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Um laboratório para o Império

Gomes, Ana Carolina Vimieiro. Uma Ciência Moderna e Imperial: a fisiologia brasileira no final do século XIX (1880-1889). Belo Horizonte: MG: Fino Traço. Campina Grande, PB: EDUEPB, Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2013. 172

As décadas de 1870 e 1880 assinalam um momento decisivo no contexto imperial. Momento em que floresceram diversas instituições científicas e chegaram ao Brasil novos homens de ciência - como o cientista francês Louis Couty (1854-1884) - que traziam em suas bagagens novas ideias, um bando delas, que, por sua vez, prismaram as críticas às instituições imperiais, modelando novos projetos de nação e marcando a crise do Império. Era a primavera da ciência e o outono do Império. Nesse cenário, uma nova instituição científica marcaria o início das pesquisas fisiológicas nos Brasil, o Laboratório de Fisiologia Experimental anexo ao Museu Nacional do Rio de Janeiro.

O jornalista da Gazeta de Notícias (02 de abril de 1880) que cobriu a inauguração do novo laboratório para o Império detalhadamente descreveu os espaços numa narrativa longa e exclamou que aquele momento significava "uma nova época para a ciência no Brasil". Essa nova época materializada no Laboratório de Fisiologia Experimental tem sua história examinada no livro "Uma ciência moderna e imperial: a fisiologia brasileira no final do século XIX (1880-1889)". A autora do trabalho, Ana Carolina Vimieiro Gomes , investigou o processo de constituição de um novo campo de saber no país, a fisiologia experimental, nas décadas de 1870 e 1880. O livro resultou de sua tese de doutoramento realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (com estágio no Centre de Recherche Médecine, Sciences, Santé et Société, CERMES, França), a qual recebeu o prêmio de melhor tese pela Sociedade Brasileira de História da Ciência em 2012.

No percurso investigativo, Ana Gomes mirou a idealização, instalação, funcionamento, consolidação e declínio do Laboratório de Fisiologia. Seu objetivo era definir o sentido e o significado das práticas ocorridas no interior do Laboratório, bem como compreender o processo de produção e validação dos acontecimentos científicos realizados pelos atores envolvidos no laboratório. Ana Gomes aponta a significativa representatividade do Laboratório de Fisiologia para a ciência brasileira.

Entre os importantes trabalhos que dedicaram atenção à chegada das ideias científicas e à constituição da ciência nacional a partir da década de 1870, o livro de Ana Gomes tem o mérito de abordar esse período de modo pioneiro, ao examinar o papel central que a fisiologia experimental teve para a agenda científica do Império nas décadas de 1870 e 1880. O livro destaca a presença de alguns personagens que sobressaíram no ambiente científico do final do século XIX, como o Imperador Pedro II, o cientista francês Louis Couty e os cientistas brasileiros João Baptista de Lacerda e Ladislau Netto. Pelas ações desses homens é possível apreender uma complexa rede de saberes científicos que se estabeleceu entre Brasil e França. Rede que apoiou e sustentou a iniciação da fisiologia no Brasil.

No primeiro capítulo ("Um programa de 'ciência para o Brasil': o Laboratório de Physiologia Experimental do Museu Nacional"), Ana Gomes deslinda o processo de criação do Laboratório no cenário em que a ciência era entendida como agente capaz de transformar uma nação pré-civilizada em uma nação civilizada. Era um desejo de época instituir um programa de ciência para o Brasil como asseverou Louis Couty, o diretor do referido Laboratório. Com isso, a autora afirma que "a fisiologia, configurada na Europa durante o século XIX, parece ter consistido em uma disciplina exemplar para o ideal de ciência almejado para o país" (p. 21). Um dos objetivos da nova ciência a ser introduzida era a de aprimorar os produtos brasileiros, atendendo diretamente aos interesses da agricultura. Como observa Ana Gomes, "o trânsito pelas fazendas produtoras dessas culturas agrícolas foi significativo para o delineamento dos temas que foram privilegiados pela fisiologia experimental quando da implantação do Laboratório do Museu" (p. 27).

Naquele momento, a criação dos laboratórios atendia ao fito de consolidar "uma nação como o Brasil que queria se mostrar desenvolvida intelectualmente, moderna e civilizada". Desse modo, "investir em uma forma de institucionalização de uma ciência experimental, como a criação de laboratórios, poderia ser uma boa maneira de angariar prestígio científico internacional para o país" (p. 22).

Um dos principais temas de pesquisa no Museu Nacional era sobre a ação fisiológica do curare - veneno utilizado pelos índios da América do Sul. Com a chegada de Louis Couty, em 1879, as investigações científicas sobre o curare e outros temas recrudesceram e para suprir as crescentes demandas de pesquisas, Couty e Lacerda formularam um projeto de criação do Laboratório de Fisiologia Experimental. Para avaliar o projeto, o Imperador Pedro II e o Ministro da Agricultura visitaram o Museu Nacional, local de atuação de Couty, Lacerda e Ladislau Netto (diretor geral do Museu Nacional), e emitiram parecer favorável ao projeto. É interessante destacar, com Gomes, que Couty já havia publicado artigo em que defendia a criação de laboratórios para o país. O artigo, bem aceito pelos círculos intelectuais da época, pode ser entendido como um projeto de apresentação de Couty. Apresentava uma argumentação favorável ao que viria a ser o Laboratório e defendia o valor da atuação do homem de ciência para a sociedade.

O laboratório teve um papel importante na experimentação científica do final dos Oitocentos. Gomes observa que a cultura científica brasileira entendia que a prática da ciência em laboratório deveria ser análoga à da Europa, sendo primordiais o local e as instalações do laboratório. (p. 33-34) Para tanto, "os efeitos fisiológicos de plantas como mate, café, mandioca e outras substancias alimentícias e tóxicas são o elã, o fio condutor que fundamentou as justificativas para promover a implantação de uma instituição que pudesse analisá-las a partir de procedimentos considerados científicos" (p. 35).

Um dos pontos da argumentação da autora se ordena a partir da problematização do Laboratório de Fisiologia nas bases propostas por Bruno Latour e Michel Callon, isto é: "podemos pensar o movimento da laboratorização da fisiologia a partir da seguinte afirmação: 'dê-me um laboratório de fisiologia experimental que eu lhe erguerei ao mundo civilizado'" (p. 38). A legitimação da fisiologia experimental deveria estar aliada aos interesses da agricultura nacional. Seria com base na experimentação e aprimoramento dos produtos da nação que a fisiologia se consolidaria. Assim, diferentes interesses civilizatórios e econômicos de parte da sociedade brasileira, ou seja, das elites agroexportadoras se alinhavam.

No segundo capítulo ("O Museu, o Imperador e o Fisiologista na circulação nacional e internacional de conhecimentos de fisiologia brasileira"), Louis Couty e Pedro II são entendidos como mediadores culturais de práticas científicas que aguçavam as esperanças com o futuro do país. Além de Couty e do Imperador, o Museu Nacional, com o Laboratório de Fisiologia anexo, se constituiria em lugar privilegiado de troca, "de encontro entre a ciência europeia e a brasileira" (p. 64). A preocupação da autora nesse capítulo é pensar o Museu Nacional como "espaço estratégico para a inserção da fisiologia experimental - uma vez que este já se constituía de um locus privilegiado de institucionalização das ciências naturais no país" (p. 67).

Na vinda de Couty para o Brasil, o monarca teve papel importante que pode ser apreendido nas trocas de cartas entre ele e cientistas franceses que recomendaram Couty, assim com entre ele e o próprio Couty (p. 76). Na interpretação que apresenta das correspondências, Ana Gomes dialoga com dois estudiosos de Pedro II, José Murilo de Carvalho e Lilia Schwarcz, para questionar a ideia de mecenato do Imperador, defendida por eles, e enfatizar sua ação de "mediador cultural", noção que a autora toma emprestada de Serge Gruzinski e Louise Tachot. Segundo a autora, Pedro II deveria ser entendido como "um agente intermediador, ou especificamente um articulador, entre os modelos e práticas científicas da fisiologia europeia do século XIX e o ideal de ciência pretendido para o país naquele tempo" (p. 75). A noção de mediador cultural não elimina, porém, o peso institucional do imperador. Pedro II permanece como "agente relevante na afirmação da fisiologia no Brasil em fins do século XIX" (p. 79).

Por sua vez, Couty ilustra a dimensão circulatória que, segundo Gomes, compôs a inserção da fisiologia no Brasil. Dentro desse processo, Couty constitui-se num intermediador fundamental, agente responsável por colocar em prática tal dinâmica circulatória, no que diz respeito ao movimento de vinda e ida de conhecimentos, tendo destaque suas diversas comunicações apresentadas na Academia de Ciências de Paris e outras instituições análogas. Ressalta o capital científico de Couty como fundamental para a inserção da ciência brasileira nas comunidades científicas da França (p. 91). Diante do seu comprometimento na obra do Laboratório, Gomes levanta a hipótese de que junto aos seus esforços houvesse um projeto pessoal de Couty, quem, ao realizar pesquisas no Brasil, objetivaria o aprimoramento de sua carreira e credibilidade científica no exterior (p. 80).

Por fim, no terceiro capítulo ("Entre Sucessos, Controvérsias e Conflitos: o Declínio Do Laboratório De Fisiologia Experimental"), Ana Gomes registra o ponto alto e o declínio do Laboratório de Fisiologia a partir de meados da década de 1880. Para a autora o auge da fisiologia brasileira foi a descoberta do antídoto - o permanganato de potássio - contra o veneno de cobras por João Baptista de Lacerda. Diz a autora que se "por um lado, esse acontecimento constituiu o ponto alto da fisiologia experimental no país, porque finalmente mostrou-se passível de ser amalgamada às práticas terapêuticas da medicina, por outro, desencadeou uma controvérsia disciplinar {...}", isto é, querelas entre João Baptista de Lacerda e Louis Couty (p. 99). Outras questões e querelas ainda contribuíram para o declínio da fisiologia experimental, entre eles os problemas institucionais envolvendo Couty e Ladislau Netto, bem como a precoce morte de Couty (p. 99). Todavia, Ana Gomes evidencia que essas querelas são apenas a ponta do iceberg de uma grande disputa científica muito mais profunda, "na qual subjaz uma controvérsia acerca de diferentes regimes de validação de conhecimentos" (p. 116).

Em linhas gerais, Ana Gomes demonstra que existiram amplos movimentos em prol da ciência e o Laboratório de Fisiologia ocupou lugar de coadunar interesses políticos, econômicos, científicos a fim de elevar o país ao patamar civilizacional pretendido na época. Ao mesmo tempo direciona seus argumentos para demonstrar uma tensão entre o projeto de desenvolvimento de uma ciência nacional e os limites de um Estado monárquico e centralizador (p. 79). A vontade modernizadora era suprimida pela lógica estamental e pela estrutura ambivalente da burocracia político-administrativa do governo imperial que se pretendia moderna, mas era ao mesmo tempo centralizadora e conservadora. Para tanto recorre ao argumento de José Murilo de Carvalho referente à "dialética da ambiguidade", para afirmar que os conflitos no contexto de implantação, consolidação e declínio do Laboratório dão a ver uma relação ambivalente entre os anseios de se afirmar a fisiologia experimental no Brasil e a organização política do governo imperial (p. 141). Gomes aponta que o enfraquecimento do governo imperial e o consequente enfraquecimento político do Imperador tornavam frágeis o esteio, os interesses e os acordos que davam ao Laboratório legitimação social, sustentação política e apoio financeiro. Toda essa trama conflituosa e ambivalente, inclusive interesses extracientíficos, fez da fisiologia experimental uma "ciência que podemos caracterizar de moderna e imperial" (p. 142), explicando ao mesmo tempo seu sucesso e fracasso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016
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