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Comentário VI: para ver o passado e imaginar a historiografia

DEBATES

Comentário VI: para ver o passado e imaginar a historiografia

Francisco Marshall

Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, e do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: <marshall@ufrgs.br>

A principal virtude do texto Vendo o passado: representação e escrita da história, de autoria do prof. Manoel Luiz Salgado Guimarães, é a originalidade na busca de referências para pensar um campo de problemas relevante na historiografia na atualidade, centrado nas visões do passado e em suas relações com a memória, o patrimônio, a escrita e a teoria da história. O autor evita lugares comuns e convenções da leitura historiográfica contemporânea e lança-se a sondar diferentes cenários históricos e suas problemáticas, resgatando paradigmas culturais no trato com a visão do (e no) passado e, eventualmente, sua formulação como problema do conhecimento histórico. Neste roteiro, incluem-se reflexões teóricas sobre a visualidade na história, questões sobre passado, presente, visão e patrimônio, Berlim como cenário de questões de memória, texto e imagem face à iconofobia judaica, o antiquariado e, por fim, a historiografia moderna representada pelo espírito cientificista do século XIX. A originalidade aqui significa não apenas diferença mas, especialmente, uma contribuição importante para que estas questões sejam pensadas em um marco de erudição e compreendendo um sentido de universalidade da história, muito bem-vindo na província historiográfica brasileira.

Os riscos de tal périplo, porém, são grandes, e o autor os colhe, ou é colhido por eles, sobejamente. Entre esses, destaca-se que a abordagem de tais domínios temáticos – entre a teoria histórica, a antiguidade (oriental e tardia), o medievo, a renascença, a modernidade e a contemporaneidade – requer uma efetiva carga de erudição que não se vê na escrita do artigo, que, em cada tópico, é guiada por escassos avatares, na maioria dos casos insuficientes para dar conta seja da problemática histórica específica seja de sua atualidade e profundidade crítica. O segundo risco, parcialmente mitigado pela conclusão do artigo, diz respeito à complexidade temática do quadro composto e sua extensão retórica; são abordados temas e contextos aparentemente díspares, certamente distantes, o que exige do autor uma certa carga de enunciação contextualizadora e suscita no leitor a expectativa de uma apoteose redentora de tais temas, por meio de uma articulação interpretativa consistente. Ao final, em que pese o volume de comentários acumulados, esta articulação não se efetiva, sendo substituída por algumas questões epistemológicas contemporâneas, arroladas como se pudessem atuar como conexões dialéticas face ao exposto, simbolizando os argumentos que o leitor espera encontrar de modo analítico após todo o percurso redigido. Em vista disso, cabe considerar este artigo sobretudo como um experimento problematizador interessante, ao qual tanto o autor como nós, seus interlocutores, podemos acrescentar esforços para lograr a erudição e a objetividade analítica requeridas pelo tema, de inequívoca atualidade. É o que aqui farei, acrescentando umas poucas notas tópicas e contributivas, seguro de que o autor poderá recolhê-las ou desprezá-las, a seu critério, sem afetar-se pela delicada situação de diálogo e enfrentamento característica de uma seção de debates.

Primeiramente, o autor acerta em cheio ao ler o belo texto de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, Rumo a uma história visual, como referência teórica para inaugurar e inspirar a reflexão. (MENESES, 2005, p. 33 a 56). Trata-se de um divisor de águas, um texto que comenta com erudição soberana o campo teórico entre cultura visual e história, e analisa criticamente suas diferentes escolas, autores e metodologias, sempre do ponto de vista de um historiador preocupado com as perspectivas contemporâneas de um ambiente de análise que abrange história cultural, história da arte, iconologia, sociologia da cultura, estudos patrimoniais, psicologia histórica e outros setores do humanismo. Deste texto, Manoel L. S. Guimarães retira três categorias básicas (visual, visível e visão) com que, indica Bezerra de Meneses, podemos pensar este campo, mas pouco as utiliza como critério ou vocabulário no desenvolvimento da análise, como não se serve, também, da luxuriosa erudição então oferecida como referência pelo criador desta seção de debates dos Anais do Museu Paulista, Dr. Ulpiano T. Bezerra de Meneses. Em vista disso, cabe perguntar pela razão da leitura, uma vez que dela não decorre o contágio teórico prometido pela posição inaugural do texto e por sua relevância. Em uma visão em perspectiva, fica-se com a impressão de que, por alguma razão, a reflexão é conduzida predominantemente para a seara da historiografia moderna, em detrimento do campo da visualidade. Entretanto, como o texto citado indica claramente, o repertório teórico-metodológico no campo da visualidade histórica é amplo e requer reconhecimento, posicionamentos e certas práticas.

A questão patrimonial, abordada imediatamente, com referência também a outro ensaio fundamental, publicado por François Hartog, permite ao autor formular de modo instigante o tema da visualização do passado no contexto da cidade contemporânea, ruínas e vestígios do passado na visão presente, indagando-se sobre a função atual dessa visão e os efeitos da memória patrimonializada sobre o ethos contemporâneo. Ao conduzir o tema para a leitura de Berlim, designada por Hartog como "cidade para historiadores" e ora eleita por Huyssen como "o locus ideal para a investigação dos investimentos contemporâneos numa política de memória e lembrança assim como numa preocupação com relação à visualização e exposição do passado", caberia considerar que o dístico "memória e lembrança", repetido pelo autor, particulariza um dos vetores do campo da memória (lembrança) e desdenha outro (esquecimento), decisivo para compreender os embates de Mnemosyne em Berlim. Efetivamente, a memória dispõe ali de um grau de legitimidade no tempo presente que exige, como contrapartida, grandes porções de esquecimento, sob a forma de remoção da presença – erosão visual de memórias indesejadas. Tal é o caso, sobretudo, do prédio do Palast der Republik, (outrora) localizado junto ao centro cívico da cidade, na Schlossplatz, à margem do Spree, e que sediou por muitos anos o parlamento da cidade comunista, até ser interditado, por razões sanitárias (riscos de contaminação por asbesto), em 1990. A construção deste símbolo do período totalitário (comunista) já fora cercada de polêmica, por impor, em 1950, a destruição de um belo palácio romântico (avariado pela guerra). Após a queda do muro, o prédio, de estilo funcional moderno e muito destoante do contexto estético, foi alvo de um debate público, conduzido sob a forma de um fórum, pela Humboldt Universität, seguido de escrutínio em que a população decidiu por sua destruição e remoção, ora em curso. Outro caso significativo é o do Neue Wache, o templo-monumento dedicado à memória, em um projeto original de Karl Friedrich Schinkel, postado no coração de Berlim, na alameda Unter der Linden. Hoje ele abriga um monumento de Käthe Kollwitz e define-se como o memorial central da Alemanha para as vítimas da guerra e da tirania. Mas, desde 1931, sucessivamente dedicado a diferentes vítimas da história e sujeitos da memória, o Neue Wache guarda em seu sítio a mais clara expressão estratigráfica das hegemonias de memória na cidade, bem como seu sentido soberano de atualidade. A memória em Berlim, portanto, não é só lembrança – nem o embate do passado se resolve como monumento e futurismo –, mas é, sim, um território politizado, em que se pronuncia uma tensão contemporânea muito forte, orientando o regime de memória da cidade. A este desmemoriar-se e rememorar-se contrapõe-se uma série de evocações e demarcações sensíveis do holocausto, sobretudo no bairro Mitte, onde o nome e memória das vítimas judaicas aparece em blocos de latão dourado que substituem as pedras do calçamento, diante das casas de onde foram subtraídas para a morte. Esses blocos pungentes – memória patética aos pés dos transeuntes – falam muito mais que todo o acervo e belíssimo espaço do Museu Judaico (projeto de Daniel Libeskind). O muro em si, embora tenha se tornado a redenção dos vendedores de lembranças turísticas, é relembrado de modo discreto, preservado em um único ponto, ao lado de um cemitério e um pequeno memorial. A cidade preferiu removê-lo quase integralmente. O passado-lembrança é coordenado com o passado-esquecimento para assegurar à cidade a dose de contemporaneidade que lhe permita sobreviver e avançar. Em Berlim é preciso, portanto, uma visão intencionada para destrinchar entre o visível e o invisível da memória.

Algo muito mais complexo se passa no caso da relação entre texto e imagem, quando equacionada sobre raiz mosaica, o que implica considerar também, em se tratando de visões e imagens, a iconofobia judaica e seu eventual reflexo como iconoclasma cristão. É pouco provável que a interpretação freudiana de Assmann dê conta de uma sintomática cultural tão forte e tão marcante das sociedades antigas, sobretudo em seus momentos críticos. A questão é bastante mais complexa e não favorece generalizações. Consideremos alguns (dos muitos) fatores adicionais:

1. há uma vocação anicônica no mundo judaico antigo, realizada como hegemonia de uma casta de sacerdotes literatos, defensores da primazia do texto sobre a imagem e alegadamente alérgicos à descrição plástica do criador e sua obra;

2. a este componente, soma-se, na margem helênica, o ataque à pintura e aos artistas, proferido por Platão na República e convertido em doutrina escrita (aliás, pouco considerada entre os gregos);

3. apesar disto, entre os séculos I a.C. e III d.C., floresce uma erudição judaica com grande cultura greco-romana, que se expressa com riqueza plástica e simbologia complexa (estudada por Erwin Goodenough em obra clássica), conciliando tradições greco-romanas, babilônias e judaicas; este movimento põe em cheque o aniconismo da ortodoxia antiga. Seu principal centro foi Sephoris (Zipori, em Israel), onde foi redigida a Mishná e em cuja sinagoga se encontram mosaicos belíssimos, semelhantes a vários outros da Galiléia judaico-romana;

4. a cristandade valeu-se de modelos e formas do paganismo (i. e., arte greco-romana) em vários processos de mimese, ao menos até a época de Justiniano. A arte tardo-antiga é caracterizada por este fluxo, sem que se celebre a cisão entre texto e imagem, própria do judaísmo antigo e da tese freudiana de Assmann. Em um certo momento em torno do século VI d.C., morrem os artistas, as artes e os modelos da arte antiga, em um cenário de grandes perdas culturais;

5. no Egito copta, altares e imagens de Osíris foram sistematicamente convertidos em templo e imagem de Cristo. Os alvos principais de cristãos fundamentalistas no Egito eram literatos helenizados, seus altares e bibliotecas;

6. como se pode interpretar no caso da remoção do altar da vitória do senado romano, as reações dos cristãos às imagens eram variadas, mas, como se vê nos argumentos de Ambrósio de Milão, podiam até mesmo aceitar o imaginário antigo, sobretudo o escultórico, apenas como arte, destituído de implicação religiosa; em outros casos, depredavam templos, altares e bosques para varrer da paisagem a marca do paganismo (sobretudo após Teodósio I);

7. a institucionalização do cristianismo no império romano a partir do século IV significou a abertura de canais de diálogo e de conflito com a tradição clássica; não há uma solução simples, como a proposta por Facundo (citado pelo autor): pelo contrário, abre-se uma nova tensão entre espaço, doutrina e imagem, por vezes vivida como crise;

8. a emergência de fenômenos iconoclastas no Mediterrâneo oriental recende antipaganismo, platonismo traduzido, aniconismo judaico e disputas de poder dentro da Igreja. Estes fatores estão presentes na crise iconoclástica do século VIII d.C., cujo alvo não é a idolatria de fundo egípcio ou o politeísmo, mas sim o ícone bizantino e a plasticidade mediterrânica pós-clássica. Essas referências ajudam a perceber que o embate entre escrita e imagem tem uma grande complexidade histórica entre o início da idade do ferro e a idade da cruz, e não se deixa equacionar facilmente por meio de oposições lineares entre politeísmo e monoteísmo nem por correspondências tautológicas deste conflito, figurando-o como oposição (ou conciliação) entre imagem e texto. O livro mais instigante no contexto tardo-antigo é Art and the Roman viewer, de Ja? Elsner, comparável em relevância ao clássico de Paul Zanker, traduzido como The power of images in the age of Augustus; com eles – e todas as páginas de Peter Brown – podemos iniciar esta análise.

Creio que a perspectiva mais fecunda do texto em debate se encontra na análise da relação entre antiquariado e historiografia moderna. Há muita matéria para discordância nas asserções sobre colecionismo e museus, bem como no estabelecimento de marcos temporais e espaciais tão difusos, mas a tese proposta e sua forma de argumentação são no mínimo instigantes, certamente merecedoras de atenção. Neste passo, o autor encontra-se em território amigo, onde consegue desenvolver de modo imaginativo um fundamento importante, com o qual podemos compreender melhor o momento crucial em que a historiografia moderna, exatamente ao se constituir acadêmica e metodologicamente, afastou-se estrategicamente do mundo das imagens. Nenhum retorno (ou construção) tem sido mais penitente do que este da história ao mundo da imagem, no qual se incluem, naturalmente, a visão e as visões do (e no) passado, bem como os sentidos da visão e da visualidade no presente. O texto do prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães o comprova graficamente, e deixa claro que não encontraremos saídas destes impasses sem muita imaginação e leitura – antiga e contemporânea.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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