuição na estrutura (25)? Tendo em vista a discussão acima, [X a kab] tomará o CP e estabelecerá que existe um (intervalo de tempo) t que é imediatamente anterior a um tempo t’ (digamos que a diferença entre o ponto final de t e o ponto inicial de t’ é zero, como no caso anterior) e o intervalo t tende a zero (t → 0); ou seja, considerando as escalas temporais fornecidas pelo contexto, t é relativamente muito curto11 11 Note-se que “curto” é relativo e o que é curto num contexto pode não sê-lo em outro. Por exemplo, tomemos a frase João acabou de atingir a maioridade e já conseguiu seu primeiro milhão. Aqui, o intervalo entre João ter-se tornado maior de idade e eu ter dito a frase pode ser de meses ou até mesmo alguns anos, mas é considerado muito curto ou em relação à suposta vida longa que João vai ter ou em relação ao tempo médio que um adulto leva para amealhar seu primeiro milhão. Um intervalo de meses, contudo, não serviria num contexto em que eu vejo uma mancha de café na minha poltrona e alguém explica que João acabou de derrubar café aí… .

Isso quer dizer que todo o tempo do evento ou de um subevento seu relevante, do qual se fala, qualquer que seja o evento, tenha ele atingido seu télos natural ou não, é anterior a algum intervalo de tempo muito curto no contexto, e este intervalo é anterior a um tempo a ser ancorado por T ou pelo tempo de outro evento (e. g., um veiculado por um adjunto) em (25).

Vejamos o esquema (26) a seguir, para a sentença (17). Nele te é o tempo do evento e ts é tempo da fala.

A expressão ao lado do nó TP em (26) diz que existe um evento e de pintar o muro cujo iniciador/agente é João e existe um tempo t tal que esse t é imediatamente posterior ao tempo do evento de pintar o muro, o te; é imediatamente anterior ao tempo da fala, o ts; e tende a zero no contexto dado (ou seja, é relativamente muito curto considerando alguma escala temporal relevante). Esse resultado é alcançado composicionalmente, como já vemos em (26) e veremos com mais detalhes abaixo, e reflete o que está descrito em (b) no início da seção 2.

Explicando agora os detalhes do esquema (26). Suponhamos que o T no pretérito perfeito do português albergue um traço de anterioridade que, quando T toma um evento diretamente (quando v veicula um evento), estabelece uma relação de anterioridade temporal entre o tempo desse evento e outro tempo a ser definido. Vamos assumir, também, que o pretérito perfeito do português, na maioria das situações, expresse uma relação temporal semelhante à do present perfect do inglês (GIORGI; PIANESI, 1997GIORGI, A.; PIANESI, F. Tense and Aspect: from Semantics to Morphosyntax. Oxford University Press, 1997.), em que o tempo do evento é anterior a um tempo qualquer (de referência; REICHENBACH, 1966REICHENBACH, H. Elements of Symbolic Logic. New York: Free Press, 1966.) que, por sua vez, coincide com o tempo da fala – este será o caso em (26). Isso quer dizer que, nos nossos termos, o pretérito perfeito vai ser a combinação de um traço de anterioridade [+ant] e um traço de coincidência temporal [+coinc]. Suponhamos, ainda, que F em (26) seja um núcleo temporal que pode entrar na derivação sem traços, sendo, desse modo, dependente, para o qual um núcleo de tempo mais alto pode transferir alguns de seus traços em LF. A ideia, basicamente, é que o núcleo de tempo T em (26) precisa de outro tempo ou de um evento para estabelecer uma relação entre tempos; mas o v mais alto não fornece nem evento nem tempo; assim, T transfere, em LF, pelo menos alguns de seus traços para o F que domina imediatamente um núcleo verbal que fornece um evento. Herdando o traço de anterioridade, F, operando sobre o Voz-P, dirá que existe um evento e (no esquema, o evento de pintar o muro cujo agente/iniciador é Pedro), que existe um tempo em que esse evento ocorre e que o tempo desse evento é anterior a um (intervalo de) tempo t. Note-se que como F só recebe seu traço de anterioridade em LF, sofre o spell-out sem esse traço, e sua realização será a de um infinitivo simples.

Uma vez que o F tem, no exemplo, o traço [+ant] herdado de T, o constituinte sob X, [X a kab], é semanticamente licenciado (ver abaixo), tomando CP como seu complemento, e X veiculará as relações temporais de anterioridade representadas no esquema, ou seja, vai tomar a expressão de CP que inclui t, dizer que esse t existe, é anterior a um t’ e tende a zero. Com a composição de CP com X temos então que existe um evento e (de pintar o muro, cujo agente é João, no exemplo), um tempo desse evento e um tempo t tal que t se segue ao tempo do evento, te, t é anterior a t’, e t tende a zero (e t = t’ – te). O núcleo v mais alto será semanticamente vácuo, ou funcionará como uma função identidade sobre a extensão do XP, fazendo com que vP e XP tenham a mesma extensão (ver representação em (26)). O núcleo T acima, já sem o traço de anterioridade em LF, mas mantendo o traço de coincidência temporal, vai servir para ancorar (identificar) o tempo t’, codificado no XP, ao (com o) tempo da fala, ts. Temos então que o tempo do evento de pintar o muro será anterior a um t contextualmente muito curto, o qual é anterior ao tempo da fala. Ou seja, como esperamos de (17), a pintura do muro por João ocorreu em um momento recente em relação ao tempo em que a frase é dita.

Uma pergunta que deve ser respondida a esta altura é: por que [X a kab] só é definido ou licenciado se houver um traço de anterioridade na oração que é seu complemento (irmão estrutural)? Na verdade, assumindo o quadro teórico da Morfologia Distribuída, a pergunta deve ser colocada em outros termos: em que contextos a raiz √kab- é licenciada e tem um significado definido? Restringindo-nos ao ambiente verbal, a raiz terá significados listados (ou será licenciada) quando os complementos do constituinte [X a kab] são CPs como o que encontramos em (26), orações gerundivas (Pedro acabou pintando o muro), orações finitas (Acabou que o Pedro pintou o muro), complementos nominais subjacentes ([A pintura do muro]i acabou ti), quando o constituinte [v kab v] tem como complemento uma oração infinitiva como em (21), um complemento nominal (Pedro acabou a pintura do muro) ou, por fim, quando ele toma uma small clause ([A investigação]i acabou ti em pizza; RODERO, 2010RODERO, A. G. Construções com o verbo acabar em português brasileiro. 193f. 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.; MEDEIROS, 2018aMEDEIROS, A. B. Eu acabei escrevendo o artigo: um estudo sobre a forma acabar+gerúndio no português brasileiro. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 60, n.1, p. 7-29, 2018a.). Assim, [X a kab] será definido no contexto em (26) porque a raiz √kab- tem um significado definido (listado) nesse contexto, o qual inclui o traço [+ant] dentro do CP complemento.

Uma maneira um tanto simplificada de entender a contribuição da raiz é pensar que ela e o núcleo X (a raiz é um modificador adverbial do núcleo X, que de fato estabelece uma predicação para o complemento; MEDEIROS, 2018bMEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298.) criam uma predicação para o evento denotado pelo CP. Essa predicação diz que o evento e (o evento de pintar o muro cujo agente é Pedro em (26)) é “recente” em relação a outro tempo, que pode ser o tempo de outro evento ou o tempo da fala. Ou seja, o constituinte X, que inclui a raiz, atribui uma propriedade ou um estado para um evento veiculado pelo CP. Essa propriedade ou estado é a “recência”.

Outra questão que deve ser esclarecida tem relação com a natureza de alçamento do verbo acabar. Em teorias como as de Pylkkänen (2008)PYLKKÄNEN, L. Introducing Arguments. Cambridge: The MIT Press, 2008., Marantz (2006)MARANTZ, A. Rederived Generalizations. New York: New York University, 2006. Manuscrito., Medeiros (2018b)MEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298., entre outros, vPs como (11b) e (26) poderiam ter, opcionalmente, uma versão causativa com a anexação de um núcleo Voz acima deles. Mas isso não acontece em (26), e o verbo acabar é de alçamento12 12 Encontrei, entretanto, algumas ocorrências como a que vai abaixo. Aqui, a leitura é de recência, mas o verbo acabar está na voz passiva. A forma me parece degradada, mas é frequente. Não tenho muito a dizer sobre ela, a não ser que é uma possibilidade de derivação reconhecida dos chamados verbos de reestruturação (cf. nota 3). Rafael Jardim Glória - Juiz de Fora, MG. Apartamento sem moveis, foi acabado de pintar, só precisa ser limpo para entrega-lo a imobiliária. Ícone de sucesso… https://www.getninjas.com.br/familia/diarista/mg/juiz-de-fora/orcamentos/2505989-sou-de-confianca-responsavel-pontual. Acesso em: 22 jul. 2020. . Por quê?

Vimos acima que o vP mais alto em (26) tem como núcleo um v semanticamente vácuo que não introduz eventos ou estados na derivação. Segundo a teoria proposta em Medeiros (2018b)MEDEIROS, A. B. Considerações sobre a estrutura argumental dos verbos. In: MEDEIROS, A. B.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores: estudos em homenagem a Miriam Lemle. São Paulo: Pontes, 2018b. p. 231-298., o núcleo Voz acima de um vP ou estabelece uma relação causal entre o evento introduzido por Voz e o introduzido por v ou há identificação de eventos entre esses dois eventos (KRATZER, 1996KRATZER, A. Severing the External Argument from its Verb. In: ROORYCK, J.; ZARING, L. (org.). Phrase Structure and the Lexicon. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1996. p. 109-137.). A questão é que se v não introduz eventos, então nenhuma das duas relações pode ser estabelecida entre Voz e v. Mas por que, então, alguma dessas relações semânticas não poderia ser estabelecida entre um hipotético núcleo Voz mais alto e o v (ou Voz-P) dentro de CP? Suponhamos que o núcleo Voz, por ser um nó interno à camada verbal, não possa ter algum tipo de relação semântica com a estrutura flexional de um verbo mais encaixado, onde o evento é quantificado e temporalmente ancorado. Como se vê em (26), uma operação semântica incluindo o núcleo Voz anexado ao vP mais alto e o vP (ou Voz-P) mais baixo teria que ser intermediada pelo FP (que quantifica o evento e estabelece uma relação temporal deste evento com algum outro tempo). Sendo assim, uma vez que acima do vP (ou Voz-P) da oração infinitiva há um núcleo flexional F, o núcleo Voz não seria licenciado na estrutura (26), pois não conseguiria estabelecer relação semântica com nenhum outro subevento.

Com relação à posição final do argumento agente do CP, já que na oração infinitiva não há como o NP Pedro obtenha Caso, é preciso que ele seja alçado para o especificador do TP onde consegue Caso nominativo. Assim:

Por fim, vale dizer que a postulação de um nó flexional interno ao CP na leitura de recência explica porque (8a), repetido abaixo, só tem leitura de recência. A ideia é que justamente por haver um F, esse núcleo pode, mesmo que marginalmente, ter traços eles fica licenciado dentro do CP em (8a), recebendo Caso nominativo de F (como acontece tipicamente em ambientes com infinitivo flexionado), e há um expletivo nulo no especificador do TP, conjugando o verbo acabar na terceira pessoa do singular. O mesmo não pode acontecer na estrutura (22), onde não há flexão dentro do CP., sendo um infinitivo flexionado. Assim, o pronome

  • (8)
    1. ?Acabou de eles preencherem o formulário.

Com isso explicamos o conjunto de propriedades das duas leituras de (17)/(20). Na próxima seção trataremos das restrições temporais sobre as duas leituras em análise.

Tempo, aspecto e o verbo acabar

Comecemos nossa discussão a partir dos exemplos a seguir:

  • (28)
    • a.

      Pedro está acabando de pintar o muro (culminativa).

    • b.

      Pedro acaba de pintar o muro (recência; culminativa numa leitura habitual ou de futuro próximo).

    • c.

      Pedro vai acabar de pintar o muro (culminativa).

    • d.

      Pedro acabou de pintar o muro (culminativa e recência)

    • e.

      Pedro tinha acabado de pintar o muro (culminativa e recência).

    • f.

      Pedro terá acabado de pintar o muro quando Cláudio chegar (culminativa e recência).

    • g.

      Pedro vai acabar de ter pintado o muro quando Cláudio chegar (recência).

    • i.

      *Pedro está acabando de ter pintado o muro.

Como explicamos as restrições de interpretação que encontramos em (28)?

Se, como propusemos acima, o núcleo F pode receber sua especificação temporal/aspectual de outro núcleo temporal (em LF), e, para que a raiz √kab- seja licenciada no contexto de XP (e ter seu significado definido) precisamos que o traço [+ant] esteja em F (pelo menos em LF), então (28a), onde o traço [+ant] não está presente nem em T nem em F (pois o infinitivo interno ao CP não é perifrástico com particípio), não fornece as condições para que a raiz √kab- tenha a interpretação que encontramos na leitura de recência. Ou seja, nesse caso, a sentença em (28a) só poderá ter uma estrutura como a de (21) – e ter a leitura correspondente, culminativa.

Já o exemplo (28b) é aceitável na leitura de recência porque há uma interpretação pontual do presente do indicativo no português em que o evento é colocado num passado imediato (é uma espécie de presente perfectivo; BERTINETTO; BIANCHI, 2003BERTINETTO, P. M.; BIANCHI, V. Review article: Tense, aspect and syntax. In: KLEIN, W. Linguistics: an interdisciplinary journal of the language sciences. Berlin: New York: Mouton de Gruyter, 2003. p. 565-606.), e é possível ordenar os tempos da definição dada em (b) no início da seção 2, desde que t’ da definição coincida com o tempo da fala ts. A ideia é que em (28b) o presente do indicativo pode trazer o traço [+ant] (que de fato faz com que sua leitura seja pontual, não a de evento ou estado em andamento nem evento habitual), e esse traço é, como apresentamos anteriormente, transferido para F em LF, pelas razões já discutidas. Nessa circunstância, a raiz é licenciada com a interpretação de recência. Note-se que uma leitura habitual do presente do indicativo é incompatível com a leitura de recência. O exemplo (29a) o mostra. Isso pode ser explicado se assumirmos que na leitura habitual o presente do indicativo não carrega o traço [+ant]. Do mesmo modo, se esse presente é interpretado como futuro próximo, como em (29b) a seguir, a leitura de recência é impossível. Mais uma vez, aqui, não temos o traço [+ant] nessa leitura do presente.

  • (29)
    1. Pedro sempre acaba de pintar o muro quando chega o mestre de obras.

    2. Pedro acaba de pintar o muro amanhã (quando ele chegar).

O futuro em (28c) terá leitura somente culminativa pelas razões que já discutimos: a falta do traço [+ant] nos núcleos funcionais da camada T acima do verbo acabar ou em F.

Nos exemplos (28d, e, f), há pelo menos um traço [+ant], o que possibilita a leitura de recência (e não impede a leitura culminativa). O exemplo (28e) alberga dois traços de anterioridade, um no passado do auxiliar e outro no particípio do verbo acabar: um desses traços é transferido para F dentro do CP e o outro mantém-se em T e serve para estabelecer uma anterioridade do tempo t’, codificado na camada XP da estrutura, em relação ao ts. Ora, t’ é um tempo de referência e vai identificar-se com algum outro tempo, por exemplo, o tempo de um evento adjunto, como o tempo da chegada de Cláudio. Isso fará com que, na camada TP, tenhamos a seguinte relação entre tempos: o tempo do evento de pintar o muro (chamemo-lo de te1) é anterior a um tempo t que tende zero, que é anterior a um tempo t’ de referência, que será idêntico ao tempo da chegada de Cláudio (chamemo-lo te2), e este tempo t’ é anterior ao tempo da fala, ts. Ou seja, teremos as seguintes relações: te1 < t < t’ = te2 < ts e t → 0. E esta é de fato a leitura de (28e).

O exemplo (28f) terá a seguinte leitura temporal: o tempo do evento de pintar o muro (te1) é anterior a um tempo t que tende zero, que é anterior a um tempo t’ de referência, que será idêntico ao tempo da chegada de Cláudio (te2), e este tempo t’ é posterior ao tempo da fala, ts. Ou seja:

  • (30)

    te1 < t < t’ = te2 e te2 > ts e t → 0.

Assim, ts pode cair em qualquer intervalo de tempo antes de te2, podendo, inclusive, ser um subintervalo de t (o intervalo que tende a zero). Esta última leitura é realmente possível para (28f)? Sim. Imaginemos que Pedro foi contratado por Cláudio (que é meu vizinho) para pintar seu muro. Cláudio fez uma viagem e deu instruções a Pedro para que terminasse a pintura antes de seu retorno. Pedro se atrasou um pouco, mas termina o trabalho neste momento. Eu, que narro esta história, vejo pela janela da minha casa que Pedro já está juntando seu material para guardá-lo, tendo concluído o trabalho, e sei que Cláudio já saiu do aeroporto e está a caminho de casa. Então, comento com minha esposa, com um leve acento sobre o verbo acabar: Caramba! O Pedro vai ter acabado de pintar o muro quando o Cláudio chegar! Aqui, o ts está contido no intervalo t entre te1 e t’ = te2, e a sentença é usada adequadamente. Uma vez que te2 > ts, outras leituras – em que, por exemplo, ts está contido no te2 ou o antecede – são também licenciadas. É simples imaginar contextos que o mostrem.

O exemplo (28i) é agramatical porque, como sabemos, não pode haver tempos compostos em que uma forma progressiva toma um perfeito (*Pedro está tendo pintado o muro) – e, como vimos, a recência introduz perfectividade, no sentido de haver uma anterioridade de uma anterioridade.

O exemplo (28g) é o mais interessante porque, nele, temos explicitamente uma expressão de passado dentro da oração infinitiva, veiculando alguma anterioridade temporal do evento, anterioridade expressa morfologicamente. Aqui, o traço [+ant] está codificado na forma composta com o infinitivo e o particípio. Vamos conjecturar, então, que, em (28g), o núcleo F dentro do CP complemento de acabar porta o traço [+ant] desde o início, o que permite que a forma composta de passado seja expressa na morfologia do verbo no CP. Se há especificação temporal/aspectual na oração infinitiva, segundo o que vimos argumentando, só haverá leitura de recência. É importante notar, ainda, que a anterioridade temporal do evento codificado no CP pode ser ancorada à temporalidade de um evento veiculado por um adjunto, como vimos nos exemplos anteriores: o tempo do evento de pintar o muro está num passado recente em relação ao tempo do evento expresso pela oração quando ele chegar. Nesse caso, o futuro no verbo acabar vai servir para colocar o ts numa relação de anterioridade com algum dos tempos disponíveis – e esse tempo, na sentença, será o tempo do evento da oração adverbial. Teremos, assim, as mesmas relações temporais expressas para (28f): te1 < t < t’ = te2 e te2 > ts e t → 0.

Ora, mas se o ts é anterior ao te2, então poderíamos ter uma situação em que o ts cairia dentro do intervalo t, que tende a zero na representação, com ocorre com (28f). Mas isso não me parece verdade. O contexto acima, pensado para (28f), não é completamente adequado para a leitura de (28g) em que ts é subintervalo de t (tst). Por que haveria essa diferença se, segundo a representação, as duas formas expressam as mesmas relações semânticas?

Evidentemente que se ts é anterior a te2, ele também poderá ser anterior a t e contido em te1 (uma situação em que o evento de pintar o muro ainda está em andamento quando digo a frase) e poderá, também, ser anterior ao próprio te1 (ou seja, a frase pode ser dita antes mesmo de o evento de pintar o muro começar), como vimos acima na discussão para (28f). Essas duas leituras são, para as minhas intuições, razoavelmente compatíveis com o significado que atribuo à sentença em (28g). Os contextos descritos abaixo tornam (28g), com as leituras descritas neste parágrafo, aceitável, segundo minhas intuições:

Contexto 1

Cláudio fez uma viagem e disse a Pedro, um pintor contratado, que gostaria que a pintura de seu muro estivesse concluída quando ele voltasse. Pedro teve alguns contratempos, mas conseguiu compensá-los e já está no fim da pintura no momento em que eu, que narro a história e sei que Cláudio pode chegar a qualquer momento, digo a frase (com acento sobre o verbo acabar): Caramba! O Pedro vai acabar de ter pintado o muro quando o Cláudio chegar. Nesse caso, tste1.

Contexto 2

Cláudio fez uma viagem e disse a Pedro, um pintor contratado, que gostaria que a pintura de seu muro estivesse concluída quando ele voltasse. Pedro teve muitos contratempos, e começou o trabalho com muito atraso. Antes de Pedro começar a pintura, eu, que narro a história e conheço a data em que Cláudio voltará da viagem, digo as frases (mais uma vez com ênfase no verbo acabar): Na melhor das hipóteses, o Pedro vai acabar de ter pintado o muro quando o Cláudio chegar. Nesse caso, ts < te1.

Mas, voltando à questão que precisamos responder, por que a leitura em que tst é difícil ou impossível para (28g)? Minha conjectura é que, por conta de a expressão de passado estar codificada morfologicamente dentro do CP, e o verbo acabar, que é na verdade o que atribui a propriedade de recência para o evento dentro do CP, estar no futuro simples (não no futuro do passado, como em (28f)), a recência seja “deslocada” para o futuro. Note-se que a recência é expressa, no final das contas, pelo intervalo t; assim, dizer que a recência está deslocada para o futuro é dizer que o tempo da fala, ts, ocorre antes do t, o que faz com que (28g) tenha leituras compatíveis somente com os contextos 1 e 2 acima, como queríamos.

Antes de concluirmos este trabalho, gostaria de tratar de um último ponto. Observem-se os exemplos a seguir.

  • (31)
    1. Pedro acabou de pintar o muro quando Cláudio chegou

    2. ?Pedro acabou de ter pintado o muro quando Cláudio chegou.

    3. Pedro acabou de pintar o muro.

    4. ?Pedro acabou de ter pintado o muro.

Em (31a), só há leitura culminativa. Em (31b) a leitura é de recência, mas a sentença é levemente degradada. A sentença (31c) é ambígua, como já sabemos. Já a sentença (31d) me parece ser aceitável (ainda que degradada) somente se interpretada como sinônimo de (31c) com a leitura de recência.

Por que (31a) tem somente a leitura culminativa, mas (31b) aceita a leitura de recência, ainda que sua gramaticalidade seja marginal? Comecemos com a explicação para a exclusão da leitura de recência em (31a). Nesta sentença, se ela tivesse a leitura de recência, teríamos que a oração encaixada de pintar o muro herdaria, em LF, o traço [+ant] do tempo passado do verbo acabar, e veicularia a seguinte relação temporal: o tempo do evento de pintar o muro, te, é anterior a um tempo t, ou seja: te < t. Ao combinar esta oração com a estrutura [X a kab], teríamos a relação te < t < t’. O tempo de referência t’ seria o tempo da chegada de Cláudio (se identificaria com o tempo deste evento), que está no passado em relação ao tempo da fala, ts (pois a chegada de Cláudio acontece indubitavelmente no passado, antes do tempo da fala). O que ficou em T, depois da transferência de [+ant] para o CP, foi o traço [+coinc], que estabelece a coincidência temporal entre o tempo da fala, ts, e o tempo t’ (é importante lembrar que assumimos que o pretérito perfeito do verbo acabar combina os traços de anterioridade e coincidência temporais, de modo que, como na proposta de GIORGI; PIANESI, 1997GIORGI, A.; PIANESI, F. Tense and Aspect: from Semantics to Morphosyntax. Oxford University Press, 1997., entre outras, o pretérito perfeito do português seja uma relação entre um tempo que é anterior a um tempo de referência, o qual coincide com o tempo da fala). Mas se t’ é igual ao tempo da chegada de Cláudio e, por conta do traço de coincidência em T, t’ também é igual ao tempo da fala, temos uma contradição, pois a chegada de Cláudio se deu no passado, num tempo anterior ao tempo da fala. Sendo assim, a frase (32a) não pode ter a leitura de recência, somente a culminativa, como esperávamos.

E por que (31b) é melhor em relação a essa questão e permite a leitura de recência? Em (31b), o traço [+ant] dentro do CP, que se manifesta morfologicamente pela forma composta do verbo, não é herdado de T, mas carregado desde o início pelo núcleo F. Isso quer dizer que em T ainda temos os dois traços relacionados com o pretérito perfeito [+ant, +coinc]. Assim, quando T toma o vP, ele introduzirá um t” na expressão de tempo e dirá que o t’, que é o tempo da chegada de Cláudio em (32b), é anterior ao t”. Note-se que, apesar de o v logo abaixo de T não fornecer um evento ou um tempo de evento para o traço [+ant] em T, de alguma forma a adjunção da oração quando Cláudio chegou fornece esse evento ou esse tempo de evento. Por conta do traço de coincidência temporal em T, t” será igual ao ts. Ou seja, (31b) permite uma leitura em que o evento de pintar o muro é recente em relação à chegada de Cláudio, que está no passado. O grau mais reduzido de aceitabilidade de (31b) talvez tenha relação com o fato de que há uma expressão sinônima em que a flexão está expressa no verbo acabar (Pedro tinha acabado de pintar o muro quando Cláudio chegou), e na qual não há três traços interagindo como ocorre em (31b): duas vezes [+ant] e uma vez [+coinc]; ver discussão sobre o exemplo (28e) acima.

Agora voltemo-nos para (31d). Seguindo a lógica da proposta e da discussão que acabamos de conduzir nos parágrafos anteriores, (31d) deveria ter somente uma leitura “mais-que-perfeita”13 13 Ou seja, uma na qual te < t < t’ < ts e t → 0. Mas essa seria a leitura de uma sentença como (28e), Pedro tinha acabado de pintar o muro (quando Cláudio chegou), onde t’ seria coincidente com o tempo da chegada de Cláudio. , pois teríamos na LF o traço [+ant] em CP e na flexão do verbo acabar. Mas me parece que se não há nenhum outro evento expresso por alguma oração adjunta, essa sentença, na leitura de recência14 14 Aqui, mais uma vez, existe uma leitura culminativa marginal em que a forma composta do verbo não parece estar introduzindo relações temporais, mas uma espécie de reforço à condição de evento terminado na oração infinitiva. , só pode ser sinônima de (31c). Como lidar com isso? Imagino duas maneiras de resolver o impasse. A primeira é a possibilidade de se estabelecer uma espécie de “concordância” ou “identificação” em LF entre os traços de F e T, sendo uma das ocorrências do traço [+ant] (ou a albergada por T ou a albergada por F) neutralizada semanticamente por conta dessa “concordância” ou “identificação” entre traços iguais, mas em posições distintas da estrutura. A segunda é assumir que o espraiamento do traço [+ant] também pode ocorrer (marginalmente) antes do spell-out, tendo como consequência sua manifestação morfológica no verbo dentro do CP (a forma composta) e no verbo acabar, mas a mesma interpretação de (31c) (pois [+ant] é apagado em T quando a derivação chega a LF). Deixo as duas propostas somente esboçadas aqui, para desenvolvimento e discussão sobre prós e contras em pesquisas futuras.

Conclusões

O artigo se propunha a explicar as propriedades sintáticas, semânticas e morfológicas das construções envolvendo o verbo acabar seguido de oração infinitiva. Vimos que há duas leituras: a de recência e a culminativa. Argumentamos que a raiz do verbo acabar pode ocupar posições distintas na estrutura sintática do vP que encabeça, e que cada uma dessas posições está associada a uma das leituras, e implica um significado distinto para a raiz (ainda que possamos pensar que há um remanescente terminativo no significado associado às duas leituras, seja por apontar para o subevento final de um evento, seja por encerrar um evento ou parte de um evento em um tempo recente, deixando claro que esse evento ou essa parte de evento não perdura mais em algum tempo de referência posterior). Argumentamos, ainda, baseados em evidência empírica, que as próprias orações infinitivas são distintas a depender da leitura: uma, a com leitura culminativa, incluirá somente o vP ou Voz-P, tomado por núcleos funcionais da periferia esquerda da sentença (um deles realizado por de); a outra, com leitura de recência, incluirá, além do sintagma verbal completo e os nós da periferia esquerda, um núcleo funcional que albergará traços de tempo ou aspecto, pelo menos em LF.

A proposta explica os dados que discutimos ao longo do artigo, particularmente as questões relacionadas às restrições temporais associadas a uma ou outra leitura (cf. seção 3). Em pesquisas futuras, tentaremos ampliar a análise para outros tipos de verbos aspectuais, aproveitando insights alcançados neste trabalho.

  • 1
    Para marcar a leitura de recência costuma-se atribuir um acento ou ênfase ao verbo acabar.
  • 2
    Não tratarei neste artigo de uma possível classificação do verbo acabar, nas duas leituras sob análise, como verbo de reestruturação, ainda que reconheça que pelo menos algumas das características de verbos de reestruturação sejam identificáveis no verbo acabar em ambas as leituras. Sobre verbos de reestruturação, ver Cinque (2006)CINQUE, G. Restructuring and functional heads: the cartography of syntactic structures. New York: Oxford University Press, 2006., Fukuda (2006)FUKUDA, S. The syntax of Japanese aspectual verbs. San Diego: UCSD, 2006., Rech (2011)RECH, N. F. Verbos de reestruturação no português brasileiro. Revista do GEL, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 165-182, 2011., entre outros.
  • 3
    A não ser que se tratasse de uma tarefa de pintar as paredes por mais de seis horas. Nesse caso, posso dizer que acabei (terminei) a tarefa de pintar as paredes por mais de seis horas, sem contradição, e a locução por mais de seis horas parece estar, de fato, definindo um modo para o evento, não somente um intervalo temporal, que necessariamente excluiria a culminação desse evento. Veja-se que posso dizer: eu já acabei de pintar o muro por mais de seis horas conforme você me pediu.
  • 4
    Um dos avaliadores sugere que há um valor discursivo em sentenças como (7a) que não é encontrado em sentenças como (1): em (7a), a despeito de Pedro ser o agente da pintura do muro, um conjunto de circunstâncias culminou na sua pintura, como se o levassem a fazê-lo. Ainda que eu não o considere um “valor discursivo distinto”, essa propriedade é verdadeira, mas não resulta de um contraste pragmático. Argumento, em Medeiros (2020)MEDEIROS, A. B. Eu acabei escrevendo o artigo (de novo): um estudo sobre três construções ‘sinônimas’ com o verbo acabar no português do Brasil. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 28, n. 3, p. 1249-1290, 2020., que se trata de uma especificação semântica particular do verbo acabar no contexto de determinados tipos de complemento oracional (CP encabeçado pela conjunção que, orações gerundivas e orações que se seguem à preposição por).
  • 5
    O exemplo clássico do português falado no Brasil de preposição definido o caso morfológico de sujeito de oração infinitiva é a forma para mim fazer, que é muitíssimo frequente. Encontrei, no entanto, comportamento semelhante com a preposição de, em inúmeras ocorrências da sequência apesar de mim ter… na internet. Isso mostra que, pelo menos em certas construções, muitos falantes atribuem caso oblíquo ao sujeito de oração infinitiva adjacente à preposição de. Um exemplo de frase com apesar de mim ter é o seguinte: “Fiz uma cirurgia de varizes a uma semana atrás com ele, estava com medo, mas correu tudo bem, apesar de mim ter ficado nervosa. Muito bom médico…” Essa frase pode ser encontrada no seguinte endereço: https://www.doctoralia.com.br/medico/luiz+akira+okamoto-10596097/opinioes.
  • 6
    Note-se que verbos como parecer tampouco permitem o abandono do sujeito na oração infinitiva encaixada, gerando uma construção do tipo expletivo-associado. Por exemplo: *Pareceu eles construir aquela casa. Compare-se com eles pareceram construir aquela casa. Por outro lado, é possível haver algo semelhante a uma construção do tipo expletivo-associado em formas acabar+gerúndio: acabou eles escrevendo o artigo. Pode ser que, em geral, nas construções de alçamento, as orações não finitas tenham uma camada CP que impede a formação de uma associação entre um expletivo e o sujeito dessa oração; contudo, nas construções do tipo acabar+gerúndio a oração gerundiva não envolva CP (MEDEIROS, 2020MEDEIROS, A. B. Eu acabei escrevendo o artigo (de novo): um estudo sobre três construções ‘sinônimas’ com o verbo acabar no português do Brasil. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 28, n. 3, p. 1249-1290, 2020.; STOWELL, 1982STOWELL, T. The Tense of Infinitives. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 13, n. 3, p. 561-570, 1982., tratando de orações gerundivas do inglês em outros contextos sintáticos).
  • 7
    Note-se que a leitura de recência não é licenciada quando o tempo verbal de acabar é futuro (ver discussão sobre o exemplos (16) a seguir e penúltima seção deste artigo). Assim, frases como Ele vai acabar de pintar o muro em duas horas só têm leitura culminativa. Curiosamente, quando deslocamos a locução adverbial em duas horas para próximo da preposição de em uma sentença cujo tempo verbal de acabar é futuro, produzimos uma sentença mais degradada, justamente porque o tempo futuro não é compatível com a leitura de recência:
    (i) *?Ele vai acabar de em duas horas pintar o muro.
    Vale dizer, ainda, sobre (14b), que, colocando um acento sobre o verbo acabar e pausas em torno da locução adverbial em duas horas, a sentença melhora bastante. O acento ou ênfase sobre o verbo acabar marca a leitura de recência; cf. nota 2.
  • 8
    Parece-me haver uma leitura culminativa bastante marginal neste exemplo, quando o verbo acabar não é acentuado. Parece-me, ainda, que a forma composta no CP não está estabelecendo relações temporais quando a leitura é culminativa – é como se a forma composta do verbo na oração infinitiva fosse somente uma espécie de reforço ao fato de que o evento de pintar o muro está concluído.
  • 9
    Estou deixando de lado neste trabalho a discussão sobre o Caso nulo atribuído a PRO por parte da literatura (CHOMSKY, 1995CHOMSKY, N. The Minimalist Program. Cambridge: The MIT Press, 1995.); no contexto de (18), PRO não teria como checar, valorar ou receber esse Caso nulo. Também deixo de lado discussões a respeito de PRO não ser regido, como propõe a literatura GB (CHOMSKY, 1981CHOMSKY, N. Lectures on Government and Binding: the Pisa Lectures. New York: Mouton de Gruyter, 1981.).
  • 10
    Note-se que X talvez não seja semanticamente nulo em sentenças como em Pedro acabou a pintura do muro. Nesse caso a sentença não aponta para o subevento final do processo de pintar o muro, mas expressa, entre outras coisas, um estado da pintura do muro.
  • 11
    Note-se que “curto” é relativo e o que é curto num contexto pode não sê-lo em outro. Por exemplo, tomemos a frase João acabou de atingir a maioridade e já conseguiu seu primeiro milhão. Aqui, o intervalo entre João ter-se tornado maior de idade e eu ter dito a frase pode ser de meses ou até mesmo alguns anos, mas é considerado muito curto ou em relação à suposta vida longa que João vai ter ou em relação ao tempo médio que um adulto leva para amealhar seu primeiro milhão. Um intervalo de meses, contudo, não serviria num contexto em que eu vejo uma mancha de café na minha poltrona e alguém explica que João acabou de derrubar café aí
  • 12
    Encontrei, entretanto, algumas ocorrências como a que vai abaixo. Aqui, a leitura é de recência, mas o verbo acabar está na voz passiva. A forma me parece degradada, mas é frequente. Não tenho muito a dizer sobre ela, a não ser que é uma possibilidade de derivação reconhecida dos chamados verbos de reestruturação (cf. nota 3).
    Rafael Jardim Glória - Juiz de Fora, MG. Apartamento sem moveis, foi acabado de pintar, só precisa ser limpo para entrega-lo a imobiliária. Ícone de sucesso…
  • 13
    Ou seja, uma na qual te < t < t’ < ts e t → 0. Mas essa seria a leitura de uma sentença como (28e), Pedro tinha acabado de pintar o muro (quando Cláudio chegou), onde t’ seria coincidente com o tempo da chegada de Cláudio.
  • 14
    Aqui, mais uma vez, existe uma leitura culminativa marginal em que a forma composta do verbo não parece estar introduzindo relações temporais, mas uma espécie de reforço à condição de evento terminado na oração infinitiva.

Agradecimentos

Agradeço a Ana Clara Polakov, Filipe Hisao Kobayashi, Janayna Carvalho e aos membros do GELin pelas sugestões de melhoria de versões prévias deste trabalho. Agradeço também aos pareceristas pela leitura atenta e os comentários. Os erros e mal-entendidos que permanecerem são de minha inteira responsabilidade.

REFERÊNCIAS

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  • CHOMSKY, N. The Minimalist Program Cambridge: The MIT Press, 1995.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2018
  • Aceito
    23 Abr 2019
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