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O MOVIMENTO ABOLICIONISTA DE 1879-1888: LIÇÕES DE UM MOVIMENTO DE REFORMA POPULAR

Embora honrado com o convite para escrever um artigo de opinião sobre o Abolicionismo do século XIX e sua relevância nos dias de hoje, eu hesitei. Eu sou um historiador americano; por ser um estrangeiro com formação profissional nos séculos XIX e XX, sinto-me desconfortável em sugerir que posso ser útil como comentarista político sobre o cenário atual do Brasil. No entanto, o fato de eu ser estrangeiro e alguém que tentou reconstruir o passado pode oferecer uma perspectiva útil sobre o Brasil e o presente. Que o leitor seja o juiz.

Muitos de nós fomos estimulados a estudar história com base num interesse político do nosso próprio tempo. Alguns buscaram na história uma explicação para as realidades atuais; outros, lições para questionar e mudar essas realidades. A sensação que tenho é que fazemos bem as duas coisas. No entanto, nossos interesses políticos representam um perigo para nossas análises históricas. Na minha vida profissional, trabalhei duro para recuperar o passado - não como eu gostaria que fosse, baseado nos meus próprios valores, mas como seus contemporâneos o entendiam. É difícil. Suspeito que muitos dos meus colegas concordam que é difícil não interpretar o passado sem fazê-lo em termos do nosso próprio presente e da nossa própria política. Embora uma análise completamente desapaixonada seja impossível, eu (como a maioria dos colegas) ainda acredito que somos mais propensos a entender o passado se tentarmos fazê-lo. Embora o passado possa ser reconstruído para justificar nossas opiniões políticas atuais, a maioria de nós concordaria que isso pode encobrir suas realidades reais, colocando em risco nossa compreensão bem sucedida sobre ele em termos de nossa realidade atual ou a possibilidade de mudar essa realidade para melhor.

Há muitos anos venho trabalhando na história política do Império do Brasil. Nos últimos 14 anos, foquei-me no Movimento Abolicionista Brasileiro (1879-1888). O Abolicionismo era distinto de qualquer movimento político anterior ou seguinte devido a uma combinação única de aspectos distintos: mudou do parlamento para as ruas como um movimento popular, e o fez rapidamente; abraçou uma série de reformas radicais interconectadas para beneficiar a maioria dos brasileiros; foi liderado por pessoas de origens e atributos políticos variados; foi sustentado com sucesso ao longo de quase uma década; teve um impacto crescente fora do Rio de Janeiro, atingindo um escopo nacional a partir de seu surgimento. Os movimentos provinciais foram nacionalmente significativos - pelo menos três foram críticos (os do Ceará, Pernambuco e São Paulo). A nível nacional, o movimento afetou gradualmente, mas claramente, a natureza e a direção da política e legislação parlamentar da monarquia, obrigando a elite a aceitar pelo menos uma reforma radical - a abolição imediata sem indenização. Tal triunfo estava muito à frente das metas iniciais do movimento, que, em 1880, primeiro envolvia uma transição gradual de 10 anos de trabalho escravo para trabalho livre, e depois, em 1882, enfatizava a persuasão moral para garantir a manumissão voluntária de escravos, impactando um menor número de cativos nas cidades. O objetivo de uma abolição imediata para todos os cativos sem indenização data apenas do início de 1883.

No Brasil, a mobilização popular para implementar as agendas da elite ou da classe média, especialmente nos centros urbanos, não foi nova. Esses esforços foram significativos imediatamente antes da independência, durante a formação do Estado independentes, e ao longo das disputas partidárias ao longo da era 1820-1848. Às vezes, eles abordavam questões raciais ou participação popular, mas eram breves, liderados e manipulados pela elite ou pela classe média, e suas questões mais prevalentes e populares eram contidas, anuladas e depois esquecidas. O Movimento Abolicionista era diferente. Rapidamente tornou-se um movimento caracterizado e dependente da mobilização popular que realmente acabou com a escravidão legal. Outras questões abraçadas pela liderança do movimento, desde as reformas agrárias até as políticas, foram rapidamente diluídas ou deixadas de lado - tanto pelas administrações no poder quanto pelo golpe de 1889 e sua consequente confusão sobre a natureza e a direção do Estado no início da década de 1890. Embora todos saibamos que o racismo brasileiro se manteve e se sustentou, a reforma implementada foi significativa. A escravidão legal foi encerrada - o que poderia ter durado até o século XX se o movimento não tivesse se formado e agido. O líder parlamentar, que primeiro defendeu o que se transformou no Movimento Abolicionista na Câmara dos Deputados e liderou o movimento tanto lá quanto nas ruas, esperava que a luta levasse décadas.

O Abolicionismo nasceu e se alimentou dos membros de elite do parlamento e do jornalismo. No entanto, não pode ser compreendido sem abordar o papel crítico da participação afro-brasileira em sua liderança e no setor popular urbano, bem como a natureza e o impacto de tal participação. Essa participação não foi apenas fundamental para que o movimento fosse bem sucedido, mas também para que fosse reconhecido e incentivado por sua liderança, que enfatizava a justiça, o progresso, a identidade racial e a solidariedade. A participação afro-brasileira e seu impacto encontraram seu último significado político nas elites da sociedade - dentro e fora do Estado. Nesses alcances, o sucesso do movimento na desestabilização da escravidão foi reconhecido e a decisão de acabar com a escravidão foi tomada para conter uma maior desestabilização da sociedade, da economia e do Estado.

No Brasil atual, assolado pela pandemia, pela profunda divisão política e pela contínua e incapacitante carga de racismo, que lições para a resolução e reforma progressivas essa história sugere? Deve-se proceder com cautela aqui, é claro. Por um lado, devemos aceitar que as circunstâncias de um movimento são únicas - o que deu certo para um movimento pode não dar certo para outro. Por outro lado, os reformistas do final dos anos 1870 e 1880 enfatizaram apenas uma em uma longa lista de reformas: a que pode atrair a maioria dos brasileiros e potencialmente levar a outras. O fato de terem escolhido a escravidão pode muito bem ter tido a ver com a apreciação de seu potencial para atrair a oposição geral. Afinal, apenas a própria elite (e principalmente a elite em uma ou duas regiões) tinha interesse na escravidão após o fim do comércio de escravos africanos. Não era mais um lugar comum ou, pelo menos, uma aspiração, como havia sido até 1850 entre brasileiros livres de todas as cores, tanto na elite rural quanto urbana, da classe média e até mesmo entre as massas trabalhadoras livres - era um alvo bárbaro que a maioria poderia atacar.

Outros aspectos do Movimento Abolicionista parecem oferecer orientação útil a qualquer movimento radical orientado à reforma. Em primeiro lugar, como mencionado anteriormente, o movimento apelou e mobilizou elementos nas variadas classes e cores que dividem o Brasil. Era transversal à classe e à cor, com uma visão positiva abraçando toda a sociedade, e enfatizava uma causa correlacionada com esperanças e ideais que a grande maioria poderia aceitar e abraçar. Em segundo lugar, seus principais líderes e seus seguidores logo aprenderam a trabalhar juntos, apesar de serem significativamente diferentes em relação à classe e cor, bem como em pontos pessoais fortes e fracos e perspectiva política. Embora formados por pelo menos duas alas distintas - as mais reformistas e as mais radicais, cada uma com sua base política separada e suas táticas diferentes - foram aliados em um movimento só, trabalhando juntos para alcançar metas acordadas. Suas diferenças eram muitas vezes úteis para o movimento; ações estatais indicam que, com o tempo, o Estado pode ter se voltado para a liderança e ala mais reformistas, em parte por preocupação com os mais radicais. Como parte constituinte desse processo, todos os principais líderes passaram a subordinar suas ações e contatos individuais, seguindo objetivos comuns. Eles se estenderam, se comunicavam constantemente e dominavam a maior organização guarda-chuva. Em terceiro lugar, o movimento estava disposto a abraçar o reformismo estatal que se abstive de muitos de seus objetivos finais, mas ao menos abriu a porta para eles. Consequentemente, o Estado negociou com o movimento, ao mesmo tempo em que consultava a liderança reformista. Assim, o Estado reconheceu pelo menos parte do mérito da causa, para ir além da frustração e do antagonismo e tentar conter o movimento. Finalmente, no primeiro momento quando o movimento emergiu e posteriormente quando ele estava na fase final e mais radical, o Estado não apoiou a causa, sendo que o movimento forçou seu reconhecimento e a mudança política do Estado por meio da mobilização popular pública; uma mobilização que cresceu dramaticamente ao longo do tempo por meio de manifestações efetivas que não podiam ser ignoradas pelos estadistas ou a coroa. Para isso, o movimento foi organizado nos moldes de seus diversos círculos eleitorais, desde escravos e libertos até confrarias religiosas, grupos de classe trabalhadora qualificados, mulheres de classe média e grupos profissionais. Tanto os líderes estaduais quanto os líderes do movimento reconheceram e trabalharam dentro das fases da correlação entre o movimento e o comportamento do Estado.

Apesar de falhar em alcançar a maior parte do que imaginava, o movimento resultou na Lei Áurea. Considerando que conseguiu fazê-lo diante de um Estado administrado por proprietários de escravos e em um país onde a escravidão ainda era considerada crítica para a economia, esta é uma conquista a ser considerada não apenas como uma glória da luta brasileira, mas também como um exemplo sugestivo de como a mudança progressiva pode ser implementada novamente.

Referências Bibliográficas Selecionadas, em ordem de publicação:

Para uma introdução aos trabalhos associados ao Movimento abolicionista no Brasil até 2010, ver:

Jeffrey D. Needell, “Brazilian Abolitionism, Its Historiography, and the Uses of Political History,” Journal of Latin American Studies, 50:23 (May 2010): 231-61.

Para uma introdução a alguma bibliografia e autores associados ao Movimento abolicionista no Brasil de forma mais geral (ou seja, antes e depois de 2010 e além do movimento nacional centralizado no Rio de Janeiro), consulte Jeffrey D. Needell, “Introdução: Outro Mundo Político ”, in idem, The Sacred Cause, citado abaixo.

No movimento abolicionista, uma lista selecionada de relatos de contemporâneos inclui:

Joaquim Nabuco, Minha formacao (Rio de Janeiro: Garnier, 1900Joaquim Nabuco, Minha formacao(Rio de Janeiro: Garnier, 1900).).

Tobias Monteiro, Pesquisas e depoimentos para a historia (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913Tobias Monteiro, Pesquisas e depoimentos para a historia(Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913).).

Osorio Duque-Estrada, A abolicao (esboco historico): 1831-1888 (Rio de Janeiro: Leite Ribeiro &Maurillo, 1918).

Evaristo de Moraes, A campanha abolicionista (1879-1888) (Rio de Janeiro: Leite Ribeiro,Freitas Bastos, Spicer, 1924).

As análises secundárias pioneiras incluem:

Emilia Viotti da Costa, Da senzala a colonia, 2a. ed.. Sao Paulo: Ciencias Humanas, 1982Emilia Viotti da Costa, Da senzala a colonia, 2a. ed.. Sao Paulo: Ciencias Humanas, 1982 [1966]). [1966]).

Robert Brent Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil. (New York: Atheneum, 1971Robert Brent Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil. (New York: Atheneum, 1971).).

Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery: 1850-1888. ( Berkeley: Univ. of California, 1972Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery: 1850-1888. ( Berkeley: Univ. of California, 1972).).

Rebecca Baird Bergstresser, “The Movement for the Abolition of Slavery in Rio de Janeiro, Brazil, 1880-1889.” PhD diss., Stanford University, 1973 Rebecca Baird Bergstresser, “The Movement for the Abolition of Slavery in Rio de Janeiro, Brazil, 1880-1889”. PhD diss., Stanford University, 1973..

As análises secundárias recentes incluem:

Angela Alonso, Flores votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). Sao Paulo: Companhia das Letras, 2015Angela Alonso, Flores votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). Sao Paulo: Companhia das Letras, 2015).).

Jeffrey D. Needell, The Sacred Cause: The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. (Stanford: Stanford University Press, 2020Jeffrey D. Needell, The Sacred Cause: The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. (Stanford: Stanford University Press, 2020).).

References

  • Jeffrey D. Needell, “Brazilian Abolitionism, Its Historiography, and the Uses of Political History,” Journal of Latin American Studies, 50:23 (May 2010): 231-61.
  • Joaquim Nabuco, Minha formacao(Rio de Janeiro: Garnier, 1900).
  • Tobias Monteiro, Pesquisas e depoimentos para a historia(Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913).
  • Osorio Duque-Estrada, A abolicao (esboco historico): 1831-1888 (Rio de Janeiro: Leite Ribeiro &Maurillo, 1918).
  • Evaristo de Moraes, A campanha abolicionista (1879-1888) (Rio de Janeiro: Leite Ribeiro,Freitas Bastos, Spicer, 1924).
  • Emilia Viotti da Costa, Da senzala a colonia, 2a. ed.. Sao Paulo: Ciencias Humanas, 1982 [1966]).
  • Robert Brent Toplin, The Abolition of Slavery in Brazil (New York: Atheneum, 1971).
  • Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery: 1850-1888 ( Berkeley: Univ. of California, 1972).
  • Rebecca Baird Bergstresser, “The Movement for the Abolition of Slavery in Rio de Janeiro, Brazil, 1880-1889”. PhD diss., Stanford University, 1973.
  • Angela Alonso, Flores votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). Sao Paulo: Companhia das Letras, 2015).
  • Jeffrey D. Needell, The Sacred Cause: The Abolitionist Movement, Afro-Brazilian Mobilization, and Imperial Politics in Rio de Janeiro (Stanford: Stanford University Press, 2020).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2020
  • Aceito
    01 Nov 2020
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