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Como palavras desenham fronteiras: os sentidos da denominação “paulista” nas nobiliarquias de Pedro Taques em meados do setecentos

How words draw borders: the meanings of “paulista” in Pedro Taques’ nobility titles from mid-18th century

RESUMO

Os títulos nobiliárquicos de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, de meados do século XVIII até sua morte, em 1777, foram redigidos durante período de intensa redefinição do papel da capitania de São Paulo em relação à Coroa e à América portuguesa como um todo. Após o período de submissão administrativa ao Rio de Janeiro (1748-1765) e em meio às negociações das fronteiras entre as colônias ultramarinas portuguesa e espanhola para a assinatura e implementação do Tratado de Madrid (1750), os paulistas viam-se em posição renovada e almejavam ampliar os reconhecimentos de seus feitos e, assim, as benesses que poderiam emergir. Nessa articulação entre política, território e as antigas e atuais relações com grupos indígenas, Taques escreve centenas de solicitações de reconhecimento de nobreza para as principais famílias paulistas. A análise sistemática da totalidade dos títulos genealógicos remanescentes desse conjunto permite divisar as estratégias narrativas de tais pedidos e os significados que construíram para um grupo específico e limitado dentro dessa população: os “paulistas”. Este artigo apresenta o exame dos textos genealógicos, em sua redação e pela extração de dados quantitativos, circunscrevendo a fixação de certos valores, antecedentes e hábitos que serão atribuídos exclusivamente a esses “paulistas” - e não à totalidade da população desse território -, buscando subverter séculos de lendas e documentos que os classificavam como violentos, cruéis e insubordinados. Ressalto, ainda, como essa operação será fundamental na configuração posterior da mitologia bandeirante, que generaliza a associação entre esses homens e o ímpeto comum dos paulistas.

PALAVRAS-CHAVE:
Paulistas; Pedro Taques de Almeida Paes Leme; São Paulo (capitania); Imaginário; Representações; Genealogias

ABSTRACT

Pedro Taques de Almeida Paes Leme’s nobility titles, dated from mid-18th century until his death, in 1777, were written during a period of intense redefinition of the captaincy of São Paulo’s relations with the Portuguese Crown and the colony as a whole. After its administrative subordination to Rio de Janeiro (1748-1765) and amidst border negotiations between Spanish and Portuguese America for the signing and implementation of the Treaty of Madrid (1750), the Paulistas (inhabitants of São Paulo) sought to expand the recognition of their conquests and consequently gain more benefits. Articulating politics, territorial definitions, and both past and contemporary relations with indigenous groups, Taques writes hundreds of requests for recognition of nobility for the main families of São Paulo. By systematically analyzing the remaining genealogies, one can observe the narrative strategies employed by such requests and the built-in meanings of a particular and limited group within this population: the “paulistas”. This paper examines these nobility titles in their writing and by extraction of quantitative data, circumscribing the establishment of certain values, backgrounds and habits exclusively to said “paulistas”-and not to all the captaincy population-, subverting century old legends and documents that painted them as a violent, cruel, and insubordinate group. Lastly, this resignification will be instrumental to the 20th century historical construction of the bandeirante mythology, which generalizes the association between these men and a common ethos shared by all paulistas.

KEYWORDS:
Paulistas; Pedro Taques de Almeida Paes Leme; São Paulo (captaincy); Imaginary; Representations; Genealogies

INTRODUÇÃO

Na investigação cruzada entre as imagens dos bandeirantes e dos pioneiros, ambas fundantes das mitologias nacionais brasileira e estadunidense respectivamente, Vianna Moog estuda a formação, o poder e a permanência de tais simbologias. Segundo ele, o início do século XX viu surgir uma historiografia paulística2 2 Blaj (2002). de “magnificação do bandeirante”,3 3 Moog (2000 [1955], p. 191). composta por expoentes como Afonso d’Escragnolle Taunay, Alcântara Machado e Alfredo Ellis Jr., cujo referencial teórico estreitava-se com as narrativas de desbravamento e conquista do oeste norte-americano, construídas a partir do final do Oitocentos, especialmente por meio da Frontier Thesis, de Frederick Jackson Turner,4 4 Turner (1994 [1893], p. 31-60). proferida em 1893.

Em diálogo com Pierre Monbeig, Moog busca decifrar a transformação do ideário de ousadia e intensa mobilidade atrelado aos antigos sertanistas em um mito de entusiasmo pela agricultura e fixidez territorial. Ambos concordavam com a extrema “eficácia psicológica”5 5 Monbeig (1998 [1952], p. 121). do imaginário erigido em torno da figura do bandeirante, que encapsulava valores morais de dignidade e empreendedorismo, mesclando presente e passado, alinhavando as vidas de novos colonos e antigos desbravadores. Criava-se, assim, uma tradição na qual podiam tomar parte todos os paulistas, de origem ou de escolha. Ainda que a mitologia tenha se tornado sinônimo de história nacional - especialmente em sua associação com a dilatação das fronteiras -, é em São Paulo e sobre São Paulo que mais se assentou, servindo ao momento de crescimento político e econômico experimentado pelo estado com a expansão agrícola e industrial nas primeiras décadas republicanas.

A historiografia que cravou o bandeirantismo na fundação da pátria, de acordo com Moog, tornou obsoleta a “necessidade de recorrer a Pedro Taques ou a frei Gaspar da Madre de Deus”,6 6 Moog, op. cit., p. 191. tamanha a consolidação dessas representações na intelectualidade, no ethos e na memória coletiva. Ainda que a conclusão seja inequívoca, os escritos de membros das famílias mais importantes e poderosas da capitania paulista no século XVIII contêm chaves explicativas centrais à compreensão da manufatura da mitologia bandeirante - que ganharia forma quase dois séculos depois. A partir de olhar detido sobre esses materiais, vê-se como foi possível subverter mais de um século de lendas e documentos acusatórios acerca da índole dos moradores de São Paulo, que datam desde o princípio do Seiscentos, e transformá-los em um apanhado de atributos desejáveis, valorosos e potentes, frente aos novos rumos da Colônia, incluindo os processos de ocupação territorial interna e os embates entre as Coroas ibéricas em torno do desenho das fronteiras entre suas posses ultramarinas. Neste artigo, empreendo o exame sistematizado de uma dessas fontes, qual seja, a produção genealógica de Pedro Taques de Almeida Paes Leme - reputado por Taunay como “historiador das bandeiras paulistas, dilatadoras do Brasil, historiador da conquista do Brasil pelos brasileiros”7 7 Taunay (1923, p. 11). -, desnudando os padrões de escrita por meio dos quais o autor opera e propõe ressignificações para o passado e a história de seus antecessores - e, assim, para si e seus pares.

No conjunto de genealogias e requerimentos de comprovação de nobreza produzido por Taques,8 8 Leme (1980). entre meados do século XVIII e seu falecimento, em 1777, vemos a construção de uma narrativa específica dentro da lógica da mercê, sobre si e seus pares, que buscava garantir benesses e ocultar as máculas nas linhagens que haviam se aparentado com os indígenas. Ainda que houvesse modelos correntes para esse tipo de processo, que certamente seriam conhecidos e seguidos pelo genealogista, interessa-me aqui a maneira como ele mobiliza e manipula os conteúdos impressos em suas páginas. O autor entremeia documentos cartoriais e narrativas que corriam oralmente sobre as descobertas e conquistas - elementos presentes no imaginário daquele período - e reorganiza o discurso sobre esses acontecimentos, reforçando certos aspectos, repetindo caracterizações específicas e, assim, imprimindo nesse conjunto de histórias elementos que direcionam a leitura e transformam seus significados.

Em seus escritos, os “paulistas”,9 9 Redijo o termo entre aspas para referir-me ao uso feito por Taques, diferenciando-o da toponímia regular. mais do que originários desse território, seriam aqueles dentre as famílias naturais ou estabelecidas em São Paulo que ostentavam atributos de subordinação à Coroa, empreendedorismo, generosidade, honra, experiência no sertão, habilidades na guerra contra grupos indígenas, ascendência que remete aos primeiros povoadores e às nobres casas europeias e desempenho de cargos de governança. Dessa maneira, o autor ressignifica os chamados sertanistas e seus feitos, estabelecendo os laços entre eles e seus herdeiros e legitimando o protagonismo dos descendentes, que deveriam reproduzir o retrato de liderança de pais, avôs, tios e sogros e sua busca incansável por melhores condições de aproveitamento dos recursos disponíveis, tomando as “rédeas do governo da república” - expressão repetida em vários títulos - de São Paulo e demais vilas.

Seu discurso, além de motivado pela inserção de seus contemporâneos na “economia da mercê”,10 10 Cf. Olival (2001), Bicalho (2005) e Monteiro (2005). articulava o imaginário ao material, à medida que as descobertas, conquistas e serviços dos paulistas configuravam, de uma só feita, a imagem desses homens e também as bases para solicitações de cargos, terras e privilégios variados, que reposicionavam ou solidificavam seus lugares em relação ao resto da população da capitania, da totalidade da Colônia e, em algum grau, do Império português. Observa-se, ainda, o processo de criação de novas vilas, registrado nas próprias genealogias, a partir da formação e expansão de clãs parentais. Importante notar que essa produção se articulava ainda aos escritos históricos de Pedro Taques, nos quais o autor se debruça sobre a trajetória da cidade e da capitania e acontecimentos específicos protagonizados pelos moradores de São Paulo, como o descobrimento de minas de ouro e a expulsão dos jesuítas.11 11 Para análises dessa produção e das agruras que marcaram a trajetória de Pedro Taques, ver Silva (2009) e Taunay (1980, p. 11-36). Conforme ressignificava esses homens, Taques reabilitava a própria capitania, fortalecendo o argumento de sua relevância para a Coroa e a fazenda real.

Neste artigo, realizo leitura sistematizada da totalidade dos títulos remanescentes produzidos por Taques, construindo um cenário analítico coletivo, em lugar da leitura usual dessa fonte, sequencial e individualizada. Mantendo o agrupamento por troncos familiares, circunscrevo categorias particulares de atributos relacionados pelo autor às pessoas inventariadas, apontando sua centralidade na configuração de uma denominação específica de “paulista”, nitidamente definida em termos das relações delineadas entre esses indivíduos - suas famílias e o grupo dos “paulistas” - e a administração colonial. Rodrigo da Silva, ao tratar da totalidade da produção escrita de Taques, conclui que o autor pouco expõe suas “colocações e opiniões a respeito da cidade e da capitania”.12 12 Silva, op. cit, p. 29. Contudo, a análise ora empreendida desnuda o mecanismo de repetições e construção de fronteiras semânticas que cria sentidos para a história do território e da população de São Paulo - é na reiteração de certos elementos narrativos, retomados a cada título, que o genealogista imprime significados específicos e bem determinados dentro dos limites das atribuições desejáveis no escopo do Antigo Regime.

No correr do Setecentos, os homens de São Paulo já tinham longo histórico de questionamento sobre sua vassalagem à Coroa portuguesa e frequentes censuras permeadas por descrições de violência e insubmissão a Deus, atribuídas a suas relações estreitas com grupos indígenas. Essa mesma proximidade, no entanto, seria a razão pela qual teriam se tornado exímios conquistadores, cuja força militar foi repetidamente acionada pela administração colonial no enfrentamento de nativos e escravizados. O imaginário construído sobre esses habitantes - e também por eles próprios - fundamentou-se no movimento entre “vícios e virtudes”, na expressão mobilizada por Laura de Mello e Souza. Foi no período de restauração da capitania de São Paulo que “os habitantes de São Paulo recriavam o passado, idealizando-o e configurando ideologicamente o ‘paulistanismo’”.13 13 Souza (2006, p. 139).

Note-se ainda o papel da nomenclatura “paulista”, ressignificada pelo genealogista na formação de uma identidade própria para esses habitantes, que permite se aproximarem entre si e diferenciarem-se dos demais colonos, a partir da fixação de sentidos valorosos para o passado dessas famílias, muitas vezes coibido e recriminado. Vale destacar a concomitância entre a produção desses textos e o reestabelecimento da capitania de São Paulo, submissa à do Rio de Janeiro entre 1748 e 1765, período de intensa produção de Taques e constantes negociações de fronteiras entre as Coroas portuguesa e espanhola. Sugiro, assim, a relevância da produção do genealogista em meio às disputas de legitimidade e autonomia em meio às quais movimentava-se a população de São Paulo em meados do século XVIII.

DIVERGÊNCIAS, CONTENDAS E O SIGNIFICADO DOS “PAULISTAS”

Em seu “Voto do Padre Antônio Vieira sobre as dúvidas dos moradores de S. Paulo acerca da administração dos índios”, datado de 12 de junho de 1694, o referido clérigo propõe-se a responder os pedidos daquela população, que buscava legitimar o uso que faziam dos nativos como servos. Ao definir sobre quais indígenas trataria em sua resposta, logo nas primeiras linhas do voto, Vieira escreve:

São, pois, os ditos índios, aqueles que, vivendo livres, e senhores naturais das suas terras, foram arrancados delas por suma violência e tirania, e trazidos em ferros, com a crueldade que o mundo sabe, morrendo natural e violentamente muitos nos caminhos de muitas léguas, até chegarem às terras de São Paulo, onde os moradores delas - que daqui por diante chamaremos paulistas - ou os vendiam, ou se serviam e se servem deles como escravos, esta é a injustiça, esta a miséria, este o estado presente, e isto o que são os índios de São Paulo.14 14 Vieira (1992, p. 102-121, grifo nosso).

No trecho em destaque, vê-se o uso da expressão “paulistas” como equivalente de “moradores de São Paulo”, considerada uma das primeiras ocorrências dessa denominação, além de importante difusora.15 15 Souza (2000, p. 267). Todavia, a utilização desse adjetivo pátrio em documentos do final do século XVII e mesmo do começo do seguinte não era generalizada. Na documentação camarária da vila de São Paulo, é no mesmo ano de 1694 e sobre a mesma questão da administração de indígenas pelos particulares que o termo aparece pela primeira vez,16 16 Termo de Vereasão e asento q. se fes sobre a vinda do p.e provimsial alexando de gusmão com hua ordem do g.or geral e copia de hua Carta de sua mag.de q. deus guarde sobre particular de Indio e asento q. se fes sobre esa materia (ACTAS DA CAMARA DA VILLA DE S. PAULO, 1915, p. 447-452). sendo usado ainda em 1700 para tratar dos direitos dos “descubridores das minas do ouro”.17 17 Termo de Requerim.to do povo sobre o descubrim.to dos cuatagoas (Ibid., p. 536-537). Sete anos depois, novamente em referência às frutíferas explorações nos sertões, esses homens voltam a ser nomeados os “Paulistas”.18 18 Termo de vereança (ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE S. PAULO, 1916, p. 157).

Os dois temas - aprisionamento de indígenas e reconhecimento das descobertas auríferas - colocavam os moradores do planalto em contato direto - e, não raro, em grave oposição - com jesuítas e outros colonos, respectivamente. Entre os religiosos da Companhia de Jesus e os moradores de São Paulo, a disputa sobre a legitimidade da arregimentação e administração dos nativos era querela duradoura. A animosidade remonta às invasões dos colonos em missões jesuíticas, entre as décadas de 1620 e 1640, na região do Guairá, área de posse disputada e limites geograficamente imprecisos no interior da América Meridional, para a qual confluíam indígenas de diversas nações, religiosos, portugueses, espanhóis e mesmo outros europeus. Os padres lesados nos ataques dirigiam-se ao rei das Coroas ibéricas, pedindo o retorno dos nativos capturados em missivas que descreviam as ações dos “portugueses de São Paulo” como violentas e heréticas, configurando crime contra Deus e a Coroa, rotineiramente em conluio com os Tupi: “viviam anos nos sertões, tornando-se praticamente bárbaros, amancebando-se continuamente com indígenas”.19 19 Vilardaga (2010, p. 283, grifo do autor).

Pelas mãos dos religiosos agredidos e insultados, foi cunhada a “lenda negra”. Os principais criadores e disseminadores dessas representações teriam sido os padres Simão Masseta, Justo Mancilla, Antonio Ruiz de Montoya e Francisco Dias Taño, cujos textos perseveraram e produziram legados ao longo do século XVII, e mesmo depois disso. Nesses escritos, encontram-se referências aos “Portugueses de San Pablo”,20 20 Traslado do auto que mandou fazer d. Luis Diogo de Oliveira, governador do Brasil, sôbre as resoluções tomadas quanto à entrada de alguns portuguêses no sertão. Cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, 27-IX-1629 (CORTESÃO, 1951, p. 306-309). “vecinos y moradores de la vila de San Pablo de Piratininga”, “estos de S. Pablo”, “moradores de San Pablo”, “vandoleros de S. Pablo”21 21 Relação feita pelos padres Justo Mancilla e Simão Masseta, quer ao rei, quer ao provincial Francisco Vazques de Trujillo, sôbre os estragos causados pela grande bandeira de Rapôso Tavares às missões do Guairá nos anos de 1628-1629. Cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, 10-X-1629 (Ibid., p. 310-339). e construções similares para referirem-se aos colonos que realizavam “correrias” e assaltos às reduções.

Por sua vez, as sobreditas referências nas atas da Câmara aos descobridores das minas de ouro feitas em 1700 e 1707, em que esses homens são também tidos por “paulistas”, indicam outra faceta da necessidade de diferenciação, qual seja, em relação aos demais colonos que rumavam para aqueles arraiais e povoações, em busca de seu quinhão das explorações. Os moradores de São Paulo identificavam-se como precursores dos descobrimentos e viam como ameaça a chegada de outros colonos. Nesse cenário, a identificação de grupo, a partir da ótica da origem e opondo-se ao “outro”, foi uma das estratégias empregadas nos embates locais e no âmbito do governo colonial. A chamada Guerra dos Emboabas (1707-1709), cujos episódios remontam a período próximo ao das menções do direito dos exploradores de São Paulo na documentação camarária, expõe essa linha de argumentação, segundo a qual os conquistadores originais daquelas riquezas eram identificados como “paulistas” e os adventícios, tanto de outras partes da colônia quanto do Reino, como “emboabas”. Durante as disputas pelos direitos de exploração aurífera nas Minas Gerais, desde fins do Seiscentos, diversos topoi referentes aos paulistas circularam na Colônia, principalmente remetendo-se à sua suposta heresia, barbaridade, mestiçagem, isolamento, nomadismo e insubordinação à Coroa. Para Adriana Romeiro, os contatos entre diferentes grupos populacionais da sociedade colonial resultavam na conformação de coletividades e alteridades, igualmente autopercebidas e reconhecidas pelos “outros” - como no caso do epíteto “emboada”.22 22 Romeiro (2008, p. 225-275).

Nos debates acerca das disputas nas áreas recém-ocupadas pelos colonos, é relevante notar a forma como os ministros do Conselho Ultramarino aludem às duas coletividades em conflito, em consulta datada de 17 de julho de 1709. Por um lado, não aderem a nenhuma das adjetivações associadas aos adventícios, referindo-se a eles como “reinóis”, grupo que configurava uma parte significativa dos forasteiros; por outro, remetem-se, repetidas vezes, aos “paulistas”,23 23 Consulta do Conselho Ultramarino de 17 de julho de 1709. Documentos Históricos, v. XCIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional; Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951 (apudFONSECA, 2011, p. 138-139). o que leva a crer que tal qualificação era conhecida e reconhecida, a essa altura, tanto na Colônia quanto no Reino, ao menos nas esferas de contato entre uma e outro. Portanto, assim como nas escaramuças e confrontos entre moradores de São Paulo e jesuítas sobre o apresamento e a administração de indígenas, as reivindicações de poder em função das explorações pelo sertão que localizaram pedras e metais preciosos também foram terreno fértil para a construção de ideias de pertencimento - mesmo que momentâneas e motivadas por interesses específicos - em torno do termo “paulistas”. Como visto nas circunstâncias abordadas, a expressão foi mobilizada ora pelos próprios piratininganos, ora por seus opositores, chegando até a circular no espaço do Conselho Ultramarino - mas, em todos os casos, vinculada a conjunturas de disputa.

A proximidade dos sertanistas de São Paulo com grupos indígenas resultava no afastamento entre eles e os reinóis, tanto pelos costumes diferenciados, quanto pela constante ameaça de mácula nas linhagens. Quando confirmada essa mancha, o desabono significava a impossibilidade de desempenhar funções políticas, de ingressar no universo religioso e de obter privilégios, como terras e outras solicitações feitas à Coroa, uma vez que todas essas atividades requeriam as comprovações de limpeza de sangue e procedência adequada, feitas por meio de investigações cartoriais. Por outro lado, a afinidade de certos colonos com algumas nações de nativos garantiu sua excelência nas incursões pelo sertão e possibilitou descobertas de metais e pedras preciosas - bastante almejadas por sucessivos monarcas portugueses -, além da abertura de caminhos e estabelecimento de pov=oações, que possibilitavam e consolidavam as incursões exploratórias e a posse de novas porções das áreas coloniais. Além disso, essas entradas resultaram, não raro, nos chamados “descimentos”, conduzindo numerosas populações nativas ao aldeamento, sob o controle dos colonos. E os homens de São Paulo bem souberam mobilizar seus resultados em benefício próprio e de seus descendentes: “Sagazes, [os sertanistas] haviam desenvolvido uma fórmula eficiente para o encaminhamento de suas pretensões, exagerando a relevância dos feitos e invocando, ao mesmo tempo, os sacrifícios e as tribulações sofridas para alcançá-los”.24 24 Romeiro, op. cit., p. 242.

Não foram poucas as circunstâncias em que a Coroa portuguesa reconheceu explicitamente as benesses advindas das empreitadas desses sertanistas, remetendo cartas nominalmente endereçadas, em fins do século XVII, referentes a ações individuais ou coletivas e oferecendo mercês em troca dos serviços prestados. Essas considerações e, nas décadas seguintes, a colaboração direta e indireta na construção de uma representação da colônia como território efetivamente dominado - como realizado no Mapa das Cortes -,25 25 Sertanistas (SANTOS, 2018, p. 51-116). foram entremeadas por disputas de autonomia e legitimidade na capitania de São Vicente e, posteriormente, de São Paulo. A elevação de São Paulo a cidade em 1711 foi sucedida rapidamente pelo desmembramento da sua área em novas capitanias e, por fim, por sua submissão ao governo do Rio de Janeiro, que vigorou de 1748 a 1765.

Durante esse período, Pedro Taques, natural de São Paulo, nascido em 1714 e falecido em 1777, realizou boa parte da sua produção de escritos genealógicos e nobiliárquicos, sendo muitos deles encomendas de seus compatriotas, feitas com o objetivo de atestar laços com a nobreza europeia, limpeza de sangue e serviços prestados à Coroa. Ou seja, comprovações de pertencimento ao Império português, sem desvios ou traições, que garantiriam o merecimento, por direito, de privilégios e benefícios dentro desse universo. Esses escritos seriam uma reação direta à “lenda negra”, especialmente à publicação, em 1757, do livro Histoire du Paraguay, de Pierre François Xavier de Charlevoix, “padre jesuíta que nunca esteve no Paraguai”.26 26 Abud (1985, p. 92). A Guerra dos Emboabas teria, ainda, contribuído para o ressentimento que embasaria as construções historiográficas dos paulistas na segunda metade do século XVIII. Em parte, essa produção buscava atualizar e resolver os conflitos originais daquele embate.27 27 Cf. Kobelinski (2008) e Schneider (2016).

Ao longo de décadas, foram produzidos supostamente cerca de cem títulos, dos quais chegaram aos nossos dias apenas um quinto ou um quarto, em função de extravios, perdas de originais e do terremoto de grandes proporções que atingiu Lisboa em 1755, onde o genealogista se encontrava, para realizar reivindicações de mercês em nome de algumas das famílias sobre as quais escreveu. Os escritos remanescentes foram transcritos e publicados, primeiro pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em fins do século XIX, e depois pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, como parte das comemorações do bicentenário de nascimento de Taques, em 1914. Ao que consta, era do interesse do genealogista publicar esses textos reunidos, o que não foi possível durante sua vida. Apesar de os títulos sobreviventes serem apenas uma parcela do total que se acredita que tenha existido, é um volume considerável, que permite discutir essa produção como um todo, em suas estratégias narrativas. Taques pesquisou e reuniu inúmeros documentos em Câmaras, no acervo do Conselho Ultramarino e em cartórios civis e eclesiásticos, além de relatos orais, passados entre gerações e que chegavam a ele por meio de seus familiares e amigos. Utilizando-se desse método, o autor repreendeu seus antepassados e contemporâneos que redigiam notas genealógica se baseando mais nas conversas de seus círculos sociais do que na letra dos manuscritos.

A escrita de Taques é peculiar, não apenas pelo uso da documentação, que permite confirmar versões oficializadas de acontecimentos narrados oralmente por seus contemporâneos, mas também pela maneira como descreve certas circunstâncias e como qualifica seus personagens. É possível apreender essas particularidades tanto pela análise do modo como o autor constrói seus textos quanto pela comparação com as partes que, por motivos circunstanciais, acabaram sendo redigidas por outras pessoas. É o caso de trecho do título referente à família Affonso Gaya,28 28 Santos, op. cit., p. 125-126. escrito por Manoel Angelo Figueira de Aguiar, bisneto de um dos fundadores do mesmo tronco na capitania de São Paulo, que tomou parte em entradas pelo sertão da Bahia empreendidas por seus tios, ficando assim habilitado a dar notícias desses e de seus descendentes. Nesses parágrafos, nota-se a quase ausência de datas relativas aos nascimentos, casamentos ou óbitos, justificável por serem informações conhecidas sem consulta aos cartórios.

Não há, tampouco, referências a reconhecimentos obtidos pelas ações realizadas, ainda que o próprio pai de Manoel Angelo, Antonio Gonçalves Figueira, tenha participado de combates contra nações indígenas no Rio Grande do Norte, em campanha de sucesso celebrada recorrentemente nas várias famílias sobre as quais escreveu Taques.29 29 Um dos textos mais completos sobre os acontecimentos encontra-se no parágrafo referente a Mathias Cardoso de Almeida (Ibid., p. 44-58). Nas palavras do genealogista, Figueira atuou “no real serviço à sua custa […] em praça de soldado, e alferes do terço dos paulistas”;30 30 Ibid., p. 125, grifo nosso. já nas partes redigidas por seu filho, não encontramos descrições mais pormenorizadas das atuações dos parentes, referências a seus serviços ou menções a serem “paulistas”. Essa especificidade mostra-se relevante, pois a caracterização por meio do adjetivo pátrio, que poderia ser entendida como banal numa genealogia referente à população de uma única capitania, é mobilizada por Taques de maneira precisa e circunscrita, como demonstro a seguir, o que explica sua ausência em excertos de outros autores.

Os textos redigidos por Pedro Taques destacam-se do campo da genealogia, em seu sentido mais estrito, por incluírem outras informações além dos dados de parentesco. Nos títulos remanescentes, são notáveis as interrupções regulares dos parágrafos, com digressões nas quais o autor insere narrativas de feitos e acontecimentos que se estendem, algumas vezes, por mais de uma dezena de páginas. De modo geral, as digressões tratam de participações e lideranças em combates aos inimigos nativos e europeus ou de explorações de minérios e pedras preciosas. Algumas dessas narrativas aproximavam várias famílias, por reunirem membros de linhagens distintas, em corpos de batalha, em expedições ao sertão e em menções de reconhecimento da Coroa. As principais narrativas veiculadas nos títulos existentes descrevem ações que ocorreram nas capitanias de norte a sul, incluindo regiões de fronteira, realizadas contra indígenas, europeus e escravizados fugidos, principalmente no século XVII, mas também com algumas guerras já em meados do século XVIII. Nota-se o uso repetido da expressão “conquistas” para tratar de boa parte dessas ações, remetendo à expansão do Império português e anexação de territórios ultramarinos.31 31 Ver os trechos contidos em Leme (op. cit.) nas páginas: t. 1, p. 163, 166-173, 208, 232-237, 271 e 276-277; t. 2, p. 44-58, 46, 47, 54, 54-58, 58, 85, 164, 178-180 e 275-283; t. 3, p. 31, 61-78 e 241-244. Algumas das narrativas repetem-se em títulos variados, por envolverem homens de diversas famílias.

OS TEXTOS DE TAQUES EM OLHAR PANORÂMICO

Essas pequenas histórias de conquistadores e seus empreendimentos são constantes em praticamente todas as famílias descritas, mas os predicados que carregam não são distribuídos igualmente entre todos os seus membros. Para apreender as variações e padrões de descrição construídos por Taques, sistematizei as informações referentes aos tipos de qualificação encontrados, por meio da confecção de uma tabela, com 2.006 linhas ao todo que correspondem ao número de membros das famílias para os quais são feitas ao menos uma das observações listadas no Quadro 1. Nota-se o significativo número de repetições dos mesmos indivíduos em diferentes títulos e mesmo no interior de uma única linhagem, em função das relações endógenas e de compadrio estabelecidas entre as famílias da capitania de São Vicente e posteriormente de São Paulo, desde o início da colonização desse território. Excluindo da tabela as menções repetidas, chega-se a um total de 1.642 pessoas, entre homens e mulheres, que representam minoria indiscutível.32 32 A exclusão das repetições foi realizada de maneira conservadora, ou seja, preservando nomes duplicados em casos de dúvida ou de impossibilidade de comprovação de tratar-se da mesma pessoa. Essa diretriz foi tomada principalmente por ser comum, no período em questão, a presença de homônimos, tanto por razões circunstanciais quanto pela costumeira mobilização de nomes de avós, pais, mães, tios e tias para as descendências.

Quadro 1
Qualificações encontradas nas descrições genealógicas e seus conteúdos.

Outros tipos de predicados são indicados por Taques, como o engajamento em atividades religiosas - por exemplo, envio de filhas para conventos ou filhos para serem ordenados e construção de capelas - e demonstrações de costumes nobres - como domínio da montaria33 33 O domínio das artes de guerra era atribuição dos homens, entretanto Taques registra uma exceção, que consideramos digna de nota, ainda que não haja condições para nomear a mulher de quem fala o autor: “Entre muitos se fez distinto Manoel Galvão, capitão de infantaria da praça do Rio de Janeiro, que montado a cavalo, com a espada na mão, feria e matava, animando a todos, e reforçando por muitas partes os batalhões, até perder a vida. Imitou os seus altos espiritos sua mulher d. N…, que, ao lado do marido, movia a espada, tão ligeira, que parecia raio, e continuou assim ainda depois do o ver morto até que teve a mesma sorte que a de seu esposo. É lástima não declarar-se o nome desta matrona” (Leme, op. cit., t. 2, p. 259). e do oferecimento de boas condições para receber convidados e hóspedes, do que trato em momento oportuno. As menções enumeradas no Quadro 1, no entanto, abordam mais diretamente as atividades de relacionamento com grupos indígenas, de circulação no interior da colônia e de organização do território e da vida civil.

A título de exemplo, apresento a tabela referente à família dos Bueno da Ribeira (Tabela 1),34 34 Na tabela foram usadas algumas convenções para facilitar a inserção dos dados: o sinal de positivo, “+”, corresponde a mais ocorrências na mesma página; e o asterisco, “*”, indica que uma mesma ocorrência se refere a mais de uma pessoa, sendo todas indicadas com esse símbolo. Os nomes próprios e sobrenomes foram simplificados, aproximando-se da grafia corrente - por exemplo, nas letras duplicadas ou uso de “h” mudo -, de modo a facilitar a identificação de menções correspondentes à mesma pessoa em parágrafos ou títulos diversos. na qual observa-se a distribuição das características previamente descritas por cada um de seus membros, conforme as indicações de Taques. Como se vê, a tabela contém, sucessivamente, a partir da primeira coluna: as nomenclaturas das famílias, correspondentes aos títulos das genealogias; os nomes dos membros, que compõem os parágrafos de cada título; a estimativa, por século, do período de vida desses membros; e uma coluna para cada ocorrência das qualificações examinadas, com a marcação das páginas nas quais se encontram as ocorrências. É importante ressaltar que só constam na tabela os nomes das pessoas que têm alguma dessas características, ou seja, que circulam entre essas possibilidades de ação e de reconhecimento, portanto o número de mulheres é reduzido, aparecendo apenas em casos de estabelecimento em regiões de mineração.

Tabela 1
Qualificações referente à família Bueno da Ribeira.

O que a sistematização nesse formato permite entender é como essas características se relacionam, para além das descrições individuais - que é como aparecem nos textos das genealogias -, criando caracterizações coletivas e permitindo visualizar a formação de padrões, a partir de repetições de certas combinações de ocorrências. Dessa maneira, circunscrevo a estratégia narrativa que configura uma coletividade para esse grupo, ou seja, o reconhecimento, entre esses homens, de que suas trajetórias e posições no espaço social colonial equivaliam-se e eram intrinsecamente relacionadas, independente de seus laços diretos. Além disso, a visualização isolada dos conjuntos que reúnem uma mesma característica - ou seja, a apreensão individual de uma das colunas ou atributos - possibilita investigar mais detidamente certos agrupamentos da população da capitania, definidos e contidos dentro das redes de parentesco, amizade e compadrio. É o caso dos “paulistas”, grupo formado pelos homens - note-se que não há mulheres com essa denominação - assim indicados por Taques (Tabela 2).35 35 A imagem não oferece perfeita legibilidade dos nomes por ser dado secundário para a análise empreendida, a partir da qual verifica-se graficamente o maior preenchimento da tabela nos casos de “paulistas” do que no total das pessoas citadas. As particularidades dos habitantes de São Paulo enquanto “grupo étnico”, crescentes entre os séculos XVII e XVIII, são observadas por autores como John Russell-Wood, Alberto Schneider e Katia Abud, baseando-se na documentação coeva, seja pela maneira como são retratados em comunicações redigidas por membros da administração colonial e da Coroa, seja pela própria pena de paulistas, como Domingos Jorge Velho, contratado para extinguir o Quilombo dos Palmares, em fins do Seiscentos.36 36 Russell-Wood (1999), Schneider, op. cit., e Abud, op. cit. Sobre Domingos Jorge Velhos, ver o artigo de Alberto Schneider.

Tabela 2
“Paulistas”, conforme indicações de Taques.

Em seus textos genealógicos, Pedro Taques diferencia pessoas “naturais de São Paulo” daquelas consideradas “cidadãs de São Paulo”, sem discriminação aparente entre as duas possibilidades, no que diz respeito ao prestígio que poderia ser alcançado entre os demais habitantes. As primeiras eram aquelas sabidamente nascidas na cidade ou na capitania, e as últimas, aquelas que se estabeleceram nesses territórios, participando ativamente da vida civil, em cargos políticos ou jurídicos. Nenhuma das duas qualificações confunde-se com “paulista”; na tabela completa, essa caracterização aparece apenas para 173 das 2.006 pessoas para as quais são feitas referências de participação em atividades da vida civil, política, militar e econômica da colônia, ou seja, pouco mais de 8,6% do conjunto completo - que corresponde ainda a uma fração dos componentes dessas linhagens familiares. Se tomarmos a tabela em que são descontadas as repetições, somamos 144 menções em 1.642 pessoas, o que representa cerca de 8,75%, mantendo uma proporção consistente nos dois formatos de sistematização. Para as análises de discurso, uso a tabela completa de menções aos “paulistas”, uma vez que ela permite visualizar todas as ocorrências dessa qualificação, incluindo as digressões, reproduzidas em mais de um título, muitas vezes repetindo-se os mesmos formatos de texto e os documentos mobilizados para legitimação das narrativas criadas.

Na Tabela 2, percebe-se visualmente que o preenchimento das colunas relativas aos predicados descritos por Taques é mais frequente para os “paulistas” do que para o total dos membros que compõe a tabela, como se vê comparando as Tabelas 1 e 2. O exame quantitativo, apresentado nas Tabelas 3 e 4, confirma essa percepção para quase todas as qualificações estudadas. Em cinza, indico as categorias em que há aumento da proporção de ocorrências, a saber, “privilégios”, “guerras”, “conquista de indígenas”, “entradas”, “minas”, “recursos particulares” e “mamelucos/mamelucas”. Novamente, a aproximação entre os números das tabelas completa e sem repetições aponta para a consistência dos atributos em qualquer das situações analisadas.

Tabela 3
Ocorrência de cada qualificação no conjunto total e no conjunto de “paulistas”, na tabela completa.
Tabela 4
Ocorrência de cada qualificação no conjunto total e no conjunto de “paulistas”, na tabela sem repetições.

A pequena queda com relação à ocupação de cargos civis, jurídicos, políticos e militares é concordante com o maior número de empreitadas particulares, movidas pelos interesses desses homens e nem sempre autorizadas pela Coroa, mesmo que eventualmente reconhecidas como benéficas. A variação entre essas proporcionalidades (Tabela 5), indica que o uso dos próprios cabedais é a característica com maior incremento entre o total das pessoas mencionadas e os “paulistas”.

Tabela 5
Variação na proporção de menções de cada qualificação entre o total da população e os “paulistas”, nas tabelas completa e sem repetição, em ordem decrescente.

Em outras palavras, o atributo “paulista” é conferido àqueles mais envolvidos nas ações de penetração territorial, em guerras contra indígenas e europeus, na exploração inicial ou posterior de regiões mineradoras e no uso de recursos próprios - e não a qualquer pessoa nascida ou fixada nessa localidade. O que poderia ser uma percepção sugerida pela leitura livre dos títulos mostra-se, por meio da análise quantitativa e sistematizada de termos e menções, uma verdadeira e consciente estratégia de construção narrativa, que, pela repetição, vai consolidando um passado específico para um restrito grupo populacional, atravessando gerações. Para ser “paulista”, na criação genealógica e nobiliárquica de Taques, não bastava nascer, ser criado, firmar residência ou prosperar no território da capitania - era preciso se constituir assim, por meio de ações e qualidades particulares. As digressões do genealogista e a reprodução de certas expressões e construções textuais apresentam reforços dessa caracterização, que incrementam a distinção entre “paulistas” e o restante da população, da capitania ou de fora dela. Em sua produção, Taques apropria-se das menções costumeiras aos “paulistas” - vinculadas às atividades exploradoras, como visto anteriormente - e busca ater a elas os atributos mais adequados aos interesses desse grupo, a saber, a vassalagem e a nobreza que residiriam em suas ações e incursões pelo sertão.

FAMÍLIAS E MESTIÇAGEM: SOLUCIONANDO OS NÓS ENTRE NATIVOS E “PAULISTAS”

Ponto central a ser equacionado nas narrativas construídas por Pedro Taques para si e para os seus era a relação com os grupos indígenas, amplamente registrada desde o século XVII37 37 Romeiro, op. cit., p. 234. e continuamente presente nas produções eruditas e documentais oitocentistas.38 38 Russell-Wood, op. cit., p. 104. As parcerias de longa data estendiam-se pelos troncos familiares das linhagens que se alardeavam como primeiras povoadoras da capitania de São Paulo e exímias exploradoras de todo o território disputado na colonização. Ainda que esses feitos fossem recorrentemente fundantes dos pedidos de mercês, cabia aos requisitantes minimizar os aspectos pouco atrativos dessas empreitadas. Nas nobiliarquias produzidas por Taques, e em consonância com os ideais atribuídos aos “paulistas”, são inúmeras as ocorrências de valorização das relações entre o grupo e os habitantes originários da América, ao mesmo tempo reposicionando essa convivência em um passado devidamente superado.

Atendo-se especificamente à questão da presença de indígenas nas casas e atividades dos “paulistas” e o contexto de reconstrução do imaginário nas narrativas de Pedro Taques, é fundamental observar como esse grupo de mestiços e seus descendentes aparecem nas genealogias - maneira essa diametralmente oposta aos registros de frei Gaspar da Madre de Deus, parente de Taques e também notório produtor de memórias sobre a capitania:

Mamalucos chamam no Brasil aos filhos de branco com índia, ou de índio com branca. Ignoro a origem desta denominação […]. O que sei com tôda certeza é que os jesuítas castelhanos aborreciam sumamente os mamelucos dos paulistas, e a causa que êles para isso tinham era a mesma que nos tais paulistas concorria, para os amarem com excesso. Eram os mamelucos os melhores soldados dos exércitos assoladores das Missões: êles muitas vezes foram os Chefes das Tropas conquistadoras, e por êles mandavam seus pais atacar os índios bravos, por conhecerem a suficiência destes filhos bastardos, criados na guerra, e acostumados ao trabalho, e por isso mais robustos e mais aptos do que os brancos para suportarem os incômodos dos Sertões.39 39 Madre de Deus (1975 [1797], p. 131, grifo do autor).

Frei Gaspar indica, em tom de confissão, que aos mamelucos se imputaria a maioria dos crimes no planalto, em razão dos modos brutos que ostentavam. Apesar disso, defende-os diante das declarações de jesuítas não portugueses, segundo os quais o sangue indígena seria germe de destacada perversidade, na mistura com o europeu. Para o religioso, os nativos teriam qualidades desejáveis, e sua união com europeus em nada alteraria essa condição. Ao longo de suas Memórias, essas características também são assinaladas quando se trata das alianças e “amizade” entre colonos e indígenas, com a ressalva de que constituiria “êrro intolerável” considerar que “mameluco” era sinônimo de “paulista”.40 40 Ibid., p. 133. Nos textos de Taques, por sua vez, divisa-se outro panorama. Destarte, vemos que a ocorrência de referências aos mestiços é pequena, conforme previamente registrado nas Tabelas 3 e 4: apenas 35 menções dessa natureza são observadas ao longo dos títulos remanescentes. Na Tabela 6, consta o rol completo de nomes associados por Taques às relações de parentesco entre colonos e nativos, e destaca-se a não repetição das pessoas mencionadas - ou seja, elas aparecem uma única vez cada -, o que indica menor protagonismo em relação aos “paulistas” e pouco reconhecimento de sua presença nos troncos familiares.

Tabela 6
“Mamelucos”, “mamelucas” ou situações semelhantes, conforme indicações de Taques.

A partir do final do século XIX, especialmente com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHG-SP), a mestiçagem entre paulistas e indígenas no período colonial recebe uma releitura interessada no destaque ao que seriam características excepcionais, únicas e específicas dessa população, que rebateriam na elite desse estado durante a Primeira República. Os pensadores que compuseram esse grupo - entre os quais, Oliveira Vianna, Alfredo Ellis Jr., Paulo Prado e Theodoro Sampaio - articulavam o suposto isolamento do planalto e as relações entre colonos e nativos com atributos de autonomia e liderança. A autonomia paulista teria originado uma “raça de gigantes”, na expressão do viajante Auguste de Saint-Hilaire, que esteve em São Paulo no início do Oitocentos, replicada à exaustão nas argumentações de alguns desses autores.41 41 Cf. Schwarcz (2005).

Independentemente das disputas historiográficas produzidas sobre o tema no século XX, em meio à formação da mitologia bandeirante, a definição que ora emprego para “mamelucos” e “mamelucas” circunscreve-se às próprias genealogias, de modo a possibilitar o entendimento da lógica particular de construção de sentido de Taques. No parágrafo relativo à mãe, Leonor de Siqueira Paes, o autor detalha os méritos do pai, Bartholomeu Paes de Abreu, “natural da ilha de S. Sebastião (irmão inteiro de João Leite da Silva Ortiz, conquistador e descobridor das minas de ouro no sertão dos barbaros indios da nação Goyazes em 1725)”.42 42 Leme, op. cit., t. 1, p. 166, grifo do autor. Antes de enumerar os feitos do pai, Taques busca esclarecer um incidente que teria levado a sua excomunhão, quando cumpria o cargo de juiz ordinário e insistiu em prender um suposto assassino, mesmo diante de suas súplicas, agarrado à porta do convento de Santa Teresa. Ao descrever o fato que teria desencadeado a confusão, diz o filho que “tinha disparado [um tiro] um mameluco (assim chamam no Brasil e Indias de Hespanha aos filhos do homem branco com mulher carijó), chamado Mathias”.43 43 Ibid., p. 167, grifo do autor.

A explicação, mais concisa que a de frei Gaspar, sugere certa naturalidade, que pode ser explicada pela justaposição com outras documentações. No caso, é a presença expressiva de referências a esses descendentes nos inventários e testamentos dos moradores de São Paulo, datados do último quartel do século XVI até 1700, que permite investigar os mecanismos de construção do discurso de Taques, com suas ênfases e obscurecimentos convenientes. Exemplar na criação de um discurso de dignificação e excepcionalidade dos paulistas, grande parte em razão da mestiçagem com os Tupi, Alcântara Machado analisou as condições materiais e aspectos sociais da vida de seus antecessores. Sua obra, publicada em 1929, é dedicada à família, entre descendentes e progenitores, remontando a Antônio de Oliveira, que teria chegado a São Vicente em 1532. Assim como para Taques, trata-se, pois, de uma espécie de historiografia autobiográfica, na qual era central equacionar os significados da presença indígena nas linhas familiares, em relação ao contexto e aos interesses coevos.

Sobre o grupo populacional dos “mamelucos”, diz Machado que “[…] ao lado e à sombra da família legítima, cresce a imensa dos bastardos. Poucos os inventários em que não aparecem”.44 44 Machado (1980 [1929], p. 160). As leis então vigentes ditavam que filhos e filhas concebidas fora dos laços matrimoniais não tinham direito à herança, o que significava ficar ausente da partilha de bens e do recebimento hereditário de cargos e mercês pertencentes a pais e mães. Não obstante, o jurista e historiador enumera uma série de documentos nos quais moradores e moradoras de São Paulo e vilas vizinhas não apenas reconhecem as proles ilegítimas como demonstram certa afeição por elas, contrariando as disposições jurídicas e garantindo que os bastardos não fossem largados à míngua após seu falecimento. Era preocupação também que esses filhos não acabassem na condição de cativos, como era comum aos indígenas administrados. Em tom pitoresco, Machado resume a posição dos “mamelucos” da seguinte maneira:

Isento e livre, o mestiço não se desata do núcleo social em que nasceu, do clã fazendeiro. Continua a receber o ensino necessário, assistindo em casa como familiar, na expressão de Filipe de Campos e Antônio Castanho da Silva [membros das primeiras gerações das famílias Campos e Almeida Castanho, chegadas a São Vicente em 1547 e primeira metade do século XVII, respectivamente]. Avoluma a classe dos agregados, que constituem o séquito do grande senhor territorial. É o mameluco. É o companheiro das jornadas sertanejas. É o capanga destemido, sempre dispondo a dar a própria vida ou a tirar a alheia, a mando do potentado em arcos a que está ligado pela gratidão, pelo interesse e também, amiúde, pelo sangue. Não o renegam os outros membros da família. Aceitam-no, porque têm a consciência mais ou menos clara de que se trata de um elemento inferior, mas necessário, do organismo de que fazem parte.45 45 Ibid., p. 164, grifo do autor.

Nas narrativas de Pedro Taques, a condição dos mestiços é menos harmônica. Em geral, esses descendentes não são incluídos nas linhagens familiares - mesmo quando mencionados, como no caso dos filhos de Francisco de Proença, cavaleiro fidalgo herdeiro de seu avô, Antonio Rodrigues de Almeida. Após os parágrafos referentes à prole legítima de Proença, o genealogista relata que ele teve “em solteiro, quatro filhos mamelucos ou bastardos”, listados na sequência. Sobre eles, diz que “Estes bastardos procrearam familia dilatada em S. Paulo onde são conhecidos os seus descendentes”,46 46 Leme, op. cit., t. 1, p. 227. mas não há indicação de seus nomes ou de outros títulos em que estariam devidamente registrados. Duas notas são relevantes: o avô de Proença, primeiro de seu tronco a estabelecer-se em São Paulo, recebeu três sesmarias na colônia, sendo que duas se avizinhavam com terras de caciques e aldeias preexistentes, o que aponta o contato próximo entre colonos e indígenas no século XVI, do que poderiam resultar práticas de relações que perduraram ao longo dos séculos seguintes; e a família inaugurada pelo mesmo progenitor é a dos mencionados Almeida Castanho, de que faz parte o Antônio Castanho da Silva citado por Machado no trecho transcrito, que pode ser cunhado ou sobrinho do próprio Proença (Machado não fornece informações suficientes para definirmos a qual dos homônimos se refere), ainda que nenhum deles conste como pai de qualquer mameluco nos textos de Taques.

Diferentemente da relação generalizada por Alcântara Machado entre pais brancos e filhos bastardos, na qual haveria laços de amor e reconhecimento que levariam a frequentes contrariedades jurídicas em prol dos descendentes - que mais se afigura aos relatos de frei Gaspar -, Taques constrói uma realidade em que lei e costume melhor se alinhariam. Nesse contexto, a prole mameluca não faz parte da linhagem familiar. Assim como a sobredita genealogia dos Almeida Castanho, no tronco dos Pires são relatadas relações ilegítimas que resultaram em descendências, sem que essas fossem sequer devidamente listadas no título, como vemos no parágrafo de “Francisco Dias Velho, nobre cidadão de São Paulo, [que] faleceu solteiro, deixando filhos mamelucos, havidos com Laura, mameluca alva”. Um dos bastardos, de nome Matheus Pinheiro Lobato, teria sequestrado a prima, Anna Maria Pires, filha do mesmo Francisco, com a qual se casou e teve seis filhas e filhos. Dessa geração, uma tornou-se esposa de outro filho bastardo “havido em uma mameluca alva” e um estaria “casado com uma mulata, chamada Isabel”.47 47 Ibid., t. 2, p. 86-87.

Em alguns parágrafos, Taques expõe a impossibilidade de os descendentes ilegítimos serem considerados herdeiros, tal como, no mesmo título dos Pires, ao tratar de Hieronimo Pires, que “faleceu solteiro e só deixou 4 filhos mamelucos, que não herdaram por ser seu pai homem nobre, e foi a mãi […] quem herdou”.48 48 Ibid., p. 110, grifo nosso. Note-se que a referência à nobreza do progenitor é feita sem maiores minúcias, ao contrário do que se sucede na família Leme, especificamente explícito no parágrafo sobre o “muito abastado” Braz Esteves Leme, que

[…] não casou, porém teve 14 filhos bastardos, havidos em diversas mulheres oriundas do gentio da terra, a que no Brasil se diz mamelucos. […] O juizo de órfãos procedeu a inventario dos seus bens por partilhas dos 14 filhos mamelucos, que deixou, os quais, não devendo ser herdeiros pela nobre qualidade de seu pai, foram excluidos da herança por sentença proferida a favor dos irmãos de Braz Esteves […].49 49 Ibid., t. 3, p. 50, grifo nosso.

Na sequência, o autor reproduz na íntegra o documento em favor deles, Pedro e Lucrecia Leme, assinado pelo ouvidor geral a mando do rei de Portugal. A sentença, datada de 7 de março de 1640, reitera hiperbolicamente a comprovação de nobreza e limpeza de sangue para possibilitar o desfrute da herança e de outros privilégios associados à hereditariedade e manutenção das linhagens familiares. No que se refere a Hieronimo Pires, o que possivelmente explica a ausência de menção a qualquer documento que verificasse sua nobreza e, assim, justificasse a entrega de seus bens e posses para a mãe é justamente o fato de a miscigenação ter sido prática comum na família, desde seus primeiros membros moradores de São Vicente, conforme relata o próprio genealogista. Diz Taques que a origem dos Pires de São Paulo estaria em Salvador Pires, casado com Maria Rodrigues, pais de Manoel e Salvador Pires. O primeiro, cuja descrição e descendência constam no título dos Bicudo,

[…] faleceu em São Paulo, onde foi capitão que governou e regeu seus moradores, como pessoa de muita autoridade e respeito, e teve um estabelecimento de muitos administrados, que, sendo gentios barbaros, foram conquistados no sertão, e reduzidos ao gremio da igreja pelo sagrado batismo. Praticou virtudes morais, com os quais soube lucrar excelente nome, e mereceu que Deus lhe abençoasse a sua geração, que toda tem sido de admiráveis produções; e conseguiu casamentos de autoridade e respeito com sujeitos de bom nome.50 50 Ibid., p. 180, grifo nosso.

A frase que destacamos, no final do excerto, é incomum nos parágrafos de Taques e pode ainda ser confrontada com a observação do autor sobre o bisneto de Manoel Pires, “Guilherme Borges Monteiro, que casou indignamente e se lhe extinguiu a geração”.51 51 Ibid., p. 185. Entretanto a afirmação assertiva sobre a qualidade dos matrimônios naquele tronco familiar toma corpo e sentido se nos voltarmos para o destino de seu irmão, Salvador Pires, cuja segunda boda foi com Messia Fernandes, “vulgarmente chamada pelo idioma brasilico Messiuçu, que quer dizer Messia grande”, que era filha de mameluca, neta de indígena e bisneta de cacique. A avó, Antonia Rodrigues, teria sido batizada pelo padre José de Anchieta, levando dali em diante o nome do marido, Antonio Rodrigues, cuja vinda aos campos de Piratininga, na companhia de João Ramalho, dataria do começo do século XVI, portanto antes mesmo da chegada de Martim Afonso de Sousa. Messiuçu, que deu continuidade à tradição das duas gerações anteriores de casamentos entre brancos e indígenas, seria bisneta do “maioral de Hururaí, chamado Piquirobí”.52 52 Ibid., t. 2, p. 73, grifo do autor. Sendo esses os antecedentes do tronco dos Pires, que em meados do Setecentos já era família de fama e bons cabedais, em rixa constante com os Camargo, parece-nos justificável a escolha discursiva de Taques, que não utiliza termos como “índios”, “gentio”, “cacique” e outros que igualmente remetessem aos habitantes nativos da América Meridional, na narrativa fundadora da linhagem.

O casamento de Salvador Pires com a mameluca Messiuçu estava, àquela altura, distante no tempo - e mais distante ainda estava o parentesco dessa com o chefe “Piquirobí” -, o que provavelmente permitia certa maleabilidade nas descrições dos membros da família, talvez até já desfeitos de evidências anatômicas da miscigenação. O batismo de Antonia Rodrigues, no contexto das primeiras décadas de colonização, servia como mecanismo de legitimação da união de colonos e indígenas, além do reconhecimento de que seu pai era dos “principais” de sua nação. É forçoso lembrar que, nesse período, a hierarquia dos grupos nativos era elemento de consideração das Coroas, e os europeus negociavam alianças e acordos com esses homens.

Nas narrativas genealógicas de Taques, além da pouca expressão conferida aos “mamelucos” - derivada em grande medida de seu impedimento de receber heranças, fossem posses ou ofícios -, destaca-se a equiparação entre o casamento de homens de “nobres famílias” com mamelucas e acontecimentos de violência sexual. É o que se percebe comparando os parágrafos referentes a João Pires de Campos, neto dos progenitores de sua família, e Francisco Pedroso de Almeida, aparentado do próprio autor. Sobre João Pires de Campos, diz:

[…] levado só do indesculpavel apetite, e infeliz destino da sua sorte, esquecido das obrigações do seu nobre sangue, se desposou com uma mameluca, causando um geral luto de sentimento aos seus parentes, que, lamentando a injuria, lhe não poderam atalhar o dano.53 53 Leme, op. cit., t. 2, p. 206.

Enquanto de Francisco Pedroso de Almeida, afirma:

Esquecido […] não só das obrigações da honra e qualidade do sangue, que lhe adornava as veias, para imitar a seus pais e avós, e melhor de que estas imagens lembrar-se das obrigações de verdadeiro catholico, cometteu estupro incestuoso com… a irmã direita de sua mulher […].54 54 Ibid., t. 1, p. 263.

Em ambos os casos, portanto, os atos teriam demonstrado distanciamento desses homens em relação à tradição de suas famílias e às suas principais características.

Nenhum dos nomeadamente “paulistas” são vinculados abertamente a “mamelucos”, ou seja, não há sobreposição entre esses e aqueles, o que impede que os atributos de um grupo se relacionem aos do outro no discurso de Taques. Qualquer tentativa de fazê-lo é descrita pelo genealogista como motivada por “ódio”, especificamente de jesuítas e europeus, para os quais era recorrente a ideia de que “qualquer paulista se reputava por um indio neophito”.55 55 Ibid., t. 2, p. 33. Sobre os religiosos, basta lembrar a formulação da “lenda negra”. Em um dos trechos do já mencionado livro do padre Andela, o jesuíta definiria os moradores de São Paulo como “Mamelucos, gente atrevida, bellicosa e sem lei, que só têm de christãos o batismo e são mais carniceiros, que os infiéis”.56 56 Ibid., t. 1, p. 79, grifo do autor. Para ele, a tropa de Manoel Preto, que realizou assaltos às missões na década de 1620, era composta por mestiços e indígenas, classificação à qual Taques se opõe:

[…] afirma [Andela] que a tropa dos paulistas se compunha de 800 Mamelucos (estes são os brancos) e de 3,000 Tupys (estes são os Indios administrados dos paulistas, que n’aquelle tempo tinham por seus administradores aos que no sertão os conquistavam, e do centro da gentilidade os traziam ao gremio da igreja, ficando os seus descendentes tambem sendo administradores).57 57 Ibid., t. 1, p. 79, grifo do autor.

As observações inseridas pelo genealogista reforçam as diferenças entre “paulistas” e nativos, e desconsideram completamente os casamentos entre ambos e suas descendências. Ocorrência exemplar dessa orientação do discurso de Taques reside na menção a Francisco Ramalho, “senhor da aldeia de Guanga, chamado por alcunho o Tamarutaca, que faleceu em 1718”,58 58 Ibid., t. 3, p. 260. e que também consta das anotações de Alcântara Machado, por se tratar de caso excêntrico na coleção documental da qual se utilizou:

Ao contrário do que seria de supor, são excepcionais os casamentos entre brancos e negras da terra. Dentre os inventariados só um existe casado com índia forra. Mas esse é evidentemente um mameluco: chama-se Francisco Ramalho Tamarutaca e vive na aldeia de Guanga.59 59 Machado, op. cit., p. 158, grifo nosso.

Francisco seria neto de João Ramalho, “português que anos antes [da chegada de Martim Afonso de Sousa] tinha se integrado ao grupo local chefiado por Tibiriçá”. A aliança entre Ramalho e o cacique ia além das atividades de guerra: “‘Casado’ com uma filha deste chefe, Ramalho acabou estabelecendo outra aldeia, que serviria de base para a futura vila portuguesa de Santo André da Borda do Campo”. O português, segundo relatos do padre Manuel da Nóbrega, viveria completamente aos modos indígenas, tendo muitas filhas e filhos.60 60 Monteiro (1994, p. 29-30). A apresentação que Taques faz de João Ramalho, por sua vez, ressalta seu desempenho de cargos de governança e privilégios, sem menção alguma ao “casamento” com uma indígena: “João Ramalho, que tinha o foro de cavaleiro, e foi depois o fundador da vila de Santo André da Borda do Campo, de cuja povoação (antes de aclamada em vila no dia 8 de Abril de 1553) foi guarda-mor e alcaide-mor”.61 61 Leme, op. cit., t. 2, p. 114. Ver também Ibid., p. 2. Dessa maneira, o genealogista evita inserir informações que sugiram explicitamente que a linhagem de Ramalho, incluindo o dito Tamarutaca, seria mameluca.

Vemos, portanto, a discrepância das informações de cada texto, ainda que ambos tenham contado com inventários como fontes essenciais. A obra de Machado constitui-se como uma espécie de revisão do trabalho de Taques, apontando para a pequenez de recursos dos homens e das famílias descritos com grandiosidade nas genealogias do século XVIII. Entretanto, suas disparidades não se esgotam nisso, sendo relevante para a análise aqui realizada as diferentes maneiras como figuram os indígenas e os mamelucos em cada escrito. Para Alcântara Machado - que escreve já no século XX, após a criação da mitologia bandeirante, que apazigua e eleva a condição de mestiçagem -, a proximidade e as relações entre europeus e nativos seriam mais um atestado da longevidade dos troncos familiares e de quanto estariam arraigados, por assim dizer, nessas terras, desde os primórdios da colonização. Sua descrição dos mamelucos assemelha-se à de frei Gaspar, que via qualificações cobiçáveis nas proles mestiças - talvez por ele próprio ser ramo de um desses troncos. Por outro lado, Pedro Taques, imbuído da tarefa de garantir privilégios e mercês a seus pares, não podia permitir que máculas fossem lançadas sobre as linhagens desses homens, o que invalidaria suas requisições, de modo que lhe foi indispensável restringir os laços - especialmente os parentais - entre autóctones e adventícios. Ainda assim, mesmo em meio às divergências, os três discursos permitem associar a presença de indígenas - reconhecidos ou não, familiares ou não, harmônicos ou não - às atividades de exploração e trânsito pelos sertões e aos homens que as realizavam.

MODOS DE SERVIR, FORMAS DE POVOAR E AS LEIS DOS “PAULISTAS”

Em oposição aos deméritos enfrentados pelas acusações de proximidade entre os habitantes de São Paulo e os grupos indígenas, Taques acrescia os títulos nobiliárquicos com extensas descrições das formas distintas segundo as quais os “paulistas” recebiam convidados, serviam banquetes, alimentavam-se e agiam de modo geral. O estabelecimento de diferenciações entre colonos e nativos podia assegurar a possibilidade de enobrecimento das linhagens dos moradores de São Paulo - do que resulta a construção milimetricamente ajustada dos textos genealógicos em questão. Em vários troncos, hábitos e laços familiares são cautelosamente dissolvidos ao longo dos parágrafos redigidos, deixando no passado as relações entre os grupos: “a miscigenação dos primeiros tempos - e só dos primeiros tempos”.62 62 Schneider, op. cit., p. 98. Nos trechos correspondentes aos irmãos Pedro Vaz de Barros e Fernão Paes de Barros, verifica-se o desenrolar de um processo calculado, com vistas a enfraquecer juridicamente as relações entre eles e os indígenas. Esses vínculos não são negligenciados na genealogia. Pedro teria sido “cognominado Grande, chamando-se-lhe assim pelo idioma brasílico: Pedro Vaz Guassú, que quer dizer grande”;63 63 Leme, op. cit., p. 205, grifo do autor. e as descendências de ambos, todas ilegítimas, são assim descritas:

Não casou Pedro Vaz de Barros, mas teve varios filhos bastardos, havidos em diversas mulheres, que por todos foram nove, que são os seguintes: Braz Leme de Barros; Joanna, que casou com João da Silva Ferreira, e Maria, todos havidos em Justina, mulher mameluca (em São Paulo, assim chamam as que são netas de india de quatro costados com homem branco); Isabel, havida em Catharina; Lourença, havida em Theresa; Margarida, havida em Rufina; Marianna, havida em Maria; Paschoa e Leonor, ambas havidas em Barbara, como tudo consta do inventario do capitão […].64 64 Ibid., p. 206, grifo do autor. A progênie de Pedro Vaz de Barros, numerosa e descendente de várias mulheres, remete-nos novamente aos modos de viver dos indígenas, assimilado por colonos logo após sua chegada, tal como teria feito João Ramalho.

Apesar de ter as filhas e o filho constantes no inventário, conforme indicado, apenas o primogênito foi feito herdeiro, depois de casar-se com a “filha mulata” do irmão: “No estado de solteiro, teve Fernão Paes de Barros de uma crioula de Pernambuco uma filha, que foi Ignacia Paes, que, dispensada no impedimento de segundo grao de consanguinidade, casou com seu primo direito Braz Leme de Barros”.65 65 Ibid., p. 209. A endogamia garantiu a concentração das riquezas acumuladas pelos irmãos, mas não era suficiente para tirar da linhagem a mácula do caráter mameluco de sua origem. Para tal, o recurso disponível naquele momento era a própria fortuna - “esteio da nobreza”,66 66 Madre de Deus, op. cit., p. 83. segundo frei Gaspar -, ou ainda, a adequada exibição dela, aos moldes da nobreza. Com a morte de Braz, Ignacia passa a herdeira tanto do tio como do pai, que consegue atar em núpcias a filha e um sargento-mor que vinha do Reino em real serviço. De acordo com o relato,

[O sargento-mor] observando a grandeza com[o] dito governador [Manoel] Lobo fora hospedado em casa de Fernão Paes todo o tempo, que foram muitos meses que se demorou em São Paulo, se deixou vencer do avultado dote para casar, como casou, com Ignacia Paes, de cujo matrimonio houveram filhas, que todos casaram muito bem, de que hoje ha ramos, que, com honrosos procedimentos, têm conciliado estimações de toda a nobreza.67 67 Leme, op. cit., t. 3, p. 209.

A maneira de servir, hospedar e portar-se era forma de distinção, somando a nobreza de hábitos à nobreza de origem. Em meio ao fortalecimento da condição jurídica da nobilitação, a assimilação de um modo de vida aristocrático passa a compor as possibilidades de comprovação, dentro do rol de alternativas acessíveis às famílias recentemente enriquecidas.68 68 Monteiro (2005, p. 15). Fernão Paes de Barros, como explicitado anteriormente, recebeu cartas de seu soberano, que solicitava auxílio em empreitadas do interesse da Coroa, nas quais lhe eram oferecidas consideração e possíveis mercês pelo cumprimento dos pedidos. Certamente, as condições que alcançou e demonstrou - enriquecimento, lealdade, casamentos adequados, apadrinhamentos e hábitos de nobreza - foram decisivas na redação de seus autos de justificação de nobreza, mencionados por Taques. O genealogista descreve, ainda, moradias de São Paulo em que os visitantes se sentiriam no Reino, a começar pela do próprio Pedro Vaz Guassú:

Foi a sua casa e fazenda uma povoação tal, que bem podia ser vila, e ainda hoje as casas, que foram da sua residencia, servem de padrão que lhe acusam a maior magnificencia, como obra daquele tempo. Teve muito grande tratamento, correspondente aos grossos cabedais que possuia, entre cujos moveis teve uma copa de prata de muitas arrobas. A sua casa era diariamente frequentada de grande concurso de hospedes, parentes, amigos e estranhos, que todos concorriam gostosos a fazer-lhe obsequiosa assistencia. Todos eram agasalhados com grandeza daquela mesa, na qual, com muita profusão, havia pão e vinho da propria lavoura, e as iguarias eram vitelas, carneiros e porcos, além das caças terrestres e voláteis, das quais os seus caçadores atualmente conduziam com fartura, e por isso de tudo havia com abundancia, e com tanta prevenção, que, a qualquer hora da tarde que chegavam novos hospedes, estava a mesa pronta, como se para este fora conservada.69 69 Leme, op. cit., t. 3, p. 205, grifo nosso.

Se, para os sertanistas ou “antigos paulistas”, o consumo de produtos da terra, extraídos sem alarde no meio das matas, era indício de sabedoria, que conduzia à glória das conquistas, o mesmo não se verifica nas narrativas para as quais a nobreza de hábitos era elemento essencial - e Taques repercute inúmeras vezes essa estratégia. Os costumes enobrecedores incluíam: opulência e grandeza das fazendas com suas capelas, que podiam ser comparadas, dentro dessa lógica, a vilas ou cortes, de grandes dimensões e construídas com os melhores materiais e artífices; abundância e liberalidade na recepção de convidados e outras pessoas, remontando à conceituação medieval desse termo, antes mencionado; disponibilidade de insumos que demandavam bom número de cativos para serem produzidos ou próprios dos hábitos alimentícios do Reino, tais como carnes de animais, trigo e vinho, que podemos opor ao consumo generalizado de aguardente na Colônia;70 70 Sobre os hábitos alimentares planaltinos e as diferenciações entre o consumo no ambiente doméstico e no trânsito dos sertanistas, ver o capítulo “A comida e o modo de vida dos paulistas” (BASSO, 2014, p. 67-136). presença e disponibilização de numerosos utensílios de prata, que indicavam riqueza dos cabedais e conhecimento da etiqueta aristocrática; número e treinamento de escravizados, além do destaque à cor clara de alguns deles e ao uso de calçados, que diferenciaria seus senhores daqueles que tinham grandes contingentes de indígenas sob sua administração; domínio da arte da cavalaria, assinalando aproximação entre esses homens e a tradição dos cavaleiros medievais, na qual se assentava a própria construção da vassalagem; e, por fim, a governança de territórios e pessoas,71 71 Monteiro (2005, p. 13). mesmo que restrita aos limites das fazendas.

Além desses atributos, a nobilitação, por definição, compreendia dispor-se à vassalagem e aos interesses da Coroa e do “bem comum”, algo que Pedro Taques exacerba em suas narrativas, indicando repetidamente a realização de ações dos “paulistas” com esses fins, por meio do emprego de seus próprios recursos, como a designação de administrados para formar tropas e o fornecimento de alimentos, roupas, riquezas e outros suprimentos.

Conforme visto na Tabela 3, das 173 menções a “paulistas” na tabulação completa das genealogias, 43 são acompanhadas pela indicação do uso dos próprios cabedais, quase 25%, ou seja, praticamente um em cada quatro desses homens. Esse indicativo remonta aos primeiros adventícios da capitania de Martim Afonso de Sousa, muitos dos quais, segundo frei Gaspar, seriam apresentados como fidalgos nos documentos que consultou72 72 Madre de Deus, op. cit., p. 64-65. e teriam vínculos com a nobreza europeia, como procura atestar Pedro Taques. Sobre Lourenço Castanho Taques, afirma o autor que “Nas occasiões do real serviço sempre deu acreditadas mostras de honrado vasallo com liberal despeza da propria fazenda”.73 73 Leme, op. cit., t. 1, p. 124. Descrições similares, que enumeram as mesmas características, são destinadas a muitos outros conquistadores, povoadores e moradores de São Vicente e São Paulo, que constituiriam, assim, nobres linhagens formadas nos campos de Piratininga, em narrativas que obliteram a presença indígena no estabelecimento dessas famílias.

Do interior das moradas dos “paulistas”, passo, então, às vilas e povoações que fundaram ou fizeram avantajar-se, sobretudo em torno de suas próprias fazendas, do que é possível derivar uma verdadeira “geografia genealógica”, isto é, uma conformação territorial que tem como um de seus elementos centrais os parâmetros de arranjos matrimoniais, transmissão de heranças e demais costumes familiares. A expansão das riquezas das famílias descritas por Pedro Taques foi acompanhada, no século XVII e até princípios do seguinte, por seu desdobramento na capitania de São Paulo, destacadamente ao longo do curso dos rios Paraíba e Tietê, orientando-se para leste e oeste, respectivamente. Essas rotas principais correspondiam aos caminhos em direção, por um lado, ao Rio de Janeiro e região das Minas Gerais e, por outro, a Mato Grosso e Goiás, no percurso fluvial das monções, além das estradas que levavam ao sul e outras paragens.74 74 Morse (1970, p. 40). Assim como as conquistas, a povoação era atributo de várias famílias nobres do Reino, sendo igualmente valorizada na Colônia. O genealogista enfatiza o papel de povoamento exercido particularmente por algumas linhagens, dentre as quais se destaca a dos Fernandes “Povoadores”, repetidamente mencionada, mas cuja descrição própria foi perdida. No período assinalado, foram dez as vilas criadas, a saber, Mogi das Cruzes (1611), Parnaíba (1625), Taubaté (1650), Jacareí (1653), Jundiaí (1655), Guaratinguetá, Itu (ambas em 1657), Sorocaba (1661), Curitiba (1693) e Pindamonhangaba (1705) - dessas, três foram elevadas pelos esforços da família Fernandes, mais especificamente pelos irmãos André, Domingos e Balthazar, fundadores de Parnaíba, Itu e Sorocaba.75 75 Fundações de vilas no planalto de São Paulo (RIBEIRO, 2015, p. 230-261).

Além dessas, outras relações de parentesco e matrimônio foram firmadas entre membros das famílias de fundadores de vilas, segundo os títulos nobiliárquicos. O mesmo Domingos Fernandes era casado com Suzana Dias, tataraneta do sobredito cacique Tibiriçá e bisneta de sua filha, Bartira, com João Ramalho, fundador da povoação de Santo André da Borda do Campo, cuja população foi transferida para a vila vizinha São Paulo de Piratininga. Relações novas também se estabeleciam, como é o caso de Manoel da Costa Cabral, progenitor do tronco de mesmo nome, que teria vindo do Reino para São Paulo, casando-se na vila de Mogi das Cruzes com Francisca Cardozo, neta do fundador da mesma localidade, Braz Cardoso. Após a morte da primeira esposa, Manoel passou para Taubaté, onde se casou pela segunda vez, com Maria Vaz, pertencente ao tronco paterno da falecida mulher, e ali se estabeleceu. Uma de suas filhas, Ana Cabral, tornou-se esposa de Domingos Luiz Leme, que fundou Guaratinguetá, e outra, Francisca Romeiro Velho Cabral, casou-se com Antonio Bicudo Leme, emancipador de Pindamonhangaba, cujo processo de elevação a vila foi marcado pela oposição dos moradores de Taubaté.

Nota-se que todos os fundadores de vilas desse período vinham originalmente de São Paulo, ainda que não fossem necessariamente naturais dessa localidade - exceto Diogo de Fontes, emancipador de Jacareí, sobre o qual não há informação a esse respeito.76 76 Ibid., p. 253. Não havia uma política de urbanização oficial em vigor - como se verá a partir de 1765, inaugurando-se o chamado período pombalino77 77 Política de urbanização (BELLOTTO, 2007, p. 147-172). - e o crescimento demográfico por si só não justificava a criação dessas povoações,78 78 Ibid., p. 250-252. de modo que essa questão recai sobre as famílias e seus interesses. Entra em evidência a formação de grupos parentais, compostos, muitas vezes, por casamentos endógamos - como observado pelas repetidas solicitações de desimpedimento de consanguinidade, registradas por Taques - e pela afiliação constante entre certas linhagens. São comuns, na Nobiliarquia, menções à continuidade de determinadas descendências em outros títulos, evitando repetições excessivas. Novamente, trata-se de informação abundante nos textos e que explicita os laços estabelecidos e reforçados por praticamente todas as “nobres” famílias da capitania. Essa dinâmica pode ser apreendida, em porções mais afastadas da sede - como Curitiba, Cuiabá e outras localidades -, pelos reiterados requerimentos de terras feitos pelos mesmos troncos familiares.79 79 Blaj, op. cit., p. 283.

A formação desses “clãs” e a territorialização que construíram, segundo Ilana Blaj, era intrinsecamente relacionada a uma atividade sobre a qual Pedro Taques silencia em seus escritos: o comércio dos habitantes da vila e depois cidade de São Paulo, cuja mercantilização adviria originalmente das descobertas de metais e pedras preciosas em Minas, Goiás e demais regiões. Esses empreendimentos são ignorados nas genealogias por serem, no contexto do Antigo Regime, um impedimento à nobilitação, embora lentamente incluídos no espectro das nobrezas - e que, no caso da capitania e província paulista, tenham sido fonte das posteriores fortunas agrícolas.80 80 Araújo (2006, p. 208). Tome-se Guilherme Pompeo de Almeida, a quem corresponde uma das descrições de vida “à lei da nobreza” mais profusas e detalhadas e cuja riqueza seria baseada na atividade mercantil, não mencionada pelo genealogista:

[…] apontamos o caso do padre Guilherme Pompeu como exemplar de todo esse processo de mercantilização paulista. Tendo agentes comerciais em Santos, em São Paulo (como Pedro Taques de Almeida), na Bahia, Rio de Janeiro, participando ativamente do comércio mineiro por intermédio de seu sócio Pedro Frazão Brito, o famoso padre formou grande parte de sua fortuna nesse período [virada do século XVIII para o seguinte]. Indicativo do enriquecimento e do prestígio que os mercadores gradativamente começavam a deter é a nomeação de Domingos Frazão de Meirelles, ‘um dos mercadores principaes da dita villa de São Paulo e afazendado’, como capitão de recém criada [sic] infantaria de ordenança dos mercadores da vila de São Paulo.81 81 Blaj, op. cit., p. 263.

Frei Gaspar, despreocupado com as solicitações de nobilitação, não deixa de referir-se à mercancia, que teria sido originalmente incentivada na capitania pelo próprio donatário, Martim Afonso de Sousa, e incluiria também os indígenas, que podiam comprar apenas dos colonos portugueses, e não diretamente dos comerciantes que traziam as mercadorias.82 82 Madre de Deus, op. cit., p. 87. Pedro Taques não apenas exclui de seus textos as referências ao envolvimento dos “paulistas” com o comércio - no qual estaria envolvida grande parte de sua própria família - como ainda reputa aos mercadores, na única menção que faz a um deles, o estigma de falsos e dissimulados. Trata-se de Sebastião Fernandes do Rego, “homem de negocio” e “fingido amigo” dos sobreditos irmãos Leme, contra os quais teria armado um esquema ardiloso para empossar-se de suas riquezas, além de fazer-se íntimo de outras autoridades a fim de aplicar o suposto golpe.83 83 Leme, op. cit., t. 3, p. 30-31. Ainda que seja justificada a ausência de comerciantes nas reivindicações nobiliárquicas, por se tratar de ocupação menos prestigiosa,84 84 Fidalgos e lacaios (FURTADO, 2006, p. 29-86). é digno de nota a omissão do genealogista no que tange à família de sua própria esposa, neta de Manuel Veloso e filha de Gregório de Castro Esteves, dois destacados agentes comerciais de São Paulo, no início do século XVIII.85 85 Borrego (2010, p. 248-249).

Os ocultamentos acerca dos comerciantes acabam obscurecendo as dinâmicas territoriais dessas famílias nas genealogias, cuja apreensão fica limitada aos deslocamentos em função da exploração de metais e do enfrentamento de nações indígenas. No começo do século XVIII, as principais famílias de São Paulo, frequentemente interligadas entre si, estariam em pleno movimento de expansão, concentração e confirmação de suas posses de terras e demais riquezas. É notável que as fortunas passaram a significar, com maior frequência, a possibilidade de obtenção de cargos de governança, em detrimento das indicações mais tradicionais de nobreza, apontando para a inserção em certas posições políticas por meio do capital econômico, mesmo que esse fosse, como no caso dessa elite, advindo de atividades simbolicamente desvalorizadas. Ainda que o enobrecimento originado de atividades mercantis e alianças com grupos nativos não fosse suficiente para que as famílias de São Paulo integrassem a alta nobreza do Reino, era certamente satisfatório para distingui-las no espaço social da Colônia.

A preocupação com a legitimação desse grupo - a elite política enriquecida, proprietária e engajada nos cargos de governança - fazia dos escritos genealógicos um vetor de reconstrução do passado e de comunicação com seus descendentes. Taques, inclusive, recrimina as gerações que teriam se beneficiado das glórias dos seus antepassados, sem, contudo, dar continuidade ao seu espírito de nobreza empreendedora, que agia com liberalidade e protagonismo. Entre as expressões usadas por ele, encontram-se: “deixou amortecer os merecimentos de seu pai”;86 86 Leme, op. cit., t. 1, p. 102, grifo nosso. “todos [os descendentes] vivem amortecidos na ignorancia dos seus nobres progenitores, e das suas honrosas virtudes e ações”; “o séquito dos imprudentes, que já tem degenerado do mesmo esplendor dos seus antigos ascendentes”; e “veiu esta casa a perder aquele morgado sem mais causa, que a de uma total e indesculpavel omissão, que se foi difundindo aos mais herdeiros até o presente tempo”.87 87 Ibid., t. 2, p. 120, 121 e 126, grifo nosso. O decaimento resultaria em reveses, não apenas para as famílias, mas para a Coroa, a fazenda real e, por consequência, para o bem comum.

O discurso embutido nessas colocações, além de recriminatório, é o de que àquela altura, em meados do século XVIII, o trabalho de exploração não estaria - e não deveria estar - encerrado, mas faltava liderança e ambição para dar-lhe continuidade. Em outras palavras, apesar de os descendentes dos “paulistas” viverem dos espólios das empreitadas já realizadas - muitas vezes levando os patrimônios e os privilégios alcançados por meio delas ao risco de esgotamento -, ainda haveria sertões a serem explorados, conquistados e transformados em territórios colonizados, mesmo que por meios diversos daqueles empregados pelos “antigos paulistas”.

REDIGIR NOVAS FRONTEIRAS: DA BARBÁRIE À EXCEPCIONALIDADE

Pedro Taques redigiu seus títulos genealógicos em um período de intensa disputa e ressignificação da capitania de São Paulo e da atuação de sua população quanto aos planos da Coroa portuguesa. Após quase duas décadas de sujeição à capitania do Rio de Janeiro, os paulistas enfim retomavam sua autonomia, enquanto coletas de relatos escritos e mapas, ações diretas de levantamento territorial e negociações diplomáticas davam renovados contornos cartográficos às fronteiras entre as colônias portuguesa e espanholas na América. Os conhecimentos dos sertanistas de São Paulo, tantas vezes censurados por sua violência e insubordinação, foram parte significativa do processo de expansão das posses coloniais portuguesas em direção ao oeste do continente, avançando sobre a obsoleta Linha de Tordesilhas.88 88 Cf. Cortesão (2006 [1953-1963]). É nesse panorama que o genealogista recorre a documentos cartoriais e histórias transmitidas oralmente, contestando os autores contemporâneos que reproduziam as “lendas negras” sobre os homens de São Paulo e elaborando copiosos textos nobiliárquicos que servissem a suas solicitações de honras e mercês. Taques reunia, assim, passado, presente e intenções para o futuro, todos igualmente articulados aos valores, práticas e métodos dos “paulistas” e suas famílias.

Habilmente, o genealogista concede novas cores aos hábitos cotidianos dos antepassados das principais famílias da capitania e às suas incursões territoriais, de aprisionamento e combate a indígenas e de exploração de pedras e metais preciosos, tingindo-as de ares de conquista bem planejada e realizada em atos de altruísmo e devoção à Coroa e a Deus. Nos escritos, a indicação dos heróis individuais dessas empreitadas, identificados com nome, sobrenome e antecedentes, é pontuada pelo constante reforço narrativo do uso do termo “paulista”. Enrustido em seu sentido toponímico, encontra-se o significado de uma coletividade seleta, nascida ou fixada em terras consideradas paulistas e detentora de valores peculiares, enumerados e repetidos exaustivamente ao longo das dezenas de textos remanescentes. Nobreza nos modos, liberalidade, liderança e inabalável disposição para o combate aos inimigos e as entradas pelos sertões coloniais eram as marcas desses homens, espalhados entre as linhagens principais daquele tempo.

A extensa obra genealógica de Pedro Taques circulou entre seus pares e solicitantes, e vários títulos foram conservados por seus parentes e amigos. Sua extensa rede de relações, ainda que não fosse suficiente para salvá-lo de inúmeros infortúnios,89 89 A amplitude de suas relações com homens e mulheres das famílias principais da capitania pode ser apreendida no longo e laudatório artigo de Taunay (1923) sobre Pedro Taques. garantiu a preservação de um número considerável dos textos produzidos. Era, portanto, uma narrativa inserida no referencial desses homens - e em sua percepção como conjunto. Essa coletivização das conquistas já era fenômeno presente, como se pode averiguar nos relatos sobre as descobertas auríferas, a fim de justificar o direito de conquista dos paulistas na primeira metade do século XVIII: “Da dimensão individual, o feito dos descobrimentos assumiu uma dimensão coletiva, transformando-se na empresa heroica dos homens de São Paulo”.90 90 Romeiro, op. cit, p. 257.

Após a reunião e publicação dos títulos que sobreviveram aos infortúnios do autor, o texto tornou-se fonte recorrente para aqueles que, já no raiar do século XX, buscaram dar contornos próprios aos naturais de São Paulo - histórica e contemporaneamente. Segundo Katia Abud, os trabalhos de Afonso d’Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Jr. e José Alcântara Machado muniram-se dos escritos de Pedro Taques e frei Gaspar como referências centrais, imputando a esses homens do século XVIII as origens da historiografia dos bandeirantes - apesar de o termo ser ausente nas obras de ambos. No período da chamada Revolução de 1932, enquanto se desenrolavam as “novas bandeiras” em direção ao oeste paulista, protagonizadas por trilhos ferroviários e grandes fazendas, as imagens da “raça de gigantes”, destemida e condutora do progresso, passa a circular cada vez mais nos limites entre a produção historiográfica e os meios de comunicação.91 91 Abud, op. cit., p. 182. Diversos são os autores que, a partir do final do século XIX, lançarão sobre a história de São Paulo marcas de altivez, nobreza, independência e liderança.92 92 Blaj, op. cit., p. 39-54. Revisando as obras de exaltação paulística, Vianna Moog e Pierre Monbeig assinalaram a força da simbologia que associou bandeirantes e paulistas, transformados em sinônimos no imaginário nacional. No entanto, o bandeirante só se presta a igualar-se narrativamente ao paulista pois esse já havia tornado-se o “paulista” - representação peculiar desses colonos, erigida desde o século XVIII por meio de acúmulos e ressignificações, para o que o discurso existente nas genealogias de Taques foi certamente fundamental.

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  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • SILVA, Rodrigo da. Sobre taipas e textos: um estudo sobre as narrativas a respeito da cidade de São Paulo (1772-1953). 2009. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
  • SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra à lenda áurea. Revista de História, São Paulo, n. 142-143, p. 261-276, 2000. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.v0i142-143p261-276.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i142-143p261-276
  • TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Pedro Taques e seu tempo: estudo de uma personalidade e uma época. São Paulo: Officinas do Diário Official, 1923.
  • TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Prefácio. In: LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1980. t. 1, p. 11-36.
  • TURNER, Frederick Jackson. Rereading Frederick Jackson Turner: “The Significance of the Frontier in American History” and Other Essays. New York: Henry Holt and Company, 1994 [1893].
  • VIEIRA, Antônio. Escritos instrumentais sobre os índios. São Paulo: Educ, 1992.
  • VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
  • 2
    Blaj (2002BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas, 2002.).
  • 3
    Moog (2000 [1955]MOOG, Vianna. Bandeirantes e pioneiros: paralelo entre duas culturas. Rio de Janeiro: Graphia, 2000 [1955]., p. 191).
  • 4
    Turner (1994 [1893]TURNER, Frederick Jackson. Rereading Frederick Jackson Turner: “The Significance of the Frontier in American History” and Other Essays. New York: Henry Holt and Company, 1994 [1893]., p. 31-60).
  • 5
    Monbeig (1998 [1952]MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1998 [1952]., p. 121).
  • 6
    Moog, op. cit., p. 191.
  • 7
    Taunay (1923TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Pedro Taques e seu tempo: estudo de uma personalidade e uma época. São Paulo: Officinas do Diário Official, 1923., p. 11).
  • 8
    Leme (1980LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1980. 3 t.).
  • 9
    Redijo o termo entre aspas para referir-me ao uso feito por Taques, diferenciando-o da toponímia regular.
  • 10
    Cf. Olival (2001OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o estado moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001.), Bicalho (2005BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 2, p. 21-34, nov. 2005. DOI: 10.11606/issn.1808-8139.v0i2p21-34.
    https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139....
    ) e Monteiro (2005MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “ethos” nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 2, p. 4-20, nov. 2005. DOI: 10.11606/issn.1808-8139.v0i2p4-20.
    https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139....
    ).
  • 11
    Para análises dessa produção e das agruras que marcaram a trajetória de Pedro Taques, ver Silva (2009SILVA, Rodrigo da. Sobre taipas e textos: um estudo sobre as narrativas a respeito da cidade de São Paulo (1772-1953). 2009. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.) e Taunay (1980TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Prefácio. In: LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1980. t. 1, p. 11-36., p. 11-36).
  • 12
    Silva, op. cit, p. 29.
  • 13
    Souza (2006SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 139).
  • 14
    Vieira (1992VIEIRA, Antônio. Escritos instrumentais sobre os índios. São Paulo: Educ, 1992., p. 102-121, grifo nosso).
  • 15
    Souza (2000SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra à lenda áurea. Revista de História, São Paulo, n. 142-143, p. 261-276, 2000. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.v0i142-143p261-276.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141....
    , p. 267).
  • 16
    Termo de Vereasão e asento q. se fes sobre a vinda do p.e provimsial alexando de gusmão com hua ordem do g.or geral e copia de hua Carta de sua mag.de q. deus guarde sobre particular de Indio e asento q. se fes sobre esa materia (ACTAS DA CAMARA DA VILLA DE S. PAULO, 1915ACTAS DA CAMARA DA VILLA DE S. PAULO, v. VII, 1679-1700, São Paulo. Atas […]. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo, 1915., p. 447-452).
  • 17
    Termo de Requerim.to do povo sobre o descubrim.to dos cuatagoas (Ibid., p. 536-537).
  • 18
    Termo de vereança (ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE S. PAULO, 1916ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE S. PAULO, v. VIII, 1701-1719, São Paulo. Atas […]. São Paulo: Archivo Municipal de S. Paulo, 1916., p. 157).
  • 19
    Vilardaga (2010VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). 2010. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 283, grifo do autor).
  • 20
    Traslado do auto que mandou fazer d. Luis Diogo de Oliveira, governador do Brasil, sôbre as resoluções tomadas quanto à entrada de alguns portuguêses no sertão. Cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, 27-IX-1629 (CORTESÃO, 1951CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Jesuítas e bandeirantes no Guairá (1549-1640). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951., p. 306-309).
  • 21
    Relação feita pelos padres Justo Mancilla e Simão Masseta, quer ao rei, quer ao provincial Francisco Vazques de Trujillo, sôbre os estragos causados pela grande bandeira de Rapôso Tavares às missões do Guairá nos anos de 1628-1629. Cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, 10-X-1629 (Ibid., p. 310-339).
  • 22
    Romeiro (2008ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008., p. 225-275).
  • 23
    Consulta do Conselho Ultramarino de 17 de julho de 1709. Documentos Históricos, v. XCIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional; Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951 (apudFONSECA, 2011FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’El Rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011., p. 138-139).
  • 24
    Romeiro, op. cit., p. 242.
  • 25
    Sertanistas (SANTOS, 2018SANTOS, Amália Cristovão dos. A expulsão do sertão: elites paulistas, entre o imaginário e o território (1749-1841). 2018. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., p. 51-116).
  • 26
    Abud (1985ABUD, Katia Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições: a construção de um símbolo paulista: o bandeirante. 1985. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985., p. 92).
  • 27
    Cf. Kobelinski (2008KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e heresias: A construção do ufanismo e do ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774). 2008. Tese (Doutorado em História e Sociedade) - Universidade Estadual Paulista, Assis, 2008.) e Schneider (2016SCHNEIDER, Alberto Luiz. Os paulistas e os outros: fama e infâmia na representação dos moradores da capitania de São Paulo nas letras dos séculos XVII e XVIII. Projeto História, São Paulo, n. 57, p. 84-107, set./dez. 2016.).
  • 28
    Santos, op. cit., p. 125-126.
  • 29
    Um dos textos mais completos sobre os acontecimentos encontra-se no parágrafo referente a Mathias Cardoso de Almeida (Ibid., p. 44-58).
  • 30
    Ibid., p. 125, grifo nosso.
  • 31
    Ver os trechos contidos em Leme (op. cit.) nas páginas: t. 1, p. 163, 166-173, 208, 232-237, 271 e 276-277; t. 2, p. 44-58, 46, 47, 54, 54-58, 58, 85, 164, 178-180 e 275-283; t. 3, p. 31, 61-78 e 241-244. Algumas das narrativas repetem-se em títulos variados, por envolverem homens de diversas famílias.
  • 32
    A exclusão das repetições foi realizada de maneira conservadora, ou seja, preservando nomes duplicados em casos de dúvida ou de impossibilidade de comprovação de tratar-se da mesma pessoa. Essa diretriz foi tomada principalmente por ser comum, no período em questão, a presença de homônimos, tanto por razões circunstanciais quanto pela costumeira mobilização de nomes de avós, pais, mães, tios e tias para as descendências.
  • 33
    O domínio das artes de guerra era atribuição dos homens, entretanto Taques registra uma exceção, que consideramos digna de nota, ainda que não haja condições para nomear a mulher de quem fala o autor: “Entre muitos se fez distinto Manoel Galvão, capitão de infantaria da praça do Rio de Janeiro, que montado a cavalo, com a espada na mão, feria e matava, animando a todos, e reforçando por muitas partes os batalhões, até perder a vida. Imitou os seus altos espiritos sua mulher d. N…, que, ao lado do marido, movia a espada, tão ligeira, que parecia raio, e continuou assim ainda depois do o ver morto até que teve a mesma sorte que a de seu esposo. É lástima não declarar-se o nome desta matrona” (Leme, op. cit., t. 2, p. 259).
  • 34
    Na tabela foram usadas algumas convenções para facilitar a inserção dos dados: o sinal de positivo, “+”, corresponde a mais ocorrências na mesma página; e o asterisco, “*”, indica que uma mesma ocorrência se refere a mais de uma pessoa, sendo todas indicadas com esse símbolo. Os nomes próprios e sobrenomes foram simplificados, aproximando-se da grafia corrente - por exemplo, nas letras duplicadas ou uso de “h” mudo -, de modo a facilitar a identificação de menções correspondentes à mesma pessoa em parágrafos ou títulos diversos.
  • 35
    A imagem não oferece perfeita legibilidade dos nomes por ser dado secundário para a análise empreendida, a partir da qual verifica-se graficamente o maior preenchimento da tabela nos casos de “paulistas” do que no total das pessoas citadas.
  • 36
    Russell-Wood (1999RUSSELL-WOOD, Anthony. Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII: leituras do Códice Costa Matoso. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 15, n. 21, p. 100-118, jul. 1999.), Schneider, op. cit., e Abud, op. cit. Sobre Domingos Jorge Velhos, ver o artigo de Alberto Schneider.
  • 37
    Romeiro, op. cit., p. 234.
  • 38
    Russell-Wood, op. cit., p. 104.
  • 39
    Madre de Deus (1975 [1797] MADRE DE DEUS, frei Gaspar da. Memórias para a história da capitania de São Vicente. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1975 [1797]., p. 131, grifo do autor).
  • 40
    Ibid., p. 133.
  • 41
    Cf. Schwarcz (2005SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.).
  • 42
    Leme, op. cit., t. 1, p. 166, grifo do autor.
  • 43
    Ibid., p. 167, grifo do autor.
  • 44
    Machado (1980 [1929]MACHADO, José de Alcântara. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1980 [1929]., p. 160).
  • 45
    Ibid., p. 164, grifo do autor.
  • 46
    Leme, op. cit., t. 1, p. 227.
  • 47
    Ibid., t. 2, p. 86-87.
  • 48
    Ibid., p. 110, grifo nosso.
  • 49
    Ibid., t. 3, p. 50, grifo nosso.
  • 50
    Ibid., p. 180, grifo nosso.
  • 51
    Ibid., p. 185.
  • 52
    Ibid., t. 2, p. 73, grifo do autor.
  • 53
    Leme, op. cit., t. 2, p. 206.
  • 54
    Ibid., t. 1, p. 263.
  • 55
    Ibid., t. 2, p. 33.
  • 56
    Ibid., t. 1, p. 79, grifo do autor.
  • 57
    Ibid., t. 1, p. 79, grifo do autor.
  • 58
    Ibid., t. 3, p. 260.
  • 59
    Machado, op. cit., p. 158, grifo nosso.
  • 60
    Monteiro (1994MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 29-30).
  • 61
    Leme, op. cit., t. 2, p. 114. Ver também Ibid., p. 2.
  • 62
    Schneider, op. cit., p. 98.
  • 63
    Leme, op. cit., p. 205, grifo do autor.
  • 64
    Ibid., p. 206, grifo do autor. A progênie de Pedro Vaz de Barros, numerosa e descendente de várias mulheres, remete-nos novamente aos modos de viver dos indígenas, assimilado por colonos logo após sua chegada, tal como teria feito João Ramalho.
  • 65
    Ibid., p. 209.
  • 66
    Madre de Deus, op. cit., p. 83.
  • 67
    Leme, op. cit., t. 3, p. 209.
  • 68
    Monteiro (2005MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “ethos” nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 2, p. 4-20, nov. 2005. DOI: 10.11606/issn.1808-8139.v0i2p4-20.
    https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139....
    , p. 15).
  • 69
    Leme, op. cit., t. 3, p. 205, grifo nosso.
  • 70
    Sobre os hábitos alimentares planaltinos e as diferenciações entre o consumo no ambiente doméstico e no trânsito dos sertanistas, ver o capítulo “A comida e o modo de vida dos paulistas” (BASSO, 2014BASSO, Rafaela. A cultura alimentar paulista: uma civilização do milho? (1650-1750). São Paulo: Alameda, 2014., p. 67-136).
  • 71
    Monteiro (2005MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O “ethos” nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 2, p. 4-20, nov. 2005. DOI: 10.11606/issn.1808-8139.v0i2p4-20.
    https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139....
    , p. 13).
  • 72
    Madre de Deus, op. cit., p. 64-65.
  • 73
    Leme, op. cit., t. 1, p. 124.
  • 74
    Morse (1970MORSE, Richard. Formação histórica de São Paulo: de comunidade à metrópole. São Paulo: Difel, 1970., p. 40).
  • 75
    Fundações de vilas no planalto de São Paulo (RIBEIRO, 2015RIBEIRO, Fernando V. Vilas do planalto paulista: a criação de municípios na porção meridional da América Portuguesa (séc. XVI-XVIII). 2015. Tese (Doutorado em História Econômica) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 230-261).
  • 76
    Ibid., p. 253.
  • 77
    Política de urbanização (BELLOTTO, 2007BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conto no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). São Paulo: Alameda, 2007., p. 147-172).
  • 78
    Ibid., p. 250-252.
  • 79
    Blaj, op. cit., p. 283.
  • 80
    Araújo (2006ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006., p. 208).
  • 81
    Blaj, op. cit., p. 263.
  • 82
    Madre de Deus, op. cit., p. 87.
  • 83
    Leme, op. cit., t. 3, p. 30-31.
  • 84
    Fidalgos e lacaios (FURTADO, 2006FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006., p. 29-86).
  • 85
    Borrego (2010BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial. São Paulo: Alameda, 2010., p. 248-249).
  • 86
    Leme, op. cit., t. 1, p. 102, grifo nosso.
  • 87
    Ibid., t. 2, p. 120, 121 e 126, grifo nosso.
  • 88
    Cf. Cortesão (2006 [1953-1963]CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Alexandre de Gusmão & o Tratado de Madrid. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006 [1953-1963]. 2 t.).
  • 89
    A amplitude de suas relações com homens e mulheres das famílias principais da capitania pode ser apreendida no longo e laudatório artigo de Taunay (1923TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Pedro Taques e seu tempo: estudo de uma personalidade e uma época. São Paulo: Officinas do Diário Official, 1923.) sobre Pedro Taques.
  • 90
    Romeiro, op. cit, p. 257.
  • 91
    Abud, op. cit., p. 182.
  • 92
    Blaj, op. cit., p. 39-54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2022
  • Aceito
    08 Ago 2022
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